por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Novembro de 2005
Crónica 35/2005
Sem o envolvimento real dos cidadãos pode fazer-se um papel, mas não se faz um plano que mude o país.
O Plano Tecnológico foi apresentado durante a campanha eleitoral por José Sócrates como um dos eixos estratégicos da acção do futuro governo do Partido Socialista. Era em torno deste programa que o PS se propunha enfrentar o futuro, libertar a chama criadora dos portugueses, romper o atraso crónico e todas essas coisas que é costume dizer nesses momentos.
O discurso em torno do Plano Tecnológico era medianamente acertado, ainda que construído em torno de lugares-comuns: tratava-se de colocar a tónica no conhecimento, na inovação, na investigação, na iniciativa, na mobilidade, na qualidade, etc.
A concepção e a apresentação do Plano Tecnológico veio colocar no sito certo as expectativas que pudéssemos ter em relação a mais esta iniciativa: naquela prateleira pequenina onde está a jarrinha com as flores secas, ao lado da paixão da educação de António Guterres.
Passemos por alto o episódio rocambolesco da demissão do responsável do plano na véspera da sua apresentação. Passemos por alto o facto de o plano ser lançado sem ter uma figura de indiscutível capacidade de intermediação e de liderança à sua frente. Passemos por alto até o facto (sintoma precoce de uma daquelas doenças prolongadas que aparecem nas necrologias) de os responsáveis dos dois ministérios que mais unidos deveriam estar na implementação do plano terem sobre ele perspectivas divergentes.
Passemos por cima de tudo isto para nos centrarmos num único aspecto desta coisa que nos apresentam como uma estratégia nacional com base no conhecimento e na inovação: o facto de este ser, mais uma vez, um plano feito de baixo para cima, nascido na cabeça de quatro iluminados, e sem uma real participação na sua concepção das forças que se pretende mobilizar.
A dinâmica que um Plano Tecnológico deveria representar só existe se ele for o resultado de um verdadeiro debate mobilizador, se ele integrar as aspirações dos actores sociais que o têm de levar à prática, se ele tiver sido palco dos confrontos que surgem necessariamente em qualquer discussão estratégica e se tiver podido transformar-se na resultante de toda essa agitação, se ele tiver podido gerar ideias novas e excitantes. Mas claro que isso não se faz sem um forte empenho nessa participação, sem uma verdadeira competência de intermediação, sem uma reconhecida capacidade de negociação e arbitragem e sem uma liderança sensata e inovadora.
Não se trata apenas de envolver nesse debate os engenheiros e os empresários, trata-se da totalidade da sociedade. Sem a participação real (e não apenas formal) de professores, de investigadores, da administração pública, de criadores, de sindicatos e de associações, dos cidadãos em geral, pode fazer-se um papel, mas não se faz um plano que mude o país.
Pode dizer-se que isto é pedir muito, mas Portugal, se não se mudar muito, não muda nada – e isso será dramático.
A incapacidade demonstrada para fazer isto é tanto mais chocante quanto se esperava aqui alguma inovação organizacional, alguma capacidade de correr riscos, alguma utilização criativa da tecnologia – e nada disso existiu. Hoje, graças à Internet, é possível levar a cabo discussões generalizadas online, criar fóruns ou blogs ou wikis para grupos especializados ou transversais, realizar trabalho cooperativo de forma eficaz, eficiente e, acima de tudo, participada. Como é que os autores do Plano Tecnológico querem que a sociedade faça algo que eles não conseguiram fazer?
Basta ver o site do Plano Tecnológico para perceber a cultura que está por trás do documento: a única forma de interacção proposta aos cidadãos é um botão para enviar “sugestões”. Seria cómico se não fosse triste.
Tal como está, o Plano Tecnológico é uma colecção de medidas governamentais e de intenções piedosas. E, piedosamente, o Governo espera que tal coisa acorde as forças inovadoras adormecidas e faça florescer mil sinergias. Assim, será preciso um milagre. Teria bastado vontade e alguma imaginação para fazer melhor.
terça-feira, novembro 29, 2005
terça-feira, novembro 15, 2005
Discriminação sem rasto
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Novembro de 2005
Crónica 34/2005
Em Portugal não é possível conhecer os dados sobre emprego das minorias étnicas que vivem no território nacional, como não é possível conhecer as facilidades ou dificuldades na obtenção de emprego por parte dos portugueses negros ou detectar alguma discriminação dos empregadores relativamente aos candidatos muçulmanos.
Nada disto é possível porque as nossas estatísticas de emprego, do Instituto Nacional de Estatística ou do Instituto do Emprego e Formação Profissional, não possuem dados sobre a cor da pele, a pertença étnica ou a religião dos indivíduos. A única instância em que se pergunta a um cidadão a sua religião é por ocasião dos censos nacionais e trata-se de uma pergunta de resposta voluntária que não é cruzada com as estatísticas de emprego.
É claro que podemos deduzir através de factos isolados qual a situação possa ser aqui ou ali e existem estudos que nos permitem obter retratos sectoriais. Mas dados estatísticos nacionais não existem – ao contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde dados sobre cor, etnia e religião são comummente perguntados e respondidos em candidaturas a universidades ou entrevistas de emprego.
As razões para a proibição de colheita de dados raciais ou religiosos entre nós são as mais nobres: a teoria diz que a igualdade dos cidadãos perante a lei e perante as oportunidades oferecidas pela sociedade civil tornam estes dados inúteis e que a sua recolecção poderia dar origem a discriminações. Se não vier na sua ficha que o candidato a um emprego é negro, será menos provável que ele seja objecto de discriminação racial? É evidente que não, mas é essa a razão da proibição.
O que acontece na prática é que a inexistência destes dados nos permite desconhecer oficialmente a discriminação racial na contratação de trabalhadores, nas políticas de educação e formação, nos critérios de promoção das empresas, a desigualdade de tratamento por parte dos sistemas de segurança social e de saúde, etc.
Ninguém pode dizer que os empregadores em Portugal são racistas porque ninguém sabe se, perante candidatos com o mesmo nível de formação e experiência profissional, existe ou não um tratamento de desfavor em relação aos que têm a pele mais morena.
Esta mancha de ignorância voluntária que afecta a sociedade portuguesa permite que mantenhamos a nossa boa consciência e façamos um ar de estranheza quando nos fazem notar a misteriosa uniformidade racial do Parlamento, das direcções e administrações das nossas empresas ou de qualquer grupo dirigente de qualquer instituição – que seria estranha em qualquer país com “a história de relação com África” de que Portugal diz orgulhar-se.
Recentemente, segundo a mesma linha de pseudo-anti-discriminação racial, a Comissão Nacional de Protecção de Dados deu parecer negativo à inclusão da cor da pele nos dossiers das crianças disponíveis para adopção, apesar de se saber que esse é um dado crítico para os candidatos a adoptantes. Esta decisão é tanto mais inaceitável quanto a cor da pele é um dos critérios que é perguntado aos candidatos a adoptantes. Ou seja: os futuros adoptantes têm direito a discriminar, mas as crianças não têm direito a ser o que são. Penso que é legítimo que os futuros pais possam usar esse critério, mas pelo menos em nome da eficácia do processo de adopção, seria razoável que as crianças fossem devidamente identificadas – já que se trata neste caso, para mais, de características públicas e notórias.
Que as normas existem por razões de protecção da igualdade não há dúvida. Mas do que existe legítima dúvida é que estas razões se traduzam na prática nalguma vantagem para aqueles que se pretende proteger. O que acontece é que, pelo contrário, esta pseudo-protecção constitui a melhor forma de encobrir o crime.
terça-feira, novembro 08, 2005
Lisboa 2020?
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Novembro de 2005
Crónica 33/2005
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa.
Os tumultos que têm assolado os subúrbios parisienses e que alastraram já a outras cidades francesas não podem ser considerados uma surpresa. Desde há muito que actos de violência exactamente do mesmo tipo destes de que temos tido notícia fazem parte do quotidiano de muitos dos subúrbios pobres de Paris. É verdade que o fenómeno não tinha a dimensão dos acontecimentos dos últimos dias, mas desde há anos que o fogo posto a automóveis nestes subúrbios deixou de ser notícia nos jornais, de tão banal. A degradação, o desemprego e a fealdade, a violência, a delinquência e a droga, a intolerância étnica e religiosa tornaram-se marca destas cidades abandonadas.
Ninguém sabe exactamente quem são e o que querem estes jovens, que incendeiam automóveis de luxo mas também os carros dos vizinhos e autocarros, McDonalds e cabeleireiros e até escolas e pavilhões desportivos. Há quem veja na sua actuação a mão de gangs organizados de tráfico de droga, vincando a sua soberania sobre um espaço que vive já fora das leis da República, outros vêem no seu desprezo pela sociedade que os acolheu (ou aos seus pais) um sinal da ideologia integrista muçulmana, outros apenas um movimento caótico de jovens enraivecidos com a falta de perspectivas, de emprego, com a segregação, com a própria violência onde vivem.
É provável que haja um pouco de cada ingrediente e em certos casos uma mistura de todos. Mas do que não resta dúvida é que a situação destas “banlieus” degradadas, onde a taxa de desemprego entre os jovens com menos de 25 anos chega a roçar os 50 por cento, onde a esperança de emprego legal, quando existe, se resume às empresas de limpeza onde os seus pais trabalharam, não podia gerar nada de bom.
Serão estes jovens vítimas de um sistema violento e injusto? Na sua maioria, sem dúvida – e isso mesmo conclui um relatório do Tribunal de Contas francês sobre a integração dos imigrantes, ao denunciar as suas condições de vidas “frequentemente indignas”.
Mas isso não significa que a República deva dar mostras de tibieza na repressão dos actos dos últimos dias. A sociedade não pode tolerar que se incendeiem carros e escolas ou se agridam os passantes mesmo que seja para dar livre curso a uma justa raiva. É evidente que a polícia deve actuar com firmeza perante estes excessos e responsabilizar os culpados. Mas sejamos claros: não é possível ganhar esta guerra no plano militar. A não ser que se pretenda levar a lógica até ao fim e varrer os subúrbios a napalm.
A verdade do outro lado da moeda é que estes jovens vivem nestes bairros uma vida que nenhum de nós aceitaria para os nossos filhos. O que pensaríamos da república, da democracia, da lei e dos bons costumes se os nossos filhos tivessem as oportunidades que se oferecem a uma criança nascida do Bairro de Angola, aqui às portas de Lisboa? Se pelo sítio onde nasceram e pela origem étnica estivessem condenados à ignorância, a aprender a violência como linguagem e a marginalidade como forma de vida? Se estivessem condenados ao olhar desconfiado, amedrontado ou de desprezo dos outros? Sentiríamos raiva? Suficiente para deitar fogo a um automóvel?
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa. Não é a velha conversa da prevenção versus repressão. A sociedade não pode prescindir da repressão quando a agressão se instala, mas a melhor política é evitar a geração da violência. E é a melhor política não só porque é a que dá melhores resultados, mas porque é a mais justa, a mais humana.
Também à volta (e dentro) das nossas cidades se espalham bairros degradados, com a mesma violência, a mesma delinquência, a mesma desesperança e a mesmo desrespeito pela lei que vemos explodir em França. Vamos esperar para ver o que acontece?
Texto publicado no jornal Público a 8 de Novembro de 2005
Crónica 33/2005
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa.
Os tumultos que têm assolado os subúrbios parisienses e que alastraram já a outras cidades francesas não podem ser considerados uma surpresa. Desde há muito que actos de violência exactamente do mesmo tipo destes de que temos tido notícia fazem parte do quotidiano de muitos dos subúrbios pobres de Paris. É verdade que o fenómeno não tinha a dimensão dos acontecimentos dos últimos dias, mas desde há anos que o fogo posto a automóveis nestes subúrbios deixou de ser notícia nos jornais, de tão banal. A degradação, o desemprego e a fealdade, a violência, a delinquência e a droga, a intolerância étnica e religiosa tornaram-se marca destas cidades abandonadas.
Ninguém sabe exactamente quem são e o que querem estes jovens, que incendeiam automóveis de luxo mas também os carros dos vizinhos e autocarros, McDonalds e cabeleireiros e até escolas e pavilhões desportivos. Há quem veja na sua actuação a mão de gangs organizados de tráfico de droga, vincando a sua soberania sobre um espaço que vive já fora das leis da República, outros vêem no seu desprezo pela sociedade que os acolheu (ou aos seus pais) um sinal da ideologia integrista muçulmana, outros apenas um movimento caótico de jovens enraivecidos com a falta de perspectivas, de emprego, com a segregação, com a própria violência onde vivem.
É provável que haja um pouco de cada ingrediente e em certos casos uma mistura de todos. Mas do que não resta dúvida é que a situação destas “banlieus” degradadas, onde a taxa de desemprego entre os jovens com menos de 25 anos chega a roçar os 50 por cento, onde a esperança de emprego legal, quando existe, se resume às empresas de limpeza onde os seus pais trabalharam, não podia gerar nada de bom.
Serão estes jovens vítimas de um sistema violento e injusto? Na sua maioria, sem dúvida – e isso mesmo conclui um relatório do Tribunal de Contas francês sobre a integração dos imigrantes, ao denunciar as suas condições de vidas “frequentemente indignas”.
Mas isso não significa que a República deva dar mostras de tibieza na repressão dos actos dos últimos dias. A sociedade não pode tolerar que se incendeiem carros e escolas ou se agridam os passantes mesmo que seja para dar livre curso a uma justa raiva. É evidente que a polícia deve actuar com firmeza perante estes excessos e responsabilizar os culpados. Mas sejamos claros: não é possível ganhar esta guerra no plano militar. A não ser que se pretenda levar a lógica até ao fim e varrer os subúrbios a napalm.
A verdade do outro lado da moeda é que estes jovens vivem nestes bairros uma vida que nenhum de nós aceitaria para os nossos filhos. O que pensaríamos da república, da democracia, da lei e dos bons costumes se os nossos filhos tivessem as oportunidades que se oferecem a uma criança nascida do Bairro de Angola, aqui às portas de Lisboa? Se pelo sítio onde nasceram e pela origem étnica estivessem condenados à ignorância, a aprender a violência como linguagem e a marginalidade como forma de vida? Se estivessem condenados ao olhar desconfiado, amedrontado ou de desprezo dos outros? Sentiríamos raiva? Suficiente para deitar fogo a um automóvel?
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa. Não é a velha conversa da prevenção versus repressão. A sociedade não pode prescindir da repressão quando a agressão se instala, mas a melhor política é evitar a geração da violência. E é a melhor política não só porque é a que dá melhores resultados, mas porque é a mais justa, a mais humana.
Também à volta (e dentro) das nossas cidades se espalham bairros degradados, com a mesma violência, a mesma delinquência, a mesma desesperança e a mesmo desrespeito pela lei que vemos explodir em França. Vamos esperar para ver o que acontece?
terça-feira, novembro 01, 2005
História de terror
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2005
Crónica 32/2005
A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança.
A história do caso Felgueiras é uma verdadeira história de terror. Uma história de terror onde o que nos horroriza não são os crimes eventualmente cometidos pelos arguidos mas a maneira como o aparelho da Justiça se tem encarregado da sua investigação e se encaminha para o seu julgamento. A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança na sua versão portuguesa.
Sempre houve sacos azuis para comprar favores à margem das contabilidades, corrupção de agentes da administração, clientelismo dos poderosos, desvios de fundos, financiamento ilegal de partidos, pagamentos irregulares a clubes de futebol, enriquecimento pessoal ilícito, tráfico de influências, fugas de informação e fugas à justiça. E nada disso é especialmente preocupante numa sociedade (todas as sociedades têm crimes) desde que exista algum sistema de fiscalização desses ilícitos, que apure os factos, julgue e aplique sanções – um sistema de referência que imponha a lei e que aplique a justiça. Tudo muda de figura quando aquilo que a Justiça faz parece irracional ou incompetente e quando os processos se arrastam acumulando suspeitas de procedimentos irregulares, como acontece aqui.
Se os magistrados estão tão preocupados como dizem estar com a dignificação da Justiça, poderiam talvez perder um pouco do tempo que dedicam a reuniões sindicais a demonstrar aos cidadãos que a Justiça está a fazer exactamente aquilo que deve e que aquilo que faz se traduzirá no melhor resultado possível para a sociedade.
A decisão de anular os testemunhos das duas testemunhas principais no caso Felgueiras é provavelmente irrepreensível em termos formais, mas os cidadãos precisam de saber (e têm o direito de saber) se ela é razoável, justa e eficaz em termos sociais. E têm o direito de saber porque, caso se imponha mudar as leis, cabe-lhes a eles (através do seu voto) fazer isso.
E se os portugueses têm o direito de saber, o sistema judicial tem, simetricamente, o dever de explicar.
O que é intolerável é que a justiça continue a funcionar em circuito fechado, protegendo-se do escrutínio exterior em nome da independência do poder judicial ou do segredo de justiça.
A Justiça não está de facto acima dos cidadãos e a sua independência não faz dela um sistema de poder de direito divino. Já se fez aliás uma revolução há duzentos anos que esclareceu estas coisas do direito divino. O escrutínio da Justiça, o conhecimento não apenas das leis mas dos seus métodos, dos seus critérios, da sua cultura e da actuação real dos seus agentes é um direito dos cidadãos.
E, da mesma maneira que a sociedade tem direito a investigar alguém que suspeita que se tenha apropriado de dinheiros públicos, também tem o direito de exigir que a Justiça e os seus agentes sejam investigados quando suspeitos de comportamentos irregulares – quer se trate das declarações gravadas de um juiz-conselheiro, das negociações entre a PJ e uma foragida, da entrega de um inquérito a um dado procurador ou de informações que um magistrado faz chegar a um suspeito sob investigação. O sistema judicial e os magistrados não estão acima da lei.
Que existam suspeitas de comportamentos irregulares, que elas sejam públicas e não sejam investigadas é intolerável e constitui um atentado à dignidade da Justiça.
Os chamados casos mediáticos dos últimos anos permitiram a todos os cidadãos ficarem com uma ideia da Justiça. Péssima em geral. Mas durante alguns anos podia parecer que tudo se resumia a desorganização de serviços, a falta de computadores, tiranices de funcionários ressabiados, pequenas corrupções, desleixos e pequenas infâmias, juízes rezingões mais preocupados com a forma que com a vida, leis antiquadas ou contraditórias que alguém se tinha esquecido de mudar ou advogados brilhantes capazes de encontrar os mais pequenos buraquinhos da lei através dos quais conseguiam empurrar os seus clientes.
Hoje, porém (e em parte graças ao caso Felgueiras), percebemos que não é assim. E percebemos que não é assim não pelas coisas estranhas que chegaram ao nosso conhecimento mas pela maneira como o colectivo de profissionais da justiça assobia para o ar perante essas coisas estranhas.
A Justiça tem cadáveres no armário. E começam a cheirar mal.
Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2005
Crónica 32/2005
A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança.
A história do caso Felgueiras é uma verdadeira história de terror. Uma história de terror onde o que nos horroriza não são os crimes eventualmente cometidos pelos arguidos mas a maneira como o aparelho da Justiça se tem encarregado da sua investigação e se encaminha para o seu julgamento. A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança na sua versão portuguesa.
Sempre houve sacos azuis para comprar favores à margem das contabilidades, corrupção de agentes da administração, clientelismo dos poderosos, desvios de fundos, financiamento ilegal de partidos, pagamentos irregulares a clubes de futebol, enriquecimento pessoal ilícito, tráfico de influências, fugas de informação e fugas à justiça. E nada disso é especialmente preocupante numa sociedade (todas as sociedades têm crimes) desde que exista algum sistema de fiscalização desses ilícitos, que apure os factos, julgue e aplique sanções – um sistema de referência que imponha a lei e que aplique a justiça. Tudo muda de figura quando aquilo que a Justiça faz parece irracional ou incompetente e quando os processos se arrastam acumulando suspeitas de procedimentos irregulares, como acontece aqui.
Se os magistrados estão tão preocupados como dizem estar com a dignificação da Justiça, poderiam talvez perder um pouco do tempo que dedicam a reuniões sindicais a demonstrar aos cidadãos que a Justiça está a fazer exactamente aquilo que deve e que aquilo que faz se traduzirá no melhor resultado possível para a sociedade.
A decisão de anular os testemunhos das duas testemunhas principais no caso Felgueiras é provavelmente irrepreensível em termos formais, mas os cidadãos precisam de saber (e têm o direito de saber) se ela é razoável, justa e eficaz em termos sociais. E têm o direito de saber porque, caso se imponha mudar as leis, cabe-lhes a eles (através do seu voto) fazer isso.
E se os portugueses têm o direito de saber, o sistema judicial tem, simetricamente, o dever de explicar.
O que é intolerável é que a justiça continue a funcionar em circuito fechado, protegendo-se do escrutínio exterior em nome da independência do poder judicial ou do segredo de justiça.
A Justiça não está de facto acima dos cidadãos e a sua independência não faz dela um sistema de poder de direito divino. Já se fez aliás uma revolução há duzentos anos que esclareceu estas coisas do direito divino. O escrutínio da Justiça, o conhecimento não apenas das leis mas dos seus métodos, dos seus critérios, da sua cultura e da actuação real dos seus agentes é um direito dos cidadãos.
E, da mesma maneira que a sociedade tem direito a investigar alguém que suspeita que se tenha apropriado de dinheiros públicos, também tem o direito de exigir que a Justiça e os seus agentes sejam investigados quando suspeitos de comportamentos irregulares – quer se trate das declarações gravadas de um juiz-conselheiro, das negociações entre a PJ e uma foragida, da entrega de um inquérito a um dado procurador ou de informações que um magistrado faz chegar a um suspeito sob investigação. O sistema judicial e os magistrados não estão acima da lei.
Que existam suspeitas de comportamentos irregulares, que elas sejam públicas e não sejam investigadas é intolerável e constitui um atentado à dignidade da Justiça.
Os chamados casos mediáticos dos últimos anos permitiram a todos os cidadãos ficarem com uma ideia da Justiça. Péssima em geral. Mas durante alguns anos podia parecer que tudo se resumia a desorganização de serviços, a falta de computadores, tiranices de funcionários ressabiados, pequenas corrupções, desleixos e pequenas infâmias, juízes rezingões mais preocupados com a forma que com a vida, leis antiquadas ou contraditórias que alguém se tinha esquecido de mudar ou advogados brilhantes capazes de encontrar os mais pequenos buraquinhos da lei através dos quais conseguiam empurrar os seus clientes.
Hoje, porém (e em parte graças ao caso Felgueiras), percebemos que não é assim. E percebemos que não é assim não pelas coisas estranhas que chegaram ao nosso conhecimento mas pela maneira como o colectivo de profissionais da justiça assobia para o ar perante essas coisas estranhas.
A Justiça tem cadáveres no armário. E começam a cheirar mal.
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