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terça-feira, novembro 25, 2014

A detenção de Sócrates é um caso político

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Novembro de 2014
Crónica 52/2014


A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa.

1. Os políticos encontraram rapidamente a fórmula para evitar comentar a detenção de José Sócrates e as acusações que impendem sobre ele de branqueamento de capitais, fraude fiscal e corrupção. Invocando a “separação de poderes”, todos acharam por bem repetir que “à justiça cabe o que é da justiça e à política o que é da política”, não fazer comentários sobre este caso específico e fazer votos de que a justiça siga o seu curso sem perturbações.

A contenção é de louvar, até porque não se conhecem ainda as acusações concretas, muito menos os indícios que levaram o Ministério Público a acusar o ex-primeiro-ministro e menos ainda a eventual defesa de Sócrates. Mas há uma coisa que é inegável: este caso pertence à política, é muito mais um caso político do que um caso judicial e está a ter e vai ter um impacto político considerável. Não porque José Sócrates seja um político e um ex-governante ou um ex-primeiro-ministro. Se Sócrates fosse acusado de violência doméstica ou de contrabando de droga, essas acusações poderiam ser absolutamente independentes da sua acção política. Mas a acusação que é feita a Sócrates é de corrupção no exercício de cargos políticos — as outras acusações decorrem desta — e nada poderia ser mais político do que isso.

Uma das razões para tentar separar a política deste caso judicial é o desejo de proteger o mal-afamado nome da política. Mas, por esta ordem de ideias, qualquer crime cometido por um político no exercício de funções políticas, através de instrumentos a que tivesse acesso na sua qualidade de político, fossem quais fossem os prejuízos causados em bens públicos, nunca seria da ordem da política porque, sendo um crime, seria da ordem da justiça. O raciocínio sugere uma ideia imaculada da política e não faz sentido.

2. A detenção de Sócrates é um caso político. O que não significa que deva ser comentada levianamente e que não deva haver uma enorme prudência nas afirmações produzidas, devido à presunção de inocência a que todos os arguidos têm direito.

Alguns órgãos de comunicação fizeram investigações próprias e, baseados nos factos que consideram ter provado, afirmam que “Sócrates fez” isto ou aquilo. Trata-se de um risco que querem correr e apostam nisso a sua reputação. Mas um órgão de comunicação que não possua investigação própria para sustentar afirmações desse tipo tem de ter o cuidado de não as fazer e de não tratar as acusações como se se tratasse de factos provados.

3. A detenção de Sócrates lança uma imensa sombra sobre o PS e sobre a sua actual liderança. Lança uma sombra desde já — mesmo antes de conhecidas as acusações em concreto — porque a suspeita é em si uma sombra e não há formalismos jurídicos que a possam afastar. A suspeita é um sentimento que não obedece à letra da lei. O facto de Sócrates e três pessoas do seu círculo terem sido presas após uma investigação que durou um ano significa que existem fortíssimos indícios contra si. Não são a prova definitiva da sua culpa, mas são suficientes para que todos desconfiemos. A “presunção de inocência” é apenas uma regra que a justiça e a sociedade têm de seguir porque existe a possibilidade de o arguido ser inocente (ou de, pelo menos, não se conseguir provar a sua culpa, e o direito obedece à regra in dubio pro reo), mas é evidente que, hoje, não podemos presumir que Sócrates esteja inocente. Podemos apenas fazer um esforço racional para não o condenar desde já. Aliás, a própria justiça não presume a sua inocência. Se a presumisse, não haveria razão para manter Sócrates na cadeia durante quatro dias e pedir-lhe-iam apenas para se apresentar no dia seguinte enquanto durasse o seu interrogatório.

4. A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa, que foi não apenas ministro de José Sócrates, mas seu número dois no governo e um seu apoiante durante os anos de governação e até à actualidade. Não se trata de "crime por associação” mas sim de responsabilidade política. Se alguém apoia e avaliza a acção política de outrem e se essa pessoa comete um crime no decurso dessa acção política, é evidente que o primeiro partilha alguma responsabilidade. É isso que significa avalizar uma pessoa ou uma política. No melhor dos casos, o avalista agiu de forma leviana ou é um péssimo juiz de caracteres.

E a sombra também não pode deixar de afectar os governos onde Sócrates possa ter cometido os actos de corrupção de que é acusado e as pessoas que colaboraram com ele mais de perto, já que é pouco provável que, a ter cometido de forma continuada os actos de que é acusado, os tenha cometido sem alguma conivência de outros.

A credibilidade de Costa ficou seriamente afectada pela prisão de Sócrates e a sua capacidade para reunir uma equipa à sua volta fica limitada pela imperiosa necessidade de excluir dela os socratistas mais visíveis. Se Costa ainda pode sonhar com a maioria absoluta tendo em conta o circo que irá ter lugar até às eleições e os nomes que entretanto irão cair à volta de Sócrates, só o futuro dirá.

terça-feira, setembro 02, 2014

A maquilhagem dos currículos e os documentos desaparecidos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Setembro de 2014

Crónica 41/2014

O mínimo dos mínimos de informação a que temos direito é o currículo dos detentores de cargos públicos
1. O Governo, através da secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco, nomeou a 18 de Agosto e exonerou a 29 de Agosto Mário João Coutinho dos Santos para exercer o cargo de coordenador da Unidade Técnica de Acompanhamento e de Monitorização do Sector Público Empresarial. A razão oficial do afastamento são “razões pessoais” alegadas pelo exonerado, as razões não oficiais são o facto de Coutinho dos Santos ter sido, enquanto director financeiro do Metro do Porto, responsável pela subscrição de alguns dos swaps que nos estão a custar a todos uma não pequena fortuna - facto que foi denunciado pela imprensa logo após a nomeação.
O episódio não seria mais sórdido do que muitos outros protagonizados pelo Governo se não se desse o facto de a passagem de Coutinho dos Santos pela direcção financeira do Metro do Porto não constar do currículo anexo ao despacho de nomeação. Coutinho dos Santos diz que enviou um detalhado “currículo com 14 páginas ao Ministério das Finanças”. Só que… desse currículo também não consta a passagem pela direcção financeira do Metro do Porto e o próprio interessado tentou negar ao Público (ver aqui:tinyurl.com/ndcyhog) que tivesse assumido essa responsabilidade.

É possível que uma pessoa se esqueça de boa-fé de um pormenor no seu currículo. Mas ser director financeiro do Metro do Porto “de Julho de 2006 a Abril de 2010”, datas que a própria empresa confirmou ao Público, não é um pormenor. E as tentativas feitas pelo próprio de minimizar a sua responsabilidade nesse período sugerem que a ausência deste item no currículo não terá sido fruto de um lapso.

Os factos são que Coutinho dos Santos escamoteou informação relevante do currículo que entregou ao Ministério das Finanças e que este fez o mesmo na informação que disponibilizou aos cidadãos. São dois factos graves, ainda que não inéditos (lembremo-nos de Rui Machete, Franquelim Alves, Pedro Passos Coelho...).

Acontece porém que o mínimo dos mínimos de informação a que temos direito sobre os responsáveis políticos, os detentores de cargos públicos ou pagos pelo erário público é o conteúdo integral dos seus currículos políticos e profissionais. Sem serem maquilhados pelos assessores do Governo, nem editados pelas agências de informação do PSD, nem expurgados pelos gabinetes de advogados ao serviço dos partidos. Que informação deve ser tornada pública? Toda a informação profissional, os cargos ocupados, remunerados ou não, toda a actividade política e as organizações a que se pertence e pertenceu e os cargos aí exercidos, a informação judicial de carácter público.

Tomemos como exemplo a informação que é fornecida no site do Governo sobre os ministros e secretários de Estado e sobre os deputados da Assembleia da República no site do Parlamento. Trata se de uma gigantesca colecção de mentiras por omissão, uma operação de branqueamento, onde é nítida a preocupação em fazer desaparecer as relações entre ministros e deputados e o poder económico. Paulo Portas, por exemplo, “Fundou e dirigiu um centro de sondagens.” Passos Coelho “conciliou a gestão de empresas - no campo da energia e ambiente - com a docência e a Presidência da Assembleia Municipal de Vila Real.”

Um argumento que já ouvi em favor dos mini-CV é que são mais legíveis. Mas aqui vai uma sugestão: um link. Uma página com o mini-CV e um link para uma página com o CV integral que todos queremos ler. Actualizado.

Os partidos de esquerda podiam dar o exemplo da informação que deve ser fornecida aos cidadãos e começar a divulgar CV detalhados dos seus dirigentes e deputados, como nós gostaríamos de ter para os Coutinhos dos Santos e Passos Coelhos deste mundo. Seria fácil e instrutivo.
2. Infelizmente, não se trata apenas de CV. Os documentos oficiais têm o hábito de desaparecer nas mãos dos homens e mulheres do “arco do poder” e deste Governo em particular. Ou de serem entregues a escritórios de advogados privados por razões nunca explicadas. 

Recentemente, ficámos a saber que documentação essencial relativa à compra e ao contrato de contrapartidas dos submarinos não se encontra em lado nenhum. Ninguém sabe onde está, nem onde deveria estar nem à ordem de quem foi guardado ou desapareceu. Este desvio de documentação oficial é um crime que fragiliza a posição do Estado, mas mostra bem até que ponto esse Estado foi sequestrado e está a ser roubado pelos mais negros interesses privados.
É indispensável definir regras (ou clarificar as que existem, que são talvez demasiado confusas para serem cumpridas) quanto à produção e guarda de documentação deste tipo. E, já agora, criar o saudável hábito de fazer e guardar actas das várias reuniões onde se discutem assuntos oficiais e que são em geral tratadas como se se tratasse de conversas de vizinhos no patamar da escada. Percebe-se a informalidade e a repugnância por registos escritos. Eles podem um dia responsabilizar alguém. Essa informalidade e essa repugnância são comuns no mundo do crime organizado. Mas, como se trata do nosso país, da nossa vida e do nosso dinheiro, nós gostávamos que o Governo adoptasse um comportamento diferente.

quinta-feira, julho 31, 2014

Como roubar e sair impune: roube muito e use gravata

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2014
Crónica 36/2014


Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA como se fossem respeitáveis?

O PÚBLICO noticiou esta semana o caso de um ex-presidente da Junta de Freguesia de S. José, em Lisboa, João Miguel Mesquita, eleito pelo PSD, que foi condenado em Abril passado a quatro anos e meio de prisão por ter “gasto em benefício próprio”, entre 2005 e 2007, 12 mil euros pertencentes à autarquia.

O Ministério Público tinha-o acusado de desviar 40 mil euros e de falsificação de documentos, mas o tribunal só considerou provado o desvio dos 12 mil euros. A pena de prisão de João Miguel Mesquita ficou suspensa na condição de que o condenado pagasse à autarquia os 12.000 euros de que se tinha “apropriado”, o que significa que não existiu qualquer sanção real para o crime e que o condenado apenas será obrigado a repor o que roubou, como se se tivesse enganado nas contas com a melhor boa-fé do mundo e fosse o mais impoluto dos autarcas.

A notícia chamou-me a atenção porque me recordou um episódio passado comigo. Há uns anos, ao sair de uma carruagem depois de uma viagem de metro, senti-me mais leve do que quando tinha entrado. Ao apalpar os bolsos, percebi que alguém me tinha palmado a carteira, com documentos e uns escassos euros.

Apresentei queixa, substituí os documentos e, passados meses, recebi um telefonema da polícia anunciando-me que tinham prendido um carteirista e que, no meio do seu espólio, lá tinham encontrado os meus documentos. Fui testemunhar a tribunal, juntamente com outras vítimas, e o carteirista, que confessou os crimes, foi condenado a uns anos de cadeia. Não me recordo de o Ministério Público ter nessa altura proposta ao carteirista a devolução do dinheiro roubado em troca de uma pena suspensa e de uma libertação imediata mas penso que o arranjo lhe deveria ter agradado, já que no meu caso a “indemnização” seria de vinte euros. A razão dos dois pesos da Justiça é evidente: o meu carteirista usava uma camisa aberta aos quadrados e um blusão de má qualidade, enquanto que os presidentes das Juntas usam em geral fato e gravata. Para mais, o ex-presidente da Junta pertencia a um partido do “arco do poder” e o meu carteirista provavelmente não teria actividade política.

Todos os casos que conheço reforçam a minha convicção de que existe uma aplicação do Código Penal para quem usa gravata e outra, infinitamente menos benévola, em Portugal e em todos os outros países do mundo, para quem não usa.

Tomemos o exemplo daquele que é um dos maiores roubos da História: a manipulação da taxa Libor, ao longo de muitos anos, por um cartel de bancos que incluía instituições pretensamente tão respeitáveis como o Barclays Bank, UBS, Citigroup, The Royal Bank of Scotland, Deutsche Bank, JPMorgan, Lloyds Banking Group, Rabobank e outros. A manipulação de uma taxa interbancária de referência como a Libor, em benefício próprio, traduziu-se em perdas para muitos milhões de indivíduos e organizações em todo o mundo. Milhões de estudantes ingleses, de lojas francesas, de quintas italianas e de famílias portuguesas viram as mensalidades dos seus empréstimos aos bancos subir durante anos para que esses mesmos bancos e outros vissem os seus lucros crescer. Tratou-se, em linguagem corrente, de um roubo. Não um roubo como o do meu carteirista mas um roubo sistemático, generalizado, que defraudou milhões e que acumulou riquezas incalculáveis nos bolsos de quem já era imensamente rico.

O que aconteceu a estes bancos? Alguns pagaram multas, outros nem isso porque denunciaram os cúmplices em troca de imunidade, mas ninguém foi condenado. Houve uns corretores expulsos de uns países, detenções para interrogatórios e foi tudo. Talvez uns quantos acabem por ser presos - os próprios bancos acusados tentarão encontrar bodes expiatórios - mas nunca o castigo será proporcional ao crime. Todos usam gravata. Alguém espera que o imenso buraco do BES tenha responsáveis criminais?

O ex-presidente da Junta, apesar de tudo, foi condenado e a sua reputação saiu ferida, mas os bancos ladrões e os seus administradores e directores continuam a ser referidos na imprensa como entidades respeitáveis e os seus quadros são invejados nas revistas, bajulados pelos Governos e pagos (legalmente) a peso de ouro.

A crise moral que atravessamos traduz-se nisto: condenamos carteiristas à cadeia em nome da Justiça e tratamos com deferência e apresentamos como exemplo organizações criminosas que operam em grande escala, como os bancos. Não é uma novidade, mas o facto de não ser uma novidade e de continuarmos a tolerar a situação só a torna mais grave. Continuamos a tratar com respeito Governos que se apropriam de património público para o vender ao desbarato e que destroem monopólios do Estado para beneficiar interesses privados obscuros - como o Governo português está a fazer com a lotaria.

Por que respeitamos estes ladrões? Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA ou tantas outras como se fossem respeitáveis? Por que não exigimos que obedeçam aos padrões éticos e legais que exigimos aos outros? Apenas porque usam gravata e sabem usar talheres? Apenas porque ficaram ricos com o dinheiro que roubaram? Somos assim tão parvos?

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/como-roubar-e-sair-impune-roube-muito-e-use-gravata-1664854

terça-feira, junho 17, 2014

Pouco pão e muito circo, morte e bocejo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Junho de 2014
Crónica 30/2014


É tudo cómico na FIFA, porque todos os dias a FIFA nos espeta com uma tarte de creme na cara.

O poeta espanhol António Machado escrevia, uns anos antes da Guerra Civil, que havia uma Espanha que morria, enquanto outra Espanha bocejava. E acrescentava, profético: "Españolito que vienes/al mundo, te guarde Dios/Una de las dos Españas/ha de helarte el corazón."

Também eu sinto que há um Portugal que morre, enquanto o resto de Portugal boceja. Ou cachecoleja com o Mundial. Ou se mobiliza para o duelo no PS, trocando dichotes. Ou faz contas aos votos das próximas eleições e aos lugares que ficarão sujeitos a licitação. Ou esfrega as mãos de satisfação ao ver como se conseguiu “reduzir os custos unitários do trabalho”, “flexibilizar a legislação laboral e agilizar os licenciamentos” e “promover a requalificação e mobilidade na função pública”.

O bocejo não é um desinteresse de tudo. É apenas um desinteresse por quem morre, pela outra Espanha, pelo outro Portugal, pelos outros, um enorme tédio e desinteresse por quem não aparece na televisão e nas revistas e por quem não contribui para o seu embrutecimento. Por quem é pobre e doente e velho e ignorante e desempregado e por quem quer que seja que pertença às minorias que toleramos.

Há no discurso político uma tal preocupação com a peleja partidária para a mera conquista de terreno e uma tal indiferença pelas coisas verdadeiramente importantes que “o Portugal que morre” morre anónimo e esquecido, calado e cansado. Se retirássemos a retórica e a dissimulação, o que restaria ao discurso político que ouvimos? E quem sobraria no panorama político? Dez pessoas? Três?

Encontrei ontem no Facebook um link para um sketch do humorista britânico John Oliver, que muitos conhecem da sua participação no Daily Show de Jon Stewart. O sketch é sobre o Mundial do Brasil e a FIFA, a corrupção na FIFA, o Mundial de 2022 no Qatar, o egotismo e a boçalidade do seu presidente, Sepp Blatter, a imensíssimamente descomunal lata do seu secretário-geral, Jérôme Valcke, os estádios monstruosos e inúteis no Brasil, o estatuto de “Estado dentro do estádio” que a FIFA possui, ditando as suas leis, criando os seus tribunais especiais, fugindo a todos os impostos, absorvendo fundos que os países podiam e deviam dedicar ao desenvolvimento e ao combate à pobreza, acumulando uma fortuna colossal que foge a todos os escrutínios, como organização internacional e “sem fins lucrativos” que finge ser.

Curiosamente, no link que encontrei no Facebook, John Oliver era apresentado como “jornalista” e os comentários cumprimentavam a qualidade do seu “jornalismo”. O facto não é apenas fruto da ignorância: de facto, havia no seu humor mais jornalismo (mais investigação, mais preocupação em aprofundar e contextualizar a história, mais isenção no relato, mais preocupação social, mais urgência de denunciar) do que em muitas peças realmente jornalísticas. O que é espantoso é que a peça era singularmente objectiva. O grosso do “humor” era apenas uma colagem inteligente de notícias sobre a FIFA. O humor nascia do absurdo da prática da FIFA, do gigantesco sem-sentido da sua actuação, do despropósito das declarações dos seus dirigentes, da insensatez da sua existência, da arrogância da sua relação com os Estados. É tudo cómico na FIFA porque o que todos nós permitimos que esta organização faça é totalmente absurdo e sem sentido. The joke is on us! É tudo cómico na FIFA porque todos os dias a FIFA nos espeta com uma tarte de creme na cara e, como sabemos, isso é sempre cómico.

Oliver é humorista e não jornalista, mas é interessante verificar como é cada vez mais frequente que as verdades surjam nos programas de humor e a propaganda nos programas jornalísticos. Sim, eu sei que já foram publicados trabalhos jornalísticos sobre o lado negro da FIFA. O problema é que são infinitamente minoritários e, depois disso, toda a comunidade jornalística continua a tratar a FIFA como uma organização idónea e os seus campeonatos como os mais benignos eventos do mundo e todos os poderosos do mundo continuam a apertar a mão a Sepp Blatter e a Jérôme Valcke.

O que torna a informação sobre a FIFA imensamente divertida é a colagem que Oliver fez e que os media em geral não fazem, apesar da disponibilidade da informação que a Web permite. Porque é que os jornalistas não fazem a mesma coisa? Porque é não nos fazem rir à custa dos poderosos? Porque alguém os convenceu de que devem ter como critério o interesse do público e não o interesse público. E, para metade da população (mundial, portuguesa, brasileira), as preocupações com a corrupção e com as isenções fiscais da FIFA fazem-nos bocejar. E talvez seja mais do que metade. Há brasileiros que pedem menos bola e mais escola? Educação padrão FIFA? Transportes gratuitos? Os adeptos bocejam, enquanto esperam a hora do desafio.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, março 25, 2014

O arco da corrupção

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Março de 2014
Crónica 18/2014

Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser.
Existem diferenças de monta entre as análises feitas à esquerda e à direita sobre a nossa crise económica e financeira. Essas diferenças têm que ver com as diferentes perspectivas sobre a origem dos nossos males, com o diagnóstico dos males em si e com o prognóstico.

Quanto às origens, enquanto a esquerda coloca de uma forma geral a tónica nas regras de funcionamento do euro, na crise financeira de 2008, na consequente redução das receitas do Estado e aumento de despesas sociais, na austeridade ela própria e na debilidade da nossa estrutura produtiva, a direita coloca em geral a tónica num excesso da despesa do Estado — seja devido aos investimentos em grandes projectos ou aos serviços do Estado social — e na corrupção.

A corrupção está também presente nas análises à esquerda, mas é em geral tratada com alguma contenção, já que a esquerda considera disparatado colocar este factor no topo da lista de responsáveis pelo empobrecimento do país, pelo desemprego e pela perda de direitos sociais. De facto, mesmo que Portugal fosse o mais impoluto dos países, a nossa situação económica, social e política não seria substancialmente diferente, se se mantivessem todos os outros factores.

Esta diferença de perspectivas é rica em consequências: a primeira é que a mensagem da esquerda é dificilmente compreensível (o que é “a arquitectura do euro”? o que é “a soberania monetária”? o que foi “a crise de 2008”?), enquanto a da direita é fácil de perceber — ficámos sem dinheiro porque gastámos acima das nossas possibilidades e porque nos andaram a roubar.

Podemos dizer que a mensagem da direita é uma descarada mentira ou que é uma simplificação abusiva. Seja como for, ela passa mais facilmente para a opinião pública. É simples e fácil de reproduzir.

Esquerda e direita podem discutir a questão da despesa do Estado, mas é impossível um acordo total sobre estas questões, onde qualquer compromisso obrigará a cedências mútuas: qual deve ser o papel do Estado no fornecimento de serviços sociais essenciais como a educação, a saúde e a Segurança Social? Que tipo e que nível de protecção deve o Estado garantir aos mais desprotegidos? Que papel deve o Estado guardar para si? O que deve fazer em nome próprio e o que pode subcontratar? Deve executar e gerir ou regular e encomendar? Que nível de gastos são admissíveis? Que impostos estamos dispostos a pagar para garantir as funções do Estado?

No entanto, sobre a questão da corrupção, não existem, em princípio, diferenças de opinião entre a esquerda e a direita: ambos os campos acham que não se deve roubar e que é particularmente feio roubar o dinheiro da comunidade.

No entanto, apesar disso, a denúncia vociferante da corrupção é usada com frequência como recurso retórico da direita — é mesmo típica da direita populista “antipolítica” emergente — e só raramente ele ocupa um papel central nas posições da esquerda.

Este facto é tanto mais estranho quanto a corrupção é um fenómeno especialmente ligado à prática política dos partidos do chamado “arco da governação” — tanto, aliás, que seria mais rigoroso usar a expressão “arco da corrupção” — e quanto as suspeitas ou casos de corrupção são raros e combatidos com particular veemência nos partidos à esquerda destes. Apesar disso, esta esquerda, piedosamente, continua a considerar a corrupção como um epifenómeno da política, independente das ideologias, e recusa-se no seu discurso político a estabelecer um laço entre os partidos do “arco da governação” e a corrupção, como a simples correlação estatística sugeriria.

A direita, porém, amalgama alegremente no seu discurso corrupção e despesas do Estado, sugerindo que as duas coisas possuem uma estreita relação e que a segunda alimenta a primeira. Nas entrelinhas do discurso do Governo, do PSD e do CDS, nos blogues da direita, nas intervenções de Paulo Morais e Marinho e Pinto, acção do Estado e corrupção parecem ser duas coisas indissociáveis, onde um alargamento da primeira (que a esquerda defende) não pode deixar de provocar um aumento da segunda.

Por estas razões, é fundamental que a esquerda, sem perder de vista o combate ideológico e o debate das opções políticas, se empenhe sem hesitação no combate à corrupção, que deve ser, para muitos cidadãos, a causa central da acção política, da mesma forma que a percepção de uma corrupção generalizada é a causa do seu afastamento da actividade políitica e até do simples voto. Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser. A corrupção é o mais pernicioso factor de desigualdade de uma sociedade.

O escândalo da prescrição do processo de Jardim Gonçalves, os escândalos anunciados da prescrição de outros crimes cometidos no âmbito do mesmo caso BCP, do caso BPN ou do caso BPP são armas de destruição maciça da credibilidade das instituições, da justiça, da política e da democracia. Uma lei que não é igual para todos não pode sustentar uma democracia. E todos estes casos de corrupção, fraude, abuso de confiança, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, são casos de corrupção permitidos pelos altos dignitários do “arco da governação”. É bom lembrá-lo. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 05, 2013

O Governo e o PS ou o lume e a frigideira

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Fevereiro de 2013

Crónica 5/2013

É possível que Costa seja o melhor candidato a PM a que este país pode aspirar. Se assim é, estamos pior do que julgávamos

1. Nos últimos anos, fomo-nos habituando à ideia de que António Costa seria o melhor a que podíamos aspirar como primeiro-ministro, se considerássemos os políticos à esquerda do centro. Não sendo concebível uma maioria eleitoral de esquerda sem o PS, o PM a sair de uma eventual maioria de esquerda teria de vir daquele partido e Costa parecia ser o mais potável. Tem uma carreira de governante prestigiado, tem sido um presidente de câmara aceitável e capaz de gerir alianças, parece determinado mas sensato, tem a suficiente agressividade política mas não parece ser comandado pelos seus ódios pessoais, demonstra preocupação social, consegue construir um discurso alternativo ao do Governo ainda que na variável português suave, tem à-vontade e a suficiente capacidade de expressão e argumentação - o que o torna um tigre da Malásia ao lado de periquitos como Pedro Passos Coelho ou António José Seguro - e, o que é essencial num lider político, não põe as sobrancelhas em acento circunflexo para se dar ares de estadista. Para mais, o que começa a conferir uma certa excentricidade a um líder partidário, é licenciado pela Faculdade de Direito e não pela Universidade Lusíada, como Passos Coelho; nem pela Independente, como José Sócrates; nem pela Autónoma, como Seguro.


É verdade que apoiou, cobriu, acompanhou e desculpou José “Zé” Sócrates para além do que seria imaginável ou conveniente, mas pensávamos, apesar disso, que ele seria o melhor possível, neste mundo onde a oferta não abunda. Os acontecimentos dos últimos dias não vieram desmentir isto. É possível que Costa continue a ser o melhor candidato a PM a que este país pode aspirar. O que os últimos dias vieram mostrar foi que, se isto é o melhor a que podemos aspirar, estamos mais tramados do que julgávamos.


A chatice é que um líder político não se faz em seis meses e os últimos anos não parecem ter sido um alfobre de competência política, de empenhamento democrático, de honestidade republicana, de audácia no combate político, de capacidade de liderança. Assim, não há qualquer razão para pensar que os próximos anos nos vão oferecer um sortido mais estimulante de líderes políticos do que aquele com que podemos contar hoje. Como se faz então? Só vejo uma saída: se Costa é, de facto, o melhor que podemos esperar, alguém lhe pode dar a receita daquelas coisas que o Lance Armstrong tomava? Temos a sorte de que, por enquanto, não há testes antidoping na política. Porque não aproveitar a janela de oportunidade? Talvez Costa só precise de uma forcinha.


2. Depois de convencer Costa a avançar, é preciso explicar-lhe algo que todos pensávamos que ele sabia mas mostrou que não sabe: o maior problema que existe em Portugal é o Governo e a política do Governo. O que significa que a coisa mais urgente a fazer é combater a política do Governo e, de preferência, substituir o Governo, antes que ele liquide a democracia, extermine os portugueses, destrua o país e venda os salvados à Goldman Sachs. A unidade do PS só é importante se ela estiver ao serviço da causa nacional que é o derrube do Governo e a sua substituição por outro que ponha em prática uma política alternativa, apostada na justiça social e no desenvolvimento económico, na renegociação da dívida e na inflexão da política europeia. Se o PS não servir para isto, a sua unidade não serve para nada. António Costa diz que os militantes do PS não querem confrontos internos e que querem ver o PS concentrado na oposição ao Governo. Mas o que Costa deveria explicar aos portugueses (os militantes do PS estão incluídos) é que é necessária uma nova liderança no PS para que este faça oposição em vez de salpicar os telejornais com os habituais comentários ocos dizendo que o PS é responsável, está disponível, tem alternativas e se vai abster violentamente.


2. Já toda a gente se surpreendeu, se indignou e contestou a nomeação de Franquelim Alves para secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação. Que a escolha é errada, é evidente. Que o cavalheiro não tenha vergonha de aceitar, é triste. Nomear para o Governo um administrador do grupo SLN-BPN, protagonista da maior fraude bancária da história recente, é no mínimo uma provocação. E até Passos Coelho já deve ter ouvido a história da mulher de César. Mas o Governo quis sublinhar que não se sente obrigado a reger-se pelas regras da decência política e que o seu poder lhe permite fazer o que quiser. Tomamos nota. De novo. Mas no meio do grande escândalo há um pequenino que é, mesmo assim, de monta: o pormenor de a passagem de Franquelim Alves pela SLN-BPN ter sido devidamente expurgada do currículo oficial.


Uma proposta concreta: torne-se ilegal e nula qualquer tomada de posse de qualquer governante, deputado ou dirigente do Estado que falsifique ou omita dados no seu currículo oficial. É uma regra simples e honesta. Não esperamos que este Governo a proponha nem que este Parlamento a aprove, mas nada nos impede de esperar que a honestidade volte um dia a ter maioria. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, setembro 04, 2012

Afinal a corrupção não existe?


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Setembro de 2012
Crónica 35/2012

Há uma definição jurídica de corrupção, precisa e específica, estreita e formal, que vem no Código Penal. E há a corrupção da política.

“Digo-vos olhos nos olhos: o nosso país não é um país corrupto, os nossos políticos não são políticos corruptos, os nossos dirigentes não são dirigentes corruptos. Portugal não é um país corrupto.” As palavras são da procuradora-geral adjunta e directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, durante a Universidade de Verão do PSD. A magistrada não se ficou porém por aqui e sublinhou em diversos matizes a ideia de que, em Portugal, "a corrupção é residual", apesar de haver uma “percepção” de uma elevada incidência de corrupção, devido ao sensacionalismo da comunicação social, a figuras públicas que falam de corrupção com base em rumores sem fundamento e a relatórios como os da organização Transparência Internacional que, mais uma vez, se referem a percepções dos cidadãos e não a casos provados de corrupção.

Se há pessoa em Portugal que deve perceber de corrupção é Cândida Almeida. Se há pessoa cuja profissão lhe permite estar informada de todos os pormenores de todos os casos reais ou suspeitados de corrupção é esta. E, por tudo o que sabemos de Cândida Almeida, não temos nenhuma razão para imaginar que tenha razões ocultas para nos mentir. E no entanto... não conseguimos acreditar numa palavra do que nos diz. Percepções.

Mais: a própria Cândida Almeida sabe que aquilo que nos diz não é credível. Como é que se vê isso? São aqueles recursos retóricos, os “olhos nos olhos”, a repetição enfática das palavras. Além de que a própria procuradora confessa mais à frente que veria com bons olhos alterações legislativas de modo que o Ministério Público pudesse comparar as declarações de património entregues no Tribunal Constitucional pelos detentores de cargos políticos com "o património que estes efectivamente detêm". Para quê, se “os nossos políticos não são corruptos”? Mas a procuradora fez mais e especificou que, muitas vezes, quando se fala de corrupção dos poderosos, se está a falar de facto de fraude fiscal, que é algo completamente diferente. E deu um exemplo: muita gente pensa que a Operação Furação se refere a corrupção, quando aquilo que investiga é, na realidade, um caso de fraude fiscal. Não tem nada a ver!

E aqui as coisas clarificam-se: Cândida Almeida, jurista e magistrada, está de facto a referir-se a uma definição jurídica de corrupção, precisa e específica, estreita e formal, daquelas que vêm nos códigos penais, e não à corrupção como a entendemos na linguagem de todos os dias, em português, nas conversas, nas discussões, na actividade política. Cândida Almeida fala de uma corrupção (o itálico aqui quer dizer, como teria dito Eduardo Prado Coelho, “uma corrupção outra”, que não é “a corrupção”) que eu não faço a mínima ideia do que seja nem estou particularmente interessado em saber porque não tem o sentido prático e ético que nos interessa a nós, cidadãos, quando a usamos no debate político. A acepção judiciária em que Cândida Almeida usa a palavra servirá para ver, no catálogo das penas, qual se deve aplicar quando se prova em tribunal que alguém abusou de um cargo público, se abotoou com bens públicos ou desviou bens públicos para benefício próprio, do primo, do partido ou do banco que lhe vai emprego quando sair do Governo. Mas não é a acepção comum, que define corrupção de forma mais ampla, como desonestidade, como falta de integridade, como imoralidade, como roubo, como desvio e não apenas como um acto mas como uma cultura. A corrupção que eu e muitos outros sentimos (sim, uma percepção) no “arco do poder” em certos casos nem sequer é ilegal. É o caso dos deputados que são ao mesmo tempo advogados e consultores dos mais variados interesses, que foram eleitos pelo povo para defender a causa pública e que estão no Parlamento para defender interesses privados. Legal. Mas corrupção. É a corrupção da democracia. É o caso dos políticos que no Governo fazem favores às empresas que depois os compensam da sua lealdade contratando-os quando saem do Governo. Legal. Mas corrupção. Ou melhor: percepção de corrupção. É o caso das obras inúteis ou dos empréstimos contraídos a juros agiotas para benefício de construtoras e bancos em prejuízo do erário público. É o caso da venda a preço de saldo de empresas públicas para benefício das empresas compradoras. É difícil de provar que haja intenção de obter benefício próprio e dos amigos? Pode tratar-se de uma opção ideológica? Pode. Há de facto uma opção ideológica que consiste em roubar o Estado, distribuir as riquezas roubadas pelos amigos mais ricos e tentar reduzir os mais pobres à inanição e à passividade. Mas o verdadeiro nome disto é corrupção. Ainda que o PSD, o CDS e uma parte do PS nos andem a tentar convencer que isso se chama política. Não chama. A política é a generosidade da polis, da coisa pública. Esta gestão de fortunas que o Governo faz chama-se (desculpe, Cândida Almeida) corrupção. E existe. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 17, 2012

Critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Abril de 2012
Crónica 16/2012

Devemos alargar aos ricos ociosos e aos corruptos as obrigações que o fisco já
exige a todos os trabalhadores

O diploma que pretendia criminalizar o "enriquecimento ilícito", recentemente chumbado pelo Tribunal Constitucional, tinha algo que não batia certo.
É que o "enriquecimento ilícito", se é ilícito, já está criminalizado. Ou seja: estabelecer que o enriquecimento ilícito é um crime corresponde, afinal, a dizer que enriquecer em resultado de ter cometido um crime é... um crime. Mas como cometer um crime é um crime, passe a tautologia, a nova figura não viria acrescentar nada de novo. Quando muito, poder-se-ia considerar que o enriquecimento como consequência da prática de um crime constituiria uma agravante do crime - condenando com maior rigor os criminosos mais hábeis.

Só que o novo crime  não pretendia nada disto, mas sim encontrar forma de acusar pessoas que tivessem enriquecido de forma que se supunha ilícita sem que fosse necessário identificar e provar o crime que estaria na origem do enriquecimento, bastando provar o enriquecimento.

É claro que isto levanta o problema do ónus da prova que, num Estado de direito, tem de estar do lado da acusação. É evidente que seria moralmente (e constitucionalmente) inaceitável abordar uma pessoa, acusá-la de ter enriquecido de forma ilícita e obrigá-la a provar a falsidade da acusação e a demonstrar que não cometeu crime algum. Isto seria a famosa "inversão do ónus da prova", um princípio que, a ser aceite, abriria a porta a muitos abusos. Se eu for acusado de um crime, cabe ao Estado provar a minha culpa e não a mim provar a minha inocência. É o direito de todos os cidadãos serem considerados inocentes até prova em contrário, a também famosa presunção de inocência, outro princípio basilar do regulamento jurídico das democracias.

Posto isto, a verdade é que o que está em causa é, de facto, encontrar uma forma de identificar e responsabilizar as pessoas que enriqueceram de forma ilegal - mesmo quando não há esperança de que essas ilegalidades venham a ser provadas - já que existe o sentimento de que estas situações são frequentes. Como se resolve o dilema?
Existe actualmente na sociedade a forte convicção de que a corrupção - e, em particular, a grande corrupção, associada aos governantes, aos partidos, aos autarcas, às grandes empresas, ao capital financeiro e aos grandes contratos que unem uns e outros - goza de uma absoluta impunidade. Tal como existe o sentimento de uma descarada dualidade de critérios na administração da justiça, sempre forte com os fracos e os pobres e sempre tímida com os ricos e poderosos. Estes sentimentos geram não só uma animosidade particular contra os suspeitos, como destroem a confiança que deveria existir no sistema político e nos seus agentes, na Justiça e nos seus agentes, na actividade económica como fonte de riqueza e até na própria democracia.
Não podemos deixar de achar estranho que uma pessoa que amealha uma fortuna de dez milhões de euros em dois anos, apesar de ter apenas um ordenado de 1800 euros, não tenha quaisquer explicações a dar à sociedade, enquanto o dono de um restaurante pode ser multado por não ter registado nas suas receitas um almoço de sete euros. Não é estranho que os sete euros tenham de ser declarados porque são fruto do trabalho, mas os dez milhōes, eventualmente fruto de crimes, não tenham? Não há aqui uma estranha dualidade de critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção?
É também estranho que tenhamos de provar que um apartamento ou um carro nos pertence e que tenhamos de identificar a pessoa a quem o comprámos, que tenhamos não só de declarar todos os euros que ganhámos mas quem nos pagou esses euros e quando e porquê e que o senhor dos dez milhōes de euros não tenha de dar quaisquer explicações a ninguém.

Como se resolve o dilema? Alterando um pouco os objectivos. Se considerarmos que a ilicitude está no enriquecimento, vai ser sempre preciso prová-lo - o que, em particular nos casos de corrupção, parece difícil. Mas podemos mudar o crime, enquadrando-o no âmbito fiscal e decretar a obrigatoriedade de declarar a fonte de todo e qualquer rendimento (ou de o fazer acima de certo patamar) e de a provar documentalmente. Ou seja: alargar aos ricos e corruptos o que o fisco já me exige a mim e a todos os trabalhadores. No fundo, é isto que queremos. A obrigatoriedade de declaração criará a ilicitude da não declaração - ou da declaração incompleta ou errónea. Estes são crimes que será fácil ao Estado provar (ou, pelo menos, investigar), sem inversão do ónus da prova e sem abandonar a presunção de inocência. E as penas poderão ir até ao confisco do bem em questão. Claro que a nova lei não vai resolver todos os problemas - mas nenhuma resolve. Trata-se afinal de conseguir sancionar o “enriquecimento ilícito” não através da figura do “enriquecimento injustificado” mas através de uma simples “obrigatoriedade de declaração de todos os rendimentos e sua origem”. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, setembro 01, 2011

Iguais perante a lei? (Pósfácio)

Posfácio à 1ª edição do livro "Suite 605", de João Pedro Martins

A igualdade de direitos, a igualdade “perante a lei”, constitui o mínimo incompressível onde todas as pessoas decentes, de esquerda e de direita, coincidem.


1. No velho lema republicano “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” há dois termos que geram um alargado consenso, por vaga que possa ser a sua definição e por complexa que possa ser a sua concretização política: a liberdade e a fraternidade. É fácil admitir que todos queremos ser livres e que todos queremos ser fraternos. E podemos reformular a mesma proposição em linguagem moral e dizer que todos devemos ser livres e todos devemos ser fraternos. A primeira parte da proposição concede-nos algo que todos consideramos um valor inestimável, a liberdade, e a segunda, se não nos concede nada, também não nos obriga a nada, a não ser a uma declaração de intenções. E é até possível que o louvor à fraternidade nos conceda a garantia da fraternidade dos outros, o que pode ser vantajoso e não tem custos.

Mas se a liberdade e a fraternidade são relativamente consensuais, o terceiro termo do lema, a igualdade, sempre colocou grandes problemas. Antes de mais, de que igualdade se fala? Igualdade em quê? E será mesmo verdade que todos queremos ser iguais? Será que achamos que todos devemos ser iguais? E, se concordarmos com um objectivo de igualdade entre todos, como se faz isso?

Há quem defenda a igualdade como um objectivo social, algo que a sociedade deve almejar, e há quem defenda apenas a igualdade dos cidadãos “perante a lei”, a igualdade de direitos, a igualdade como ponto de partida, não se preocupando excessivamente com as desigualdades de facto, de estatuto, de condições de vida, que se desenvolvem posteriormente entre os cidadãos.

Uma das marcas da esquerda é a preocupação com a desigualdade social, com a qual a direita convive com maior à-vontade, considerando-a não só inevitável e inerente às diferentes capacidades e qualidades dos seres humanos, como até um factor promotor da ambição pessoal e do progresso. Mas a igualdade de direitos, a igualdade “perante a lei”, constitui aquele mínimo incompressível onde todas as pessoas decentes, de esquerda e de direita, coincidem. A igualdade perante a lei é algo que decorre das noções de decência, de honestidade, de fair play, de justiça que garantem a coesão do contrato que nos permite viver em sociedade.

2. O livro que acabaram de ler, “Suite 605”, é um livro sobre a desigualdade perante a lei, sobre a enorme desigualdade de direitos que existe na sociedade portuguesa entre os cidadãos mais ricos e os restantes, a coberto de um discurso igualitário.

Este livro mostra, com exemplos, com nomes e com números, a forma como o Estado, a administração fiscal, a Justiça e o Governo tratam de forma radicalmente diferente os cidadãos, conforme o nível de rendimentos que estes possuem, privilegiando e protegendo os mais poderosos, permitindo-lhes multiplicar o seu património e influência, à custa de uma sobrecarga fiscal dos restantes cidadãos.

A criação da Zona Franca da Madeira – o tema central deste livro – não possui qualquer racionalidade económica, como João Pedro Martins demonstra nestas páginas, citando especialistas, nem a mais remota justificação moral. O único objectivo da sua criação foi ajudar os mais ricos a fugir às suas obrigações fiscais. Ajudá-los a reduzir a sua quota-parte no financiamento das infra-estraturas nacionais, da educação, da investigação, da saúde, da segurança social, da defesa do ambiente, da preservaçção do património, da justiça, da segurança, da defesa. É irónico que tantos dos empresários que se servem desta batota fiscal tenham o descaramento de criticar o funcionamento do Estado, a sua ineficiência, e se atrevam a falar de “ética empresarial”.

O tema de “Suite 605” é tanto mais chocante quanto este benefício, de que os mais ricos usufruem, não é sequer conseguido à custa de ilegalidades – que envolveriam o risco de uma sanção. Criar uma empresa no offshore da Madeira e transferir para ela os lucros de cem empresas que operam no continente para não pagar impostos é legal e sem riscos. E isso é possível graças a leis aprovadas no nosso Parlamento, escritas pelos nossos governantes, assinadas pelos nossos Presidentes da República.

O que acontece ao dinheiro que o Estado perde desta forma, aos impostos não cobrados às empresas? O Estado vem buscá-lo aos nossos bolsos, aos trabalhadores por conta de outrem, usando as sobretaxas que for necessário.

Como aprendemos neste livro, a taxa média de IRC paga pelos milhares de empresas registadas na Zona Franca da Madeira é de 0,16% - um ultraje para os milhões de portugueses que pagam os seus impostos e que pagam as estradas onde circulam os empresários que têm as suas empresas sediadas em paraísos fiscais. Como escreve João Pedro Martins, a conclusão é clara: em Portugal “há uma elite corrupta que controla a economia e o poder político e que se recusa a pagar impostos”.

O artigo 13º da Constituição da República Portuguesa diz que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. É falso. Os cidadãos que não têm vergonha de registar as suas empresas onde não pagam impostos são favorecidos pela lei de uma forma que nenhum outro trabalhador alguma vez experimentou. Ou será que a administração fiscal portuguesa admitiria que um qualquer empregado declarasse (falsamente, como fazem as empresas) residência na Suite 605 e deixasse de pagar IRS?

3. Estranhamente, apesar de parecer existir um consenso político sobre os malefícios dos paraísos fiscais, eles continuam a sobreviver com o argumento de que, se fechássemos um, as empresas iriam para outro, noutro lugar do mundo. A resposta só pode ser uma: que vão! Para além da fuga aos impostos, os paraísos fiscais são o ecossistema por excelência do financiamento das ditaduras e das mafias, do tráfico de droga, da lavagem de dinheiro. Nenhum político honrado pode aceitar a sua existência.

O mal que os paraísos fiscais produzem não se resume ao dinheiro que estes empresários roubam à colectividade, que gera a fome e espalha a pobreza. A iniquidade de que eles são exemplo constitui um veneno mortal para a credibilidade do Estado, da democracia, da justiça e das empresas.

Quanto aos cidadãos, a cada um de nós, há algo que devemos fazer: exigir o encerramento da Zona Franca da Madeira, lutar pelo fim dos paraísos fiscais na União Europeia e no mundo e exigir saber que empresários portugueses exemplares fogem ao fisco usando estes paraísos que condenam ao inferno os contribuintes honestos.

José Vítor Malheiros
Setembro 2011

terça-feira, julho 26, 2011

Isto não é novidade para ninguém

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Julho de 2011
Crónica 30/2011



Gostava de saber que empregos têm os deputados além do seu part-time em S. Bento? Eu também.

No meio deste Julho agitado, com um ataque terrorista na Noruega, a eterna crise financeira, a morte de Lucian Freud e Amy Winehouse, o “News of the World” e o chuveiro das notícias sili-estivais, passou quase despercebida uma notícia doméstica que não ultrapassou a quota dos seus quinze minutos de fama.
A associação Transparência e Integridade (TI) - correspondente em Portugal da Transparency International - anunciou ter entregue à troika BCE-UE-FMI um documento onde chama a atenção para o risco de que algumas das medidas contidas no Memorando de Entendimento assinado com Portugal sejam uma porta aberta à corrupção.
Algumas das reformas previstas no memorando de entendimento, como as privatizações, a renegociação das parcerias público-privadas ou a reestruturação das Forças Armadas, podem abrir oportunidades para a corrupção, sobretudo dada a forte promiscuidade entre interesses públicos e privados em Portugal e os baixos custos morais e legais associados a transacções ilícitas”, diz a carta.
A posição da TI foi depois detalhada em entrevistas à imprensa dadas por Luís de Sousa e Paulo Morais, respectivamente presidente e vice-presidente da organização, mas a carta esclarece um dos pontos em que consiste esta “forte promiscuidade entre interesses públicos e privados em Portugal”: ”A Assembleia da República parece um escritório de representações”.
Para além dos deputados que acumulam a advocacia com o trabalho parlamentar (um quinto, nesta legislatura), numa prática condenada pelo bastonário da Ordem dos Advogados, existem muitos outros que acumulam a sua actividade política com actividades privadas que podem configurar situações de conflito de interesses.
Não há nenhuma novidade em nada disto. E há até, por outro lado, quem defenda a situação – ao mesmo tempo que põe a mão no fogo pela honestidade dos deputados – dizendo que é natural que pessoas de excepcional competência na área da Construção Civil se encontrem simultaneamente na Comissão Parlamentar de Obras Públicas e na administração de empresas privadas de obras públicas. O que não se compreende, não sendo o interesse das empresas fornecedoras sempre coincidente com o do Estado comprador, é como estas pessoas conseguem conciliar as duas lealdades. Será que o fazem com base no horário de trabalho? Proporcionalmente aos salários auferidos? Uma coisa é certa: gerir estes conflitos de interesse não é matéria fácil e só podemos imaginar a fonte de angústia que eles representam.
As declarações de interesses entregues na Assembleia da República e as declarações de património obrigatoriamente entregues ao Tribunal Constitucional pelos deputados deveriam, pelo menos, informar os cidadãos da situação de facto dos nossos deputados. Mas, como vimos recentemente com os lapsos das declarações de Vera Jardim, ninguém está livre de um esquecimento. É por isso que considero fundamental que os deputados que nos representam mantenham actualizado no site do Parlamento, para todos vermos, um currículo detalhado – pelo menos tão detalhado como aquele que apresentariam se estivessem a candidatar-se a um emprego – em vez daqueles arremedos lacónicos que passam por biografias. Este CV deveria incluir, nomeadamente, todos os cargos ocupados nos últimos 20 anos. Estes currículos, actualizáveis pelo próprio – como na Wikipedia, deve ser possível ver a data da actualização – poderiam ser escrutinados por todos, que assim poderíamos ajudar a detectar eventuais esquecimentos.
À guisa de exemplo, aqui vai desde já uma chamada de atenção a dois deputados eleitos com mandato suspenso e actualmente em funções governamentais, Pedro Passos Coelho e Paulo Portas: nas suas biografias no site do Parlamento, nenhum dos dois refere algum cargo que não seja o de deputado. (jvmalheiros@gmail.com)
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Nota: Ver, a propósito, a minha crónica "Comprar os serviços de um deputado?" no Público de 15 Novembro de 2009 (http://versaletes.blogspot.com/2009/12/comprar-os-servicos-de-um-deputado.html)

terça-feira, fevereiro 01, 2011

É normal os ministros receberem presentes das empresas?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Fevereiro de 2011
Crónica 5/2011
É difícil ser objecto de múltiplos gestos de cortesia por parte de alguém e não se sentir tentado a retribuir

Na semana passada, entre o discurso Sputnik de Barack Obama, a entrevista-choque de Carlos “Bibi” “Casa Pia” Silvino, a contestação popular na Tunísia (primeiro) e no Egipto (depois), ficámos a saber que muitos políticos portugueses acham a coisa mais natural do mundo receber presentes das empresas, que o facto não só não afecta minimamente a sua independência como lhes agrada bastante e que as únicas pessoas que pensam que isso não se faz são os cidadãos dos países nórdicos por terem a mania da honestidade por causa de serem protestantes e terem aquelas igrejas sem dourados.
Estas novidades foram-nos brindadas por testemunhos de várias personalidades no âmbito do processo Face Oculta, no qual José Penedos, ex-presidente da REN (Redes Energéticas Nacionais) é acusado de corrupção e dessa bizarrice da nomenclatura jurídica portuguesa que é a “participação económica em negócio”. A oferta de diversos presentes a José Penedos pelo empresário Manuel José Godinho é uma das questões que consta do processo e foi a propósito dela que os presentes foram objecto da atenção do tribunal.
Políticos tão respeitados como Jorge Sampaio e António Vitorino consideraram que os presentes dados a gestores ou políticos são "mera cortesia" (Sampaio) e que eles estão profundamente enraizados na cultura dos países do sul da Europa, como Portugal e Espanha (Vitorino).
Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva e futuro ministro das Finanças de Pedro Passos Coelho (segundo Marcelo Rebelo de Sousa), foi quem foi mais explícito nas suas afirmações. Catroga admitiu que sempre tinha recebido presentes ao longo da sua carreira de 40 anos, considerou que “o problema dos presentes não está em quem os recebe ou na intenção de quem os dá” porque “as pessoas recebem presentes e mantêm a sua independência” e que eles são “perfeitamente normais no contexto social português”.
Se Sampaio falara de canetas e vinho do Porto, Catroga menciona, como presentes recebidos, pratas, vinhos raros e livros e, refere o Correio da Manhã “até brincou ao dizer que quando saiu do Governo o seu Natal passou a ser mais ‘reduzido’”.
Há uma coisa que se pode dizer desde já: se, em vez de Catroga, estas declarações tivessem sido proferidas por um jornalista deste jornal que está a ler, ele/ela teria sido objecto de um inquérito para averiguar se o seu comportamento não infringia as normas definidas no Livro de Estilo, onde se determina que os jornalistas devem devolver prendas recebidas de um valor estimado superior a 60 euros – e se colocam limites mesmo às que não excedam esse valor.
Para além disso, também se pode dizer que, além dos cidadãos dos países nórdicos, há pelo menos uma pessoa nos países do Sul da Europa que acha muito mal que os políticos recebam presentes seja de quem for (a não ser da família e dos amigos) e que acha mesmo que a prática de receber presentes devia ser pura e simplesmente proibida para os governantes: eu. E desconfio que pode haver mais algumas pessoas que concordem comigo.
É evidente que não é a limitação das prendas que garante a honestidade dos governantes, dos políticos ou dos gestores públicos. Como não é a sua existência que prova prevaricação. Mas a cultura que permite e que acha que estas prendas apenas lubrificam as relações é a mesma que alimenta a promiscuidade entre os negócios e a política e que banaliza a influência dos grupos de interesses privados na coisa pública.
Como dizia Sampaio, é evidente que “há prendas e prendas”. Por um lado, há prendas institucionais, que são ofertas ao Estado (o Museu da Presidência da República está cheio delas). Mas as prendas pessoais devem ser, se não proibidas, pelo menos limitadas e conhecidas do público. Que tal uma listinha na Internet? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 15, 2009

Comprar os serviços de um deputado?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009

Os serviços que o advogado vende são os mesmos que a comunidade lhe compra quando o contrata como deputado

Há muitos anos que se discute entre os jornalistas se o seu regime de incompatibilidades não deveria alargar-se para incluir também a prática da advocacia. A última (e polémica) revisão do Estatuto do Jornalista, feita em 2007, não incluiu essa alteração e é verdade que ela está longe de ser consensual na classe.
Que as duas funções são incompatíveis é, para mim, claríssimo. O contrato social que vincula o jornalista obriga-o a ser independente de todos os interesses, por muito legítimos que eles sejam – ou, pelo menos, a fazer todos os esforços ao seu alcance para tentar sê-lo.
É esse o seu dever deontológico e essa a especificidade que distingue os jornalistas de outros produtores de informação.
O advogado tem por imposição deontológica não ser independente e, pelo contrário, defender sempre o ponto de vista e os interesses do seu cliente. Mais: ele tem não só o direito mas até o dever de não divulgar qualquer informação que possa de alguma forma prejudicar o seu constituinte. Trata-se de posições antagónicas.
É evidente que se pode navegar entre os escolhos e evitar abordar como jornalista os assuntos e as pessoas de que se trata como advogado, mas trata-se de um campo minado, porque os interesses não são ilhas bem delimitadas.
E o jornalista não é um funcionário cujo dever o obriga apenas durante as horas normais de expediente.
A sua deontologia é a sua cultura e obriga-o em todos os momentos da sua vida. É aliás este o entendimento da lei: um jornalista não pode fazer publicidade ao sábado e assessoria de imprensa ao domingo com o argumento de que está fora do seu horário de trabalho. Esconder segredos de manhã e divulgar segredos à tarde não é possível e gera conflitos deontológicos insanáveis.
Se a advocacia é incompatível com o jornalismo, é evidente que ela não pode ser compatível com o exercício da função de deputado. Se consideramos fundamental para a democracia que um jornalista seja independente dos interesses particulares, é claríssimo que essa exigência é particularmente importante para quem detém o poder de fazer as leis. Que dezenas dos nossos deputados sejam, paralelamente à sua função parlamentar, pagos para defender os interesses das mais diversas personalidades e instituições (frequentemente mais bem pagos do que são no Parlamento) é algo que não podemos deixar de considerar preocupante e contrário aos interesses da democracia. Esta posição tem sido defendida pelo bastonário da Ordem dos Advogados – que foi ele próprio, curiosamente, um destacado jornalista-advogado – e voltou recentemente à baila devido a uma inesperada proposta do deputado do PSD António Preto, actualmente a ser julgado por fraude no chamado “caso da mala”.
Marinho Pinto tem repetido que “quem faz as leis no Parlamento não pode ao mesmo tempo aplicá-las nos tribunais”. Há quem conteste esta visão dizendo que, se um deputado não tiver uma actividade extraparlamentar, será financeiramente dependente do seu partido e, por essa via, menos independente, mas o que acontece é que ser advogado não é a mesma coisa que ser arquitecto ou professor. Os serviços que o advogado vende a quem pagar são exactamente os mesmos que a comunidade (o Estado) lhe compra quando o contrata como deputado: a defesa jurídica e retórica de uma perspectiva, de uma posição, de um interesse (no caso do Parlamento, o bem comum; no caso do advogado, um interesse particular).
Um advogado é, para todos os efeitos, uma hired gun.
Não é estranho que se possa alugar os serviços de um deputado, ainda que seja em part-time?
Marinho Pinto receia que os advogados, para respeitar um dever deontológico para com os clientes (que coincide para mais com o seu interesse financeiro) fi ram o dever ético para com a comunidade. Esse receio é inevitável.
Mas, ainda que seja possível que um advogado defenda um interesse de manhã e outro à tarde, esquecendo o primeiro, será que é assim que queremos que ajam os nossos deputados? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 01, 2009

Será que eles não sabem que nós sabemos?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009

Lembrar-se-ão os políticos que há pessoas que todos consideramos escroques? E que há outras que consideramos honestas?

Cícero, que foi um dos mais respeitados estadistas e pensadores romanos, regressou muitas vezes nos seus escritos de filosofia política à questão da reputação dos homens públicos. Escreveu mesmo uma obra em dois volumes dedicados ao tema, Da Glória. A obra perdeu-se e dela apenas se conhecem referências, mas o que ficou nos escritos que sobreviveram é suficiente para se perceber a importância central que a questão lhe merecia. Tão político como filósofo, Cícero tece sobre a reputação do homem público as esperadas considerações éticas, mas não se fica por aí, recheando as suas observações de conselhos pragmáticos que incluem a necessidade de calcular os benefícios que se podem colher quando se faz um favor a alguém. Ou seja: apesar de ter sido um político astuto e calculista, Cícero sabia e defendia a importância da reputação – a conveniência de todo o homem político proteger e promover a sua reputação e a necessidade de a república escolher para os cargos de poder os homens (as mulheres não estavam em causa) de mais sólida reputação, para garantir a confiança da população.
Se a preocupação com a reputação é antiga, nos últimos anos ela tornou-se ainda mais viva, à medida que se desenvolveram as tecnologias de informação e comunicação que permitem hoje espalhar em minutos uma informação por todo o globo – e fabricar ou esmigalhar uma reputação. As empresas vivem para a reputação e pela reputação das suas marcas (chamam-lhe “imagem”) e os políticos (pelo menos nas democracias) não possuem bem mais precioso. Posto isto, o que é estranho é como, na nossa democracia (e noutras), a reputação das pessoas parece ser tão pouco levada em conta quando se trata de escolhas para lugares de relevância, sejam eles políticos ou empresariais.
Falo naturalmente da reputação em termos éticos, de honestidade, já que a competência técnica e as capacidades intelectuais têm aqui uma importância de terceira ordem, como lembra, mais uma vez, Cícero (“Se um homem não for considerado honesto, quanto mais sagaz e inteligente ele for mais será detestado e objecto de desconfiança”).
Lembrar-se-ão os políticos que, quando nomeiam uma pessoa para um determinado cargo, essa pessoa possui uma reputação pública e que essa reputação se vai reflectir sobre a sua própria? Saberão que, mesmo que não tenha havido “sentença transitada em julgado”, há pessoas que todos consideramos escroques? E que há outras que consideramos honestas? Como? Devido às suas posições públicas, aos benefícios que recolhem delas, aos sacrifícios que correram para fazer coisas justas, ao que dizem delas os próximos e os adversários, aos amigos que cultivam e, sim, também às histórias que ouvimos. Rumores sem fundamento? Alguns sim, mas há perfis que vão ganhando peso, peças que se vão ajustando no puzzle, testemunhos que consideramos credíveis que vão solidificando a nossa opinião.
Imaginará um ministro ou uma assembleia de accionistas de um banco que a pessoa que escolhem não possui uma reputação? Imaginarão que nós não sabemos? Imaginarão que não perguntamos uns aos outros até ter uma ideia de quem é fulano? A má reputação (a verdadeiramente má, não a de Brassens) não é um crime nem precisa de ser alimentada pelo tipo de provas que permite escrever uma notícia de jornal ou fazer uma queixa à PGR.
Pode apenas ser a convicção de que a pessoa em causa gosta mais de dinheiro do que devia, que não hesita em trair um amigo para se aproximar do poder, que tem uma noção vaga do que seja a decência, que se considera a si e ao seu partido acima das leis. Nós sabemos quem eles são. E é por isso que é raro, tão raro, que uma notícia de uma suspeita ou de uma condenação por corrupção ou por desvio de fundos seja recebida com surpresa na redacção de um jornal ou no café do bairro. Na esmagadora maioria dos casos, são escândalos à espera de acontecer.
E quando os escândalos não acontecem isso apenas serve para prejudicar a reputação de quem os devia trazer à luz. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 19, 2005

Mandatos a prazo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Abril de 2005
Crónica 12/2005

Um prazo de validade não pode ser um substituto da aplicação da lei

A limitação de mandatos dos detentores de cargos políticos tem uma base racional. Por um lado, ela visa um objectivo que se pode qualificar como da ordem da gestão: a limitação de mandatos leva a uma maior rotação dos dirigentes políticos, o que permite o acesso a esses lugares de caras novas, que se espera que possuam visões mais frescas dos problemas, novas ideias para a sua resolução, novas estratégias e propostas. No mínimo, essa renovação quebra a rotina e obriga a repensar as práticas instaladas, o que não pode deixar de ser positivo, além de que todos gostamos de acreditar que o estímulo de novos desafios pode trazer à tona o que de melhor há nas pessoas.

Por outro lado, a limitação dos mandatos visa objectivos que são especificamente da ordem do político: ela visa impedir a eternização no poder de pessoas e grupos que podem acabar por dominar o aparelho de Estado (mesmo sem atropelos evidentes da lei) e tornar difícil ou impossível a alternância democrática.

No limite, a limitação de mandatos pretende ser uma última válvula de segurança para impedir catástrofes de abuso de poder. Um dirigente corrupto, que abuse do poder em benefício próprio, que esbulhe o património da comunidade, que se ria das leis, mesmo que consiga instaurar um clima de compadrio e intimidação que o reeleja sistematicamente e que consiga fugir sempre às teias da lei, pode desta forma ser afastado da cadeira, sem dramas e sem sangue. É a última alternativa caso as coisas corram mesmo mal.

Claro que a limitação de mandatos tem as suas próprias limitações. Uma delas é que ela apenas diz respeito a indivíduos (quando sabemos que a corrupção vive em bandos) e não impede habilidades como o recurso a um mandato intercalar a cargo de um cunhado acomodatício. No entanto, o espírito de uma lei de limitação de mandatos é claro e poderia ter uma função pedagógica.

Outros problemas prendem-se com o âmbito de uma medida desta ordem, que deveria limitar-se aos autarcas e dirigentes regionais - pois são estes que se encontram em posição de influenciar indevidamente o voto dos seus concidadãos de forma a eternizar-se no poder – mas que o receio de ofender as bases partidárias fez alargar também aos primeiros-ministros.

Quanto ao problema da suposta retroactividade ele não existe, pois a lei não pode nem vai sancionar (proibindo ou autorizando) práticas anteriores à sua publicação, mas apenas define prazos cuja contagem se inicia antes da sua publicação. Basta que se permita aos autarcas “fora de prazo” completar os mandatos para que foram eleitos.

O principal problema da limitação de mandatos é que ela parece estar a ser proposta não como uma última válvula de segurança para casos extremos mas sim como uma forma cómoda de os partidos se verem livres das suas figuras mais embaraçosas sem o ónus público (e interno) de uma expulsão, um escândalo político ou um inquérito policial.

A questão é que um critério automático como um prazo de validade para os políticos não pode ser um substituto da aplicação da lei.

Um partido não pode imaginar resolver o problema da corrupção nas autarquias ou do défice democrático na Madeira dizendo a si mesmo e aos cidadãos que pelo menos os protagonistas vão mudar de doze em doze anos. A ideia não é que um dirigente corrupto apenas roube durante três mandatos – é que não o possa fazer de todo e, se o fizer, que seja perseguido pela justiça. De outra forma, a limitação de mandatos transformar-se-á apenas numa forma de garantir uma maior rotação de dirigentes corruptos num mesmo lugar. A dança das cadeiras só é melhor que o Parque Jurássico se se conseguir melhorar a qualidade dos dirigentes políticos e isso faz-se com auditorias, transparência e com a aplicação da lei.