por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Outubro de 2014Crónica 48/2014
Não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT
1. A avaliação dos centros de investigação portugueses que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) encomendou à European Science Foundation (ESF), e que se poderá traduzir no corte do financiamento e consequente morte para metade destes centros, arrisca-se a ficar na história de ambas as instituições como o momento menos honroso das suas vidas.
Apesar das inúmeras falhas detectadas, documentadas e denunciadas no processo, apesar das irregularidades processuais conhecidas e noticiadas, apesar da descarada batota de tentar impor à partida um resultado com cinquenta por cento de chumbos a essa avaliação e da mais descarada ainda tentativa de negar essa evidência apesar de ela constar de um contrato assinado, tanto a FCT como a ESF continuam a tentar encobrir o sol com uma peneira, tentando dar a entender que quem critica a avaliação o faz apenas porque viu os seus interesses beliscados e não devido ao monte de erros, falhas, irregularidades e batotas do processo.
Na semana passada, ficámos a conhecer mais uma peça do enredo, com a publicação de uma carta do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) dirigida ao ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, cuja acção política neste e noutros domínios se tem resumido a fazer de morto e esperar que o tempo passe.
O CRUP, numa posição consensual assumida pelos seus quinze reitores, escreveu que já não lhe era possível dar o “benefício da dúvida” ao actual processo de avaliação e declarava recusar "a morte anunciada de quase 50% do tecido científico português". Note-se que o CRUP e os reitores têm sido de uma enorme benevolência para com o Governo, apesar dos cortes que têm afectado e vão continuar a afectar a ciência e o ensino superior. É por isso significativo que tenham finalmente perdido a paciência. O documento do CRUP mostra que, mesmo para aqueles que aceitam a retórica da austeridade e estão sempre dispostos a fazer um jeitinho ao poder, a situação se tornou insustentável. “Para que um sistema de avaliação seja capaz de promover a excelência tem de, ele próprio, ser pelo menos excelente, se não excepcional. Não é o caso.”, diz a carta. Os reitores afirmam ainda que os painéis de avaliação, mesmo quando confrontados com os "inúmeros erros de avaliação, muitos inteiramente factuais", se "desculparam de diversas formas para não retirar daí consequências, mantendo avaliações inexplicáveis" e concluem que o processo de avaliação se traduziu num "falhanço pleno" e numa "oportunidade perdida". A tomada de posição do CRUP é tardia, mas não podia ser mais clara.
O que irá fazer o ministro? Corrigir ou anular o processo de avaliação? Provavelmente vai fingir que não leu ou leu mas não percebeu ou telefonar a este ou aquele reitor para deitar água na fervura e pedir-lhes ainda mais um jeitinho, mas a verdade é que já não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT, nem a agenda de estrangulamento da investigação do ministro Nuno Crato e da secretária de Estado Leonor Parreira.
2. Na semana passada também se conheceu uma outra carta, enviada pela ESF à revista Nature, na sequência de uma primeira carta que a mesma ESF tinha dirigido a uma investigadora espanhola que aí tinha publicado um artigo de opinião denunciando falhas no processo de avaliação dos centros de investigação portugueses. Na primeira carta, a ESF ameaçava a autora do artigo de um processo judicial se não mudasse de opinião e se não se retractasse, o que suscitou uma avalanche de críticas contra a ESF por toda a Europa. Desta vez, a ESF decidiu enviar uma mensagem revista e corrigida, para tentar fazer esquecer o tom rufia da primeira, mas volta a considerar que as referências a erros no processo de avaliação "não são sustentadas". É aborrecido que o diga porque, quando uma organização quer provar o seu rigor, deve evitar mentir com este descaramento. De facto, a ESF recebeu inúmeras críticas, correcções e queixas feitas directamente pelos próprios centros, seguindo canais oficiais, no âmbito do processo de contestação e revisão das avaliações. As principais críticas podem ainda ser lidas no blog Rerum Natura, que inclui mesmo posts em inglês, que a ESF poderia (e deveria) ter consultado caso quisesse honestamente informar-se das críticas feitas ao seu trabalho.
Quando a ESF nega a existência evidente dessa sustentação às críticas de que foi objecto, apenas nos conforta na convicção de que foi a organização errada para este trabalho e de que a sua idoneidade está muito abaixo do nível exigido a uma organização europeia com a sua pretensão. Que os dirigentes da FCT não o vejam é mais uma prova lamentável da sua baixa exigência e de que, no processo de avaliação realizado, apenas interessava chegar a um valor pré-definido, independentemente dos métodos usados.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1
Nota 1 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - Na carta da European Science Foundation (ESF) à Nature que cito na minha crónica de hoje no Público (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1), a primeira refere, de forma algo críptica, a existência de "interferência directa com pares e membros dos painéis", o que condena. Parece que a ESF se queixa (sem o dizer claramente, o que seria mais honesto, mas não podemos ser demasiado exigentes) de que investigadores avaliados tentaram pressionar avaliadores. Se isso aconteceu, é evidente que se trata de algo inaceitável. Mas o que é igualmente inaceitável é que a ESF se queixe da pressão dos índios mas tenha aceite sem rebuço a pressão dos chefes, com a imposição dos 50% de chumbos que o contrato com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)impõe ou que tenha ela própria obrigado avaliadores a baixar notas para satisfazer os desejos do seu cliente. Como é inaceitável que tenha, à vista de todos, ameaçado a investigadora espanhola Amaya Moro-Martin por crime de opinião.
Que a FCT só queira financiar metade dos centros portugueses é uma questão em relação à qual a ESF pode dizer que nada tem a ver. Mas que tenha aceitado martelar as notas para que metade dos centros parecessem fracos e pudessem assim mais facilmente sustentar a escolha política de Nuno Crato, de Leonor Parreira e da FCT é inaceitável.
Nota 2 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - No meio deste Carnaval, continuamos à espera de que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) se digne divulgar as famosas adendas ao contrato que assinou com a European Science Foundation (ESF) e que constituem a base legal da avaliação realizada pela ESF. A FCT diz que ainda não estão assinadas, mas essa justificação é certamente um lapso, porque o Estado não poderia usar um serviço que lhe é facultado por um fornecedor sem uma cobertura contratual.
jvmalheiros@gmail.com
quarta-feira, outubro 29, 2014
terça-feira, outubro 21, 2014
A mulher empoleirada no banco
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Outubro de 2014
Crónica 47/2014
A funcionária ocupa assim apenas meio metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de trabalho confortável.
A mulher está empoleirada numa cadeira alta, que mais parece um banco de bar, atrás de um balcão diminuto. Veste um fato preto, sóbrio e elegante, e sorri enquanto atende os clientes que vão entrando e que não têm sequer espaço para pousar a pasta ou o saco de mão em cima do exíguo pedaço de vidro que faz as vezes de balcão. Os homens pousam a pasta no chão, penduram o guarda-chuva no pescoço, dobram o impermeável no braço e apertam o computador entre as pernas. As mulheres hesitam mas ficam com tudo nos braços, casaco, guarda-chuva, mala, saco do computador, mochila, sacos de compras, lancheira.
A cena passa-se numa dependência da CGD, mas podia ser noutro banco porque são todos iguais. Tudo parece ter sido estudado para colocar o cliente numa situação de incomodidade e precariedade, para o obrigar a despachar-se rapidamente e não ocupar o tempo precioso da funcionária que atende. É a mesma função da música aos berros nos fast food. O objectivo é afugentar rapidamente o cliente para acelerar a rotação e poder reduzir o número de trabalhadores ao mínimo.
O minibalcão à entrada, em vez de uma secretária com uma recepcionista, foi invenção de um génio da produtividade. A funcionária ocupa assim apenas meio metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de trabalho confortável. É só poupança. O génio da produtividade esfrega as mãos de contente. Subliminarmente, o desconforto do trabalhador também lhe transmite a mensagem de que a sua situação profissional é, como a sua posição física, instável, e que a sua pessoa é, como o espaço que lhe concedem, insignificante.
Penso em quanto tempo aguentaria eu a trabalhar neste posto, naquela exposição total, frente à porta, naquele desamparo, empoleirado naquele inóspito minibalcão de vidro. Não há o mínimo espaço pessoal, não há nada pessoal naquele espaço nem pode haver, por imperativo físico. Por baixo do balcão, há prateleiras a transbordar de impressos, e é tudo. Onde guardará esta empregada o casaco, o chapéu de chuva, a carteira, os sacos de compras, o livro que está a ler, os desenhos dos filhos, as fotografia das férias, as mil e uma coisas com que os trabalhadores tornam seu o espaço de trabalho? Imagino que deve ter, por trás das portas de vidro fechadas aos clientes, um canto para tudo isso, um cabide, um cacifo. Houve um tempo em que os operários eram tratados assim mas não os empregados dos serviços. Nos escritórios, os trabalhadores detinham algum controlo sobre o seu local de trabalho, podiam humanizar o seu espaço. Agora são todos proletários. E o local de trabalho é apenas mais uma peça da máquina que se quer oleada e estéril, um local onde encaixa outra peça chamada “o colaborador”. E encaixa à justa.
Na dependência do BCP onde entro a seguir também há um minibalcão à entrada. E, a poucos metros, há uma série de cubículos com separadores de vidro, com secretárias, mas todos tão impessoais como o balcão da entrada. Os cubículos proporcionam a mesma privacidade que uma camarata, mas o sigilo bancário é algo com que os bancos apenas se preocupam em relação aos grandes clientes e esses nunca se sentam nos cubículos de vidro. As secretárias estão desprovidas de qualquer toque pessoal para poderem ser usadas rotativamente por diferentes funcionários. É como o sistema de “cama quente” na Marinha. Três marinheiros a fazer turnos só precisam de uma cama. Nos barcos é por falta de espaço, aqui é para poupar dinheiro. Tudo foi pensado para deixar bem claro aos trabalhadores que não pertencem aqui e que nada do que aqui está lhes pertence. Para deixar claro que, quando se forem, outros, quaisquer outros, absolutamente igual a eles, os irão substituir, usando as mesmas secretárias, as mesmas cadeiras, as mesmas frases para garantir aos clientes que irão “propor-lhes a solução que melhor se adapta ao seu caso pessoal”.
Na Clínica da Luz há pior: ao lado dos amplos corredores e dos enormes e confortáveis espaços de espera para clientes e famílias, há “postos de trabalho” encostados às paredes dos corredores que são como minibalcões como os dos bancos mas sem o banco de bar. Os “colaboradores” têm de aguentar as horas de trabalho de pé. É verdade que têm o grato prazer de trabalhar para a Espírito Santo Saúde, uma empresa disputada no mercado, mas deve ser duro para as costas. E isto é o que acontece à frente dos nossos olhos nas “grandes empresas”.
Há muito pior. Há os “seguranças” que passam dias e noites num cubículo sem condições, gelado no Inverno e um forno no Verão, sem uma casa de banho, ao pé de uma cancela, verificando nomes e matrículas 24 horas por dia. Muitas vezes em empresas que se gabam da forma como cuidam dos seus “colaboradores”. É que estes não são “colaboradores” deles. São “colaboradores” de uma empresa subcontratada e por isso a grande empresa pode negar toda a responsabilidade pelas condições de trabalho. E há pior. Há sempre pior.
O empobrecimento e o desemprego multiplicaram estas condições degradantes. Afinal, o desemprego é ainda pior. É assim que se desce o “custo unitário do trabalho”. As empresas chamam-lhe “redução de custos”, “rentabilização”. Mas é só desumanidade.
Texto publicado no jornal Público a 21 de Outubro de 2014
Crónica 47/2014
A funcionária ocupa assim apenas meio metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de trabalho confortável.
A mulher está empoleirada numa cadeira alta, que mais parece um banco de bar, atrás de um balcão diminuto. Veste um fato preto, sóbrio e elegante, e sorri enquanto atende os clientes que vão entrando e que não têm sequer espaço para pousar a pasta ou o saco de mão em cima do exíguo pedaço de vidro que faz as vezes de balcão. Os homens pousam a pasta no chão, penduram o guarda-chuva no pescoço, dobram o impermeável no braço e apertam o computador entre as pernas. As mulheres hesitam mas ficam com tudo nos braços, casaco, guarda-chuva, mala, saco do computador, mochila, sacos de compras, lancheira.
A cena passa-se numa dependência da CGD, mas podia ser noutro banco porque são todos iguais. Tudo parece ter sido estudado para colocar o cliente numa situação de incomodidade e precariedade, para o obrigar a despachar-se rapidamente e não ocupar o tempo precioso da funcionária que atende. É a mesma função da música aos berros nos fast food. O objectivo é afugentar rapidamente o cliente para acelerar a rotação e poder reduzir o número de trabalhadores ao mínimo.
O minibalcão à entrada, em vez de uma secretária com uma recepcionista, foi invenção de um génio da produtividade. A funcionária ocupa assim apenas meio metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de trabalho confortável. É só poupança. O génio da produtividade esfrega as mãos de contente. Subliminarmente, o desconforto do trabalhador também lhe transmite a mensagem de que a sua situação profissional é, como a sua posição física, instável, e que a sua pessoa é, como o espaço que lhe concedem, insignificante.
Penso em quanto tempo aguentaria eu a trabalhar neste posto, naquela exposição total, frente à porta, naquele desamparo, empoleirado naquele inóspito minibalcão de vidro. Não há o mínimo espaço pessoal, não há nada pessoal naquele espaço nem pode haver, por imperativo físico. Por baixo do balcão, há prateleiras a transbordar de impressos, e é tudo. Onde guardará esta empregada o casaco, o chapéu de chuva, a carteira, os sacos de compras, o livro que está a ler, os desenhos dos filhos, as fotografia das férias, as mil e uma coisas com que os trabalhadores tornam seu o espaço de trabalho? Imagino que deve ter, por trás das portas de vidro fechadas aos clientes, um canto para tudo isso, um cabide, um cacifo. Houve um tempo em que os operários eram tratados assim mas não os empregados dos serviços. Nos escritórios, os trabalhadores detinham algum controlo sobre o seu local de trabalho, podiam humanizar o seu espaço. Agora são todos proletários. E o local de trabalho é apenas mais uma peça da máquina que se quer oleada e estéril, um local onde encaixa outra peça chamada “o colaborador”. E encaixa à justa.
Na dependência do BCP onde entro a seguir também há um minibalcão à entrada. E, a poucos metros, há uma série de cubículos com separadores de vidro, com secretárias, mas todos tão impessoais como o balcão da entrada. Os cubículos proporcionam a mesma privacidade que uma camarata, mas o sigilo bancário é algo com que os bancos apenas se preocupam em relação aos grandes clientes e esses nunca se sentam nos cubículos de vidro. As secretárias estão desprovidas de qualquer toque pessoal para poderem ser usadas rotativamente por diferentes funcionários. É como o sistema de “cama quente” na Marinha. Três marinheiros a fazer turnos só precisam de uma cama. Nos barcos é por falta de espaço, aqui é para poupar dinheiro. Tudo foi pensado para deixar bem claro aos trabalhadores que não pertencem aqui e que nada do que aqui está lhes pertence. Para deixar claro que, quando se forem, outros, quaisquer outros, absolutamente igual a eles, os irão substituir, usando as mesmas secretárias, as mesmas cadeiras, as mesmas frases para garantir aos clientes que irão “propor-lhes a solução que melhor se adapta ao seu caso pessoal”.
Na Clínica da Luz há pior: ao lado dos amplos corredores e dos enormes e confortáveis espaços de espera para clientes e famílias, há “postos de trabalho” encostados às paredes dos corredores que são como minibalcões como os dos bancos mas sem o banco de bar. Os “colaboradores” têm de aguentar as horas de trabalho de pé. É verdade que têm o grato prazer de trabalhar para a Espírito Santo Saúde, uma empresa disputada no mercado, mas deve ser duro para as costas. E isto é o que acontece à frente dos nossos olhos nas “grandes empresas”.
Há muito pior. Há os “seguranças” que passam dias e noites num cubículo sem condições, gelado no Inverno e um forno no Verão, sem uma casa de banho, ao pé de uma cancela, verificando nomes e matrículas 24 horas por dia. Muitas vezes em empresas que se gabam da forma como cuidam dos seus “colaboradores”. É que estes não são “colaboradores” deles. São “colaboradores” de uma empresa subcontratada e por isso a grande empresa pode negar toda a responsabilidade pelas condições de trabalho. E há pior. Há sempre pior.
O empobrecimento e o desemprego multiplicaram estas condições degradantes. Afinal, o desemprego é ainda pior. É assim que se desce o “custo unitário do trabalho”. As empresas chamam-lhe “redução de custos”, “rentabilização”. Mas é só desumanidade.
Crónica no Público: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-mulher-empoleirada-no-banco-1673537
sexta-feira, outubro 17, 2014
"Secretário de Estado [João Grancho] plagiou textos sobre a “dimensão moral” da profissão docente"
Post publicado no Facebook a propósito da notícia do Público de 17 Outubro 2014 "Secretário de Estado plagiou textos sobre a “dimensão moral” da profissão docente"
(http://www.publico.pt/politica/noticia/secretario-de-estado-plagiou-textos-sobre-a-dimensao-moral-da-profissao-docente-1673137)
As desculpas são mais chocantes do que o plágio. Se bem percebi, resumem-se a:
- A Associação Nacional de Professores (ANP) costumava plagiar Agostinho Reis Monteiro. Aliás, as propostas da ANP eram praticamente todas copiadas dele.
- Ele não se importava
- É verdade que desta vez João Grancho não citou Agostinho Reis Monteiro, mas houve outras vezes em que a ANP o citou. Às vezes na sua presença.
- Este texto não é um trabalho académico e o plágio só é grave num trabalho académico. Se for num romance, num discurso, num relatório, num espectáculo, num disco ou num programa de computador não faz mal. A Sociedade Portuguesa de Autores vai achar graça à argumentação.
- O plágio neste caso não tem importância porque a presença em Múrcia de João Grancho "decorreu de convite ao Presidente da ANP por parte do coordenador do observatório da convivência de Múrcia e ex-presidente da ANPE (Associação Nacional de Professores de Espanha – sindicato independente)". Se tivesse sido a convite do Sindicato de Talhantes o plágio teria constituído uma grave falha ética. Mas não foi.
- O plágio do texto do CRUP não tem qualquer importância
- Só jornais muito estúpidos é que falam destas coisas
(http://www.publico.pt/politica/noticia/secretario-de-estado-plagiou-textos-sobre-a-dimensao-moral-da-profissao-docente-1673137)
As desculpas são mais chocantes do que o plágio. Se bem percebi, resumem-se a:
- A Associação Nacional de Professores (ANP) costumava plagiar Agostinho Reis Monteiro. Aliás, as propostas da ANP eram praticamente todas copiadas dele.
- Ele não se importava
- É verdade que desta vez João Grancho não citou Agostinho Reis Monteiro, mas houve outras vezes em que a ANP o citou. Às vezes na sua presença.
- Este texto não é um trabalho académico e o plágio só é grave num trabalho académico. Se for num romance, num discurso, num relatório, num espectáculo, num disco ou num programa de computador não faz mal. A Sociedade Portuguesa de Autores vai achar graça à argumentação.
- O plágio neste caso não tem importância porque a presença em Múrcia de João Grancho "decorreu de convite ao Presidente da ANP por parte do coordenador do observatório da convivência de Múrcia e ex-presidente da ANPE (Associação Nacional de Professores de Espanha – sindicato independente)". Se tivesse sido a convite do Sindicato de Talhantes o plágio teria constituído uma grave falha ética. Mas não foi.
- O plágio do texto do CRUP não tem qualquer importância
- Só jornais muito estúpidos é que falam destas coisas
terça-feira, outubro 14, 2014
Quando os inquisidores começam a mostrar os dentes
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Outubro de 2014
Crónica 46/2014
A acção da European Science Foundation é uma acção de censura, inaceitável em termos éticos e políticos.
Devo confessar que, quando li pela primeira vez esta notícia, fui verificar cuidadosamente o endereço do site que estava a consultar, para me certificar de que não estava a ler The Onion ou o Inimigo Público ou outro site satírico do género, cuja semelhança com a realidade é sempre perturbadora. Mas não estava.
O que aconteceu foi que, na semana passada, a astrofísica espanhola Amaya Moro-Martin, investigadora do Space Telescope Science Institute de Baltimore (EUA) e uma conhecida activista em defesa da investigação na União Europeia, escreveu um artigo na secção de opinião da revista Nature, intitulado “A call to those who care about Europe’s science”. No artigo daNature, escrito a pretexto da recente nomeação de Carlos Moedas como comissário europeu responsável pela investigação, a investigadora chamava a atenção para os cortes realizados na ciência nos últimos anos em Itália, Grécia, Espanha e Portugal e denunciava, nomeadamente, os riscos do abandono da investigação fundamental e da fuga de cérebros dos países do Sul para os países do Norte da Europa. A dada altura, e a título de exemplo, a par de outras informações, Moro-Martin referia que Portugal poderia ver-se obrigado a fechar metade das suas unidades de investigação devido a um “processo de avaliação com erros levado a cabo com o apoio da European Science Foundation” (“a flawed evaluation process supported by the European Science Foundation”).
A história não teria nenhum interesse particular se acabasse aqui. Mas não acaba. Na sequência da publicação do seu artigo, a investigadora recebeu uma carta assinada por um Dr. Jean-Claude Worms em nome da European Science Foundation (ESF), que exigia que a autora retractasse a frase onde dizia que havia erros na avaliação das unidades de investigação portuguesas levada a cabo pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a ESF e ameaçando-a com um processo judicial se não o fizesse.
O gesto da ESF é vergonhoso a vários títulos, mas é particularmente chocante no contexto da ciência. Não faz parte das tradições da ciência nem dos cânones do método científico tentar obrigar uma pessoa a mudar de opinião sob ameaça de um processo judicial.
O problema vai, porém, muito para além das regras da ciência. A acção da European Science Foundation é uma acção de censura, que tenta limitar a liberdade de expressão e é, por isso, inaceitável em termos éticos e políticos. Trata-se de um gesto autoritário e anti-democrático que nenhuma sociedade pode tolerar. Não admira por isso que, nos últimos dias, se tenham multiplicado as tomadas de posição na Internet com investigadores a declarar que deixarão de prestar qualquer colaboração à ESF.
O gesto da European Science Foundation é, também, profundamente estúpido. Agir como um rufia para tentar calar uma voz discordante com intimidações não é a melhor forma de convencer seja quem for de que a avaliação que realizou em Portugal foi conduzida de forma irrepreensível. No entanto, o descaramento com que o acto de censura foi praticado, levado a cabo a céu aberto por uma organização europeia que reúne dezenas de instituições responsáveis pela coordenação e financiamento da investigação em inúmeros países, demonstra até que ponto as nossas liberdades cívicas estão em risco e como existe uma indiferença crescente em relação aos direitos dos cidadãos quando eles colidem com os interesses das organizações. Estas considerações seriam excessivas se a carta de Worms fosse apenas uma carta de um burocrata palerma, mas nesse caso ela já teria sido desmentida com um pedido de desculpas pela ESF e Worms despedido. E isso não aconteceu.
Podia acontecer que o artigo de Moro-Martin se estendesse em acusações à ESF que esta pudesse considerar difamatórias, mas não há nada disso no texto. A autora fala apenas de “erros” (“flawed evaluation process”) e esses há-os às dezenas como tem sido largamente noticiado e denunciado. Aliás, qualquer processo de avaliação tem erros, razão por que é triplamente estúpido que a ESF queira ver corrigida essa declaração. Mas a questão da liberdade de opinião é independente da base material dessa opinião. Ainda que mais ninguém concordasse com Amaya Moro-Martin, ela continuaria a ter todo o direito de considerar que há erros no processo de avaliação desde que - em nome do rigor científico e não da obrigação judicial - os pudesse apontar.
Resta dizer uma palavra sobre a portuguesa FCT, que escolheu esta pouco recomendável ESF como fornecedora desta avaliação. É pouco provável que o senhor Worms tenha escrito a sua carta censora sem o conhecimento e aprovação da FCT. Mas, se por acaso o fez, a FCT tem de se dessolidarizar deste gesto e defender claramente o direito de todos a criticarem esta avaliação - ainda que não concorde com eles. Fazer isso é a última oportunidade para salvar o que lhe resta da sua honra.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/quando-os-inquisidores-comecam-a-mostrar-os-dentes-1672787?page=-1
Texto publicado no jornal Público a 14 de Outubro de 2014
Crónica 46/2014
A acção da European Science Foundation é uma acção de censura, inaceitável em termos éticos e políticos.
Devo confessar que, quando li pela primeira vez esta notícia, fui verificar cuidadosamente o endereço do site que estava a consultar, para me certificar de que não estava a ler The Onion ou o Inimigo Público ou outro site satírico do género, cuja semelhança com a realidade é sempre perturbadora. Mas não estava.
O que aconteceu foi que, na semana passada, a astrofísica espanhola Amaya Moro-Martin, investigadora do Space Telescope Science Institute de Baltimore (EUA) e uma conhecida activista em defesa da investigação na União Europeia, escreveu um artigo na secção de opinião da revista Nature, intitulado “A call to those who care about Europe’s science”. No artigo daNature, escrito a pretexto da recente nomeação de Carlos Moedas como comissário europeu responsável pela investigação, a investigadora chamava a atenção para os cortes realizados na ciência nos últimos anos em Itália, Grécia, Espanha e Portugal e denunciava, nomeadamente, os riscos do abandono da investigação fundamental e da fuga de cérebros dos países do Sul para os países do Norte da Europa. A dada altura, e a título de exemplo, a par de outras informações, Moro-Martin referia que Portugal poderia ver-se obrigado a fechar metade das suas unidades de investigação devido a um “processo de avaliação com erros levado a cabo com o apoio da European Science Foundation” (“a flawed evaluation process supported by the European Science Foundation”).
A história não teria nenhum interesse particular se acabasse aqui. Mas não acaba. Na sequência da publicação do seu artigo, a investigadora recebeu uma carta assinada por um Dr. Jean-Claude Worms em nome da European Science Foundation (ESF), que exigia que a autora retractasse a frase onde dizia que havia erros na avaliação das unidades de investigação portuguesas levada a cabo pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a ESF e ameaçando-a com um processo judicial se não o fizesse.
O gesto da ESF é vergonhoso a vários títulos, mas é particularmente chocante no contexto da ciência. Não faz parte das tradições da ciência nem dos cânones do método científico tentar obrigar uma pessoa a mudar de opinião sob ameaça de um processo judicial.
O problema vai, porém, muito para além das regras da ciência. A acção da European Science Foundation é uma acção de censura, que tenta limitar a liberdade de expressão e é, por isso, inaceitável em termos éticos e políticos. Trata-se de um gesto autoritário e anti-democrático que nenhuma sociedade pode tolerar. Não admira por isso que, nos últimos dias, se tenham multiplicado as tomadas de posição na Internet com investigadores a declarar que deixarão de prestar qualquer colaboração à ESF.
O gesto da European Science Foundation é, também, profundamente estúpido. Agir como um rufia para tentar calar uma voz discordante com intimidações não é a melhor forma de convencer seja quem for de que a avaliação que realizou em Portugal foi conduzida de forma irrepreensível. No entanto, o descaramento com que o acto de censura foi praticado, levado a cabo a céu aberto por uma organização europeia que reúne dezenas de instituições responsáveis pela coordenação e financiamento da investigação em inúmeros países, demonstra até que ponto as nossas liberdades cívicas estão em risco e como existe uma indiferença crescente em relação aos direitos dos cidadãos quando eles colidem com os interesses das organizações. Estas considerações seriam excessivas se a carta de Worms fosse apenas uma carta de um burocrata palerma, mas nesse caso ela já teria sido desmentida com um pedido de desculpas pela ESF e Worms despedido. E isso não aconteceu.
Podia acontecer que o artigo de Moro-Martin se estendesse em acusações à ESF que esta pudesse considerar difamatórias, mas não há nada disso no texto. A autora fala apenas de “erros” (“flawed evaluation process”) e esses há-os às dezenas como tem sido largamente noticiado e denunciado. Aliás, qualquer processo de avaliação tem erros, razão por que é triplamente estúpido que a ESF queira ver corrigida essa declaração. Mas a questão da liberdade de opinião é independente da base material dessa opinião. Ainda que mais ninguém concordasse com Amaya Moro-Martin, ela continuaria a ter todo o direito de considerar que há erros no processo de avaliação desde que - em nome do rigor científico e não da obrigação judicial - os pudesse apontar.
Resta dizer uma palavra sobre a portuguesa FCT, que escolheu esta pouco recomendável ESF como fornecedora desta avaliação. É pouco provável que o senhor Worms tenha escrito a sua carta censora sem o conhecimento e aprovação da FCT. Mas, se por acaso o fez, a FCT tem de se dessolidarizar deste gesto e defender claramente o direito de todos a criticarem esta avaliação - ainda que não concorde com eles. Fazer isso é a última oportunidade para salvar o que lhe resta da sua honra.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/quando-os-inquisidores-comecam-a-mostrar-os-dentes-1672787?page=-1
terça-feira, outubro 07, 2014
A importância de se chamar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Outubro de 2014
Crónica 45/2014
Não sei se o auto-proclamado “Estado Islâmico” contratou um especialista de branding, mas o know-how está lá.
O secretário-geral da Interpol, o americano Ronald Noble, sugeriu há dias que “a comunidade mundial e as organizações policiais” deixassem de usar a designação “Estado Islâmico”, que a organização terrorista islamista que controla grande parte do Iraque e da Síria escolheu para si, e que passassem a usar a sigla CM para os identificar.
CM são as iniciais de “Cowardly Murderers”, o nome que, segundo Noble, deveria passar a ser usado para designar o grupo que se transformou no exemplo máximo da crueldade assassina com as suas decapitações de reféns (não apenas ocidentais), filmadas em vídeo e transmitidas na Internet.
A proposta de Noble não é um mero gesto de propaganda, mas ela pretende combater uma das mais eficazes armas de propaganda destes terroristas: o seu nome.
De facto, ao usar a designação “Estado Islâmico” e previamente “Estado Islâmico do Iraque e da Síria”, que os media rapidamente adoptaram, a organização adquire aos olhos do público uma relevância e uma dignidade que ninguém lhe reconhece (a de Estado) e uma identificação imediata com uma religião (o islão), o que visa reforçar a sua legitimação perante os muçulmanos e, do outro lado, difundir entre os não-muçulmanos a ideia da identificação entre terrorismo e islão, gerando reacções de ódio religioso que são o combustível de que estes terroristas se alimentam.
O nome de Noble pode não ser o mais feliz, mas é evidente que o uso pelosmedia e pelos políticos do nome que a organização escolheu para si constitui uma legitimação e uma colaboração objectiva num acto de propaganda, que actua de cada vez que ele é referido na televisão. “Pergunto à comunidade global”, diz Noble, “por que razão é que devemos deixar que um grupo de terroristas sedento de sangue escolha para si uma designação religiosa como pretexto para justificar os seus crimes hediondos, quando nenhuma religião os poderia justificar?”
A questão é: se a Mafia adoptasse o nome de “Associação Cultural Siciliana” e se a Goldman Sachs se rebaptizasse “Congregação das Carmelitas Descalças de Wall Street” os media deveriam passar a usar essas designações? Ou deveriam considerar que a mensagem transmitida pela designação estava em desacordo com (como dizer?...) a verdade dos factos? Ou acreditariam que as novas designações representavam de facto novas identidades e novos objectivos dessas organizações?
Não sei se o auto-proclamado “Estado Islâmico” contratou um especialista debranding para escolher o seu nome, mas o know-how está lá. O que é mais dramático constatar é que esta manipulação dos nomes e dos conceitos está por todo o lado e envenena o discurso dos media, descredibiliza o discurso político e cria uma profunda sensação de impotência nos cidadãos. As coisas deixaram de ter os nomes que deviam ter, que aprendemos e que os dicionários lhes dão e ganharam novos significados, conferidos pelo poder, que retiram significado e tornam difícil dizer onde está a verdade porque ela é redefinida de acordo com o interesse de quem controla o discurso público. Passos Coelho foi pago pela Tecnoforma? Não, recebeu reembolsos de despesas do Conselho Português para a Cooperação. O CPPC tinha como objectivo a cooperação com os PALOP. O CPPC era uma organização não-governamental sem fins lucrativos. A intervenção da troika em Portugal visou o “ajustamento”. O governo não quer baixar salários mas apenas reduzir os custos unitários do trabalho. Avaliação, flexibilidade, produtividade, bolsa de horas, fundo de garantia, excelência, média ponderada, transtorno nos tribunais, sustentabilidade das contas públicas, reformas estruturais, líder social-democrata, Novo Banco. A manipulação das designações, o novo léxico do poder, está por todo o lado e tem um tal exército de megafones ao seu serviço que invade mesmo o discurso dos observadores mais atentos e mais críticos. E no entanto os nomes são importantes. São eles que identificam as coisas, as pessoas, as organizações, as políticas, as nossas acções, as nossas escolhas, as nossas ideias. Sem chamar os bois pelos nomes não podemos falar, o discurso torna-se uma pasta eufemística onde deixa de haver um terreno comum, um espaço público lexical que permite a comunicação, uma língua comum.
Existe esta ideia, prima da liberdade de expressão e irmã do copyright, de que as pessoas têm o direito de usar para si e para o que fazem as designações que quiserem. Defendo esse direito. Mas o que não existe é o direito de impor essa designação aos outros no discurso público - e os media em particular têm o dever de lhe resistir. É difícil, porque esta corrupções são também simplificações, muitas vezes económicas. Mas os media, que têm como importante função fiscalizar o poder, não devem fiscalizar apenas as suas acções. Devem, fiscalizar também o seu discurso e denunciar as suas perversões - quer se trate do “Estado Islâmico” quer se trate do “Arco da Governação”. Chamar os bois pelos nomes é uma obrigação fundamental dos jornalistas, sem o que a informação se transforma em ficção ou se junta à propaganda.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 7 de Outubro de 2014
Crónica 45/2014
Não sei se o auto-proclamado “Estado Islâmico” contratou um especialista de branding, mas o know-how está lá.
O secretário-geral da Interpol, o americano Ronald Noble, sugeriu há dias que “a comunidade mundial e as organizações policiais” deixassem de usar a designação “Estado Islâmico”, que a organização terrorista islamista que controla grande parte do Iraque e da Síria escolheu para si, e que passassem a usar a sigla CM para os identificar.
CM são as iniciais de “Cowardly Murderers”, o nome que, segundo Noble, deveria passar a ser usado para designar o grupo que se transformou no exemplo máximo da crueldade assassina com as suas decapitações de reféns (não apenas ocidentais), filmadas em vídeo e transmitidas na Internet.
A proposta de Noble não é um mero gesto de propaganda, mas ela pretende combater uma das mais eficazes armas de propaganda destes terroristas: o seu nome.
De facto, ao usar a designação “Estado Islâmico” e previamente “Estado Islâmico do Iraque e da Síria”, que os media rapidamente adoptaram, a organização adquire aos olhos do público uma relevância e uma dignidade que ninguém lhe reconhece (a de Estado) e uma identificação imediata com uma religião (o islão), o que visa reforçar a sua legitimação perante os muçulmanos e, do outro lado, difundir entre os não-muçulmanos a ideia da identificação entre terrorismo e islão, gerando reacções de ódio religioso que são o combustível de que estes terroristas se alimentam.
O nome de Noble pode não ser o mais feliz, mas é evidente que o uso pelosmedia e pelos políticos do nome que a organização escolheu para si constitui uma legitimação e uma colaboração objectiva num acto de propaganda, que actua de cada vez que ele é referido na televisão. “Pergunto à comunidade global”, diz Noble, “por que razão é que devemos deixar que um grupo de terroristas sedento de sangue escolha para si uma designação religiosa como pretexto para justificar os seus crimes hediondos, quando nenhuma religião os poderia justificar?”
A questão é: se a Mafia adoptasse o nome de “Associação Cultural Siciliana” e se a Goldman Sachs se rebaptizasse “Congregação das Carmelitas Descalças de Wall Street” os media deveriam passar a usar essas designações? Ou deveriam considerar que a mensagem transmitida pela designação estava em desacordo com (como dizer?...) a verdade dos factos? Ou acreditariam que as novas designações representavam de facto novas identidades e novos objectivos dessas organizações?
Não sei se o auto-proclamado “Estado Islâmico” contratou um especialista debranding para escolher o seu nome, mas o know-how está lá. O que é mais dramático constatar é que esta manipulação dos nomes e dos conceitos está por todo o lado e envenena o discurso dos media, descredibiliza o discurso político e cria uma profunda sensação de impotência nos cidadãos. As coisas deixaram de ter os nomes que deviam ter, que aprendemos e que os dicionários lhes dão e ganharam novos significados, conferidos pelo poder, que retiram significado e tornam difícil dizer onde está a verdade porque ela é redefinida de acordo com o interesse de quem controla o discurso público. Passos Coelho foi pago pela Tecnoforma? Não, recebeu reembolsos de despesas do Conselho Português para a Cooperação. O CPPC tinha como objectivo a cooperação com os PALOP. O CPPC era uma organização não-governamental sem fins lucrativos. A intervenção da troika em Portugal visou o “ajustamento”. O governo não quer baixar salários mas apenas reduzir os custos unitários do trabalho. Avaliação, flexibilidade, produtividade, bolsa de horas, fundo de garantia, excelência, média ponderada, transtorno nos tribunais, sustentabilidade das contas públicas, reformas estruturais, líder social-democrata, Novo Banco. A manipulação das designações, o novo léxico do poder, está por todo o lado e tem um tal exército de megafones ao seu serviço que invade mesmo o discurso dos observadores mais atentos e mais críticos. E no entanto os nomes são importantes. São eles que identificam as coisas, as pessoas, as organizações, as políticas, as nossas acções, as nossas escolhas, as nossas ideias. Sem chamar os bois pelos nomes não podemos falar, o discurso torna-se uma pasta eufemística onde deixa de haver um terreno comum, um espaço público lexical que permite a comunicação, uma língua comum.
Existe esta ideia, prima da liberdade de expressão e irmã do copyright, de que as pessoas têm o direito de usar para si e para o que fazem as designações que quiserem. Defendo esse direito. Mas o que não existe é o direito de impor essa designação aos outros no discurso público - e os media em particular têm o dever de lhe resistir. É difícil, porque esta corrupções são também simplificações, muitas vezes económicas. Mas os media, que têm como importante função fiscalizar o poder, não devem fiscalizar apenas as suas acções. Devem, fiscalizar também o seu discurso e denunciar as suas perversões - quer se trate do “Estado Islâmico” quer se trate do “Arco da Governação”. Chamar os bois pelos nomes é uma obrigação fundamental dos jornalistas, sem o que a informação se transforma em ficção ou se junta à propaganda.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-importancia-de-se-chamar-1672054
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