por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Maio de 2006
Crónica 20/2006
Que os juízes de uma democracia queiram controlar o léxico do debate público é mais do que preocupante.
Até onde se pode ir na censura de uma pessoa no âmbito da crítica artística, da polémica cívica ou da disputa política? Quais são os limites que protegem a reputação das pessoas, mas que garantem a ampla liberdade de opinião, de expressão, de informação e de crítica que são indispensáveis à procura da verdade, à liberdade de escolha e ao debate político que está na base da democracia?
As perguntas vêm a propósito de um processo concluído há dias, onde o Tribunal Criminal do Porto condenou um crítico do PÚBLICO, Augusto M. Seabra, por difamação, devido ao uso de um epíteto ("energúmeno") aplicado ao presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, que se sentiu ofendido na sua honra (ainda que não fosse explicitamente nomeado) e decidiu processar o autor da peça de opinião.
Ainda que se trate de um caso particular, é interessante analisar algumas das questões que esta decisão judicial levanta.
Antes de mais, discutir a própria natureza da expressão "difamação". "Difamar" significa "tirar a boa fama", "desacreditar", "destruir a reputação". De que forma será afectada a reputação de alguém que é chamado energúmeno? Energúmeno significa originariamente "possuído pelo demónio", mas parece evidente que não é nessa acepção que é hoje em dia usado. O significado corrente é de alguém exaltado, que se manifesta de forma arrebatada, que gera desacatos onde reinava a tranquilidade. Imagine-se que digo que Fulano é um energúmeno. O que pensarão os meus leitores? De que forma irá isso afectar a sua reputação? É difícil imaginar porque é evidente que ao usar o qualificativo estou apenas a dizer qual é a minha opinião sobre Fulano e não a dizer algo sobre ele. Estou a dizer algo sobre o que penso dele. Isto não quer dizer que ser chamado energúmeno seja algo agradável – não é. É evidente que significa que não tenho grande admiração por Fulano. Mas o epíteto diz de facto mais sobre mim (sobre a minha opinião), que sobre Fulano (sobre os seus actos ou opiniões). Ninguém mudará de opinião sobre Fulano por eu lhe chamar energúmeno. É um puro exercício de opinião, uma crítica, eventualmente violenta, mas que se situa no estrito campo da opinião. Não é uma acusação (como seria "pedófilo" ou "corrupto") e não possui a capacidade de afectar a honra do visado (mesmo uma singularmente vulnerável).
Seria fácil continuar a contestar a capacidade difamatória da expressão, mas vamos ao outro valor que é necessário equilibrar com a defesa do bom-nome: a liberdade de expressão.
Ao condenar o uso da expressão "energúmeno", o Tribunal Criminal do Porto colocou de facto a expressão no Índex, gerando uma provável auto-censura que se traduz num lamentável empobrecimento da liberdade de expressão. De agora em diante será difícil que um jornalista use a expressão numa crítica. Talvez o Tribunal ache isso positivo, mas o que se poderá dizer então de uma figura pública (que manda a democracia que seja submetida a discussão e à crítica aberta dos cidadãos) que seja exaltado, arrebatado e que provoque conflitos por todo o lado (aquilo a que se chama, e o que os dicionários dizem ser, um energúmeno)? Será que o tribunal considera que não se pode dizer de um político que ele é exaltado, arrebatado e conflituoso? E, se considera que se pode, porque condena então o uso do "energúmeno"?
Tratar-se-á de uma questão de estilo? Tratar-se-á de uma questão de grau? Será enfim uma questão de gosto?
Existem normas para além das jurídicas (políticas, deontológicas, de cortesia) que regulam os comportamentos em sociedade. Nem tudo o que é socialmente criticável, politicamente inadmissível ou indelicado deve ser proibido pois corremos o risco de deitar fora o bebé (e o bebé aqui é nada menos do que os direitos individuais) com a água do banho. Que os juízes de uma democracia queiram controlar o léxico do debate público é mais do que preocupante: é inaceitável.
terça-feira, maio 30, 2006
terça-feira, maio 23, 2006
O problema
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Maio de 2006
Crónica 19/2006
Carrilho é mal-querido dos media e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
Se Manuel Maria Carrilho andasse a dizer nos bares, nos esconsos dos congressos e nos Passos Perdidos o que escreveu no seu livro "Sob o signo da verdade" ninguém levantaria uma sobrancelha. O país (todo o país: políticos, media, jet set e sociedade em geral) seguiria babando-se a telenovela, relatando réplicas e contra-ataques, acrescentando insinuações e pormenores picantes. Mas, como decidiu escrever e pôr preto no branco as suas críticas e acusações, com nomes e datas, aqueles que lhe dedicam uma antipatia de estimação apressaram-se a colocar o livro na lista das suas falhas de carácter.
O livro tem o mérito da enunciação, se não da denúncia: é positivo ver referido o "Expresso" em vez de "um semanário da capital" ou mesmo o PÚBLICO, em vez de "um diário de referência". Uma vez expressas abertamente as críticas, é possível aos visados a defesa ou o contra-ataque – uma possibilidade que a barragem de boatos ou de imprensa negativa só episodicamente deu a Manuel Maria Carrilho durante a sua campanha das autárquicas.
Carrilho faz no seu livro muitas críticas e acusações, algumas delas graves. Se a mais séria é feita a António Cunha Vaz, proprietário de uma agência de informação institucional, que Carrilho acusa de lhe propor a recolha ilícita de fundos para a sua campanha e a compra de opinião nos jornais, não faltam acusações à pratica jornalística em geral - e nomeadamente ao PÚBLICO. Seria normal que o facto desencadeasse uma discussão e reacções de desagravo, mas o que é curioso é que já se desenha uma minimização das críticas de Carrilho, desculpando-as com a dor de cotovelo do candidato derrotado (como se essa dor o tivesse feito perder a cabeça e o tornasse inimputável), quando não com o facto de Carrilho ter explorado ele próprio o foco da ribalta dos media sempre que pôde (como se isso o obrigasse a sujeitar a todos os caprichos e desvios dos media ou a prescindir do seu direito de crítica).
No fundo, tudo se passa como no proverbial caso da prostituta violada, que não consegue ver a sua queixa aceite pela polícia. A verdade é que a prostituta pode ser violada e a sua queixa merece a mesma atenção que a de outro cidadão, independentemente do juízo moral que a sua ocupação suscite, e a recusa em lhe reconhecer esse direito constitui um crime não inferior ao primeiro.
No caso vertente, Carrilho é mal-querido dos media (apesar de algum fascínio pontual) e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
A questão central é que, tenha Carrilho feito o que fez, tenha aproveitado ou não os media quando pôde, seja ou não deselegante, intratável e rancoroso (e mesmo que tivesse feito tudo aquilo que insinuavam os piores rumores), isso não pode justificar o enviesamento na apresentação dos factos por parte de jornalistas, nem a mistura de opinião em peças apresentadas como noticiosas, nem a duplicidade de critérios – como Carrilho acusa os media de fazer. É por isso que urge responder, com factos, e preto no branco, às acusações de Carrilho e averiguar até que ponto as suas acusações possuem alguma base.
Uma das acusações de Carrilho é clássica: a preocupação dos media pelas questões marginais e folclóricas e a sua despreocupação com o fundo das questões. Curiosamente, mesmo com o seu livro se passa isso: o livro foi noticiado nalguns meios num tom jocoso e as acusações mais sérias que contém estão a ser tratadas como uma zanga de comadres quando nada no tema o parece justificar.
Finalmente, e mesmo que as mais sérias acusações de Carrilho se revelem infundadas, há algo que não se pode varrer para debaixo do tapete e de que o livro do deputado socialista mostra alguns exemplos: o respeito pelos factos, a equidade de tratamento, a necessidade de confirmar dados e a separação de opinião e informação estão a afastar-se perigosamente da prática jornalística geral, em prol de abordagens definidas por razões comerciais ou imperscrutáveis, que não respeitam a deontologia jornalística. Esse é o problema.
Texto publicado no jornal Público a 23 de Maio de 2006
Crónica 19/2006
Carrilho é mal-querido dos media e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
Se Manuel Maria Carrilho andasse a dizer nos bares, nos esconsos dos congressos e nos Passos Perdidos o que escreveu no seu livro "Sob o signo da verdade" ninguém levantaria uma sobrancelha. O país (todo o país: políticos, media, jet set e sociedade em geral) seguiria babando-se a telenovela, relatando réplicas e contra-ataques, acrescentando insinuações e pormenores picantes. Mas, como decidiu escrever e pôr preto no branco as suas críticas e acusações, com nomes e datas, aqueles que lhe dedicam uma antipatia de estimação apressaram-se a colocar o livro na lista das suas falhas de carácter.
O livro tem o mérito da enunciação, se não da denúncia: é positivo ver referido o "Expresso" em vez de "um semanário da capital" ou mesmo o PÚBLICO, em vez de "um diário de referência". Uma vez expressas abertamente as críticas, é possível aos visados a defesa ou o contra-ataque – uma possibilidade que a barragem de boatos ou de imprensa negativa só episodicamente deu a Manuel Maria Carrilho durante a sua campanha das autárquicas.
Carrilho faz no seu livro muitas críticas e acusações, algumas delas graves. Se a mais séria é feita a António Cunha Vaz, proprietário de uma agência de informação institucional, que Carrilho acusa de lhe propor a recolha ilícita de fundos para a sua campanha e a compra de opinião nos jornais, não faltam acusações à pratica jornalística em geral - e nomeadamente ao PÚBLICO. Seria normal que o facto desencadeasse uma discussão e reacções de desagravo, mas o que é curioso é que já se desenha uma minimização das críticas de Carrilho, desculpando-as com a dor de cotovelo do candidato derrotado (como se essa dor o tivesse feito perder a cabeça e o tornasse inimputável), quando não com o facto de Carrilho ter explorado ele próprio o foco da ribalta dos media sempre que pôde (como se isso o obrigasse a sujeitar a todos os caprichos e desvios dos media ou a prescindir do seu direito de crítica).
No fundo, tudo se passa como no proverbial caso da prostituta violada, que não consegue ver a sua queixa aceite pela polícia. A verdade é que a prostituta pode ser violada e a sua queixa merece a mesma atenção que a de outro cidadão, independentemente do juízo moral que a sua ocupação suscite, e a recusa em lhe reconhecer esse direito constitui um crime não inferior ao primeiro.
No caso vertente, Carrilho é mal-querido dos media (apesar de algum fascínio pontual) e daí que pareça possível descartar as suas acusações como despeito. Não é.
A questão central é que, tenha Carrilho feito o que fez, tenha aproveitado ou não os media quando pôde, seja ou não deselegante, intratável e rancoroso (e mesmo que tivesse feito tudo aquilo que insinuavam os piores rumores), isso não pode justificar o enviesamento na apresentação dos factos por parte de jornalistas, nem a mistura de opinião em peças apresentadas como noticiosas, nem a duplicidade de critérios – como Carrilho acusa os media de fazer. É por isso que urge responder, com factos, e preto no branco, às acusações de Carrilho e averiguar até que ponto as suas acusações possuem alguma base.
Uma das acusações de Carrilho é clássica: a preocupação dos media pelas questões marginais e folclóricas e a sua despreocupação com o fundo das questões. Curiosamente, mesmo com o seu livro se passa isso: o livro foi noticiado nalguns meios num tom jocoso e as acusações mais sérias que contém estão a ser tratadas como uma zanga de comadres quando nada no tema o parece justificar.
Finalmente, e mesmo que as mais sérias acusações de Carrilho se revelem infundadas, há algo que não se pode varrer para debaixo do tapete e de que o livro do deputado socialista mostra alguns exemplos: o respeito pelos factos, a equidade de tratamento, a necessidade de confirmar dados e a separação de opinião e informação estão a afastar-se perigosamente da prática jornalística geral, em prol de abordagens definidas por razões comerciais ou imperscrutáveis, que não respeitam a deontologia jornalística. Esse é o problema.
sexta-feira, maio 19, 2006
A Web e a política americana
"The Hope of the Web", de Bill McKibben, publicado no número de 27 de Abril de 2006 de "The New York Review of Books", é uma crítica de um livro ("Crashing the Gate: Netroots, Grassroots, and the Rise of People-Powered Politics") que tem como co-autor Markos Moulitsas Zúniga, o criador de dailykos.com, um dos sites políticos mais influentes dos EUA. Um bom artigo sobre a forma como a Web está a mudar a política americana.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/web-e-poltica-americana.html
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/web-e-poltica-americana.html
Aborto nos EUA com os dias contados?
A nomeação dos juízes conservadores John G. Roberts Jr. e Samuel A. Alito Jr. para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos pode vir a pôr em causa a jurisprudência do caso "Roe versus Wade" (uma decisão do Supremo de 1973, por 7/2 votos), que impede os estados de restringir o direito ao aborto. Um artigo na "Atlantic Monthly" de Junho de 2006 avança os cenários para o que poderá ser o fim do direito ao aborto em muitos dos estados dos EUA.
Para um perfil do juiz Alito e das peripécias da sua nomeação, leia o artigo "The Strange Case of Judge Alito", de Ronald Dworkin, publicado na "New York Review of Books" de 23 de Fevereiro de 2006.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/aborto-nos-eua-com-os-dias-contados.html
Para um perfil do juiz Alito e das peripécias da sua nomeação, leia o artigo "The Strange Case of Judge Alito", de Ronald Dworkin, publicado na "New York Review of Books" de 23 de Fevereiro de 2006.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/aborto-nos-eua-com-os-dias-contados.html
Darwin é que tem razão
I’m disturbed by those Gallup polls showing that more Americans believe in angels than evolution, and I agree that education is the only solution, escreve Ted Genoways, director da Virginia Quarterly Review, na introdução de um dossier sobre Darwin.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/darwin-que-tem-razo.html
Os ricos mais ricos
Como os ricos dos Estados Unidos se estão a tornar cada vez mais ricos: "The Rich and Everyone Else" por Andrew Hacker, no número de 25 de Maio de 2006 da "New York Review of Books".
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/os-ricos-mais-ricos.html
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/os-ricos-mais-ricos.html
terça-feira, maio 16, 2006
História e estupidez
"History and National Stupidity", de Arthur Schlesinger Jr., no número de 27 de Abril de 2006 de "The New York Review of Books". Um pequeno e luminoso artigo onde Schlesinger passeia pela noção de história, pela sua constante reescrita e defende a história como uma "necessidade moral" para um país com o poder dos EUA.
Citação: "History is the best antidote to illusions of omnipotence and omniscience. [...] A nation informed by a vivid understanding of the ironies of history is, I believe, best equipped to live with the temptations and tragedy of power. Since we are condemned as a nation to be a superpower, let a growing sense of history temper and civilize our use of that power. [...] Thirty years ago we suffered military defeat—fighting an unwinnable war against a country about which we knew nothing and in which we had no vital interests at stake. Vietnam was bad enough, but to repeat the same experiment thirty years later in Iraq is a strong argument for a case of national stupidity."
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 16 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/histria-e-estupidez.html
Citação: "History is the best antidote to illusions of omnipotence and omniscience. [...] A nation informed by a vivid understanding of the ironies of history is, I believe, best equipped to live with the temptations and tragedy of power. Since we are condemned as a nation to be a superpower, let a growing sense of history temper and civilize our use of that power. [...] Thirty years ago we suffered military defeat—fighting an unwinnable war against a country about which we knew nothing and in which we had no vital interests at stake. Vietnam was bad enough, but to repeat the same experiment thirty years later in Iraq is a strong argument for a case of national stupidity."
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 16 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/histria-e-estupidez.html
Espaço público
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Maio de 2006
Crónica 18/2006
Existe na usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo.
O trajecto casa-trabalho faz-me atravessar todos os dias a pé a Rua Filipe Folque, em Lisboa.
Um belo prédio dos anos 40 onde em tempos esteve instalada no rés-do-chão uma garagem e que esteve anos devoluto e depois meses em obras, foi ocupado no final do ano passado pela estação de Correios das Picoas. A estação tinha vivido durante anos na Rua Tomás Ribeiro, num prédio bastante mais antigo e menos adaptável à função e os Correios constituíam aí um empecilho maior ao trânsito, com o seu movimento e o estacionamento de camiões e carrinhas.
Com a mudança para a Filipe Folque (onde existia uma gigantesca cave com capacidade para acolher todas as carrinhas imagináveis e todos os caixotes, grades e paletes), as melhorias pareciam inevitáveis.
A realidade é outra. Habituadas a ocupar o passeio, a zona de estacionamento e a via pública sem rebuço, as carrinhas dos Correios persistiram nos maus hábitos na nova morada, obrigando peões a sair do passeio e a disputar o asfalto aos carros.
É verdade que o panorama não tem nada de original em Lisboa. É mesmo tão banal que motoristas, carregadores e carteiros reagem com surpresa, dignidade ofendida e certeza dos direitos adquiridos perante os reparos dos passantes. Mas isso não torna a situação menos incómoda nem menos ilegítima.
Seria de esperar (e de exigir) que uma empresa pública reconhecesse a esfera do espaço público e respeitasse os seus limites, mas receio que na mente de alguns dos seus dirigentes o próprio estatuto de empresa pública avalize a apropriação ilegítima do espaço de todos.
A situação nem é rara nem se limita às empresas públicas: o pequeno, médio e grande comércio apropria-se indevidamente de passeios e faixas de rodagem e há mesmo quem tenha barreiras ou cones de plástico fluorescentes que coloca à frente da porta para garantir o estacionamento próprio e impedir o alheio, justificando-se com um direito consuetudinário e as dificuldades de estacionar na capital. E os serviços da Administração Pública fazem o mesmo, com um desplante olímpico, tolerado pelas autoridades.
Os incómodos deste estado de coisas são evidentes e a situação só não merece mais denúncias porque todos ou quase todos abusam ou esperam poder um dia abusar dela em benefício próprio.
O facto pode parecer de interesse menor e talvez seja, mas acontece que existe nesta usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo. A rua é a nossa primeira experiência da comunidade, de vivência do espaço social, e estes hábitos, que se vão enraizando, de estacionamento nos passeios e em segunda fila, de ocupação de faixas de rodagem para actividades de construção civil, de ocupação dos espaços verdes e das praças para publicidade e de apropriação privada dos espaços públicos em geral, criam gerações de cidadãos para quem o abuso, a força e o facto consumado se tornam a norma do relacionamento social. Uma norma que diz que os carros são mais importantes que as pessoas; que diz que quem tem carro tem o privilégio de o estacionar onde quiser sem se preocupar com quem estorva; que diz que o espaço público pode ser sequestrado por quem tiver o maior desplante; que diz que os polícias não devem incomodar nem as empresas, nem os serviços públicos nem os poderes em geral mas apenas os cidadãos anónimos; que diz que a lei e os bons costumes são apenas regras inventadas para enredar as pessoas sem ousadia e que o mundo pertence a todos os outros.
Texto publicado no jornal Público a 16 de Maio de 2006
Crónica 18/2006
Existe na usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo.
O trajecto casa-trabalho faz-me atravessar todos os dias a pé a Rua Filipe Folque, em Lisboa.
Um belo prédio dos anos 40 onde em tempos esteve instalada no rés-do-chão uma garagem e que esteve anos devoluto e depois meses em obras, foi ocupado no final do ano passado pela estação de Correios das Picoas. A estação tinha vivido durante anos na Rua Tomás Ribeiro, num prédio bastante mais antigo e menos adaptável à função e os Correios constituíam aí um empecilho maior ao trânsito, com o seu movimento e o estacionamento de camiões e carrinhas.
Com a mudança para a Filipe Folque (onde existia uma gigantesca cave com capacidade para acolher todas as carrinhas imagináveis e todos os caixotes, grades e paletes), as melhorias pareciam inevitáveis.
A realidade é outra. Habituadas a ocupar o passeio, a zona de estacionamento e a via pública sem rebuço, as carrinhas dos Correios persistiram nos maus hábitos na nova morada, obrigando peões a sair do passeio e a disputar o asfalto aos carros.
É verdade que o panorama não tem nada de original em Lisboa. É mesmo tão banal que motoristas, carregadores e carteiros reagem com surpresa, dignidade ofendida e certeza dos direitos adquiridos perante os reparos dos passantes. Mas isso não torna a situação menos incómoda nem menos ilegítima.
Seria de esperar (e de exigir) que uma empresa pública reconhecesse a esfera do espaço público e respeitasse os seus limites, mas receio que na mente de alguns dos seus dirigentes o próprio estatuto de empresa pública avalize a apropriação ilegítima do espaço de todos.
A situação nem é rara nem se limita às empresas públicas: o pequeno, médio e grande comércio apropria-se indevidamente de passeios e faixas de rodagem e há mesmo quem tenha barreiras ou cones de plástico fluorescentes que coloca à frente da porta para garantir o estacionamento próprio e impedir o alheio, justificando-se com um direito consuetudinário e as dificuldades de estacionar na capital. E os serviços da Administração Pública fazem o mesmo, com um desplante olímpico, tolerado pelas autoridades.
Os incómodos deste estado de coisas são evidentes e a situação só não merece mais denúncias porque todos ou quase todos abusam ou esperam poder um dia abusar dela em benefício próprio.
O facto pode parecer de interesse menor e talvez seja, mas acontece que existe nesta usurpação do espaço público e no inerente abuso de poder um considerável valor deseducativo. A rua é a nossa primeira experiência da comunidade, de vivência do espaço social, e estes hábitos, que se vão enraizando, de estacionamento nos passeios e em segunda fila, de ocupação de faixas de rodagem para actividades de construção civil, de ocupação dos espaços verdes e das praças para publicidade e de apropriação privada dos espaços públicos em geral, criam gerações de cidadãos para quem o abuso, a força e o facto consumado se tornam a norma do relacionamento social. Uma norma que diz que os carros são mais importantes que as pessoas; que diz que quem tem carro tem o privilégio de o estacionar onde quiser sem se preocupar com quem estorva; que diz que o espaço público pode ser sequestrado por quem tiver o maior desplante; que diz que os polícias não devem incomodar nem as empresas, nem os serviços públicos nem os poderes em geral mas apenas os cidadãos anónimos; que diz que a lei e os bons costumes são apenas regras inventadas para enredar as pessoas sem ousadia e que o mundo pertence a todos os outros.
terça-feira, maio 09, 2006
Nascer em Barcelos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Maio de 2006
Crónica 17/2006
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões.
O anúncio feito pelo ministério da Saúde do encerramento de algumas maternidades que realizam um número de partos inferiores a 1500 por ano desencadeou, nos últimos dias, uma vaga de protestos nas localidades afectadas. No fim-de-semana passado, na mais visível das manifestações, frente à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa, manifestaram-se milhares de barcelenses, descidos a capital em 120 autocarros fretados pela câmara municipal e unidos em defesa do "direito de nascer em Barcelos". Noutras cidades aconteceram manifestações semelhantes, de menor dimensão.
Antes de mais, deve dizer-se que se compreende a reacção de repúdio das populações pelo encerramento das maternidades. A verdade é que os Governos e os políticos não dão em geral razões aos cidadãos para que estes acreditem nas suas promessas e, sendo assim, é natural que a garantia dada por Correia de Campos (de que os cuidados de saúde perinatais e a segurança dos partos irão aumentar) não mereça, à partida, grande crédito. O que os habitantes destas localidades sabem é que vão perder algo imediatamente, em troca de um benefício eventual e longínquo, que não está no seu horizonte (o proverbial pássaro na mão que o Governo quer trocar por dois pássaros a voar).
Posto isto, deve dizer-se que os argumentos apresentados pelo Governo parecem razoáveis. Isto – e note-se bem a ressalva – a verificar-se as premissas de maior qualidade nos estabelecimentos de saúde centrais (que seria bom provar) e a existência de um bom sistema de transportes (que seria bom garantir) e só nesses casos. É verdade que a boa qualidade dos cuidados de saúde exige não apenas equipamentos caros mas equipas dispendiosas e bem treinadas, que não é possível em certos casos manter em unidades de pequena dimensão. A garantia dada pelo ministro é de que as actuais medidas não nascem de um desejo de poupança a todo o custo, mas sim do facto de que elas permitirão poupar 200 vidas por ano. O argumento é de peso.
O que é espantoso, no meio de tudo isto, é que o Governo (e o ministério da Saúde, em particular), que tinham um tal benefício a oferecer às populações locais, não tenha sequer tentado explicar-lhes a sua decisão e tenha decidido anunciá-la com a ligeireza com que o fez. A reacção, assim, não é apenas compreensível: era inevitável.
Mais: a medida agora anunciada não consta do programa do Governo, nem das Grandes Opções do Plano, escudados como sempre atrás da língua de trapos do politiquês vazio ("Reinstituir o planeamento dos recursos hospitalares"), que tem horror à clareza e onde é difícil encontrar seja o que for de substantivo.
A cultura de arrogância do Governo é tal (não apenas deste Governo, mas também deste Governo) que nem é sequer possível encontrar no site do ministério da Saúde os dados e os argumentos que nos poderiam explicar as opções do Governo nesta matéria – já para não falar de um fórum onde outros tivessem podido expor os seus argumentos. Não teria sido isso politicamente conveniente? Não seria um gesto de promoção da cidadania? Não seria eticamente imperativo? Não seria simplesmente inteligente?
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões: é deprimente ouvir manifestantes lamentar que o encerramento da sua maternidade vá fazer dos futuros filhos da terra bracarenses em vez de barcelenses.
É triste verificar que, se no Governo socialista temos ministros tecnicamente capazes que tratam os cidadãos como se eles não existissem, por outro lado as populações se empenham em mostrar que o regionalismo oco é a única força capaz de as fazer percorrer 350 quilómetros para se manifestar.
Texto publicado no jornal Público a 9 de Maio de 2006
Crónica 17/2006
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões.
O anúncio feito pelo ministério da Saúde do encerramento de algumas maternidades que realizam um número de partos inferiores a 1500 por ano desencadeou, nos últimos dias, uma vaga de protestos nas localidades afectadas. No fim-de-semana passado, na mais visível das manifestações, frente à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa, manifestaram-se milhares de barcelenses, descidos a capital em 120 autocarros fretados pela câmara municipal e unidos em defesa do "direito de nascer em Barcelos". Noutras cidades aconteceram manifestações semelhantes, de menor dimensão.
Antes de mais, deve dizer-se que se compreende a reacção de repúdio das populações pelo encerramento das maternidades. A verdade é que os Governos e os políticos não dão em geral razões aos cidadãos para que estes acreditem nas suas promessas e, sendo assim, é natural que a garantia dada por Correia de Campos (de que os cuidados de saúde perinatais e a segurança dos partos irão aumentar) não mereça, à partida, grande crédito. O que os habitantes destas localidades sabem é que vão perder algo imediatamente, em troca de um benefício eventual e longínquo, que não está no seu horizonte (o proverbial pássaro na mão que o Governo quer trocar por dois pássaros a voar).
Posto isto, deve dizer-se que os argumentos apresentados pelo Governo parecem razoáveis. Isto – e note-se bem a ressalva – a verificar-se as premissas de maior qualidade nos estabelecimentos de saúde centrais (que seria bom provar) e a existência de um bom sistema de transportes (que seria bom garantir) e só nesses casos. É verdade que a boa qualidade dos cuidados de saúde exige não apenas equipamentos caros mas equipas dispendiosas e bem treinadas, que não é possível em certos casos manter em unidades de pequena dimensão. A garantia dada pelo ministro é de que as actuais medidas não nascem de um desejo de poupança a todo o custo, mas sim do facto de que elas permitirão poupar 200 vidas por ano. O argumento é de peso.
O que é espantoso, no meio de tudo isto, é que o Governo (e o ministério da Saúde, em particular), que tinham um tal benefício a oferecer às populações locais, não tenha sequer tentado explicar-lhes a sua decisão e tenha decidido anunciá-la com a ligeireza com que o fez. A reacção, assim, não é apenas compreensível: era inevitável.
Mais: a medida agora anunciada não consta do programa do Governo, nem das Grandes Opções do Plano, escudados como sempre atrás da língua de trapos do politiquês vazio ("Reinstituir o planeamento dos recursos hospitalares"), que tem horror à clareza e onde é difícil encontrar seja o que for de substantivo.
A cultura de arrogância do Governo é tal (não apenas deste Governo, mas também deste Governo) que nem é sequer possível encontrar no site do ministério da Saúde os dados e os argumentos que nos poderiam explicar as opções do Governo nesta matéria – já para não falar de um fórum onde outros tivessem podido expor os seus argumentos. Não teria sido isso politicamente conveniente? Não seria um gesto de promoção da cidadania? Não seria eticamente imperativo? Não seria simplesmente inteligente?
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões: é deprimente ouvir manifestantes lamentar que o encerramento da sua maternidade vá fazer dos futuros filhos da terra bracarenses em vez de barcelenses.
É triste verificar que, se no Governo socialista temos ministros tecnicamente capazes que tratam os cidadãos como se eles não existissem, por outro lado as populações se empenham em mostrar que o regionalismo oco é a única força capaz de as fazer percorrer 350 quilómetros para se manifestar.
terça-feira, maio 02, 2006
Um caso edificante
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Maio de 2006
Crónica 16/2006
Um cidadão pode ser condenado em tribunal sem ser informado de nada e sem ter possibilidade de se defender. É isto o Estado de Direito?
A voz da minha colega da secção de Pessoal que sai do telefone mostra algum constrangimento. Acaba de receber um ofício do tribunal, informa-me, ordenando uma penhora sobre o meu ordenado para cobrança de uma dívida não paga, pela qual acabo de ser condenado em julgamento.
Trata-se obviamente de um engano. Não fui condenado em nenhum tribunal e não tenho dívidas a não ser os meus empréstimos ao banco. A minha consciência está tranquilíssima quando subo para ver o ofício.
À cabeça do documento vem o nome do meu suposto credor: uma loja de electrodomésticos onde, de facto, fiz uma compra há doze anos atrás, que paguei com uma série de cheques pré-datados, a forma de prestações corrente na altura. É verdade que tinha havido algum problema porque, mais de um ano após a compra, recebi uma carta de um escritório de advogados intimando-me a pagar uma mensalidade, aparentemente em falta. Respondi aos advogados dizendo que pensava estar tudo pago mas dispondo-me a pagar caso existisse alguma dívida e pedi dados: a loja perdeu algum dos cheques? Houve algum cheque não pago pelo banco? Envio a carta, não recebo resposta e acabo por varrer o caso da memória.
Agora, doze anos depois, aparece esta penhora. Contacto o meu advogado a quem peço para deslindar a história e a quem transmito a minha vontade de processar a loja, o Estado e os tribunais para repor a justiça. Depois da surpresa inicial a minha reacção é de fúria: então um cidadão pode ser processado, levado a tribunal e condenado sem ser informado de nada? Sem ter possibilidade de se defender de uma acusação sem fundamento? É isto o Estado de Direito?
A averiguação é breve: eu terei sido "devidamente" notificado pelo tribunal do processo mas acontece que… mudei de casa. E foi tudo enviado para a morada antiga.
Mas não é proibido mudar de casa! Como é possível que não me tenham localizado se actualizei imediatamente todos os meus documentos? É que a polícia que faz estas intimações, quando não encontra o destinatário em casa, pergunta aos vizinhos se sabem onde ele está… e fica-se por aí. E o sujeito pode acabar por ser julgado sem saber. Falo com o tribunal e a PSP que confirmam o procedimento. E não perguntam a morada às Finanças que tudo sabem? À Segurança Social? À DGV? Ao Arquivo de Identificação? Não consultam a lista telefónica? "Não. Costumamos perguntar aos vizinhos."
"E como é que conseguiram notificar-me da penhora mas não me conseguiram notificar de que ia ser julgado? Porque é que não me contactaram para o meu emprego?" "As penhoras vão para a entidade patronal, mas as notificações não vão".
Posso fazer um processo ao Estado mas as probabilidades de êxito são remotas, pois é possível que a polícia e tribunais tenham "cumprido os procedimentos". E não se pode fazer um processo ao Estado e aos tribunais por estupidez? Acabo por decidir escrever esta crónica para ilustração alheia.
Morais da história (há várias):
- a primeira é que o leitor pode ter sido julgado e condenado por homicídio na semana passada sem que o brioso sistema judicial se tenha dado ao trabalho de o informar.
- a segunda é que todos os crimes prescrevem, incluindo casos de homicídio… menos os nossos.
- a terceira é que o Estado não olha a gastos (polícias, notificações, documentação, advogados, julgamento) mesmo que se trate de resolver um problema inexistente – no caso vertente, uma dívida que, a existir, o devedor se dispunha a pagar imediatamente.
- a quarta é que a reforma do Estado e dos Tribunais nem sempre exige grandes meios mas necessita de algo que pode não estar disponível nas estruturas a reformar: um mínimo de inteligência e de sentido cívico.
Texto publicado no jornal Público a 2 de Maio de 2006
Crónica 16/2006
Um cidadão pode ser condenado em tribunal sem ser informado de nada e sem ter possibilidade de se defender. É isto o Estado de Direito?
A voz da minha colega da secção de Pessoal que sai do telefone mostra algum constrangimento. Acaba de receber um ofício do tribunal, informa-me, ordenando uma penhora sobre o meu ordenado para cobrança de uma dívida não paga, pela qual acabo de ser condenado em julgamento.
Trata-se obviamente de um engano. Não fui condenado em nenhum tribunal e não tenho dívidas a não ser os meus empréstimos ao banco. A minha consciência está tranquilíssima quando subo para ver o ofício.
À cabeça do documento vem o nome do meu suposto credor: uma loja de electrodomésticos onde, de facto, fiz uma compra há doze anos atrás, que paguei com uma série de cheques pré-datados, a forma de prestações corrente na altura. É verdade que tinha havido algum problema porque, mais de um ano após a compra, recebi uma carta de um escritório de advogados intimando-me a pagar uma mensalidade, aparentemente em falta. Respondi aos advogados dizendo que pensava estar tudo pago mas dispondo-me a pagar caso existisse alguma dívida e pedi dados: a loja perdeu algum dos cheques? Houve algum cheque não pago pelo banco? Envio a carta, não recebo resposta e acabo por varrer o caso da memória.
Agora, doze anos depois, aparece esta penhora. Contacto o meu advogado a quem peço para deslindar a história e a quem transmito a minha vontade de processar a loja, o Estado e os tribunais para repor a justiça. Depois da surpresa inicial a minha reacção é de fúria: então um cidadão pode ser processado, levado a tribunal e condenado sem ser informado de nada? Sem ter possibilidade de se defender de uma acusação sem fundamento? É isto o Estado de Direito?
A averiguação é breve: eu terei sido "devidamente" notificado pelo tribunal do processo mas acontece que… mudei de casa. E foi tudo enviado para a morada antiga.
Mas não é proibido mudar de casa! Como é possível que não me tenham localizado se actualizei imediatamente todos os meus documentos? É que a polícia que faz estas intimações, quando não encontra o destinatário em casa, pergunta aos vizinhos se sabem onde ele está… e fica-se por aí. E o sujeito pode acabar por ser julgado sem saber. Falo com o tribunal e a PSP que confirmam o procedimento. E não perguntam a morada às Finanças que tudo sabem? À Segurança Social? À DGV? Ao Arquivo de Identificação? Não consultam a lista telefónica? "Não. Costumamos perguntar aos vizinhos."
"E como é que conseguiram notificar-me da penhora mas não me conseguiram notificar de que ia ser julgado? Porque é que não me contactaram para o meu emprego?" "As penhoras vão para a entidade patronal, mas as notificações não vão".
Posso fazer um processo ao Estado mas as probabilidades de êxito são remotas, pois é possível que a polícia e tribunais tenham "cumprido os procedimentos". E não se pode fazer um processo ao Estado e aos tribunais por estupidez? Acabo por decidir escrever esta crónica para ilustração alheia.
Morais da história (há várias):
- a primeira é que o leitor pode ter sido julgado e condenado por homicídio na semana passada sem que o brioso sistema judicial se tenha dado ao trabalho de o informar.
- a segunda é que todos os crimes prescrevem, incluindo casos de homicídio… menos os nossos.
- a terceira é que o Estado não olha a gastos (polícias, notificações, documentação, advogados, julgamento) mesmo que se trate de resolver um problema inexistente – no caso vertente, uma dívida que, a existir, o devedor se dispunha a pagar imediatamente.
- a quarta é que a reforma do Estado e dos Tribunais nem sempre exige grandes meios mas necessita de algo que pode não estar disponível nas estruturas a reformar: um mínimo de inteligência e de sentido cívico.
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