terça-feira, julho 27, 2004

Barack Obama

Discurso de Barack Obama na Convenção Nacional Democrática de Boston, em 2004 , de apoio ao candidato democrata John Kerry (27 de Julho de 2004) - Keynote address at the Democratic National Convention in Boston. Considera-se que foi este o discurso que marcou o início da carreira "presidencial" de Obama, o seu grande pontapé de saída para o que seria a sua vitoriosa candidatura em 2008.
Ler no Washington Post ou no site da Convenção.

Ortografia

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 27 de Julho de 2004
Crónica 28/2004

A ortografia é uma narrativa, diz-nos quem são as palavras, de onde vêm e por vezes até para onde vão.

O editor espanhol Mario Muchnik costuma dizer que o caminho dos campos de concentração começa por um erro ortográfico. Trata-se é claro de uma “boutade”, género em que o personagem em causa é versado e pródigo, mas há nela algo de profundamente certeiro. Não porque o respeito da ortografia seja um sinal de veneração pela regra e porque isso seja bom, mas porque a ortografia é, pelo contrário, o respeito da história, da nossa cultura, dos relatos, da memória e dos sonhos. Mais do que algo que se pretenda impor-nos, a ortografia é o que somos.

Cada palavra é um fóssil profundamente humano e um desafio à curiosidade e à criação, um laço entre o passado e o futuro. A ortografia é ela própria uma narrativa, contém uma história, diz-nos quem são as palavras, de onde vêm e por vezes até para onde vão – que é mais do que alguma vez saberemos de nós próprios. A grafia evolui, como tudo, em contínuo ou aos saltos, às vezes com golpes de Estado (como os acordos ortográficos), outras com revoluções populares que transformam sanduíches em sandes, é enriquecida por corrupções às vezes com sentido, ricas e imaginativas, que conquistam os seus espaços, definindo novas ortodoxias simultaneamente democráticas e meritocráticas, onde o uso manda e os peritos arbitram.

Mas se a ortografia vive uma perpétua mutação, é evidente que nem todas as cambiantes são aceitáveis, imaginativas e justificáveis. E muitas surgem por pura ignorância e pertencem ao domínio da calinada arrogante que não sabe, não quer saber e tem raiva a quem sabe - como Goering quando ouvia falar de cultura.

Nos últimos anos, com a expansão do acesso aos meios de comunicação (do lado dos produtores e dos consumidores) e a explosão de mensagens, o panorama mediático poluiu-se com tais atropelos à ortografia (falo apenas no sentido estrito da correcta escrita das palavras) que se tornou capaz de injectar a dúvida nos mais letrados.

Mesmo “slogans” de empresas que se imagina deverem passar pelo mais exigente crivo de competências deixam passar estas pequenas infâmias (o “Sempre ao seu dispôr” [sic], que o Modelo-Continente usou durante anos), assim como títulos de filmes (“Exterminador Implacável 3 - A Ascenção [sic] das Máquinas”) e a publicidade às empresas mais reputadas ("Diriga-se [sic] já a um balcão Totta", publicidade num “outdoor”). Os exemplos podem multiplicar-se: uma empresa de recolha de entulhos tem contentores em Lisboa onde se vê escrito “Os golutões [sic] do entulho”, o “Jornal de Negócios” faz uma campanha onde diz "Não substime [sic] a importância de uma boa parceria"; outra empresa envia comunicados assinados pela "Acessoria [sic] de Imprensa". Uma cadeia de restaurantes de comida a peso chama-se “À grama” como se quisesse incentivar-nos a lançar-nos sobre a relva em vez de se preparar para nos vender comida ao quilo e ao grama. Um grande empreendimento imobiliário escolhe para designação “Quinta do Perú [sic]”. Claro que um simples dicionário podia ajudar estas pessoas, mas para quê consultar dicionários quando elas já sabem como é que as coisas se escrevem?

A ortografia é importante porque encerra uma parte da história das palavras e da relação entre elas. A grafia das palavras contém uma biblioteca de relações, um jogo de reflexos, um rasto pleno de significados, um mundo hipertextual cheio de “links”, que permitem saltar de significado para significado num jogo sem fim. E a verdade é que “ascenção” já deixou de ter alguma coisa a ver com o ascensor – ainda que a corruptela “acessoria [sic]” seja plena de novos significados talvez mais de acordo com o que se espera dela.

Enquanto noutros países as classes dominantes fazem gala da sua competência e apostam numa preparação de escol, em Portugal as nossas pindéricas elites políticas ou empresariais apostam na displicência, na descontracção, dizem “pugama” e “pecebe”, não estudam muito e apesar disso até chegam ao Governo, desde que tenham os pais certos e escolhido bem os amigos. O amor das palavras está bem longe disso. A ortografia vai tornar-se certamente cada vez mais criativa.

terça-feira, julho 20, 2004

S. Bento “light”

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Julho de 2004
Crónica 27/2004

Santana Lopes é um político instantâneo: basta juntar água e sai uma manchete. E é, por isso, a maravilha dos telejornais e da imprensa popular.


À primeira vista, o que transparece da estrutura do Governo de Santana Lopes (uma expressão a que temos de nos habituar, apesar de parecer uma contradição nos termos) pode fazer sentido e até parece conter uma ideia mobilizadora. Autonomizar o Ambiente e o Turismo e dar-lhes dignidade de ministérios poderia até corresponder a uma aposta estratégica no turismo e na qualidade de vida – o que é, em princípio, razoável e até atraente.

Só que, como que para demonstrar a vacuidade de pensamento de Santana Lopes e que este tanto pode dizer uma coisa como o seu contrário conforme o momento e o interlocutor, acontece que o novo primeiro-ministro tinha acabado de lançar a sua ideia da “descentralização” do Governo, provando que não há na sua mente nenhuma verdadeira reflexão (ou convicção) sobre a valorização do território, sobre aquilo que serão os novos eixos de acção governativa ou sequer sobre a forma como os seus ministérios se devem articular.

Significativamente, os ministros “de fora de Lisboa” também desapareceram até à tomada de posse, como irão desaparecer ao longo da semana muitos outros “sound bytes” lançados nos telejornais da noite, sempre inesperados para poderem ser confundidos com ideias inovadoras, mas capazes de convencer os mais distraídos de que está ali um homem inventivo, activo, optimista e voluntarista, desenvolto, sem preconceitos e sempre ansioso por dar um passo em frente.

É toda esta chuva de ideias surpreendentes e polémicas, de casinos e túneis, que poderá fazer com que os media se tornem “aliados objectivos” do consulado de Santana Lopes (sejam seus partidários ou não). É que é da natureza dos média estarem sempre famintos de novidades e gostam tanto delas quanto mais originais elas forem, quanto mais superficialmente puderem ser apresentadas e quanto mais rapidamente se sucederem umas as outras. Santana Lopes é um político instantâneo: basta juntar água e sai uma manchete. E é, por isso, a maravilha dos telejornais e da imprensa popular. A atracção entre os dois é como a da chama e a borboleta, ambos se consomem na paixão do efémero.

A “descentralização” foi um bom exemplo. Santana Lopes nem sequer prometeu instalar a secretaria de Estado do Turismo em Faro ou o Ministério da Economia no Porto – tratou-se de puro verbo. Bastou dizer que considerava essas medidas admissíveis, atirando a ideia para cima da mesa no meio de uma entrevista. Isso foi suficiente para ouvirmos autarcas entusiásticos, cheirando a proximidade de um poder mais permeável, outros reivindicando a implantação nas suas coutadas, tudo acompanhado dos inevitáveis inquéritos “Acha bem que o Ministério dos Negócios Estrangeiros vá para o estrangeiro?” com que todos nos pudemos entreter.

Alguém tentou discutir alguma coisa com seriedade? Pode dizer-se que não valia a pena, porque as pessoas sérias sabiam que era a brincar e as outras não estavam interessadas numa discussão séria, mas o espaço público foi ocupado por esse fogo-fátuo.

Que as notícias têm um valor de entretenimento já se sabe, como se sabe que essa face dos media se tem reforçado enormemente nos últimos tempos, com a consequente redução do espaço de intervenção cívica, de debate sério, de reflexão, de construção de opinião pública. O que é necessário ter presente é que o valor de Santana Lopes como “entertainer” é imenso e que esse valor é directamente proporcional à dificuldade que os media vão ter em fazer jornalismo ou análise política (digamos “análise das políticas”, para sermos mais claros) de forma eficaz.
O populismo (e Santana Lopes) não só garante representar os verdadeiros interesses do homem comum, como gosta de afirmar que os problemas são fáceis de equacionar e de resolver e que só é preciso vontade para o fazer (“8 meses para tratar do Parque Mayer!”). Se nada foi feito antes a culpa foi dos outros, da oposição, de Espanha, da Europa, dos intelectuais, dos políticos, dos grupos de estudo, dos emigrantes, da legislação que obriga a estudos de impacto ambiental e não deixa as coisas andar para a frente... O populismo substitui o bom senso pelo senso comum, a erudição e a análise pelo sentir do homem da rua – daí a necessidade de Santana Lopes se apresentar como um homem simples, que “fala com o coração ao pé da boca”, que “pensa como nós”.

Se é um dever do jornalismo mostrar como funciona o mundo, explicar os acontecimentos e dar voz a perspectivas diferentes para dar instrumentos ao público para que este forme a sua opinião, é evidente que a sua tarefa será particularmente pesada quando concorre na ocupação do espaço público com alguém cujos princípios não o obrigam a retratar a realidade com a mesma preocupação de fidelidade, independência ou profundidade e que tenta agir antes de mais não sobre o real mas sobre a sua representação – sobre o próprio espaço mediático, onde se ganham as eleições. Onde a imprensa tenta ser realista, o populista fornece uma narrativa simples e emotiva, desculpabilizadora e adormecente. O debate democrático é apresentado como confuso ou elitista, as consultas democráticas como perdas de tempo, a negociação como fraqueza, a reflexão como hesitação, a análise como estéril exercício intelectual. O populismo não tem um programa, uma ideologia, não tem sequer uma estratégia - é uma táctica de conquista e manutenção do poder.

O consulado de Santana Lopes coloca, por isso, um particular desafio aos jornalistas em particular. No fundo, vamos ter de concorrer com mais um tablóide sensacionalista e uma revista cor-de-rosa que faz sonhar. Só que, desta vez, eles estão em S. Bento.

terça-feira, julho 13, 2004

Tempos interessantes

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Julho de 2004
Crónica 26/2004


O facto de Jorge Sampaio ser o Presidente de todos os portugueses não o obriga a tornar-se o lugar do vazio da política.

Nos últimos dias, os portugueses tiveram ocasião de ver amplamente justificada a sua desconfiança em relação aos políticos. Depois de terem escolhido Durão Barroso para primeiro-ministro, vêem-no abandonar inesperadamente o Governo a meio mandato e propor como substituto um Santana Lopes que ninguém elegeu para tal; depois de terem elegido Santana para presidente da Câmara de Lisboa, vêem-no abandonar o cargo a meio mandato para ser substituído por não se sabe quem; depois de terem elegido um presidente em nome de um passado político e dos seus valores de esquerda, vêem-no adoptar uma posição que apenas pode ser justificada em nome de uma leitura estreitamente jurídica e tecnocrática da política; e, finalmente, vêem o líder da oposição abandonar o seu cargo dias depois de ter garantido que iria manter-se à frente do seu partido e disputar a sua liderança aos rivais. É rara tal enxurrada de desprezo pelos compromissos pessoais e pelos eleitores. Para tornar a situação ainda mais deprimente, aconteceram as mortes de Sophia e de Maria de Lourdes Pintasilgo, dois exemplos luminosos de participação cívica, como se o céu nos quisesse confirmar que se avizinham tempos negros para a cidadania.

Perante a decisão de Sampaio houve quem tenha sido lesto a dizer que o presidente tinha traído a sua base eleitoral, o que não pode deixar de ser considerado como um disparate. A base eleitoral de um presidente dissolve-se no momento da sua eleição e este não deve nenhuma “lealdade qualificada” àqueles que o elegeram. Para o Presidente da República só há portugueses – todos iguais e dignos da mesma lealdade.

O que é verdade, porém, é que o facto de Jorge Sampaio ser “o Presidente de todos os portugueses” não o obriga a ser o seu mínimo denominador comum ou a apagar as suas convicções e valores até se tornar o lugar do vazio da política. Quando os portugueses escolheram Sampaio elegeram não um notário mas um líder político – e um líder vindo da esquerda, com valores bem definidos e claramente apresentados ao eleitorado. Não se espera de um tal líder que faça uma guerrilha institucional a um Governo de direita, longe disso, mas que, nos momentos em que é chamado a escolher, o faça de acordo com os seus valores.

Ao eleger uma pessoa de esquerda como Presidente esperamos que esse presidente privilegie (com maioria de razão nos casos de dúvida sobre o melhor caminho a seguir, quando as opiniões dos cidadãos estão divididas e quando de ponto de vista legal todas as opções são possíveis) princípios democráticos sobre princípios oligárquicos, escolhas eleitorais sobre escolhas dinásticas, a democracia sobre a tecnocracia, a soberania do povo sobre a soberania dos partidos, a opinião das eleições à opinião dos patrões. A escolha de Sampaio é legítima, mas é uma escolha distante dos valores pelos quais foi eleito. Se ela fornecesse uma garantia de estabilidade, poderia ser defendida – mas essa estabilidade não está garantida. Além de que um democrata de esquerda não pode hesitar se tiver de escolher entre a estabilidade e a democraticidade (ainda que haja questões de grau que têm de ser equacionadas). Essa é precisamente uma das linhas divisórias entre a esquerda e a direita.

A inopinada demissão de Ferro (compreensível mas inaceitável de um líder da oposição no momento em que toma posse o que ele considera o pior governo de sempre) é o único gesto que pode dar razão “a posteriori” ao gesto de Sampaio. Será que alguém que desiste como Ferro o fez poderia ser um bom chefe de Governo? Se acrescentarmos essa dúvida de Sampaio a todas as outras poderíamos encontrar um argumento em favor da sua decisão. Mas, nesse caso, Sampaio teria de fazer essas considerações “ad hominem” em relação também a Santana Lopes – e estas não seriam vantajosas ao homem do PPD-PSD. A não ser que o presidente quisesse com a sua decisão proteger o Partido Socialista do risco de formar um Governo fraco – mas claro que essa razão seria inaceitável para o Presidente de todos os portugueses.

Olhe-se de que lado se olhar, a decisão de Sampaio foi errada – mas, paradoxalmente, pode acabar por ser uma bênção para a oposição, se esta aproveitar o tempo para se organizar e souber responder taco a taco, didacticamente, às investidas demagógicas de Santana, que já começaram.