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por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Março de 2014
Crónica 18/2014
Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser.
Existem diferenças de monta entre as análises feitas à esquerda e à direita sobre a nossa crise económica e financeira. Essas diferenças têm que ver com as diferentes perspectivas sobre a origem dos nossos males, com o diagnóstico dos males em si e com o prognóstico.
Quanto às origens, enquanto a esquerda coloca de uma forma geral a tónica nas regras de funcionamento do euro, na crise financeira de 2008, na consequente redução das receitas do Estado e aumento de despesas sociais, na austeridade ela própria e na debilidade da nossa estrutura produtiva, a direita coloca em geral a tónica num excesso da despesa do Estado — seja devido aos investimentos em grandes projectos ou aos serviços do Estado social — e na corrupção.
A corrupção está também presente nas análises à esquerda, mas é em geral tratada com alguma contenção, já que a esquerda considera disparatado colocar este factor no topo da lista de responsáveis pelo empobrecimento do país, pelo desemprego e pela perda de direitos sociais. De facto, mesmo que Portugal fosse o mais impoluto dos países, a nossa situação económica, social e política não seria substancialmente diferente, se se mantivessem todos os outros factores.
Esta diferença de perspectivas é rica em consequências: a primeira é que a mensagem da esquerda é dificilmente compreensível (o que é “a arquitectura do euro”? o que é “a soberania monetária”? o que foi “a crise de 2008”?), enquanto a da direita é fácil de perceber — ficámos sem dinheiro porque gastámos acima das nossas possibilidades e porque nos andaram a roubar.
Podemos dizer que a mensagem da direita é uma descarada mentira ou que é uma simplificação abusiva. Seja como for, ela passa mais facilmente para a opinião pública. É simples e fácil de reproduzir.
Esquerda e direita podem discutir a questão da despesa do Estado, mas é impossível um acordo total sobre estas questões, onde qualquer compromisso obrigará a cedências mútuas: qual deve ser o papel do Estado no fornecimento de serviços sociais essenciais como a educação, a saúde e a Segurança Social? Que tipo e que nível de protecção deve o Estado garantir aos mais desprotegidos? Que papel deve o Estado guardar para si? O que deve fazer em nome próprio e o que pode subcontratar? Deve executar e gerir ou regular e encomendar? Que nível de gastos são admissíveis? Que impostos estamos dispostos a pagar para garantir as funções do Estado?
No entanto, sobre a questão da corrupção, não existem, em princípio, diferenças de opinião entre a esquerda e a direita: ambos os campos acham que não se deve roubar e que é particularmente feio roubar o dinheiro da comunidade.
No entanto, apesar disso, a denúncia vociferante da corrupção é usada com frequência como recurso retórico da direita — é mesmo típica da direita populista “antipolítica” emergente — e só raramente ele ocupa um papel central nas posições da esquerda.
Este facto é tanto mais estranho quanto a corrupção é um fenómeno especialmente ligado à prática política dos partidos do chamado “arco da governação” — tanto, aliás, que seria mais rigoroso usar a expressão “arco da corrupção” — e quanto as suspeitas ou casos de corrupção são raros e combatidos com particular veemência nos partidos à esquerda destes. Apesar disso, esta esquerda, piedosamente, continua a considerar a corrupção como um epifenómeno da política, independente das ideologias, e recusa-se no seu discurso político a estabelecer um laço entre os partidos do “arco da governação” e a corrupção, como a simples correlação estatística sugeriria.
A direita, porém, amalgama alegremente no seu discurso corrupção e despesas do Estado, sugerindo que as duas coisas possuem uma estreita relação e que a segunda alimenta a primeira. Nas entrelinhas do discurso do Governo, do PSD e do CDS, nos blogues da direita, nas intervenções de Paulo Morais e Marinho e Pinto, acção do Estado e corrupção parecem ser duas coisas indissociáveis, onde um alargamento da primeira (que a esquerda defende) não pode deixar de provocar um aumento da segunda.
Por estas razões, é fundamental que a esquerda, sem perder de vista o combate ideológico e o debate das opções políticas, se empenhe sem hesitação no combate à corrupção, que deve ser, para muitos cidadãos, a causa central da acção política, da mesma forma que a percepção de uma corrupção generalizada é a causa do seu afastamento da actividade políitica e até do simples voto. Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser. A corrupção é o mais pernicioso factor de desigualdade de uma sociedade.
O escândalo da prescrição do processo de Jardim Gonçalves, os escândalos anunciados da prescrição de outros crimes cometidos no âmbito do mesmo caso BCP, do caso BPN ou do caso BPP são armas de destruição maciça da credibilidade das instituições, da justiça, da política e da democracia. Uma lei que não é igual para todos não pode sustentar uma democracia. E todos estes casos de corrupção, fraude, abuso de confiança, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, são casos de corrupção permitidos pelos altos dignitários do “arco da governação”. É bom lembrá-lo. (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Março de 2014
Crónica 11/2014
Os grandes consensos políticos são indispensáveis em graves momentos de crise.
1. Em muitos dos países ocupados pelos nazis na segunda Guerra Mundial, a resistência incluía pessoas que cobriam um espectro político que ia dos cristãos conservadores e monárquicos aos comunistas e anarquistas e a razão, a necessidade e a justiça da sua aliança era uma evidência para todos. Estes grandes consensos podem ser vitais em momentos de emergência, para ultrapassar um obstáculo preciso, ainda que não constituam uma fórmula de governação política nem apaguem as diferenças e os conflitos entre os seus constituintes - diferenças vitais, também elas, para permitir o exercício da livre escolha democrática pelos cidadãos, que deve ser instituída ou restabelecida tão depressa quanto possível.
O momento que Portugal vive é um desses momentos de grave crise. Não estamos sob ocupação militar mas vivemos há três anos sob outro tipo de ocupação, virtual, comandada à distância, por potências financeiras sem nome e sem cara, que ditam os nossos destinos. Uma ocupação onde o princípio da soberania do povo é desprezado pelos próprios dirigentes que juraram defendê-lo, onde as necessidades e os desejos da população são subalternizados perante interesses que lhe são alheios, onde o património nacional e o património pessoal dos cidadãos são pilhados e exportados pelas potências ocupantes, onde o contrato social é vilipendiado como coisa desprezável, onde um governo colaboracionista atribui um estatuto sagrado aos seus deveres de obediência perante a potência ocupante mas renega as suas obrigações perante os cidadãos, onde um número crescente de cidadãos é atirado para a miséria e para a carência e impossibilitado de exercer a sua cidadania.
Com este pano de fundo, é natural que surjam na sociedade portuguesa pedidos, um pouco de todos os lados, para que as várias forças políticas se entendam e consigam chegar a um consenso. No entanto, o que temos visto surgir à direita (no governo, no PSD, no CDS e na Presidencia da República) são apelos a um consenso não para encontrar alternativas de acção, mas no sentido de reforçar e alargar a aliança colaboracionista.
O “consenso” de que fala Pedro Passos Coelho tem sido apenas uma tentativa de chamar para o seu terreno o Partido Socialista e de o comprometer com as suas políticas. A prova de que isto é exactamente assim foi a reacção do Governo ao Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente”, mais conhecido como Manifesto dos 74. Se alguém quer um consenso político alargado e equilibrado, ele está ali. Se alguém quer um consenso preocupado com o futuro dos portugueses e assente num real conhecimento da economia, do país, das constrições da política e da situação actual da Europa, ele está ali. Se alguém quer um consenso que é fruto do compromisso entre diferentes visões políticas, da direita à esquerda, ele está ali. Do documento disse-se tudo, mas vale a pena sublinhar algo particularmente nobre: o sacrifício de todos os que o assinaram.
É evidente que raros serão, entre os signatários, os que se sentirão confortáveis com cada linha de cada parágrafo. Houve certamente compromissos e negociações, insistências e cedências. Mas foi possível chegar a um texto comum, onde todos cederam um pouco no menos importante para defender o essencial. E, por isso, por terem sabido defender o essencial e pôr de lado a sectarismo que tanto mancha a prática política, a publicação deste manifesto merece ser assinalada na nossa história com uma pedra branca. O Manifesto dos 74 mostra que há quem ponha o interesse dos portugueses acima do interesse dos mercados financeiros e quem coloque a soberania do povo acima do poder sem rosto do dinheiro. O Manifesto dos 74 mostra que há, da esquerda à direita, quem não ceda ao colaboracionismo, por diferentes que possam ser as suas visões da sociedade. Este manifesto é, por isso, um importante passo para salvar a honra perdida da política, prostituída pelo Governo, e para restaurar a imagem da democracia, vítima da violação colectiva quotidiana do PSD e do CDS.
2. Este manifesto tem um reverso, sombrio. Estabelecendo um alargado consenso político a propósito de uma questão política central, é sintomático que ele tenha nascido e surgido à margem dos partidos. Pode dizer-se que essa foi uma necessidade táctica, para não fechar portas, mas não se trata apenas disso. Repare-se na fúria do PSD, na indignação do CDS, na hesitação do PS, na contenção do BE, no cumprimento distante do PCP. Pense-se agora em todos os outros manifestos que têm surgido nos últimos tempos, sempre com milhares de assinaturas, sobre questões centrais. O que vemos é um panorama onde, de forma crescente, os partidos parecem alheados destas movimentações. O facto de as propostas mais relevantes e mobilizadoras surgidas na política nos últimos tempos estarem a aparecer sistematicamente fora dos partidos não augura nada de bom e aconselha uma profunda reflexão sobre a actual prática partidária. (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2014
Crónica 10/2014
O Governo encontrou uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres
A campanha usou a técnica do teaser. Primeiro, começaram a aparecer nas estações de Metro e nos autocarros de Lisboa uns cartazes de fundo branco, mostrando apenas um par de lindíssimos olhos azuis femininos esbugalhados, enquadrados por umas belas sobrancelhas arqueadas. Passados uns dias, foram substituídos por outros com a mesma fotografia mas já com dizeres: “Abra os olhos e combata a fraude” e, por baixo, “A falta de validações pode sair-lhe caro” (sic), seguida da lista de castigos que o utente dos transportes públicos (porque é disso que se trata) deve esperar: “menos carreiras, menos comboios, maior tempo de espera, degradação do serviço”. Por baixo, os logos do Metro e Carris.
A campanha tem uma enorme qualidade gráfica e estética e, não fora a incorrecção gramatical, poderia considerar-se tecnicamente excelente. Mas o seu conteúdo é moralmente abjecto e politicamente obsceno.
A campanha, que acontece sobre o pano de fundo da concessão dos transportes públicos a empresas privadas por imposição da troika e da Comissão Europeia, pretende transmitir uma ideia muito simples: se os transportes públicos são maus e serão cada vez piores a culpa não é da inexistência de uma política de transportes públicos justa e sustentável nem é do Governo que subfinancia estas empresas públicas. A culpa também não se deve ao facto de o Governo querer forçar estas empresas a ter um resultado de exploração positivo apesar do serviço social que prestam e de as obrigar por isso a reduzir carreiras e a degradar o serviço. A culpa da má qualidade dos transportes públicos é nossa. Dos cidadãos, dos utentes. E porquê? Porque fazemos fraude ou deixamos que os outros façam.
A tese do Governo é que os maus resultados das empresas de transportes públicos se devem, antes de mais, ao facto de serem públicas (daí que seja imperativo passar a sua gestão para mãos privadas) e, depois, à fraude. A prova que a fraude aumentou? O facto de o número de viagens pagas ter diminuído. Não será porque as pessoas têm menos dinheiro e porque todos os que podem cortam nos passes e nos bilhetes? Não será porque o desemprego aumentou e as pessoas que não precisam imperativamente de se deslocar ficam em casa ou andam a pé? Não. O Governo diz que é a fraude e tem um estudo onde a Carris aparece com números substancialmente mais elevados que os que a própria empresa estima.
A ideia percebe-se bem. A tese da fraude em massa que arrasta as empresas de transportes públicos para o fundo serve a agenda política do governo, que consiste em colocar os cidadãos uns contra os outros, desviar as atenções das malfeitorias do governo e preparar a opinião pública para a concessão dos transportes a privados. Neste quadro, não são apenas as empresas públicas que não funcionam e que têm uma gestão deficiente. São também os utentes das empresas públicas que agem de forma irresponsável - ao contrário dos clientes das empresas privadas, que são cidadãos responsáveis. Para o Governo, há algo de intrinsecamente pecaminoso nas empresas públicas. E esta campanha é para nos convencer a todos disso. É, mais uma vez, dinheiro público gasto a fazer a propaganda ideológica extremista do Governo PSD-CDS.
Uma vez estabelecida que a culpa é dos utentes que cometem fraudes podemos passar ao passo seguinte que é a mensagem explícita da campanha: abra os olhos. Denuncie quem tenta viajar sem bilhete. Não os deixe passar. São eles, os pobres, que nos estão a lixar a vida. Não é o Governo, nem a troika. Aqueles lindos olhos azuis são os olhos do Big Brother, a ver se você denuncia os pobres ou se os deixa passar.
É provável que a fraude nos transportes públicos tenha aumentado, porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro e há cada vez mais pessoas sem dinheiro nenhum. Muitas dessas pessoas deixaram de usar os transportes públicos - cujos passes sociais são demasiado caros - e muitas tentarão talvez viajar sem bilhete. Mas a fraude, se aumenta, é, antes de mais, um indicador da existência de um preço que não é “social” e de um transporte que é cada vez menos “público”. Poucas pessoas gostam de andar a fugir aos fiscais e à polícia ou arriscar-se a pagar uma multa gigantesca se puderem não o fazer. Mas o Governo vê aqui uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres.
2. Sobre a birra de Pedro Passos Coelho no Parlamento, quando Catarina Martins referiu algo tão verdadeiro, tão evidente e tão fácil de provar como a ausência de valor da sua palavra: será que alguém poderia explicar ao primeiro-ministro que, quando ele se apresenta no Parlamento, é ao povo que responde, através dos seus representantes legítimos, e não a esta ou àquela pessoa? E será que alguém pode explicar a mesmíssima coisa à inefável reformada que preside ao Parlamento? E será que alguém pode explicar a ambos que “responsabilidade” significa o dever de responder? Ou será que PPC e Assunção Esteves acham que o Governo apenas é responsável perante a troika? (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Março de 2014
Crónica 9/2014
O “país” de que fala Luís Montenegro não é o nosso país. O “país” de que fala Luís Montenegro não é Portugal.
"A vida das pessoas não está melhor, mas a vida do país está muito melhor." A frase, de Luís Montenegro, o risonho líder parlamentar do PSD, merece entrada em qualquer colectânea de citações políticas e mesmo nos manuais de história contemporânea. Não pela profundidade do pensamento, como nos melhores casos, mas pela clareza da ideia que expõe, que no caso vertente resulta de uma mistura de simplicidade e de desfaçatez.
A primeira parte da tirada ("A vida das pessoas não está melhor”) não levanta dúvidas a ninguém e merece a concordância de todos. Há menos emprego que quando este Governo tomou posse, há mais desemprego, há mais desempregados sem apoios sociais, há mais pobreza, há mais sem-abrigo, há mais fome, há mais desespero, há mais jovens sem dinheiro para estudar, há mais portugueses a emigrar por falta de perspectivas, há mais jovens qualificados a emigrar, há mais medo, há menos liberdade, há menos apoios sociais, há menos acesso à saúde, há menos formação, há menos escolas, há menos serviços no interior, há maior conflitualidade, há menos confiança nas pessoas e nas instituições, etc. A lista exaustiva é impossível de tão longa e, por trás de cada estatística, escondem-se milhares de tragédias pessoais, de histórias que não deviam existir num país desenvolvido no século XXI.
O que é de mais difícil compreensão é aquele “a vida do país está muito melhor". É difícil porque é preciso um enorme esforço conceptual para separar este “país” que está “muito melhor” das “pessoas” que “não estão melhor”.
Que país é este de que fala Montenegro? Que entidade é esta que está tão longe e tão separada das pessoas que é possível que uma esteja muito melhor e as outras muito pior?
Existem muitas definições de estado (suponho que é do estado que fala Montenegro) mas praticamente todas elas consideram uma comunidade organizada politicamente, com um governo e um território. Que país é então este que está bem quando as suas pessoas estão mal? Que componente do país é que está melhor? Será que Montenegro fala do território? Não parece ser. Referir-se-á Luís Montenegro ao Governo? Será o Governo a parte do país que está “muito melhor”? É inegável que o executivo ganhou um novo vigor e que conseguiu construir um discurso positivo em torno da ideia de “fim do programa de ajustamento” que, por vácuo que seja, parece ter convencido alguns incautos e paralisado ainda mais o PS. Mas mesmo Luís Montenegro sabe que seria excessivo identificar Governo e país. Este país que está “muito melhor” parece ser algo mais amplo que a comissão liquidatária a que chamamos governo.
Mas então que país é este que está “muito melhor” e que não são as pessoas?
É simples: o “país” de que fala Luís Montenegro não é o nosso país. O “país” de que fala Luís Montenegro não é Portugal. O “país” de que fala Luís Montenegro é, simplesmente, o capital.
O que Luís Montenegro quis dizer foi que "A vida dos trabalhadores não está melhor, mas a vida do capital está muito melhor". Basta substituir estas poucas palavras para tudo bater certo. A vida dos dirigentes do PSD está muito melhor (basta ver como se congratulavam todos no último congresso). A vida dos dirigentes do CDS está muito melhor. A vida dos banqueiros está muito melhor. A vida dos grandes empresários está muito melhor. A vida dos multimilionários está muito melhor. A vida dos advogados que trabalham para o capital está muito melhor. A vida dos empresários que baixam salários e despedem trabalhadores com o pretexto da crise está muito melhor. A vida dos empresários sem escrúpulos está muito melhor. A vida dos empresários que vivem à conta das PPP está muito melhor. A vida dos corruptos que nunca são condenados está muito melhor. A vida dos que têm as empresas registadas na Holanda e o dinheiro nas ilhas Caimão está muito melhor. A vida dos empresários da saúde que vêem as suas clínicas aumentar a facturação à custa da destruição do Serviço Nacional de Saúde está muito melhor. A vida dos empresários da educação que vêem as suas escolas aumentar a facturação à custa da destruição da escola pública e dos subsídios do estado está muito melhor. E depois, à volta destes, há um segundo anel de empresários de serviços de luxo, de serviços “diferenciados” e “exclusivos”, que servem os primeiros, cuja vida está também muito melhor.
O que Luís Montenegro quis dizer foi que "A vida do povo não está melhor, mas a vida da oligarquia que manda no país está muito melhor". Foi por isso que se congratulou. Porque ele faz parte dela. Que isso constitua uma traição às promessas do PSD, à social-democracia que voltou a ter direito de menção no último congresso, ao interesse nacional, ao povo que o elegeu é algo que não preocupa Montenegro ou o PSD. Como diz com honestidade o multimilionário Warren Buffett, “há de facto uma luta de classes e a minha classe está a ganhar”. A diferença é que Buffett tem uma certa vergonha. E Montenegro não tem vergonha nenhuma. (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Fevereiro de 2014
Crónica 8/2014
É irrelevante se a pressão foi sentida como uma violência ou não. O grave é que ela tenha existido.
Quero agradecer aos membros do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT) a carta que enviaram ao PÚBLICO e que foi aqui publicada no passado dia 22. Sem esta carta, o caso das pressões sobre o CNCT feitas pela secretária de Estado da Ciência (SEC), Leonor Parreira, acabaria provavelmente por ser esquecido, o que seria lamentável. A sua publicação permite-me, porém, voltar a dar ao caso a atenção que ele exige.
São levantadas na carta mais questões do que aquelas que são respondidas, mas penso que é necessário fazer um esforço para tentar esclarecer dois pontos principais.
A primeira questão que se coloca é esta: se o CNCT não foi objecto de “pressões indevidas” por parte da SEC, por que é que os membros subscritores desta carta não vieram a terreiro em devido tempo, quando a notícia dessas pressões foi dada pelos media (incluindo o PÚBLICO,Expresso e RTP, entre outros)?
Esta questão gera uma dupla perplexidade, pois a divulgação de pressões da SEC sobre o CNCT não foi feita apenas pela imprensa, mas foi objecto (a 10 de Fevereiro) de um comunicado oficial do Conselho dos Laboratórios Associados (CLA), um órgão que não só reúne 26 das principais instituições científicas nacionais como possui elementos em comum com o CNCT. Nesse comunicado, o CLA diz expressamente que “o Governo se permitiu exercer pressão sobre as deliberações deste órgão consultivo por si nomeado [CNCT]”, mas estes membros do CNCT também não contestaram essa denúncia, o que é difícil de compatibilizar com a garantia agora dada de que não houve pressões.
A segunda questão tem a ver com o ponto central na carta: a garantia de que o CNCT não foi “indevidamente pressionado por qualquer membro do Governo”. É com algum desconforto com que se lê aquele “indevidamente”, que parece sugerir que existem, na opinião destes membros do CNCT, pressões do Governo sobre um órgão de aconselhamento que são legítimas, mas talvez isso não passe de um descuido de redacção. O que não pode ser atribuído a um descuido é o mail que o coordenador do CNCT enviou aos conselheiros (divulgado pelo Expresso a 5 de Fevereiro) onde lhes transmite o desagrado da secretária de Estado com a primeira versão do comunicado do CNCT que lhe foi enviado.
É verdade que o comunicado do CNCT acabou por ser publicado e poder-se-ia dizer que essa publicação é a prova de que o conselho foi impermeável às pressões da SEC. Só que essa publicação só teve lugar depois (e não antes) de o comunicado ter sido objecto de uma fuga de informação, o que lhe retira esse carácter probatório.
A única forma de compatibilizar o conteúdo desta carta com os factos que conhecemos (recusando cenários extremos como admitir a) a hipocrisia dos seus subscritores ou b) a existência de pressões pessoais sobre cada um deles), é considerar que estes membros do CNCT adoptam um raciocínio tautológico do tipo: “Como não somos pressionáveis, nada do que nos seja dito ou feito constitui uma pressão”. Mas o que estes conselheiros esquecem é que quem está neste caso em questão não é o CNCT, mas Leonor Parreira e o Governo. É irrelevante (para este efeito) se a pressão funcionou ou não. É irrelevante se ela foi sentida como uma violência ou não. O grave é que ela tenha existido.
É possível que, devido à excessiva informalidade do nosso pequeno meio, tenha havido quem considerasse a pressão da SEC um mero desabafo pessoal “da Leonor” com os colegas, amigos ou conhecidos de longa data. Mas um governante não é um agente privado nem possui o mesmo grau de liberdade na acção pública que uma vizinha que fala no patamar da escada. Um governante é (deveria ser) um guardião dos princípios de boa governação e de ética democrática, que não pode manipular a seu bel-prazer nem desbaratar. Os procedimentos que garantem a independência de um órgão consultivo, a transparência de processos e a liberdade de opinião são sagrados e é lamentável que um governante não perceba isso. A médica Leonor pode dizer o que quiser aos seus colegas, mas a secretária de Estado Leonor Parreira tem outras responsabilidades. E, ao dizer aos conselheiros que o seu comunicado é "incorrecto e parcial", que está "escrito em tom muito negativo", que apenas pretende "salvar a imagem pública dos membros do conselho", que não "contribui para uma melhor política da ciência" e que demonstra “má-fé”, ultrapassa uma fronteira que não deveria ultrapassar e viola a esfera que tem a obrigação de defender.
Esta carta permite-nos admitir que nenhum destes conselheiros do CNCT se sentiu pressionado, censurado ou limitado na sua liberdade de opinar e criticar. Não há razão para duvidar deste sentimento. Há mulheres maltratadas que amam os seus maridos abusadores e que acham que, se são espancadas, é porque merecem. Há reféns que sentem simpatia pelos seus raptores. Há estudantes praxados que agradecem aos “veteranos” que os arrastam pela lama. Existe de tudo sob o Sol. Mas, se é assim, o que temos de lamentar por parte destes conselheiros do CNCT é que coloquem tão baixo a fasquia da sua exigência democrática e do seu amor-próprio. (jvmalheiros@gmail.com)