terça-feira, agosto 31, 2010

“Obrigado pela sua reclamação…”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Agosto de 2010
Crónica 28/2010

Suspeito que o Livro de Reclamações possa ser O Livro de Areia de Borges

No regresso de férias tinha na correspondência uma carta do Metropolitano de Lisboa. A carta era uma resposta a uma reclamação que eu tinha apresentado numa estação de Metro quando fui requisitar passes para os meus filhos em idade escolar e me foi pedido um documento de cada uma das suas escolas provando que frequentavam um estabelecimento de ensino. Fui buscar as declarações e quando as entreguei aproveitei para contestar a sua exigência. Tratando-se de crianças em idade escolar, estão obrigadas por lei a frequentar a escola. A exigência da declaração é uma burocracia inútil, que obriga a despesas e tempo perdido dos vários intervenientes e que contém o desagrado suplementar de considerar a priori que os utilizadores do Metro não cumprem a lei - a chamada presunção da culpa. A minha reclamação continha a sugestão de acabar pura e simplesmente com a exigência de tal documento para as crianças e jovens abrangidos pela escolaridade obrigatória.

A resposta do Metro (assinada misteriosamente L. Silva, a lembrar um comentário anónimo num site) é cortês e autista. A carta reproduz a regulamentação em vigor na empresa, envia-me a lista da documentação exigida para pedir um passe (incluindo a “declaração emitida pelo estabelecimento de ensino”) e despede-se “esperando ter prestado os devidos esclarecimentos” como se eu tivesse pedido algum. Sobre a matéria substantiva da reclamação/sugestão nem uma linha.

A carta do Metro obedece a um padrão. Utilizo com frequência os Livros de Reclamações e tenho recebido muitas respostas deste tipo: reproduzem a norma de que nos queixamos e garantem-nos que ela faz mesmo parte dos procedimentos definidos, sem lhes passar pela cabeça discutir a sua razão de ser ou conveniência.

Claro que há pior. Uma reclamação que enviei ao Banco de Portugal há anos teve como única resposta uma carta agradecendo a reclamação. Outra que enviei à CMVM, queixando-me de um procedimento relativo à compra de acções com intermediação dos bancos que me parecia (e parece) ilegítimo, pedia-me que provasse de que forma, quando e em quanto a referida prática me tinha prejudicado a mim pessoalmente – ainda que não fosse essa a razão da minha reclamação. Outra vez, que utilizei o Provedor do Cliente do meu banco, o BCP, para me queixar dos procedimentos de um dado departamento, recebi a resposta de que a minha queixa tinha sido enviada para o referido departamento – do qual nunca recebi outra resposta. Poderia multiplicar os exemplos. Mas a atitude do Metro é a mais comum. Queixamo-nos da actuação de uma dada instituição e a resposta garante-nos, de forma reconfortante, que sim senhor, é assim mesmo que eles fazem e que é isso que está definido na Norma 12B/34, muito obrigado pela sua reclamação estamos aqui para o esclarecer.

Não recebi até hoje uma única resposta em que a instituição objecto da queixa reconhecesse a sua falta, considerasse a possibilidade de adoptar outros procedimentos ou, alternativamente, defendesse com algum argumento racional a prática em vigor.
E, no entanto, instâncias de regulação, empresas e organismos do Estado apresentam com orgulho as suas estatísticas de reclamações “atendidas”, como se isso fosse um sinal de preocupação com o cliente ou utente e de preocupação com a melhoria da qualidade do serviço.

Suspeito que o Livro de Reclamações possa ser, de facto, o Livro de Areia de Borges. O livro de todos os livros, que contém todos os sofrimentos e todos os sonhos, onde nada é decifrável e nada pode ser usado seja para o que for. Está lá tudo mas o livro está perdido para sempre. É apenas o poço sem fundo onde gritamos que o rei tem orelhas de burro.
Ou pode ser que ele seja apenas uma metáfora da nossa sociedade. Feito para cumprir os aspectos formais do respeito pelo cidadão sem satisfazer minimamente a substância dos seus desejos, queixas e direitos, tudo isto usando um newspeak orwelliano: “Queixe-se, está no seu direito! Estamos aqui para o ouvir. Obrigado pela sua queixa. Não se sente mais aliviado? Pode voltar amanhã para se queixar de novo, se precisar. Não se preocupe. Entregue-se nas nossas mãos.” (jvmalheiros@gmail.com)