por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Dezembro de 2006
Crónica 45/2006
Neste Dezembro de 2006 termina a primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
Na minha infância, nos anos 60, o Natal era a festa dos bolos e dos presentes no sapatinho, do presépio com musgo que se ia buscar a Sintra e da árvore de Natal com velas verdadeiras, a festa do nascimento do Menino Jesus, da Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. E além de tudo isto era também a Festa dos Pobres. Não que os pobres fizessem uma grande festa, mas porque era a quadra em que os ricos e remediados (a curiosa expressão que o salazarismo inventou para descrever a classe média não endinheirada da época) dedicavam um pouco do seu tempo e atenção aos pobres.
Havia muitos pobres. Havia trabalhadores pobres que começavam a bater à porta à hora do jantar a meados de Dezembro "desejando a Vossa Excelência e Excelentíssima Família Boas Festas e um Próspero Ano Novo", às vezes só com o boné na mão, outras trazendo um cartão de visita impresso para a ocasião. Eram os carteiros, os homens da companhia de electricidade, da companhia das águas, os "homens do lixo", os cantoneiros, os jardineiros, os bombeiros, os guardas-nocturnos, os limpa-chaminés, os homens que lavavam as ruas e que em troca de uma moeda também davam umas mangueiradas nos carros e muitos outros. Todos dedicavam os serões de Dezembro à obtenção do subsídio de Natal que o contrato não incluía. Mas também havia os outros: os pobres de pedir.
Esses também tinham direito a tratamento especial no Natal. Havia quem fizesse sopa a mais para os pobres que vinham bater à porta – para ser comida sobre os joelhos, sentado na escada, depois de tocar à porta de serviço, que dava para a cozinha. Havia os pobres que nesses dias traziam a família para apresentar à senhora que tem sido tão boa para nós, e havia mesmo quem deixasse a mesa da cozinha preparada com uma merenda para os "seus pobres".
Nesses dias em que a maior parte das mulheres ainda estava em casa e em que ainda se abria a porta da rua quando a campainha soava, muitas famílias ricas ou remediadas (às vezes apenas escassamente mais desafogadas que os recipientes da caridade) tinham os seus pobres, muitas vezes com dias certos, que vinham receber a esmola uma vez por semana, regulares como assalariados.
Os pobres marcavam também presença noutro mundo: nas histórias. Do "Conto de Natal" de Dickens, à "Menina dos fósforos" de Hans Christian Andersen, transmitindo a moral da dádiva ou (nos melhores casos) o sentimento de injustiça social às crianças de garganta apertada e lágrimas nos olhos. Não é uma caricatura: ouvi várias vezes em resposta à pergunta "Como é que Deus permite que haja pobreza?" que a existência dos pobres se justificava por estes permitirem o exercício da caridade cristã dos outros.
Vem tudo isto não só a propósito do Natal mas do fim, neste Dezembro de 2006, da primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
José Sócrates acabou de nos vir dizer que a economia, as contas públicas e o emprego estão a dar passos positivos em Portugal, mas (como as Nações Unidas não se cansam de explicar a quem quer ouvir), em África ou em Portugal, não chega esperar que a economia arranque da pobreza os que lá vivem – tanto mais que a riqueza produzida tem uma estranha tendência para se espalhar pela sociedade de forma cada vez mais desigual. São necessárias políticas activas de combate à pobreza e à exclusão; de integração de emigrantes clandestinos; de educação de crianças, jovens e adultos; de formação profissional; de educação sanitária; de cuidados médicos; de protecção das mulheres; de microfinanciamento; de acções de realojamento e acompanhamento de famílias; de ajuda alimentar; de combate às redes de criminalidade que mantêm as escravaturas que geram grande parte da pobreza. Tudo acções que têm de ter como objectivo definido erradicar a pobreza. Sem essa atenção aos mais pobres dos pobres, qualquer discurso de solidariedade natalícia é vazio e sem sentido. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, dezembro 26, 2006
terça-feira, dezembro 19, 2006
Nós e os outros
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Dezembro de 2006
Crónica 44/2006
Quem são os "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a "Time"?
1. A ilustração de capa da última revista "Time" é um espelho, feito com um pedaço de mylar colado no papel, onde cada leitor se pode ver reflectido. O número é dedicado à Pessoa do Ano 2006 que desta vez é "Você" – "You" no original. Para que o leitor surpreendido pela honra não tenha dúvidas, a revista explica, ainda na capa: "Sim, você. Você controla a Idade da Informação".
A ideia é boa. É original e há bons argumentos para a defender, além de escovar o ego dos leitores reflectidos e de vender revistas – o que não é um crime.
2. A razão da escolha da "Time" é a explosão da chamada Web 2.0 – um conceito que se traduz na multiplicação de sites que permitem a partilha de informação e o trabalho cooperativo, que facilitam a criação de comunidades e que popularizaram os blogs, a difusão de informação e a comunicação entre cidadãos comuns. A Web 2.0 (uma designação adaptada por piada da indústria de software) e a Web social (um conceito que coloca a ênfase na Web como ferramenta de interacção social), a cujo nascimento estamos a assistir, são fenómenos de enorme impacto social, económico, cultural e político. Os tempos que estamos a viver são extremamente excitantes e todos temos a sensação de estar a participar numa revolução na qual depositamos enormes expectativas. E, por isso, a escolha da "Time" parece justa e estimulante.
3. O problema da tecnologia é que as possibilidades com que nos acena fazem-nos sonhar de tal forma que por vezes é difícil separar a potencialidade da realidade ou admitir que os caminhos da evolução podem não ser os mais desejáveis. E a realidade é que, por muito inclusiva que seja esta tecnologia (e é em muitos casos), também ela gera exclusão. Por muito poder que ela dê aos seus utilizadores anónimos (e dá em muitos casos), ela não permite resistir à lógica avassaladora de um mercado frequentemente desumano. Por muitas oportunidades económicas que ela abra (e abre em muitos casos), ela não tem permitido reduzir o fosso entre ricos e pobres – que cresceu ao longo dos mesmos anos em que a Web alargou a sua influência. Que, por muito social que ela seja, ela não dá mostras de poder inflectir o comportamento dos países ricos em relação ao ambiente, à pobreza ou à guerra.
4. Que existem potencialidades que apenas agora começamos a vislumbrar na Net parece evidente. Que a Net pode conferir um enorme poder ("empowerment") aos cidadãos também parece evidente. Que a Net pode servir (e deve servir) para difundir e aprofundar a democracia também não merece dúvida. Mas que esse poder constitua uma diferença para os milhares de milhões de seres humanos vítimas da fome, da guerra e da pobreza crónica, sem-abrigo, sem trabalho, sem-papéis, sem-terra, é uma completa falsidade. Eles não são os novos "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a Time. "You" não são eles. Eles são os outros. Não aqueles com quem se fala, mas apenas (no melhor dos casos), aqueles de quem se fala.
5. Se quando diz "you" a "Time" fala daqueles que terão a sorte de se ver reflectidos na sua capa, do grupo dos seus leitores, o "empowerment" poderá ser real. Mas ele não o é para os outros, para aqueles que a própria tecnologia permite dispensar, para os redundantes da sociedade pós-industrial. Para esses, o "you" é tão real como o "american dream" é real para um sem-abrigo nigeriano, como o "Give me your tired, your poor" da Mãe dos Exilados é real para uma prostituta seropositiva de Taiwan, como os quinze minutos de fama são reais para uma criança malnutrida do Burkina Faso. Esses não pertencem aos que estão "a transformar a Idade da Informação", como diz a "Time". Nem pertencem ao número dos que se assustam com o "excesso de democracia" da Web, como diz a "Time". Eles não controlam a Idade de Informação. E os seus números são crescentes.
Texto publicado no jornal Público a 19 de Dezembro de 2006
Crónica 44/2006
Quem são os "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a "Time"?
1. A ilustração de capa da última revista "Time" é um espelho, feito com um pedaço de mylar colado no papel, onde cada leitor se pode ver reflectido. O número é dedicado à Pessoa do Ano 2006 que desta vez é "Você" – "You" no original. Para que o leitor surpreendido pela honra não tenha dúvidas, a revista explica, ainda na capa: "Sim, você. Você controla a Idade da Informação".
A ideia é boa. É original e há bons argumentos para a defender, além de escovar o ego dos leitores reflectidos e de vender revistas – o que não é um crime.
2. A razão da escolha da "Time" é a explosão da chamada Web 2.0 – um conceito que se traduz na multiplicação de sites que permitem a partilha de informação e o trabalho cooperativo, que facilitam a criação de comunidades e que popularizaram os blogs, a difusão de informação e a comunicação entre cidadãos comuns. A Web 2.0 (uma designação adaptada por piada da indústria de software) e a Web social (um conceito que coloca a ênfase na Web como ferramenta de interacção social), a cujo nascimento estamos a assistir, são fenómenos de enorme impacto social, económico, cultural e político. Os tempos que estamos a viver são extremamente excitantes e todos temos a sensação de estar a participar numa revolução na qual depositamos enormes expectativas. E, por isso, a escolha da "Time" parece justa e estimulante.
3. O problema da tecnologia é que as possibilidades com que nos acena fazem-nos sonhar de tal forma que por vezes é difícil separar a potencialidade da realidade ou admitir que os caminhos da evolução podem não ser os mais desejáveis. E a realidade é que, por muito inclusiva que seja esta tecnologia (e é em muitos casos), também ela gera exclusão. Por muito poder que ela dê aos seus utilizadores anónimos (e dá em muitos casos), ela não permite resistir à lógica avassaladora de um mercado frequentemente desumano. Por muitas oportunidades económicas que ela abra (e abre em muitos casos), ela não tem permitido reduzir o fosso entre ricos e pobres – que cresceu ao longo dos mesmos anos em que a Web alargou a sua influência. Que, por muito social que ela seja, ela não dá mostras de poder inflectir o comportamento dos países ricos em relação ao ambiente, à pobreza ou à guerra.
4. Que existem potencialidades que apenas agora começamos a vislumbrar na Net parece evidente. Que a Net pode conferir um enorme poder ("empowerment") aos cidadãos também parece evidente. Que a Net pode servir (e deve servir) para difundir e aprofundar a democracia também não merece dúvida. Mas que esse poder constitua uma diferença para os milhares de milhões de seres humanos vítimas da fome, da guerra e da pobreza crónica, sem-abrigo, sem trabalho, sem-papéis, sem-terra, é uma completa falsidade. Eles não são os novos "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a Time. "You" não são eles. Eles são os outros. Não aqueles com quem se fala, mas apenas (no melhor dos casos), aqueles de quem se fala.
5. Se quando diz "you" a "Time" fala daqueles que terão a sorte de se ver reflectidos na sua capa, do grupo dos seus leitores, o "empowerment" poderá ser real. Mas ele não o é para os outros, para aqueles que a própria tecnologia permite dispensar, para os redundantes da sociedade pós-industrial. Para esses, o "you" é tão real como o "american dream" é real para um sem-abrigo nigeriano, como o "Give me your tired, your poor" da Mãe dos Exilados é real para uma prostituta seropositiva de Taiwan, como os quinze minutos de fama são reais para uma criança malnutrida do Burkina Faso. Esses não pertencem aos que estão "a transformar a Idade da Informação", como diz a "Time". Nem pertencem ao número dos que se assustam com o "excesso de democracia" da Web, como diz a "Time". Eles não controlam a Idade de Informação. E os seus números são crescentes.
terça-feira, dezembro 12, 2006
Poder às mulheres
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
terça-feira, dezembro 05, 2006
Privilégios e igualdade
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Dezembro de 2006
Crónica 42/2006
Caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Antes de mais, a declaração de interesses: sou jornalista e beneficiário da Caixa de Jornalistas.
A seguir, um facto: a Caixa de Jornalistas constitui um sub-sistema de saúde baseado na livre escolha do médico pelo beneficiário. O jornalista vai ao médico que deseja, paga, pede um recibo, envia o recibo para a Caixa e recebe o reembolso de parte dessa despesa, de acordo com uma tabela de comparticipações.
Depois, a minha posição: sou contra a extinção da Caixa de Jornalistas.
Finalmente, os argumentos:
1. Acabar com a Caixa de Jornalistas (CJ) é acabar com algo que funciona bem e com agrado dos seus utentes, para o substituir por algo que funciona mal e com desagrado dos seus utentes. Este argumento, por si só, deveria merecer alguma atenção por parte de um Governo que diz ter como bandeiras a produtividade e a eficiência da Administração Pública – para não falar da saúde.
2. O argumento para acabar com a CJ, segundo o Governo, não é financeiro, mas de uniformização. Mas não há razão para escolher a uniformização quando essa escolha implica uma degradação da qualidade de atendimento e de vida. Uma sociedade democrática vive da diferença, uma sociedade inovadora aceita e estimula a diferença e tem de aprender a gerir a diferença e a descentralizar. A diferença só é perturbadora nas sociedades totalitárias. Nivelar por baixo em nome da uniformização é inaceitável.
3. Vejamos o argumento financeiro (partindo da hipótese, sensata, de que o Governo está a mentir quando diz que não se trata de uma questão de dinheiro): existe o facto perturbador de a CJ e o Governo, que têm acesso aos mesmos números, chegarem a conclusões opostas quanto aos custos da instituição. A primeira diz que o sistema custa metade do sistema comum, o segundo diz que é mais caro. Há aqui uma diferença que seria bom esclarecer. Se for como diz a CJ, a extinção desta Caixa é um elogio do desperdício. Se for como diz o Governo, ele deveria mostrar números que provem o que é afirmado.
4. É evidente que não basta que os jornalistas consigam pagar com os seus descontos a sua própria Caixa. É evidente que há um dever de solidariedade social que os jornalistas reconhecem e aceitam. Ou seja: caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Mas, se existe alguma desigualdade no actual sistema, há várias formas de o sanar que não passam pela extinção da Caixa – que, repita-se, funciona bem. Se o Estado considera que gasta mais do que deve gastar com a CJ, isso pode e deve ser resolvido através de um ajustamento das comparticipações (ou de um aumento de contribuições, como a própria presidente da CJ propôs!) em vez da extinção.
Em conclusão: não há argumentos financeiros ou de equidade que se possam invocar para extinguir a CJ. A medida apenas pode ser defendida em nome de uma atitude de igualitarismo cego - para não pôr a hipótese de uma mera demonstração de força perante uma profissão que o poder gosta de ver dócil e fragilizada.
5. Considero improcedentes os argumentos sobre o desgaste rápido da profissão de jornalista, que justificariam alguma compensação ao nível dos serviços de saúde. Há profissões de desgaste mais rápido, sem essa benesse.
6. Há finalmente, outra questão, que a política portuguesa banalizou, mas que merece reparo: a grosseria com que o Governo trata entidades e cidadãos respeitáveis, recusando-se a dialogar até depois dos factos consumados, rompendo unilateralmente negociações sem a sensatez de uma discussão e sem a delicadeza de uma explicação. Uso o privilégio de escrever esta coluna para defender o direito à cortesia.
Texto publicado no jornal Público a 5 de Dezembro de 2006
Crónica 42/2006
Caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Antes de mais, a declaração de interesses: sou jornalista e beneficiário da Caixa de Jornalistas.
A seguir, um facto: a Caixa de Jornalistas constitui um sub-sistema de saúde baseado na livre escolha do médico pelo beneficiário. O jornalista vai ao médico que deseja, paga, pede um recibo, envia o recibo para a Caixa e recebe o reembolso de parte dessa despesa, de acordo com uma tabela de comparticipações.
Depois, a minha posição: sou contra a extinção da Caixa de Jornalistas.
Finalmente, os argumentos:
1. Acabar com a Caixa de Jornalistas (CJ) é acabar com algo que funciona bem e com agrado dos seus utentes, para o substituir por algo que funciona mal e com desagrado dos seus utentes. Este argumento, por si só, deveria merecer alguma atenção por parte de um Governo que diz ter como bandeiras a produtividade e a eficiência da Administração Pública – para não falar da saúde.
2. O argumento para acabar com a CJ, segundo o Governo, não é financeiro, mas de uniformização. Mas não há razão para escolher a uniformização quando essa escolha implica uma degradação da qualidade de atendimento e de vida. Uma sociedade democrática vive da diferença, uma sociedade inovadora aceita e estimula a diferença e tem de aprender a gerir a diferença e a descentralizar. A diferença só é perturbadora nas sociedades totalitárias. Nivelar por baixo em nome da uniformização é inaceitável.
3. Vejamos o argumento financeiro (partindo da hipótese, sensata, de que o Governo está a mentir quando diz que não se trata de uma questão de dinheiro): existe o facto perturbador de a CJ e o Governo, que têm acesso aos mesmos números, chegarem a conclusões opostas quanto aos custos da instituição. A primeira diz que o sistema custa metade do sistema comum, o segundo diz que é mais caro. Há aqui uma diferença que seria bom esclarecer. Se for como diz a CJ, a extinção desta Caixa é um elogio do desperdício. Se for como diz o Governo, ele deveria mostrar números que provem o que é afirmado.
4. É evidente que não basta que os jornalistas consigam pagar com os seus descontos a sua própria Caixa. É evidente que há um dever de solidariedade social que os jornalistas reconhecem e aceitam. Ou seja: caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Mas, se existe alguma desigualdade no actual sistema, há várias formas de o sanar que não passam pela extinção da Caixa – que, repita-se, funciona bem. Se o Estado considera que gasta mais do que deve gastar com a CJ, isso pode e deve ser resolvido através de um ajustamento das comparticipações (ou de um aumento de contribuições, como a própria presidente da CJ propôs!) em vez da extinção.
Em conclusão: não há argumentos financeiros ou de equidade que se possam invocar para extinguir a CJ. A medida apenas pode ser defendida em nome de uma atitude de igualitarismo cego - para não pôr a hipótese de uma mera demonstração de força perante uma profissão que o poder gosta de ver dócil e fragilizada.
5. Considero improcedentes os argumentos sobre o desgaste rápido da profissão de jornalista, que justificariam alguma compensação ao nível dos serviços de saúde. Há profissões de desgaste mais rápido, sem essa benesse.
6. Há finalmente, outra questão, que a política portuguesa banalizou, mas que merece reparo: a grosseria com que o Governo trata entidades e cidadãos respeitáveis, recusando-se a dialogar até depois dos factos consumados, rompendo unilateralmente negociações sem a sensatez de uma discussão e sem a delicadeza de uma explicação. Uso o privilégio de escrever esta coluna para defender o direito à cortesia.
Subscrever:
Mensagens (Atom)