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terça-feira, maio 12, 2015

Balanço e lições de uma greve estranha

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Maio de 2015
Crónica 18/2015


A greve de pilotos da TAP encaixou perfeitamente na narrativa governamental de uma empresa impossível de gerir pelo Estado.
Media e comentadores foram repetindo nos últimos dias as estimativas do Governo e da administração da empresa segundo as quais a greve dos pilotos da TAP causou um prejuízo de 30 a 35 milhões de euros à empresa. No entanto, se esse fosse o único prejuízo da greve decretada pelo Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil, ele seria negligenciável.

O primeiro custo da greve, que ninguém contabilizou, foi o sofrimento causado aos passageiros que perderam os seus voos, que perderam dias de férias ou de trabalho, que tiveram de passar horas ou dias à espera em aeroportos, sem que lhes fosse disponibilizado um hotel para dormir ou uma refeição para comer ou sequer um pedido de desculpas e uma informação séria. É evidente que uma greve provoca sempre incómodos aos utentes dos serviços paralisados e não era de esperar que esta não o fizesse. Mas existe uma diferença entre o incómodo de uma mudança de companhia e de aeroporto, de uma viagem mais longa que o esperado e o desespero causado pelo abandono a que milhares de clientes da TAP foram votados, sem saber o que se passava, se iriam chegar ao seu destino, nem como e muito menos quando. É sabido que, sempre que há cancelamento de voos, as companhias de aviação tratam os seus passageiros de uma forma arrogante (a TAP não é excepção) e que lhes recusam a informação mínima a que têm direito. Quem viaja com frequência conhece a tortura de ver o seu avião desaparecer sem explicação dos placards de informação, de não conseguir a mínima informação por parte dos funcionários que se encontram no aeroporto, de ter de calcorrear quilómetros de balcão em balcão para saber o que se passa, de ter de perseguir pelo aeroporto o funcionário que distribui os vouchers do hotel, etc. Quem já teve de fazer tudo isto arrastando crianças ou idosos, cansados, irritados, com fome e com sono, sabe do que se trata.

Como acontece em qualquer crise, a administração da TAP poderia ter aproveitado a oportunidade para mostrar a têmpera da empresa e disponibilizado a todos os passageiros uma informação honesta e permanente — a primeira necessidade do passageiro, ainda mais importante que o transporte alternativo. Não o fez. É possível que não o tenha feito por incapacidade ou incompetência. É possível que o tenha feito para mostrar que algo está podre na TAP e que a privatização é a única solução. Nenhuma das alternativas dá uma boa imagem da empresa. A administração da TAP ou fez má gestão ou má política.

O custo reputacional foi o segundo grande problema e é provável que ele seja muito superior aos 30 milhões referidos. Custo reputacional para a TAP, pela atitude de indiferença pelos passageiros que lhe fica associada, mas também para Portugal como destino turístico. Para muitos turistas, as horas e os dias passados num aeroporto português sem qualquer informação foram horas e dias de inferno. É natural que o vão contar alto e bom som nos seus países e que não o esqueçam tão cedo.

Outro custo, finalmente, de difícil quantificação, é o custo reputacional que a greve dos pilotos teve para os sindicatos em geral e para a instituição da greve em particular. A greve é um instrumento de defesa dos direitos dos trabalhadores e tem, em princípio, uma motivação solidária de defesa do colectivo de trabalhadores. Mesmo quando reivindica benefícios apenas para um grupo, uma greve beneficia o colectivo, pois é o primeiro passo para que esse benefício se alarge a todos. Não era o caso desta greve, uma greve que defendia de facto a privatização da empresa apesar de não o admitir claramente, decretada em nome da defesa de um privilégio de duvidosa legitimidade, concedido apenas a um grupo profissional. As greves, sabemo-lo, não são muitas vezes populares. A partir desta, sê-lo-ão ainda menos. Daí que o Governo tenha adoptado em relação aos pilotos um discurso crítico mas surpreendentemente suave. A greve dos pilotos da TAP encaixou perfeitamente na narrativa da administração e governamental que refere uma empresa impossível de gerir pelo Estado e que tem de ser privatizada, onde os trabalhadores, indiferentes à situação da empresa, exigem privilégios irrealistas para si. Tivemos uma greve estranha. Tivemos um conflito entre sindicato, administração da empresa e Governo onde todos queriam (e querem) a privatização da empresa e depois do qual é provável que a causa da TAP pública tenha perdido força. Se tudo tivesse sido orquestrado, não teria sido melhor para os defensores da privatização.

Um ensinamento final que pode ser a única coisa boa a retirar desta história é que é importante que os trabalhadores participem nas decisões sindicais. O SPAC decretou legalmente uma greve que ninguém sabe se teve ou não o apoio da maioria dos pilotos, muitos dos quais criticaram duramente o processo interno de decisão. Esperemos que os trabalhadores tenham aprendido que, para garantir a sua representação nos sindicatos, devem participar neles.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, março 11, 2014

Quer transportes públicos? Denuncie o seu vizinho!

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2014
Crónica 10/2014

O Governo encontrou uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres


A campanha usou a técnica do teaser. Primeiro, começaram a aparecer nas estações de Metro e nos autocarros de Lisboa uns cartazes de fundo branco, mostrando apenas um par de lindíssimos olhos azuis femininos esbugalhados, enquadrados por umas belas sobrancelhas arqueadas. Passados uns dias, foram substituídos por outros com a mesma fotografia mas já com dizeres: “Abra os olhos e combata a fraude” e, por baixo, “A falta de validações pode sair-lhe caro” (sic), seguida da lista de castigos que o utente dos transportes públicos (porque é disso que se trata) deve esperar: “menos carreiras, menos comboios, maior tempo de espera, degradação do serviço”. Por baixo, os logos do Metro e Carris.

A campanha tem uma enorme qualidade gráfica e estética e, não fora a incorrecção gramatical, poderia considerar-se tecnicamente excelente. Mas o seu conteúdo é moralmente abjecto e politicamente obsceno.

A campanha, que acontece sobre o pano de fundo da concessão dos transportes públicos a empresas privadas por imposição da troika e da Comissão Europeia, pretende transmitir uma ideia muito simples: se os transportes públicos são maus e serão cada vez piores a culpa não é da inexistência de uma política de transportes públicos justa e sustentável nem é do Governo que subfinancia estas empresas públicas. A culpa também não se deve ao facto de o Governo querer forçar estas empresas a ter um resultado de exploração positivo apesar do serviço social que prestam e de as obrigar por isso a reduzir carreiras e a degradar o serviço. A culpa da má qualidade dos transportes públicos é nossa. Dos cidadãos, dos utentes. E porquê? Porque fazemos fraude ou deixamos que os outros façam.

A tese do Governo é que os maus resultados das empresas de transportes públicos se devem, antes de mais, ao facto de serem públicas (daí que seja imperativo passar a sua gestão para mãos privadas) e, depois, à fraude. A prova que a fraude aumentou? O facto de o número de viagens pagas ter diminuído. Não será porque as pessoas têm menos dinheiro e porque todos os que podem cortam nos passes e nos bilhetes? Não será porque o desemprego aumentou e as pessoas que não precisam imperativamente de se deslocar ficam em casa ou andam a pé? Não. O Governo diz que é a fraude e tem um estudo onde a Carris aparece com números substancialmente mais elevados que os que a própria empresa estima.

A ideia percebe-se bem. A tese da fraude em massa que arrasta as empresas de transportes públicos para o fundo serve a agenda política do governo, que consiste em colocar os cidadãos uns contra os outros, desviar as atenções das malfeitorias do governo e preparar a opinião pública para a concessão dos transportes a privados. Neste quadro, não são apenas as empresas públicas que não funcionam e que têm uma gestão deficiente. São também os utentes das empresas públicas que agem de forma irresponsável - ao contrário dos clientes das empresas privadas, que são cidadãos responsáveis. Para o Governo, há algo de intrinsecamente pecaminoso nas empresas públicas. E esta campanha é para nos convencer a todos disso. É, mais uma vez, dinheiro público gasto a fazer a propaganda ideológica extremista do Governo PSD-CDS.

Uma vez estabelecida que a culpa é dos utentes que cometem fraudes podemos passar ao passo seguinte que é a mensagem explícita da campanha: abra os olhos. Denuncie quem tenta viajar sem bilhete. Não os deixe passar. São eles, os pobres, que nos estão a lixar a vida. Não é o Governo, nem a troika. Aqueles lindos olhos azuis são os olhos do Big Brother, a ver se você denuncia os pobres ou se os deixa passar.

É provável que a fraude nos transportes públicos tenha aumentado, porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro e há cada vez mais pessoas sem dinheiro nenhum. Muitas dessas pessoas deixaram de usar os transportes públicos - cujos passes sociais são demasiado caros - e muitas tentarão talvez viajar sem bilhete. Mas a fraude, se aumenta, é, antes de mais, um indicador da existência de um preço que não é “social” e de um transporte que é cada vez menos “público”. Poucas pessoas gostam de andar a fugir aos fiscais e à polícia ou arriscar-se a pagar uma multa gigantesca se puderem não o fazer. Mas o Governo vê aqui uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres.

2. Sobre a birra de Pedro Passos Coelho no Parlamento, quando Catarina Martins referiu algo tão verdadeiro, tão evidente e tão fácil de provar como a ausência de valor da sua palavra: será que alguém poderia explicar ao primeiro-ministro que, quando ele se apresenta no Parlamento, é ao povo que responde, através dos seus representantes legítimos, e não a esta ou àquela pessoa? E será que alguém pode explicar a mesmíssima coisa à inefável reformada que preside ao Parlamento? E será que alguém pode explicar a ambos que “responsabilidade” significa o dever de responder? Ou será que PPC e Assunção Esteves acham que o Governo apenas é responsável perante a troika? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 15, 2013

Serviços mínimos para os direitos dos trabalhadores

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Outubro de 2013
Crónica 38/2013


Qual é a “necessidade social impreterível” que pode justificar a circulação de 25 por cento dos comboios do Metro?

Os trabalhadores do Metropolitano de Lisboa estão hoje em greve, em protesto contra a privatização das empresas de transportes públicos, contra a extinção dos postos de trabalho e contra a degradação das condições de trabalho na empresa.

Ao contrário do que aconteceu na greve da semana passada, convocada pelas mesmas razões, desta vez o Tribunal Arbitral decidiu exigir aos trabalhadores a realização de serviços mínimos, correspondentes a 25 por cento do serviço de transporte - o que significa uma circulação de comboios com um intervalo médio de 15 a 30 minutos.

A fixação de serviços mínimos é criticada pelos sindicatos, que denunciaram que a empresa, para cumprir esses 25 por cento do serviço de transporte, estava a convocar a totalidade dos trabalhadores, pondo assim em causa o seu direito à greve, mas a questão de fundo é a própria existência de serviços mínimos que, neste contexto, parece manifestamente abusiva.

Na realidade, a filosofia dos “serviços mínimos” plasmada na Constituição tem vindo a ser desvirtuada pela lei, pelos colégios arbitrais e pela prática dos tribunais, que fazem uma leitura claramente ideológica e maximalista desta figura, decidindo de forma sistemática contra os trabalhadores e pondo em causa de facto o direito constitucional à greve (veja-se o caso da recente greve dos professores).
A Constituição determina que, durante as greves, devem ser garantidos os “serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações” e os “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”. Percebe-se bem que, no caso de uma greve numa fábrica, seja necessário garantir o funcionamento em segurança de um alto-forno, para evitar um grave prejuízo ou uma catástrofe. Como se percebe que, no caso de uma greve na saúde, se garantam os serviços de urgência dos hospitais e os tratamentos indispensáveis de doentes crónicos ou internados. Como se percebe ainda que, no caso de uma greve geral de transportes num dia de eleições, seja indispensável garantir essa “necessidade social impreterível” que é o acesso às secções de voto, decretando serviços mínimos ou mesmo uma requisição civil que o possam garantir.

Mas não se percebe de todo qual é a “necessidade social impreterível” que pode justificar a manutenção de 25 por cento dos comboios do Metro. Na realidade, por importante que sejam os transportes, é abusivo considerar que o transporte por uma dada empresa em certos trajectos constitui uma “necessidade social impreterível” que justifique a definição de serviços mínimos. Seria assim, por hipótese, se estivessem em causa todos os transportes (incluindo os particulares), o que poria em causa o direito de circulação das pessoas ou o seu direito ao trabalho, mas é evidente que a greve de uma empresa não preenche as condições. Mesmo que o uso do Metro, num caso particular, corresponda a uma “necessidade social impreterível”, é impossível garantir que essa necessidade vai ser satisfeita pelos 25 por cento, a menos que se realizem inquéritos à entrada a cada um dos passageiros. O entendimento do Tribunal Arbitral é assim, mais uma vez, um entendimento enviesado, ideológico, de classe, anti-laboral e pró-Governo.

A questão é que a definição de serviços mínimos não pode justificar-se pelo incómodo que uma greve pode causar, por grande que ele seja. Essa justificação não possui a mínima cobertura constitucional e, caso a tivesse, isso seria uma proibição da greve. As greves são feitas para causar incómodo, pois essa é a forma de chamar a atenção para uma dada causa política e de pressionar em favor ou contra certas medidas.

A definição dos serviços mínimos decretados pelo Metro de Lisboa só se entende no seio de uma guerra de classe, onde se pretende reconquistar palmo a palmo os direitos conquistados pelos trabalhadores nas últimas décadas, dificultar o exercício da greve, reduzir o seu impacto para apresentar a greve como um fracasso da luta laboral e, acima de tudo, virar os trabalhadores uns contra os outros.

De facto, se o Metro estivesse hoje fechado - como na semana passada -, os viajantes tê-lo-iam sabido antecipadamente e teriam de encontrar alternativas. Estando abertas as estações, é natural que muitos milhares tentem usar o Metro para sua imensa frustração (longas esperas, atrasos, apertos, irritação, desconforto, conflitos) e que isso se volte contra os trabalhadores grevistas e contra o direito à greve.

É significativo que eu, ontem, tenha ouvido na estação Baixa-Chiado uma funcionária do Metro, numa bilheteira, responder à pergunta “Há greve amanhã?” com a resposta “Amanhã há comboios!”, não sei se seguindo directivas das chefias, mas fornecendo uma informação enganosa que não pode ter outro efeito que não exasperar quem hoje tentou usar o Metro.

Assim, o que a definição destes serviços mínimos faz, na prática, é pôr em causa algumas (essas sim) “necessidades sociais impreteríveis”: o direito dos trabalhadores a defender as suas condições de trabalho, os seus empregos e as suas empresas e a recorrer à greve; o direito dos cidadãos a defender as empresas públicas, os transportes públicos e as funções sociais do Estado. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 21, 2012

Esta cidade não é para peões

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Fevereiro de 2012
Crónica 8/2012



Uma condição essencial para ser presidente da Câmara deveria ser andar só a pé durante a campanha eleitoral

Gosto de andar a pé. Pequenas passeatas ou grandes caminhadas, na cidade ou no campo, trajectos de todos os dias ou deambulações de fim de semana. O meu andar a pé não é trekking nem hiking. É só andar a pé. Às vezes mais depressa, às vezes lentamente, às vezes parado. O meu andar a pé também não é de maratonas. Posso fazer cinco ou oito ou dez quilómetros por dia (ao fim de semana). Raramente mais. Gosto de fazer a pé os trajectos que faço em transportes públicos. Saber a que se parece a superfície por baixo da qual anda o metro. Como são as lojas desta avenida onde o autocarro salta de paragem em paragem. Qual é a distância, em passos, que vai desta estação de metro àquele jardim. Do jardim ao café. Saber se há alguma drogaria naquele bairro. Se a retrosaria ainda existe. Durante a semana os meus passeios raramente saem de Lisboa, o que não quer dizer que sejam todos urbanos. Ou sequer suburbanos. São frequentemente todo-o-terreno, um percurso de combatente, quase um parcours de parkour. E onde menos se espera. Não é preciso andar à superfície da linha vermelha do metro (que vai para a Estação Oriente, no Parque das Nações) para entrarmos num cenário pós-apocalíptico.


Estão a ver Entrecampos? Na fronteira entre a Avenida da República e o Campo Grande? Uma zona nobre e central da cidade. Há uma avenida que sai directa de Entrecampos em direcção a Sete Rios, onde está o Jardim Zoológico. Pouco mais de dois quilómetros, sempre em frente, entre dois jardins. O caminho? Praticamente intransitável. Intransitável para peões, entenda-se. É uma terra de ninguém, que exige atravessar vias rápidas sem passadeiras, caminhar ao longo de passeios inexistentes, aguentar os carros que passam a cem à hora a um metro de distância. Se digo a algum lisboeta que fiz esse trajecto a pé dizem-me “Ah, mas isso não é para andar a pé...” “Por que não?” “Porque não foi feito para isso”, dizem-me. “Por que não?” “Porque foi feito para carros.” É verdade. Toda a cidade foi feita para carros. Com raras excepções, a cidade que fizemos nos últimos cinquenta anos foi feita para carros. Às vezes, há uma pequena mancha pensada para pessoas. Mas para lá chegar é preciso ir de carro. Ou, no melhor dos casos, de metro. A pé? Não, não foi pensado para isso.


Tente ir a pé da Avenida do Rio de Janeiro a Benfica. Dois bairros residenciais. Aqui já estamos no nível dos sete quilómetros. O caminho mais directo passa pela Avenida Lusíada, mas não se deixem enganar por este “Avenida”. É preciso atravessar uma terra de ninguém, atravessar vias rápidas sem passadeiras, saltar uns separadores, conviver com o lixo e a desolação. Sempre sem sair do “tecido urbano”. Mas não se pense que se trata de um via reservada a automóveis, como a Segunda Circular ou algo semelhante. Estamos na cidade. Há prédios pelo caminho, sítios onde vivem e trabalham pessoas mas onde toda a gente chega de carro. Há outros trajectos possíveis? Há, muito mais compridos, que desincentivam o andar a pé. Os caminhos directos, as “avenidas”, são para os carros. Lisboa está cortada de vias rápidas que às vezes se chamam “avenidas” mas que dividem a cidade em bantustões, sítios de onde só se pode sair de casa de carro, onde as crianças não podem brincar com o amigo que mora do outro lado da rua porque o outro lado da rua ou fica a dez minutos de carro ou exige arriscar a vida num atravessamento pedonal. Temos vias rápidas a cruzar as principais praças da cidade, o Areeiro, o Marquês de Pombal, Sete Rios, a Praça de Espanha, o Campo Grande e a Avenida da República transformadas em auto-estradas. Mas cada via rápida corta a cidade em duas zonas quase incomunicáveis.



Duas vias rápidas e temos quatro bantustões. Com três já podemos ter sete colonatos independentes. E isto no centro da cidade. Como é que os decisores da autarquia - das autarquias - não percebem isso? Andam de carro. Já tive discussões com “especialistas de mobilidade” lisboetas que não sabem que na Fontes Pereira de Melo, no coração da “cidade moderna”, há um pedaço sem passeio, roubado quando da construção do Imaviz, onde uma pessoa de cadeira de rodas tem forçosamente de ir para a estrada. Nunca andaram ali a pé.
Uma condição essencial para ser presidente da Câmara de uma qualquer cidade deveria ser andar só a pé durante a campanha eleitoral. Ou a pé e de bicicleta. Visto que conhecer as necessidades do trânsito automóvel já eles conhecem. Não uma tarde, a convite de uma associação de cidadãos com deficiências, com as TV à volta e todos os trajectos estudados previamente pelos assessores. Toda a campanha. Uma cidade não é assim tão grande.
Tornar as cidades amigáveis para os carros parece ser o principal objectivo dos autarcas. Cidades como no filme Cars, onde os protagonistas são carros, os amigalhaços são camiões e as raparigas giras são carros sport. É claro que os eleitores que estão dentro do carro agradecem e os que estão fora dos carros são cidadãos de segunda, mas a falta desta vivência da cidade, a pé, torna os contactos entre as pessoas mais raros, mais distantes. E a relação couraçada que os automobilistas têm entre si dificilmente se pode considerar uma relação de vizinhança. É, como gostam os neoliberais, uma relação de constante competição.


É de vias rápidas que se faz a dissolução da sociedade, da cidade, das vizinhanças, dos bairros, das relações, da solidariedade, das pessoas. Um dia vamos perceber que conseguimos chegar muito depressa a todos os sítios onde não queremos ir. Metidos em cápsulas herméticas de transporte, navegando entre o sofá da televisão e o cubículo do trabalho, com auscultadores nos ouvidos para ouvir música ou escolher a gravação da voz sintética do call center, que nos indica o melhor caminho para a solidão. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 31, 2006

Basta chover

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Outubro de 2006
Crónica 38/2006

Os mais compassivos passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro.

Quando chove, a rua é um lago. Não é um lago, é um rio. O lago é ao fundo da rua, no cruzamento. É preciso dar uma volta pela rua de cima, ou entrar na água resolutamente quase até ao joelho. Quem tem botas altas de borracha às vezes consegue passar, se não fizer ondas, devagar, e se conseguir não sair de cima do passeio submerso. Mas se vier a passar um autocarro nesse momento...

A rua de cima não está inundada, mas como é inclinada a água escorre rápida pelo passeio num manto que chega às meias e aos pés. Ao menos a água do passeio parece limpa. Na valeta corre um rio acastanhado. Apesar da água e dos carros há quem prefira ir pelo meio da faixa de rodagem, onde a água já empurra pedras, folhas e cascalho. É menos escorregadia que o passeio de pedras polidas.

A paragem de autocarro tem um telhado pequeno que serve para fazer sombra nos dias de sol, mas nos dias de chuva é inútil. É difícil dizer se se está mais protegido da chuva debaixo do abrigo ou cá fora. Lá dentro há os pingos grossos que escorrem dos guarda-chuvas, os casacos molhados dos outros, a chuva que entra numa cortina por entre os vidros e, quando nos distraímos, o algeroz do abrigo, que despeja água como um garrafão. Cá fora há umas árvores que deixam passar a chuva mas pelo menos não têm goteiras. O problema são os carros que passam. Há os que passam depressa, atirando uma toalha de água suja e pesada que chega à altura da cintura, e os mais compassivos, que passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro. Não há alternativa. Não se pode pedir aos carros que andem a passo de enterro só para não molhar os peões. Há quem desça o guarda-chuva para os pés quando passa um carro, mas acontece como à proverbial manta: quando tapa os pés descobre a cabeça.
O mais difícil são as crianças. É difícil ter uma criança ao colo num dia de chuva? E uma ao colo e outra pela mão? Com as mochilas? E um guarda-chuva na mão? Na paragem do autocarro? Com os carros que passam a regar os pés e o ocasional fio de água a entrar pelo pescoço? E ao fim do dia, quando a criança ao colo dorme, a outra se arrasta, e às mochilas se soma o saco das compras? A grande dúvida nestes casos é o que se deve fazer com o guarda-chuva.

Dentro do autocarro o ar está pesado de humidade e os assentos são escassos. Os guarda-chuvas molhados escorrem para dentro dos sapatos, os sacos molhados têm de ficar em cima dos joelhos, as crianças empilham-se sobre as mochilas e as lancheiras. Um casaco de malha cai no chão enlameado. Tem de ir para lavar, com este tempo. O ar desolado e cansado de todos faz lembrar as fotos de refugiados. Até o ar de resignação de alguns. Aqui, pelo menos, não chove. As crianças desenham nas janelas embaciadas.
Lá fora as sarjetas fazem o contrário do que deviam fazer: lançam água aos borbotões para a rua. Os carros passam pelo autocarro mas já não atiram água para os pés dos que lá estão. Quem está sentado à janela do autocarro pode ver o interior dos carros, lá em baixo. O interior dos carros parece seco e arrumado.

O sonho de todos os que estão no autocarro é um carro. Um carro onde as crianças possam ir no banco de trás, as mochilas amontoadas no banco da frente, os guarda-chuvas molhados no chão, ao lado dos sacos das compras. Um carro onde passem horas no trânsito, ao abrigo da chuva, atrás dos limpa pára-brisas, e onde os únicos momentos difíceis seja a trasfega das crianças da escola para o carro e do carro para casa. É verdade que não dá para sair de casa mais tarde, mas é outro conforto. Assim basta chover para que o dia se transforme num inferno. O cansaço e as crianças e as mochilas ficam mais pesados com a chuva. Vamos lá ver se não entrou água em casa. Só faltava acabar o dia de esfregona em punho. Ontem diziam na televisão que se deve andar de transportes públicos. Devia ser um desses que vai ali num carro.

terça-feira, abril 13, 2004

Buc 2

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2004
Crónica 14/2004


Podia ser "combinado", porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma para não haver módulos combinados.


Quem anda de autocarro em Lisboa e não tem passe mensal tem a possibilidade de adquirir bilhetes pré-comprados da Carris nos quiosques da empresa. Os pré-comprados dão pelo nome comum de "módulos", saem a metade do preço de um bilhete comprado a bordo dos autocarros e cada um deles dá direito a duas viagens, devendo um dos extremos ser obliterado quando se entra a bordo do autocarro (ou os dois extremos, caso o trajecto a fazer inclua um percurso urbano e um percurso suburbano).

Nada disto teria mistério não fosse a sigla que aparece no meio do dito bilhete: Buc 2.

Em momentos de viagem urbana sem livro nem jornal próprio ou alheio para me entreter (ou espaço para os abrir), dei por mim a ler cuidadosamente as duas faces do bilhete sem conseguir descodificar a sigla e o passatempo foi ganhando alguma capacidade de entretenimento (dizer que se transformou num desafio intelectual seria excessivo).

O "B" não tem mistério, é certamente "bilhete" — até porque o objecto dá pelo nome comum de "módulo" e todos sabemos a aversão que as empresas têm a usar os nomes comuns das coisas. Chegados ao "u" as coisas tornavam-se mais complicadas: "urbano"? Uma colega a quem propus a charada, mais conhecedora da perversidade do mundo, garantiu que "u" devia ser "unimodal" mas não foi capaz de fazer nenhum proposta para o "c".
O "u" também podia ser "unidade" ou "unitário", até porque vinha seguido do algarismo 2 e "unidade 2" é algo que parece poder ser fruto do espírito criativo da Carris, mas leva-nos a um choque frontal com o "c": "bilhete unitário c..."?
O "c" não podia ser de Carris porque vinha em minúscula. Alguém disse que o "c" queria com certeza dizer "combinado" porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma (a não ser a lógica, que constitui um fraco argumento) para não haver módulos combinados mas, se todas estas propostas podiam conter uma peça do "puzzle", faltava-lhes coerência global.
Os três parágrafos do verso do módulo não ajudavam. Repetiam tautologicamente que uma viagem urbana "corresponde a uma validação (1 BUC)" mas falavam às tantas em "Coroa urbana" o que poderia ser uma pista. Buc seria uma sigla em inglês? Algo como "B... Urban Crown"?
Não quis dar-me por vencido e perguntar aos motoristas dos autocarros, telefonar para a Carris ou consultar o seu site. Além de que me tinha afeiçoado ao mistério. Às vezes imaginava que a sigla não queria dizer absolutamente nada e tinha sido subrepticiamente incluída nos módulos como uma mensagem em código sobre o absurdo da vida, um hino ao devaneio, um apelo subliminar à Revolução capaz de fazer corar de prazer o Bloco de Esquerda. E a convicção reforçou-se quando não consegui encontrar nenhum condutor da Carris que fizesse a mínima ideia do que aquilo queria dizer. O Buc tinha-se transformado num mistério e é sabido como as nossas vidas precisam de mistério, principalmente quando estamos dentro de um autocarro.

Deixei de tentar saber o que queria dizer o Buc até que há uns dias, ao perguntar mais uma vez a um grupo de amigos o que achavam que queria dizer a sigla — imaginando que os ia fascinar com o mistério — recebi a resposta mortal: "Bilhete único de coroa. Fui ver à Internet". Era batota, mas o mal estava feito. Aquilo que tinha parecido uma cúmplice e irónica piscadela de olho, era afinal uma designação estúpida e inútil, criada por uma dúzia de burocratas sem imaginação.

terça-feira, abril 17, 2001

Mais leis para a estrada

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 17 de Abril de 2001
Crónica x/2001


Algumas horas antes do início das mini-férias da Páscoa, onde se esperava a habitual carnificina rodoviária, o Governo veio apresentar um novo pacote de medidas de combate aos acidentes.
A razoabilidade das medidas propostas não está em causa. O que suscita alguma surpresa é o facto de o Governo e a Administração Pública continuarem a falar da sinistralidade como se se tratasse de algo que a simples produção de legislação pudesse controlar.
Ao ouvir os discursos sobre o tema, ficamos com a convicção de que se foram experimentando sucessivas políticas que tudo levava a crer que seriam eficazes, que elas foram falhando sucessivamente para nossa enorme surpresa e que somos obrigados a puxar pela imaginação, tentando abordagens legislativas originais, para ver se se acerta com a solução, que continua a fazer-se esquiva.
A falácia deste raciocínio é que, na realidade, as soluções não foram experimentadas. Tudo aquilo que compõe o Código da Estrada, com excepção da circulação pela direita, é ignorado pela generalidade dos automobilistas, com alegria e impunidade, e vai continuar a sê-lo.
Os automobilistas portugueses não vêem o Código da Estrada como um instrumento social que visa garantir a fluidez e a segurança do tráfego, mas como uma ferramenta legal para decidir quem paga quando se bate. O problema é que às vezes não se bate apenas mas também se mata.
A verdade é que as leis que regulam a circulação não são aplicadas, a não ser em períodos excepcionais de zelo como as tontas operações de "tolerância zero" — que não são senão caricaturas de medidas razoáveis. Não é uma multa por se exceder o limite de velocidade em 10 quilómetros à hora que leva um automobilista a sentir a necessidade de cumprir a lei. Pelo contrário.
Todos sabemos a razão da esmagadora maioria dos acidentes na estrada: excesso de velocidade, ultrapassagens irregulares, etc. É evidente que seria possível identificar os prevaricadores perigosos e aplicar a lei de forma dissuasora (já experimentaram colocar-se na faixa da esquerda de uma auto-estrada a 120 quilómetros à hora? Subir a Av. da República de Lisboa a 100 à hora e ver se conseguem ultrapassar alguém? Contar quantos carros passam com vermelho na Av. da Liberdade?), mas é claro que o Governo não o pretende fazer. E não o quer fazer porque sabe que isso seria visto como um ataque por aquela faixa do seu eleitorado para quem o carro é parte integrante da imagem do seu corpo — a imagem mais correcta é a de um implante peniano, o que também é válido para as mulheres.
A aplicação da lei não basta. A existência de transportes públicos que sejam uma alternativa possível e agradável ao transporte privado é essencial. Mas sem a vontade de afrontar aqueles que acham que têm um direito divino a ultrapassar pela direita, os mortos e os feridos vão continuar.