por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Setembro de 2006
Crónica 33/2006
Muitas pessoas olham para estes excessos com resignação, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso.
1. Faça uma pesquisa no Google. Verá aparecer na parte de cima da sua página e na barra da direita uma série de links identificados pela fórmula "Links patrocinados".
Estes links remetem para sites relacionados com aquilo que pesquisou e o seu aparecimento obedece às regras da publicidade. Tudo o que o anunciante tem de fazer é escolher a expressão ou expressões a que pretende associar o seu site. Uma pastelaria que pretenda anunciar no Google pode, por exemplo, escolher a expressão "chá e torradas" de forma que, sempre que alguém a escreve na caixa de pesquisa, o nome da pastelaria apareça nos Links patrocinados.
A tecnologia enriquece a pesquisa pois oferece ao utilizador, para além dos resultados que satisfazem exactamente os termos da sua pesquisa, uma colecção de links relacionados que podem ser interessantes. E oferece aos anunciantes, por outro lado, um público-alvo que já se inclui numa faixa de interessados pela sua actividade. Um casamento perfeito.
2. Abra uma conta no Gmail (o serviço gratuito de correio electrónico do Google). Verá que, ao lado da sua caixa de mail, aparece igualmente uma coluna de "Links patrocinados" que, curiosamente, têm também alguma coisa a ver com o teor das suas mensagens. São também links de anunciantes que escolheram determinadas expressões e que a mesma tecnologia do Google consegue associar a determinadas mensagens.
Nas suas páginas de Ajuda, o Google garante que "o Google NÃO lê a sua correspondência".
Como é que faz então? A explicação vem na linha seguinte: trata-se de "um processo totalmente automatizado". Não há ninguém no Google a ler a sua correspondência, mas há um programa que a lê e que pesquisa os termos relevantes para poder associar a uma mensagem sobre automóveis um anúncio de gasolina e a uma declaração de amor o link de uma florista.
3. O programa secreto de escutas sem autorização judicial que a National Security Agency lançou nos Estados Unidos por ordem do presidente George W. Bush, que monitoriza correio electrónico e telefonemas, recorre também a tecnologia semelhante. Os telefonemas são ouvidos por programas que conseguem identificar os indivíduos que incluam na mesma chamada expressões como "Bush" e "bomba", mas não existe uma batalhão de pessoas a ouvir as chamadas. O facto permite que os defensores do programa (cuja existência só recentemente e relutantemente foi reconhecida pela Casa Branca) digam que não se trata de um programa de escutas. O programa de intercepção de comunicações Echelon, lançado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, faz a mesma coisa a nível mundial.
4. O sociólogo espanhol e teórico da Sociedade da Informação Manuel Castells já tinha alertado para o fim da privacidade na Era da Internet, mas o que sucede é que um número considerável de pessoas olha para estes excessos com resignação, como se eles fossem inerentes à tecnologia, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso e não houvesse escolha possível no seu controlo. A ameaça terrorista, por outro lado, veio reforçar a convicção da bondade da redução das liberdades individuais quando está em causa a segurança.
5. Seja em nome do marketing (que promete adequar a oferta publicitária aos nossos desejos se permitirmos o escrutínio da nossa vida pessoal) ou da segurança (que nos jura que o escrutínio da vida pessoal dos cidadãos é essencial à identificação dos terroristas) a verdade é que a invasão da vida privada está em curso. Por ignorância, comodidade ou crença na absoluta benevolência das autoridades, os cidadãos têm permitido que essa vigilância se alargue. E, por espantoso que pareça, o facto de essa invasão estar em grande medida a ser realizada por robôs constitui um descanso para muita gente, como se os robôs não fossem os mais obedientes servidores do poder.
terça-feira, setembro 26, 2006
terça-feira, setembro 19, 2006
Todos os fogos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Setembro de 2006
Crónica 32/2006
Um papa incendiário ou imprudente não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
1. Se fosse apenas um teólogo entre outros, Ratzinger poderia falar do que lhe apetecesse, no tom que lhe apetecesse, citando quem lhe apetecesse. Dá-se porém a circunstância de Ratzinger ser não só uma autoridade da Igreja Católica mas o seu Sumo Pontífice. Investido desta autoridade, deste poder espiritual e político e desta capacidade de representação, é evidente que o papa Bento XVI não pode dizer o que disse em Ratisbona.
As suas palavras, se foram medidas, mostram-nos um papa calculistamente incendiário e apostado em alimentar e liderar um conflito de religiões. Se não o foram, mostram um papa imprudente e que ainda não percebeu que deixou para sempre de ser professor de teologia, o que não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
Com esta intervenção, Bento XVI perdeu (junto das outras comunidades religiosas e também entre os católicos) uma parte da autoridade que deveria pelo contrário preocupar-se em reforçar por todos os meios, de forma a constituir-se como um elemento de racionalização e apaziguamento na relação entre religiões. Se houve altura em que esse diálogo se mostrou necessário, esta é certamente uma delas.
Posto isto, é evidente por outro lado que a reacção de uma parte do mundo muçulmano, traduzida em ameaças e agressões, não é de forma alguma admissível – mesmo que se faça das palavras do Papa a leitura menos benevolente.
É evidente que existe um problema com o Islão que não tem a ver com a mensagem do Alcorão (na Bíblia também é possível encontrar mensagens para todos os gostos) ou com a história de Maomé (também há protagonistas bíblicos para todos os gostos), mas com a manutenção de uma interpretação retrógrada, fundamentalista e agressiva do Islão que possui em muitos países e regiões do mundo islâmico uma posição predominante. É evidente que isso também existiu no mundo cristão – as conversões à espadeirada, os massacres de "infiéis", os autos-de-fé e a Inquisição (cuja versão modernizada Ratzinger dirigiu) são páginas negras da história "ocidental" e é verdade que continua a haver quem faça do cristianismo uma leitura retrógrada, fundamentalista e agressiva (certos evangelistas norte-americanos são um exemplo). Mas a diferença é que essas leituras totalitárias cristãs não são hoje hegemónicas (o diabo seja surdo) e, acima de tudo, existe uma avalanche de vozes "ocidentais" que as condenam - na política, nos media, na academia, nas próprias igrejas. Falta ouvir essa avalancha no mundo muçulmano.
2. A jornalista italiana Oriana Fallaci, que morreu na semana passada e que foi – apesar dos seus inúmeros destemperos – uma corajosa defensora da liberdade, considerava o fundamentalismo islâmico o novo nazismo.
É importante compreender que, de facto, o fundamentalismo islâmico - teocrático, totalitário, imperialista, segregacionista, bélico e terrorista – constitui uma ameaça à democracia e à liberdade e que neste confronto não se deve ceder um milímetro do essencial em nome do medo ou da má consciência. Para dar um exemplo concreto: é inaceitável que a situação de inferioridade de mulheres muçulmanas seja aceite nas sociedades ocidentais em nome do multiculturalismo, da aceitação da diferença ou do respeito religioso.
Só que, muitas vezes, alguns dos que defendem a firmeza na defesa dos valores da liberdade, apressam-se a meter no mesmo saco dos fundamentalistas todos os muçulmanos e todos os árabes e, já agora, aqueles que são mais morenos que a conta.
É importante ter em conta, por outro lado, que em nome da firmeza, não se pode pôr de lado a acção política e deixar de tentar compreender o fenómeno do terrorismo para erradicar as suas causas e para dissolver a base de recrutamento dos terroristas.
Entre estas duas posições (defesa da liberdade e da igualdade, respeito da diferença e acção política contra o terrorismo), inscreve-se um carreiro que se vai estreitando, onde cada vez é mais difícil caminhar, de onde é fácil cair para um lado ou para o outro e onde a companhia é cada vez mais escassa.
Texto publicado no jornal Público a 19 de Setembro de 2006
Crónica 32/2006
Um papa incendiário ou imprudente não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
1. Se fosse apenas um teólogo entre outros, Ratzinger poderia falar do que lhe apetecesse, no tom que lhe apetecesse, citando quem lhe apetecesse. Dá-se porém a circunstância de Ratzinger ser não só uma autoridade da Igreja Católica mas o seu Sumo Pontífice. Investido desta autoridade, deste poder espiritual e político e desta capacidade de representação, é evidente que o papa Bento XVI não pode dizer o que disse em Ratisbona.
As suas palavras, se foram medidas, mostram-nos um papa calculistamente incendiário e apostado em alimentar e liderar um conflito de religiões. Se não o foram, mostram um papa imprudente e que ainda não percebeu que deixou para sempre de ser professor de teologia, o que não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
Com esta intervenção, Bento XVI perdeu (junto das outras comunidades religiosas e também entre os católicos) uma parte da autoridade que deveria pelo contrário preocupar-se em reforçar por todos os meios, de forma a constituir-se como um elemento de racionalização e apaziguamento na relação entre religiões. Se houve altura em que esse diálogo se mostrou necessário, esta é certamente uma delas.
Posto isto, é evidente por outro lado que a reacção de uma parte do mundo muçulmano, traduzida em ameaças e agressões, não é de forma alguma admissível – mesmo que se faça das palavras do Papa a leitura menos benevolente.
É evidente que existe um problema com o Islão que não tem a ver com a mensagem do Alcorão (na Bíblia também é possível encontrar mensagens para todos os gostos) ou com a história de Maomé (também há protagonistas bíblicos para todos os gostos), mas com a manutenção de uma interpretação retrógrada, fundamentalista e agressiva do Islão que possui em muitos países e regiões do mundo islâmico uma posição predominante. É evidente que isso também existiu no mundo cristão – as conversões à espadeirada, os massacres de "infiéis", os autos-de-fé e a Inquisição (cuja versão modernizada Ratzinger dirigiu) são páginas negras da história "ocidental" e é verdade que continua a haver quem faça do cristianismo uma leitura retrógrada, fundamentalista e agressiva (certos evangelistas norte-americanos são um exemplo). Mas a diferença é que essas leituras totalitárias cristãs não são hoje hegemónicas (o diabo seja surdo) e, acima de tudo, existe uma avalanche de vozes "ocidentais" que as condenam - na política, nos media, na academia, nas próprias igrejas. Falta ouvir essa avalancha no mundo muçulmano.
2. A jornalista italiana Oriana Fallaci, que morreu na semana passada e que foi – apesar dos seus inúmeros destemperos – uma corajosa defensora da liberdade, considerava o fundamentalismo islâmico o novo nazismo.
É importante compreender que, de facto, o fundamentalismo islâmico - teocrático, totalitário, imperialista, segregacionista, bélico e terrorista – constitui uma ameaça à democracia e à liberdade e que neste confronto não se deve ceder um milímetro do essencial em nome do medo ou da má consciência. Para dar um exemplo concreto: é inaceitável que a situação de inferioridade de mulheres muçulmanas seja aceite nas sociedades ocidentais em nome do multiculturalismo, da aceitação da diferença ou do respeito religioso.
Só que, muitas vezes, alguns dos que defendem a firmeza na defesa dos valores da liberdade, apressam-se a meter no mesmo saco dos fundamentalistas todos os muçulmanos e todos os árabes e, já agora, aqueles que são mais morenos que a conta.
É importante ter em conta, por outro lado, que em nome da firmeza, não se pode pôr de lado a acção política e deixar de tentar compreender o fenómeno do terrorismo para erradicar as suas causas e para dissolver a base de recrutamento dos terroristas.
Entre estas duas posições (defesa da liberdade e da igualdade, respeito da diferença e acção política contra o terrorismo), inscreve-se um carreiro que se vai estreitando, onde cada vez é mais difícil caminhar, de onde é fácil cair para um lado ou para o outro e onde a companhia é cada vez mais escassa.
terça-feira, setembro 12, 2006
Cinco anos de ataque
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Setembro de 2006
Crónica 31/2006
O terror pode ser potenciado pela atitude dos atacados. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
A revista "The Atlantic" deste mês tem um artigo de capa com o título "We Win" ("Ganhamos"), da autoria de James Fallows, um reputado jornalista americano.
O artigo é sobre a "guerra contra o terrorismo" e Fallows tenta fazer um balanço dos cinco anos de actividade dos Estados Unidos nesta frente desde o 11 de Setembro.
O título do artigo é justificado por dois factos: desde o 11 de Setembro os Estados Unidos não voltaram a ser atacados pela Al Qaeda e as capacidades operacionais de Osama Bin Laden são hoje nulas ou perto disso.
Fallows passa em revista várias áreas de intervenção da administração americana (para isso entrevistou cerca de sessenta peritos em diferentes áreas, incluindo os autores de alguns dos livros mais relevantes publicados sobre a matéria nos EUA) mas, apesar dos seus esforços, não consegue encontrar nenhuma outra razão para proclamar vitória.
Tudo o resto (da intervenção no Afeganistão à invasão do Iraque, da evolução da economia aos direitos humanos, da vida quotidiana dos americanos à autoridade moral dos EUA no mundo) apresenta, na opinião dos entrevistados de Fallows, um balanço predominantemente negativo.
É, aliás, precisamente essa a razão da proposta de Fallows: "Como é que os Estados Unidos podem escapar a esta armadilha?", escreve o jornalista. "Declarando, simplesmente, que a 'guerra global contra o terror' acabou, e que nós ganhámos".
Ou seja: os EUA devem declarar que ganharam a "guerra contra o terrorismo" porque já controlaram tudo o que podia ser controlado – a Al Qaeda Central (leia-se Bin Laden) – e porque todos os seus esforços para além disso estão a ter efeitos perniciosos em termos políticos, sociais, de segurança e económicos. Na realidade o autor defende que se anuncie vitória precisamente porque se está a perder e porque a continuação da guerra só vai piorar as coisas.
A armadilha de que Fallows fala é a resposta americana ao terrorismo, cujos resultados avalia de forma tragicamente negativa. E, se sairmos do universo dos grupos radicais que apoiam George W. Bush ou daqueles que beneficiam directamente da sua política, esta é a opinião mais moderada que se pode encontrar.
Como a palavra indica, o terrorismo visa aterrorizar – mas o terror pode ser potenciado ou reduzido pelas atitudes dos atacados. E a política de Bush potenciou o terror. Que o país tenha sido invadido por sistemas de segurança, que os bolseiros oriundos de países muçulmanos tenham passado a ser indesejados, que o racismo tenha aumentado, que os direitos cívicos sejam atropelados, que as prisões secretas e a tortura sejam aceites como necessários, que a lei marcial se tenha banalizado, que a lei internacional seja atropelada, são vitórias do terrorismo. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
Os cinco anos depois do 11 de Setembro têm um balanço negro, mas por demonstrarem como a democracia pode ser facilmente posta em risco, mesmo num país com os pergaminhos dos Estados Unidos. Não são esquerdistas a dizê-lo (como alguns querem fazer crer) mas democratas de todas as áreas. Em Março passado, a antiga Juíza do Supremo Tribunal americano Sandra Day O'Connor, republicana, considerou as liberdades constitucionais dos EUA em risco – e alertou para o facto de que é assim que começam as ditaduras. Vozes dissidentes que alertam para os perigos que espreitam as liberdades, a democracia e o direito ecoam hoje aos milhares nos EUA.
Os EUA poderiam ter tido a sua "finest hour" no pós-11 de Setembro mas, apesar do heroísmo da parte de cidadãos anónimos, os líderes americanos ficaram aquém do que se tinha o direito de esperar. É sintomático e triste que, cinco anos volvidos, a maior parte das atenções estejam concentradas nas mentiras não esclarecidas da administração Bush e que dúvidas continuem a persistir sobre aspectos essenciais do próprio 11 de Setembro. A sociedade aberta está sob ataque.
Texto publicado no jornal Público a 12 de Setembro de 2006
Crónica 31/2006
O terror pode ser potenciado pela atitude dos atacados. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
A revista "The Atlantic" deste mês tem um artigo de capa com o título "We Win" ("Ganhamos"), da autoria de James Fallows, um reputado jornalista americano.
O artigo é sobre a "guerra contra o terrorismo" e Fallows tenta fazer um balanço dos cinco anos de actividade dos Estados Unidos nesta frente desde o 11 de Setembro.
O título do artigo é justificado por dois factos: desde o 11 de Setembro os Estados Unidos não voltaram a ser atacados pela Al Qaeda e as capacidades operacionais de Osama Bin Laden são hoje nulas ou perto disso.
Fallows passa em revista várias áreas de intervenção da administração americana (para isso entrevistou cerca de sessenta peritos em diferentes áreas, incluindo os autores de alguns dos livros mais relevantes publicados sobre a matéria nos EUA) mas, apesar dos seus esforços, não consegue encontrar nenhuma outra razão para proclamar vitória.
Tudo o resto (da intervenção no Afeganistão à invasão do Iraque, da evolução da economia aos direitos humanos, da vida quotidiana dos americanos à autoridade moral dos EUA no mundo) apresenta, na opinião dos entrevistados de Fallows, um balanço predominantemente negativo.
É, aliás, precisamente essa a razão da proposta de Fallows: "Como é que os Estados Unidos podem escapar a esta armadilha?", escreve o jornalista. "Declarando, simplesmente, que a 'guerra global contra o terror' acabou, e que nós ganhámos".
Ou seja: os EUA devem declarar que ganharam a "guerra contra o terrorismo" porque já controlaram tudo o que podia ser controlado – a Al Qaeda Central (leia-se Bin Laden) – e porque todos os seus esforços para além disso estão a ter efeitos perniciosos em termos políticos, sociais, de segurança e económicos. Na realidade o autor defende que se anuncie vitória precisamente porque se está a perder e porque a continuação da guerra só vai piorar as coisas.
A armadilha de que Fallows fala é a resposta americana ao terrorismo, cujos resultados avalia de forma tragicamente negativa. E, se sairmos do universo dos grupos radicais que apoiam George W. Bush ou daqueles que beneficiam directamente da sua política, esta é a opinião mais moderada que se pode encontrar.
Como a palavra indica, o terrorismo visa aterrorizar – mas o terror pode ser potenciado ou reduzido pelas atitudes dos atacados. E a política de Bush potenciou o terror. Que o país tenha sido invadido por sistemas de segurança, que os bolseiros oriundos de países muçulmanos tenham passado a ser indesejados, que o racismo tenha aumentado, que os direitos cívicos sejam atropelados, que as prisões secretas e a tortura sejam aceites como necessários, que a lei marcial se tenha banalizado, que a lei internacional seja atropelada, são vitórias do terrorismo. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
Os cinco anos depois do 11 de Setembro têm um balanço negro, mas por demonstrarem como a democracia pode ser facilmente posta em risco, mesmo num país com os pergaminhos dos Estados Unidos. Não são esquerdistas a dizê-lo (como alguns querem fazer crer) mas democratas de todas as áreas. Em Março passado, a antiga Juíza do Supremo Tribunal americano Sandra Day O'Connor, republicana, considerou as liberdades constitucionais dos EUA em risco – e alertou para o facto de que é assim que começam as ditaduras. Vozes dissidentes que alertam para os perigos que espreitam as liberdades, a democracia e o direito ecoam hoje aos milhares nos EUA.
Os EUA poderiam ter tido a sua "finest hour" no pós-11 de Setembro mas, apesar do heroísmo da parte de cidadãos anónimos, os líderes americanos ficaram aquém do que se tinha o direito de esperar. É sintomático e triste que, cinco anos volvidos, a maior parte das atenções estejam concentradas nas mentiras não esclarecidas da administração Bush e que dúvidas continuem a persistir sobre aspectos essenciais do próprio 11 de Setembro. A sociedade aberta está sob ataque.
terça-feira, setembro 05, 2006
Pior que o Bin Laden
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Setembro de 2006
Crónica 30/2006
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar"
O relato desfiava uma série de acidentes de percurso e vicissitudes num pano de fundo de fricções com diferentes instituições e autoridades, onde se misturavam descrições de abusos de poder, de pequenas infâmias e médias corrupções, papéis entregues fora de prazo, repartições kafkianas, acordos orais desrespeitados e taxas inesperadas.
O motorista de táxi contava as peripécias num fluxo furioso ininterrupto, como se falasse para si próprio, entrecortado com os habituais remoques "Vocês é que deviam pôr estas coisas nos jornais", "Era bom era que isto se soubesse".
"Isto" não era porém fácil de identificar e menos ainda de denunciar. Apareciam uns "eles" que por vezes eram a Câmara, outras a polícia, outras os fornecedores ou os credores e o relato não era sempre claro. O facto é que o homem culpava algumas das mais representativas instituições da vida democrática e económica de serem responsáveis por ter sido obrigado a abandonar o seu pequeno negócio, um quiosque, que tinha inicialmente passado para a sua mão através de um contrato de subaluguer aparentemente irregular que ele não tinha conseguido regularizar apesar de pressões e promessas várias. Alguns dos pormenores eram inverosímeis - informações erradas dadas por diversas instituições, garantias privadas de funcionários que se vieram a revelar irrealizáveis, prazos impossíveis de cumprir, etc. Mas como sabe qualquer pessoa que se tenha cruzado com a burocracia desmiolada de algumas organizações, inverosímil está longe de querer dizer falso.
"Sabe o que é eu gostava?" Não sabia, mas a resposta não foi inesperada: "O que eu gostava era de ganhar o Euromilhões!". Mas antes que tivesse tempo de responder que com um prémio do Euromilhões se pode de facto comprar um belo quiosque...
"Se eu ganhasse o Euromilhões, era ainda pior que o Bin Laden... Estes gajos todos haviam de ver... havia de rebentar com eles todos à bomba." A voz tinha subido de tom e o rubor de intensidade. "Era mais terrorista que a Al-Qaeda. Eles haviam de ver! O Bin Laden ainda é bom para eles".
A cólera não permitia águas na fervura do género "de facto, isso é muito chato, mas o importante...". Deixei o gás sair até chegar ao destino, reagindo com um mínimo de monossílabos, mas o fervor radical não tinha diminuído mesmo depois da corrida paga.
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar. O Bin Laden, esse pode, porque é rico! Mas eu tenho de andar aqui o dia todo agarrado à roda para ganhar o sustento. Mas se eu tivesse dinheiro... ai se eu tivesse dinheiro, o terrorista que eu não havia de ser!" Não havia um fio de ironia na voz.
Que as circunstâncias fazem o terrorista já se sabe, mas era a primeira vez que me tinha cruzado com uma vocação tão fervorosa frustrada pela falta de dinheiro e com uma utilização tão original de um prémio do Euromilhões. Era a primeira vez que me cruzava com alguém que só não era terrorista porque não tinha dinheiro para isso.
Fiquei com pena de que a conversa não tivesse sido ouvida pelos muitos comentadores políticos cujo fanático determinismo histórico os leva a considerar que a explicação das causas de um comportamento equivale a uma justificação moral desse comportamento. O que o meu taxista demonstrava era que a frustração (seja qual for a causa) pode dar origem a comportamentos de agressividade difusa (o que Wilhelm Reich explica aliás de forma interessante num velho texto sobre o esquerdismo) e que não espanta que alguém que se sente perseguido, humilhado, acossado e sem saída, responda com a agressividade que tiver à mão. No caso do meu taxista, por enquanto, é a peroração sanguínea, mas se ele ganhar o Euromilhões...
Texto publicado no jornal Público a 5 de Setembro de 2006
Crónica 30/2006
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar"
O relato desfiava uma série de acidentes de percurso e vicissitudes num pano de fundo de fricções com diferentes instituições e autoridades, onde se misturavam descrições de abusos de poder, de pequenas infâmias e médias corrupções, papéis entregues fora de prazo, repartições kafkianas, acordos orais desrespeitados e taxas inesperadas.
O motorista de táxi contava as peripécias num fluxo furioso ininterrupto, como se falasse para si próprio, entrecortado com os habituais remoques "Vocês é que deviam pôr estas coisas nos jornais", "Era bom era que isto se soubesse".
"Isto" não era porém fácil de identificar e menos ainda de denunciar. Apareciam uns "eles" que por vezes eram a Câmara, outras a polícia, outras os fornecedores ou os credores e o relato não era sempre claro. O facto é que o homem culpava algumas das mais representativas instituições da vida democrática e económica de serem responsáveis por ter sido obrigado a abandonar o seu pequeno negócio, um quiosque, que tinha inicialmente passado para a sua mão através de um contrato de subaluguer aparentemente irregular que ele não tinha conseguido regularizar apesar de pressões e promessas várias. Alguns dos pormenores eram inverosímeis - informações erradas dadas por diversas instituições, garantias privadas de funcionários que se vieram a revelar irrealizáveis, prazos impossíveis de cumprir, etc. Mas como sabe qualquer pessoa que se tenha cruzado com a burocracia desmiolada de algumas organizações, inverosímil está longe de querer dizer falso.
"Sabe o que é eu gostava?" Não sabia, mas a resposta não foi inesperada: "O que eu gostava era de ganhar o Euromilhões!". Mas antes que tivesse tempo de responder que com um prémio do Euromilhões se pode de facto comprar um belo quiosque...
"Se eu ganhasse o Euromilhões, era ainda pior que o Bin Laden... Estes gajos todos haviam de ver... havia de rebentar com eles todos à bomba." A voz tinha subido de tom e o rubor de intensidade. "Era mais terrorista que a Al-Qaeda. Eles haviam de ver! O Bin Laden ainda é bom para eles".
A cólera não permitia águas na fervura do género "de facto, isso é muito chato, mas o importante...". Deixei o gás sair até chegar ao destino, reagindo com um mínimo de monossílabos, mas o fervor radical não tinha diminuído mesmo depois da corrida paga.
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar. O Bin Laden, esse pode, porque é rico! Mas eu tenho de andar aqui o dia todo agarrado à roda para ganhar o sustento. Mas se eu tivesse dinheiro... ai se eu tivesse dinheiro, o terrorista que eu não havia de ser!" Não havia um fio de ironia na voz.
Que as circunstâncias fazem o terrorista já se sabe, mas era a primeira vez que me tinha cruzado com uma vocação tão fervorosa frustrada pela falta de dinheiro e com uma utilização tão original de um prémio do Euromilhões. Era a primeira vez que me cruzava com alguém que só não era terrorista porque não tinha dinheiro para isso.
Fiquei com pena de que a conversa não tivesse sido ouvida pelos muitos comentadores políticos cujo fanático determinismo histórico os leva a considerar que a explicação das causas de um comportamento equivale a uma justificação moral desse comportamento. O que o meu taxista demonstrava era que a frustração (seja qual for a causa) pode dar origem a comportamentos de agressividade difusa (o que Wilhelm Reich explica aliás de forma interessante num velho texto sobre o esquerdismo) e que não espanta que alguém que se sente perseguido, humilhado, acossado e sem saída, responda com a agressividade que tiver à mão. No caso do meu taxista, por enquanto, é a peroração sanguínea, mas se ele ganhar o Euromilhões...
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