A notícia já tens uns dias, mas vale a pena comentar.
Gostava de saber se os associados da Confederação do Turismo de Portugal mandataram mesmo o seu presidente Francisco Calheiros para vir defender em público um Governo de direita. Um bocadinho de decência e de seriedade institucional ficava tão bem.
("Confederação do Turismo defende "diálogo" entre coligação e PS" - http://www.noticiasaominuto.com/politica/463322/confederacao-do-turismo-defende-dialogo-entre-coligacao-e-ps)
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domingo, outubro 25, 2015
quinta-feira, outubro 22, 2015
A cavacada
Comentário publicado no Público online a 22 Outubro 2015 - 21h32
Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.
A indigitação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro pelo Presidente da República é juridicamente sustentável e politicamente legítima e não constitui uma surpresa.
Se a declaração do Presidente da República se ficasse por aqui, não haveria muito mais a dizer, apesar da “perda de tempo” que essa decisão representaria.
Só que Cavaco Silva entendeu, tristemente, mais uma vez, falar como Cavaco, em vez de como Presidente da República, ser ainda mais Cavaco do que nos tem habituado até aqui e acrescentou algumas barbaridades que não só estão longe do respeito pela tradição política democrática que Cavaco tanto diz respeitar, como estão longe do papel de árbitro do sistema político que compete ao Presidente da República e constituem uma verdadeira descarga de petróleo na fogueira da disputa partidária que vivemos. Cavaco, mais uma vez, mostrou que gosta de falar de estabilidade política e de sensatez, mas que não consegue promover a primeira, nem sabe usar a segunda.
Cavaco foi, de facto, muito mais longe do que a indigitação de Pedro Passos Coelho e não só fez um discurso inflamado em favor do “arco da governação”, que lamentou amargamente não ter podido dar origem a um acordo governativo a três (PS-PSD-CDS), como se enfureceu com o PS por não ter chegado a acordo com o PSD e o CDS – algo incompreensível, já que os seus programas “não se mostram incompatíveis, sendo, pelo contrário, praticamente convergentes quanto aos objectivos estratégicos de Portugal” –, como se lançou numa diatribe contra os partidos que, no seu entender, não devem sequer fazer parte deste clube restrito dos autorizados a governar.
É verdade que Cavaco disse que, agora, a palavra era do Parlamento, mas antes disso fez questão de sublinhar de uma forma pouco ambígua que só por cima do seu cadáver é que os partidos de esquerda teriam o gosto de ver em S. Bento um governo da sua preferência (“Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da união bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da união económica e monetária e a saída de Portugal do euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador”). O que Cavaco disse equivaleu a lançar na clandestinidade (e certamente fora do governo) o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista e a forma como espumou na fase final da sua comunicação deixou-me convencido de que, se pudesse, tê-lo-ia feito. Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.
Cavaco considerou mesmo que a solução de governo à esquerda que lhe foi apresentada – e que não tinha sequer necessidade de qualificar nesta fase – era “uma alternativa claramente inconsistente”, o que deixa no ar a possibilidade de o Presidente não a aceitar nem sequer como uma segunda escolha. Estando Cavaco condenado a ser Cavaco, certamente por pecados graves cometidos noutra vida, é evidente que esta ameaça constitui uma deselegante (e antidemocrática e inconstitucional) forma de pressão sobre o Parlamento, para forçar a mão a alguns deputados do PS e convencê-los a aprovar o programa PSD-CDS.
Num lamentável desnorte, Cavaco foi mesmo ao ponto de incentivar os deputados do PS a votar contra o seu compromisso eleitoral, sublinhando que a decisão não é da Assembleia da República, mas de cada um dos seus deputados (“A última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos deputados à Assembleia da República.” “É aos deputados que cabe apreciar o programa do governo…” “É aos deputados que compete decidir, em consciência e tendo em conta os superiores interesses de Portugal, se o governo deve ou não assumir em plenitude as funções que lhe cabem.”) De facto, o órgão de soberania chama-se “Assembleia da República” e não “deputados”.
O que se segue? Cavaco quis sugerir que irá até onde for preciso para manter o BE e o PCP fora do poder (“É meu dever tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do país”).
Pode esta loucura antidemocrática de Cavaco levá-lo a manter um governo de gestão PSD-CDS no poder até que outro Presidente possa dissolver a Assembleia da República? A resposta sensata é não. Seria péssimo para o país, impedido de tomar decisões que urgem, seria péssimo para a nossa credibilidade externa, péssimo para a situação política, que viveria uma crispação inédita, péssimo para cada um dos portugueses. Mas Cavaco habituou-nos a tudo. Sabemos que o país e os portugueses contam pouco ao lado dos seus ódios figadais.
Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.
A indigitação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro pelo Presidente da República é juridicamente sustentável e politicamente legítima e não constitui uma surpresa.
Se a declaração do Presidente da República se ficasse por aqui, não haveria muito mais a dizer, apesar da “perda de tempo” que essa decisão representaria.
Só que Cavaco Silva entendeu, tristemente, mais uma vez, falar como Cavaco, em vez de como Presidente da República, ser ainda mais Cavaco do que nos tem habituado até aqui e acrescentou algumas barbaridades que não só estão longe do respeito pela tradição política democrática que Cavaco tanto diz respeitar, como estão longe do papel de árbitro do sistema político que compete ao Presidente da República e constituem uma verdadeira descarga de petróleo na fogueira da disputa partidária que vivemos. Cavaco, mais uma vez, mostrou que gosta de falar de estabilidade política e de sensatez, mas que não consegue promover a primeira, nem sabe usar a segunda.
Cavaco foi, de facto, muito mais longe do que a indigitação de Pedro Passos Coelho e não só fez um discurso inflamado em favor do “arco da governação”, que lamentou amargamente não ter podido dar origem a um acordo governativo a três (PS-PSD-CDS), como se enfureceu com o PS por não ter chegado a acordo com o PSD e o CDS – algo incompreensível, já que os seus programas “não se mostram incompatíveis, sendo, pelo contrário, praticamente convergentes quanto aos objectivos estratégicos de Portugal” –, como se lançou numa diatribe contra os partidos que, no seu entender, não devem sequer fazer parte deste clube restrito dos autorizados a governar.
É verdade que Cavaco disse que, agora, a palavra era do Parlamento, mas antes disso fez questão de sublinhar de uma forma pouco ambígua que só por cima do seu cadáver é que os partidos de esquerda teriam o gosto de ver em S. Bento um governo da sua preferência (“Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da união bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da união económica e monetária e a saída de Portugal do euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador”). O que Cavaco disse equivaleu a lançar na clandestinidade (e certamente fora do governo) o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista e a forma como espumou na fase final da sua comunicação deixou-me convencido de que, se pudesse, tê-lo-ia feito. Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.
Cavaco considerou mesmo que a solução de governo à esquerda que lhe foi apresentada – e que não tinha sequer necessidade de qualificar nesta fase – era “uma alternativa claramente inconsistente”, o que deixa no ar a possibilidade de o Presidente não a aceitar nem sequer como uma segunda escolha. Estando Cavaco condenado a ser Cavaco, certamente por pecados graves cometidos noutra vida, é evidente que esta ameaça constitui uma deselegante (e antidemocrática e inconstitucional) forma de pressão sobre o Parlamento, para forçar a mão a alguns deputados do PS e convencê-los a aprovar o programa PSD-CDS.
Num lamentável desnorte, Cavaco foi mesmo ao ponto de incentivar os deputados do PS a votar contra o seu compromisso eleitoral, sublinhando que a decisão não é da Assembleia da República, mas de cada um dos seus deputados (“A última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos deputados à Assembleia da República.” “É aos deputados que cabe apreciar o programa do governo…” “É aos deputados que compete decidir, em consciência e tendo em conta os superiores interesses de Portugal, se o governo deve ou não assumir em plenitude as funções que lhe cabem.”) De facto, o órgão de soberania chama-se “Assembleia da República” e não “deputados”.
O que se segue? Cavaco quis sugerir que irá até onde for preciso para manter o BE e o PCP fora do poder (“É meu dever tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do país”).
Pode esta loucura antidemocrática de Cavaco levá-lo a manter um governo de gestão PSD-CDS no poder até que outro Presidente possa dissolver a Assembleia da República? A resposta sensata é não. Seria péssimo para o país, impedido de tomar decisões que urgem, seria péssimo para a nossa credibilidade externa, péssimo para a situação política, que viveria uma crispação inédita, péssimo para cada um dos portugueses. Mas Cavaco habituou-nos a tudo. Sabemos que o país e os portugueses contam pouco ao lado dos seus ódios figadais.
sábado, outubro 03, 2015
Nove razões por que será bom ter um governo de esquerda
3 Outubro 2015
Como será bom ter enfim uma governação e uma acção política que não seja apenas obediência.
José Vítor Malheiros
A primeira razão é mesmo aquela que o PSD e o CDS já adivinharam e vieram denunciar nos debates televisivos em tom inflamado, como se fosse razão para uma pessoa honesta ter vergonha. A primeira razão por que será bom ter um governo de esquerda é mesmo (confesso, confesso) não ter de continuar a ver e ouvir Pedro Passos Coelho nove vezes em cada noticário, primeiro como primeiro-ministro, depois como presidente do PSD, depois como candidato às eleições, depois como representante de Portugal (vá-se lá saber porquê) num Conselho Europeu, depois como conferencista numa conferência, depois como entrante numa feira agrícola, depois como sainte de uma audiência com Cavaco, depois como visitante daquilo e comentador da outra coisa. Isso, só por si, é um alívio. Não é que seja pessoal, que não é. Não é só porque os seus lábios eternamente crispados e a escassez do seu léxico me arrepelam a vesícula. Não é só porque a sua cerviz curvada e as suas mãos postas frente a Angela Merkel me encanzinam. É mais político. Mas pôr fim à sua ubiquidade será uma benção.
A segunda, mais séria, é porque poderemos ter um governo que, para equilibrar as contas, vai recorrer a outras medidas que não sejam rapar os rendimentos do trabalho, confiscar subsídios, aumentar o IRS, criar prestações extraordinárias sobre os salários, cortar pensões, reduzir prestações sociais, cortar serviços públicos, vender empresas públicas estratégicas fundamentais para a economia e vai (espero) encontrar meios de aumentar a receita fiscal olhando também para o património e para os rendimentos do capital e, principalmente, reduzindo a “fuga legal” aos impostos das grandes empresas e das grandes fortunas. Poderemos ter um governo que não acha que os trabalhadores são mimados, que os desempregados são preguiçosos, que os beneficiários de subsídios são parasitas, que os emigrantes são piegas. Poderemos ter um governo que olha para nós não como contribuintes mas como pessoas e cidadãos.
A terceira razão é porque o novo governo vai (espero) defender os interesses nacionais em Bruxelas e noutros fóruns internacionais, o que é uma novidade bem-vinda (quase que nos esquecemos como é que é, mas é possível) e discutir com os parceiros da União Europeia como se fossem parceiros em vez de sermos empregados deles apanhados em falta.
A quarta razão é porque o novo governo vai tentar fazer crescer a economia, o investimento, o emprego e o rendimento disponível dos portugueses, apostando na educação, que garante o reforço das competências; na investigação, que produz o conhecimento que é a matéria-prima mais importante que há; na inovação, que transforma o conhecimento em riqueza; na sustentabilidade social e ambiental, que garante que as próximas gerações não encontrarão um país delapidado e que criará novos mercados; no financiamento das PME, que representam a maioria da economia nacional.
A quinta razão é porque acabou o ilegal, ilegítimo, inconstitucional, imoral e estúpido cordão sanitário que impedia que os partidos à esquerda do PS se aproximassem do poder (veja-se como Cavaco reage à ideia de PCP e BE possam apoiar o futuro governo!) e que desperdiçava assim uma imensa quantidade de ideias e de capacidade de intervenção e afastava milhões da política ao certificá-la como um jogo viciado à partida, onde só a direita e a esquerda light podiam actuar.
A sexta razão é porque vamos enfim ter bancadas parlamentares que apoiarão o governo mas que não serão apenas a voz do dono, exemplos vergonhosos de submissão, de obediência e de subserviência mas que farão o seu dever como representantes do povo, apoiando quando necessário mas também discutindo e propondo alterações.
A sétima razão é porque teremos um governo que não confunde o Estado Social com a sopa dos pobres - como a pobre, pobre Isabel Jonet - e que sabe que o Estado Social é de todos para todos porque só assim se garante a justiça e a equidade e só assim se garante a qualidade e a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública, da Segurança Social, dos programas sociais.
A oitava razão é porque vamos ter um governo que sabe o que é a Cultura e que não a confunde com a decoração de interiores, que sabe que a cultura é um factor de progresso social e individual, de bem-estar social e individual, algo essencial para a vida intelectual de cada um de nós e, por isso, para a nossa vida em sociedade, para o estímulo do conhecimento, da criatividade, do prazer da fruição, do sentido crítico e do sentido de humor sem os quais não se consegue inventar uma sociedade onde seja bom viver.
A nona razão é porque poderemos ter enfim uma governação e uma acção política que não é apenas obediência (à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu, ao FMI, ao Eurogrupo, à Alemanha, aos mercados, à Goldman Sachs, aos tratados existentes e a existir, aos poderes estrangeiros em geral) mas que pode ser invenção, imaginação, participação, debate e criação. A nossa invenção. Como numa democracia!
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, maio 26, 2015
Maioria qualificada e o risco do centrão eterno
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Maio de 2015
Crónica 20/2015
No limite, um governo pode ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior.
A proposta do PS de tornar obrigatória a aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, dos programas plurianuais de investimento em obras públicas parece nascer de uma preocupação genuinamente democrática.
De facto, apesar de o Parlamento (e, por consequência, o governo) ser eleito por um período de quatro anos, acontece que é possível a um governo, ainda que não disponha sequer de maioria absoluta, assumir compromissos de longo prazo em nome do Estado que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que foram eleitos e condicionem a liberdade de acção dos governos subsequentes. Não só esses governos seguintes são obrigados a respeitar compromissos financeiros ou outros assumidos por governos anteriores, como esses compromissos absorvem recursos que o governo em funções não pode usar para executar os programas próprios. No limite, um governo pode assim ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir o seu, defraudando deste modo as legítimas aspirações do povo soberano e invertendo a própria lógica da escolha democrática. Coloca-se assim um problema que se poderia classificar como de “abuso de confiança” e “abuso de poder”, já que cada governo é eleito para governar apenas quatro anos e não esses e mais uns quantos depois desses.
Isto não é uma excepção: é a regra. Todos os governos assumem nos seus actos de gestão compromissos plurianuais que obrigam governos subsequentes. Só que, como este jogo tem vencedores alternados, há usualmente entre eles uma aceitação tácita deste abuso territorial, que às vezes beneficia uns e outras vezes outros.
Isto não acontece apenas nos grandes investimentos. A produção legislativa é igualmente plurianual, feita sem limite temporal. Só que existe uma enorme diferença entre uma lei e um contrato: é fácil mudar a lei, mas é quase impossível alterar o contrato que ela permitiu. A lei protege o contrato, ainda que não se proteja a si própria. Mesmo que seja alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece válido na generalidade dos casos.
Esta superprotecção que a lei confere aos contratos (e acordos, e tratados) tem boas razões para existir, pois tem como objectivo proteger a confiança sem a qual a vida em sociedade seria problemática, mas cria na realidade bolsas de protecção jurídica que permitem que certos actos iníquos escapem, durante longos períodos de tempo, ao escrutínio da política. Veja-se o que acontece aos tratados da União Europeia, assinados por governos em nome dos Estados-membros da UE sem discussão interna e sem um processo democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos.
Percebe-se bem a preocupação do PS. Como se percebe bem quando se pensa nas parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto por governos do PS como do PSD), e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas amigas que deles beneficiaram. Ou dos contratos swap, com os mesmos resultados e uma protecção jurídica semelhante.
Porém, se a preocupação do PS parece legítima, há outras considerações que se devem fazer: porquê obrigar a uma aprovação por maioria qualificada apenas as obras públicas? Por que não também as medidas no âmbito da Justiça e das privatizações, como propôs Álvaro Beleza? Ou as políticas de Educação? Ou todas?
É evidente que há matérias em relação às quais deveria ser necessário um consenso alargado (para além da Constituição, que representa esse papel por excelência). Não apenas o consenso dos suspeitos do costume, mas um consenso tão alargado quanto possível — e é também para isso que o Parlamento deveria servir. Não é legítimo que um governo, apenas porque goza de uma maioria provisória, assine um contrato ruinoso que obrigue o Estado durante 40 anos. Mas obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas pode ter como consequência a paralisia de um governo ou, o que seria ainda pior, a criação de um centrão eterno, em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objecto de contrapartidas mútuas entre os maiores partidos, porque os colocaria a ambos nas mãos um do outro. A política precisa de consensos, mas precisa iguamente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção, porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a democracia.
As outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência, discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes, do ponto de vista do aprofundamento da democracia, do que esta maioria qualificada.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 26 de Maio de 2015
Crónica 20/2015
No limite, um governo pode ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior.
A proposta do PS de tornar obrigatória a aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, dos programas plurianuais de investimento em obras públicas parece nascer de uma preocupação genuinamente democrática.
De facto, apesar de o Parlamento (e, por consequência, o governo) ser eleito por um período de quatro anos, acontece que é possível a um governo, ainda que não disponha sequer de maioria absoluta, assumir compromissos de longo prazo em nome do Estado que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que foram eleitos e condicionem a liberdade de acção dos governos subsequentes. Não só esses governos seguintes são obrigados a respeitar compromissos financeiros ou outros assumidos por governos anteriores, como esses compromissos absorvem recursos que o governo em funções não pode usar para executar os programas próprios. No limite, um governo pode assim ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir o seu, defraudando deste modo as legítimas aspirações do povo soberano e invertendo a própria lógica da escolha democrática. Coloca-se assim um problema que se poderia classificar como de “abuso de confiança” e “abuso de poder”, já que cada governo é eleito para governar apenas quatro anos e não esses e mais uns quantos depois desses.
Isto não é uma excepção: é a regra. Todos os governos assumem nos seus actos de gestão compromissos plurianuais que obrigam governos subsequentes. Só que, como este jogo tem vencedores alternados, há usualmente entre eles uma aceitação tácita deste abuso territorial, que às vezes beneficia uns e outras vezes outros.
Isto não acontece apenas nos grandes investimentos. A produção legislativa é igualmente plurianual, feita sem limite temporal. Só que existe uma enorme diferença entre uma lei e um contrato: é fácil mudar a lei, mas é quase impossível alterar o contrato que ela permitiu. A lei protege o contrato, ainda que não se proteja a si própria. Mesmo que seja alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece válido na generalidade dos casos.
Esta superprotecção que a lei confere aos contratos (e acordos, e tratados) tem boas razões para existir, pois tem como objectivo proteger a confiança sem a qual a vida em sociedade seria problemática, mas cria na realidade bolsas de protecção jurídica que permitem que certos actos iníquos escapem, durante longos períodos de tempo, ao escrutínio da política. Veja-se o que acontece aos tratados da União Europeia, assinados por governos em nome dos Estados-membros da UE sem discussão interna e sem um processo democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos.
Percebe-se bem a preocupação do PS. Como se percebe bem quando se pensa nas parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto por governos do PS como do PSD), e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas amigas que deles beneficiaram. Ou dos contratos swap, com os mesmos resultados e uma protecção jurídica semelhante.
Porém, se a preocupação do PS parece legítima, há outras considerações que se devem fazer: porquê obrigar a uma aprovação por maioria qualificada apenas as obras públicas? Por que não também as medidas no âmbito da Justiça e das privatizações, como propôs Álvaro Beleza? Ou as políticas de Educação? Ou todas?
É evidente que há matérias em relação às quais deveria ser necessário um consenso alargado (para além da Constituição, que representa esse papel por excelência). Não apenas o consenso dos suspeitos do costume, mas um consenso tão alargado quanto possível — e é também para isso que o Parlamento deveria servir. Não é legítimo que um governo, apenas porque goza de uma maioria provisória, assine um contrato ruinoso que obrigue o Estado durante 40 anos. Mas obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas pode ter como consequência a paralisia de um governo ou, o que seria ainda pior, a criação de um centrão eterno, em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objecto de contrapartidas mútuas entre os maiores partidos, porque os colocaria a ambos nas mãos um do outro. A política precisa de consensos, mas precisa iguamente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção, porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a democracia.
As outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência, discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes, do ponto de vista do aprofundamento da democracia, do que esta maioria qualificada.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, março 17, 2015
Um apelo à justiça popular para caçar o voto
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Março de 2015
Crónica 10/2015
A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” constitui um convite ao linchamento popular.
Não existe nenhuma razão para que as autoridades judiciais portuguesas não colijam uma base de dados de pessoas condenadas por crimes sexuais contra menores. Bases de dados desse tipo podem ser muito úteis, nomeadamente em estudos de criminologia.
Foi, aliás, com surpresa que li as primeiras notícias sobre a criação desta base de dados, pois supunha que elas existissem em entidades como o Ministério Público, com dados sobre todos os indivíduos alguma vez condenados pelos tribunais portugueses e, caso existissem, fazer uma “lista de pedófilos” resumir-se-ia a fazer uma simples pesquisa.
Mas uma coisa é as autoridades judiciais possuírem um registo deste tipo e outra, radicalmente diferente, é disponibilizarem esses dados a qualquer cidadão. É verdade que o “registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores”, cuja criação foi aprovada na semana passada em Conselho de Ministros, não permite a consulta indiscriminada por qualquer um, mas a definição das entidades e pessoas que podem solicitar a sua consulta (não apenas as autoridades policiais e judiciárias, os serviços de reinserção social e as comissões de protecção de crianças e jovens mas também “pais com suspeitas”) traduz-se, na prática, num acesso quase universal.
Isto é tanto mais assim quanto a justiça portuguesa continua a demonstrar diariamente nas páginas dos jornais a sua incapacidade para manter em segredo informação sensível relativa a investigações em curso. São por isso de aceitar apostas para o tempo que irá mediar entre a criação da lista e a sua publicação na Internet – ou a publicação de excertos seleccionados, reais ou fabricados.
A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” ou de potenciais empregadores constitui, na prática, um convite ao linchamento popular. Esse linchamento pode não tomar a forma extrema de um atentado contra a vida do pedófilo condenado, mas será, no mínimo, uma condenação ao ostracismo. É duvidoso que uma pessoa identificada como fazendo parte desta lista, mesmo depois de ter cumprido a pena e mesmo que não haja qualquer suspeita sobre o seu comportamento, possa encontrar e manter um emprego ou, simplesmente, manter relações sociais de algum tipo com alguém. Do que se trata – no melhor dos casos – é de uma pena de degredo, não decretada por nenhum tribunal, que se vem somar à condenação anterior. No pior dos casos, trata-se da incitação à prática de crimes de agressão por parte de pais legitimamente preocupados mas irracionalmente exaltados.
A questão é que, sendo possível a consulta desta lista – ou a certificação, por parte das autoridades, de que alguém dela faz parte ou dela não consta –, muitos pais se sentirão impelidos a fazer a consulta em relação aos funcionários e professores da escola dos filhos, ao instrutor de natação, à fisioterapeuta, ao merceeiro simpático, ao enfermeiro solícito, apenas para não pensarem que poderão estar a negligenciar a protecção dos seus filhos.
O que se segue a estas consultas, quando se encontre de facto um ex-condenado nalgum lugar, é a criação de um clima de medo e de ódio, de acusações e de recriminações, que não pode deixar de causar profundos danos ao tecido social.
Isto para não falar dos casos de falsas identificações que sempre surgem nestes casos e, inversamente, da falsa sensação de segurança que pode ser criada ao constatar que alguém, afinal, não consta da lista.
Uma pergunta que se deve fazer é “porquê uma lista de pedófilos e não de outros criminosos?”. Será a pedofilia o crime mais frequente em Portugal? Será o mais preocupante? Por que não uma lista de infanticidas? De homicidas? De abusadores não sexuais de crianças? De pessoas que matam os cônjuges? De violadores? A resposta só pode ser uma: a lista de pedófilos surgiu porque o abuso sexual de crianças é um dos crimes mais horrendos que se pode imaginar e é por isso difícil contestar uma medida apresentada como preventiva desse crime. Trata-se de um gesto de aparente “transparência” e “empowerment dos cidadãos”, mas ele apenas visa espalhar o medo e dar livre curso aos mais baixos instintos dos cidadãos, como forma desesperada de conquistar os seus votos. E trata-se, também, de ir impondo a gradual transferência para a esfera privada, para a “comunidade”, de uma responsabilidade nuclear do Estado como é a segurança. A verdade é que a medida não previne o abuso sexual de crianças porque a esmagadora maioria destes abusos são praticados por familiares ou pessoas próximas das crianças – não pelo estranho que deambula pelas ruas.
Se a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, estivesse realmente interessada em reduzir os crimes contra as crianças, seria infinitamente mais produtivo que começasse por ouvir os especialistas que, esmagadoramente, estão contra este registo e o consideram inútil ou nocivo e que dotasse as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens de reais meios financeiros e humanos.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 17 de Março de 2015
Crónica 10/2015
A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” constitui um convite ao linchamento popular.
Não existe nenhuma razão para que as autoridades judiciais portuguesas não colijam uma base de dados de pessoas condenadas por crimes sexuais contra menores. Bases de dados desse tipo podem ser muito úteis, nomeadamente em estudos de criminologia.
Foi, aliás, com surpresa que li as primeiras notícias sobre a criação desta base de dados, pois supunha que elas existissem em entidades como o Ministério Público, com dados sobre todos os indivíduos alguma vez condenados pelos tribunais portugueses e, caso existissem, fazer uma “lista de pedófilos” resumir-se-ia a fazer uma simples pesquisa.
Mas uma coisa é as autoridades judiciais possuírem um registo deste tipo e outra, radicalmente diferente, é disponibilizarem esses dados a qualquer cidadão. É verdade que o “registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores”, cuja criação foi aprovada na semana passada em Conselho de Ministros, não permite a consulta indiscriminada por qualquer um, mas a definição das entidades e pessoas que podem solicitar a sua consulta (não apenas as autoridades policiais e judiciárias, os serviços de reinserção social e as comissões de protecção de crianças e jovens mas também “pais com suspeitas”) traduz-se, na prática, num acesso quase universal.
Isto é tanto mais assim quanto a justiça portuguesa continua a demonstrar diariamente nas páginas dos jornais a sua incapacidade para manter em segredo informação sensível relativa a investigações em curso. São por isso de aceitar apostas para o tempo que irá mediar entre a criação da lista e a sua publicação na Internet – ou a publicação de excertos seleccionados, reais ou fabricados.
A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” ou de potenciais empregadores constitui, na prática, um convite ao linchamento popular. Esse linchamento pode não tomar a forma extrema de um atentado contra a vida do pedófilo condenado, mas será, no mínimo, uma condenação ao ostracismo. É duvidoso que uma pessoa identificada como fazendo parte desta lista, mesmo depois de ter cumprido a pena e mesmo que não haja qualquer suspeita sobre o seu comportamento, possa encontrar e manter um emprego ou, simplesmente, manter relações sociais de algum tipo com alguém. Do que se trata – no melhor dos casos – é de uma pena de degredo, não decretada por nenhum tribunal, que se vem somar à condenação anterior. No pior dos casos, trata-se da incitação à prática de crimes de agressão por parte de pais legitimamente preocupados mas irracionalmente exaltados.
A questão é que, sendo possível a consulta desta lista – ou a certificação, por parte das autoridades, de que alguém dela faz parte ou dela não consta –, muitos pais se sentirão impelidos a fazer a consulta em relação aos funcionários e professores da escola dos filhos, ao instrutor de natação, à fisioterapeuta, ao merceeiro simpático, ao enfermeiro solícito, apenas para não pensarem que poderão estar a negligenciar a protecção dos seus filhos.
O que se segue a estas consultas, quando se encontre de facto um ex-condenado nalgum lugar, é a criação de um clima de medo e de ódio, de acusações e de recriminações, que não pode deixar de causar profundos danos ao tecido social.
Isto para não falar dos casos de falsas identificações que sempre surgem nestes casos e, inversamente, da falsa sensação de segurança que pode ser criada ao constatar que alguém, afinal, não consta da lista.
Uma pergunta que se deve fazer é “porquê uma lista de pedófilos e não de outros criminosos?”. Será a pedofilia o crime mais frequente em Portugal? Será o mais preocupante? Por que não uma lista de infanticidas? De homicidas? De abusadores não sexuais de crianças? De pessoas que matam os cônjuges? De violadores? A resposta só pode ser uma: a lista de pedófilos surgiu porque o abuso sexual de crianças é um dos crimes mais horrendos que se pode imaginar e é por isso difícil contestar uma medida apresentada como preventiva desse crime. Trata-se de um gesto de aparente “transparência” e “empowerment dos cidadãos”, mas ele apenas visa espalhar o medo e dar livre curso aos mais baixos instintos dos cidadãos, como forma desesperada de conquistar os seus votos. E trata-se, também, de ir impondo a gradual transferência para a esfera privada, para a “comunidade”, de uma responsabilidade nuclear do Estado como é a segurança. A verdade é que a medida não previne o abuso sexual de crianças porque a esmagadora maioria destes abusos são praticados por familiares ou pessoas próximas das crianças – não pelo estranho que deambula pelas ruas.
Se a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, estivesse realmente interessada em reduzir os crimes contra as crianças, seria infinitamente mais produtivo que começasse por ouvir os especialistas que, esmagadoramente, estão contra este registo e o consideram inútil ou nocivo e que dotasse as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens de reais meios financeiros e humanos.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, março 10, 2015
Da tolerância zero ao direito à tolerância infinita
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Março de 2015
Crónica 9/2015
Ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o PM perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.
Sempre senti aversão pelo conceito de “tolerância zero”. Esta aversão tem excepções. Quando a Igreja Católica ou qualquer outra organização anuncia “tolerância zero” em relação a casos de abuso de menores, por exemplo, não podia estar mais de acordo com a atitude. Há domínios onde a mais leve suspeita de impropriedade deve ser tratada com o máximo rigor. Mas quando se trata de “tolerância zero” em relação a infracções, como as que a Brigada de Trânsito anuncia por vezes nas suas campanhas, por exemplo, a política parece-me ineficaz e injusta. Que se multe alguém por conduzir a 85 quilómetros por hora numa estrada onde o limite é de 80 é ridículo.
A lei tem uma racionalidade subjacente que pressupõe sempre uma margem para a sua aplicação e não deve ser vista como um tabu, e a sua aplicação não pode ser vista como persecutória pelo cidadão. A lei pode e deve ser aplicada de forma pedagógica e parece-me legítimo e eficaz que o condutor que se desloca a 85 quilómetros por hora seja parado pela polícia e alertado da infracção, mas mais do que isso parece-me contraproducente.
Pode argumentar-se que a justiça deve ser cega e que dura lex sed lex, mas a verdade é que a justiça deve servir os cidadãos e isso exige uma leitura das leis, uma interpretação da sua letra e do seu espírito, e uma leitura das circunstâncias. A lei não deve ser aplicada por robôs, mas por pessoas.
É, por exemplo, moralmente intolerável que uma família seja despejada da casa onde vive e obrigada a dormir na rua devido a uma penhora por dívidas, sejam elas privadas ou fiscais e seja qual for a sua legitimidade — e, no entanto, foram feitas durante a vigência deste Governo dezenas de milhares destas penhoras de casas. Há imensas razões que justificam esta interdição moral. A penhora da casa de habitação é uma condenação de toda a família à miséria, ao desemprego (se já não existiam antes), à vergonha, ao vexame público, ao abandono escolar, frequentemente à fome e à doença. Não há razão que justifique condenar filhos pelos crimes dos pais e menos ainda pela pouca sorte, pela ignorância ou pelos descuidos dos pais.
E no entanto... a tolerância zero foi o critério que o Governo PSD-PP anunciou como cerne da sua política. Só que se tratou de tolerância zero apenas para com os cidadãos comuns, contribuintes habituados a viver acima das suas possibilidades e cujos luxos tinham condenado o país a uma dívida gigantesca. Tolerância zero para com os desempregados e pensionistas, habituados a subsídios e pensões de luxo que era preciso cortar. Tolerância zero para com os pobres, que viviam à tripa-forra de RSI e de abonos de família que foram reduzidos ou cortados. Tolerância zero para com os recibos verdes que ganhavam fortunas que por vezes chegavam mesmo a exceder o salário mínimo. Tolerância zero para com os utentes do SNS que tiveram de passar a pagar mais por uma urgência hospitalar do que por uma consulta privada. E tolerância zero para com os cidadãos gregos, culpados dos mesmos pecados e do pecado de terem votado à esquerda. Mas esta tolerância zero viveu e vive paredes-meias com a tolerância infinita, com a libertinagem permitida a banqueiros e gestores que levaram as suas empresas à falência fazendo desaparecer não se sabe bem em que bolsos milhares de milhões de euros, aos autores de fugas ao fisco gigantescas, às PPP e swaps que garantiram enormes lucros sem risco à custa dos contribuintes, às Tecnoformas que ganharam dinheiro sem se saber porquê e que pagaram a consultores sem se saber em troca de quê. O primeiro problema da tolerância zero é esse: o da falta de equidade. É que nunca a tolerância zero se estende a todos.
O que mais choca nas dívidas de Pedro Passos Coelho à Segurança Social é esta desigualdade: a tolerância e a compreensão que pede para si, um político experiente e bem pago, e a tolerância e a compreensão que não teve para centenas de milhares de famílias pobres. A humildade que exibe agora e a arrogância com que tratou os “piegas” e os “preguiçosos” que não eram capazes de “meter mãos à obra” em vez de se queixarem da “demasiada austeridade” a que submetia o país. Considerar uma desculpa aceitável para si o facto de não ter tido dinheiro para pagar (?) a dívida à Segurança Social e a indiferença com que tratou as dificuldades de outros, com rendimentos muito inferiores.
Hoje sabemos que o primeiro-ministro recebeu durante anos uma remuneração que não é claro se se devia a trabalho realizado ou se se destinava apenas a “abrir portas”. Que não pagou ao Estado durante cinco anos uma contribuição que devia ter pago. Que diz que não pagou porque não sabia que devia pagar. Ou porque não tinha dinheiro. Que quando soube que devia, adiou o pagamento. Que só pagou parte da dívida quando soube que um jornal ia publicar a história. Que o devemos desculpar porque não é perfeito.
A tolerância é apenas outro nome do bom senso e da humanidade. Não queremos ser condenados pelo primeiro deslize, pela mínima falta. Mas ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o primeiro-ministro perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 10 de Março de 2015
Crónica 9/2015
Ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o PM perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.
Sempre senti aversão pelo conceito de “tolerância zero”. Esta aversão tem excepções. Quando a Igreja Católica ou qualquer outra organização anuncia “tolerância zero” em relação a casos de abuso de menores, por exemplo, não podia estar mais de acordo com a atitude. Há domínios onde a mais leve suspeita de impropriedade deve ser tratada com o máximo rigor. Mas quando se trata de “tolerância zero” em relação a infracções, como as que a Brigada de Trânsito anuncia por vezes nas suas campanhas, por exemplo, a política parece-me ineficaz e injusta. Que se multe alguém por conduzir a 85 quilómetros por hora numa estrada onde o limite é de 80 é ridículo.
A lei tem uma racionalidade subjacente que pressupõe sempre uma margem para a sua aplicação e não deve ser vista como um tabu, e a sua aplicação não pode ser vista como persecutória pelo cidadão. A lei pode e deve ser aplicada de forma pedagógica e parece-me legítimo e eficaz que o condutor que se desloca a 85 quilómetros por hora seja parado pela polícia e alertado da infracção, mas mais do que isso parece-me contraproducente.
Pode argumentar-se que a justiça deve ser cega e que dura lex sed lex, mas a verdade é que a justiça deve servir os cidadãos e isso exige uma leitura das leis, uma interpretação da sua letra e do seu espírito, e uma leitura das circunstâncias. A lei não deve ser aplicada por robôs, mas por pessoas.
É, por exemplo, moralmente intolerável que uma família seja despejada da casa onde vive e obrigada a dormir na rua devido a uma penhora por dívidas, sejam elas privadas ou fiscais e seja qual for a sua legitimidade — e, no entanto, foram feitas durante a vigência deste Governo dezenas de milhares destas penhoras de casas. Há imensas razões que justificam esta interdição moral. A penhora da casa de habitação é uma condenação de toda a família à miséria, ao desemprego (se já não existiam antes), à vergonha, ao vexame público, ao abandono escolar, frequentemente à fome e à doença. Não há razão que justifique condenar filhos pelos crimes dos pais e menos ainda pela pouca sorte, pela ignorância ou pelos descuidos dos pais.
E no entanto... a tolerância zero foi o critério que o Governo PSD-PP anunciou como cerne da sua política. Só que se tratou de tolerância zero apenas para com os cidadãos comuns, contribuintes habituados a viver acima das suas possibilidades e cujos luxos tinham condenado o país a uma dívida gigantesca. Tolerância zero para com os desempregados e pensionistas, habituados a subsídios e pensões de luxo que era preciso cortar. Tolerância zero para com os pobres, que viviam à tripa-forra de RSI e de abonos de família que foram reduzidos ou cortados. Tolerância zero para com os recibos verdes que ganhavam fortunas que por vezes chegavam mesmo a exceder o salário mínimo. Tolerância zero para com os utentes do SNS que tiveram de passar a pagar mais por uma urgência hospitalar do que por uma consulta privada. E tolerância zero para com os cidadãos gregos, culpados dos mesmos pecados e do pecado de terem votado à esquerda. Mas esta tolerância zero viveu e vive paredes-meias com a tolerância infinita, com a libertinagem permitida a banqueiros e gestores que levaram as suas empresas à falência fazendo desaparecer não se sabe bem em que bolsos milhares de milhões de euros, aos autores de fugas ao fisco gigantescas, às PPP e swaps que garantiram enormes lucros sem risco à custa dos contribuintes, às Tecnoformas que ganharam dinheiro sem se saber porquê e que pagaram a consultores sem se saber em troca de quê. O primeiro problema da tolerância zero é esse: o da falta de equidade. É que nunca a tolerância zero se estende a todos.
O que mais choca nas dívidas de Pedro Passos Coelho à Segurança Social é esta desigualdade: a tolerância e a compreensão que pede para si, um político experiente e bem pago, e a tolerância e a compreensão que não teve para centenas de milhares de famílias pobres. A humildade que exibe agora e a arrogância com que tratou os “piegas” e os “preguiçosos” que não eram capazes de “meter mãos à obra” em vez de se queixarem da “demasiada austeridade” a que submetia o país. Considerar uma desculpa aceitável para si o facto de não ter tido dinheiro para pagar (?) a dívida à Segurança Social e a indiferença com que tratou as dificuldades de outros, com rendimentos muito inferiores.
Hoje sabemos que o primeiro-ministro recebeu durante anos uma remuneração que não é claro se se devia a trabalho realizado ou se se destinava apenas a “abrir portas”. Que não pagou ao Estado durante cinco anos uma contribuição que devia ter pago. Que diz que não pagou porque não sabia que devia pagar. Ou porque não tinha dinheiro. Que quando soube que devia, adiou o pagamento. Que só pagou parte da dívida quando soube que um jornal ia publicar a história. Que o devemos desculpar porque não é perfeito.
A tolerância é apenas outro nome do bom senso e da humanidade. Não queremos ser condenados pelo primeiro deslize, pela mínima falta. Mas ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o primeiro-ministro perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, fevereiro 24, 2015
Dignidade, aquele conceito que o Governo não entende
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Fevereiro de 2015
Crónica 7/2015
A acção da troika foi tecnicamente errada, politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
1. “Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika, perante os representantes dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de comunicação social, constituem um mea culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um político.
Juncker considerou que a troika era um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
É impossível não concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes custos e não o podia dizer antes sem arriscar a cabeça.
O que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as instituições financeiras, os analistas, os media e a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter outro resultado.
Se não houvesse outra, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos com a eleição do Syriza na Grécia.
2. As declarações de Juncker são raras num político, mas não são a história toda. E a história toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política ou intelectual para ficarem na história.
A história completa-se com a reacção do Governo português às declarações de Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi beliscada” pela troika.
Como se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que não há razão para penitências nem para falar de indignidade?
A explicação é chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais exigente na defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.
Para Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal sob a tutela das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como se se tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é algo extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.
Outra razão por que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta indignidade não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus maiorais.
3. Quando o Governo grego disse que não negociaria com a troika e acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do FMI na troika durante o “programa” português. A Grécia conseguiu arredar a troika do panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/dignidade-aquele-conceito-que-o-governo-nao-entende-1687055
Texto publicado no jornal Público a 24 de Fevereiro de 2015
Crónica 7/2015
A acção da troika foi tecnicamente errada, politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
1. “Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika, perante os representantes dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de comunicação social, constituem um mea culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um político.
Juncker considerou que a troika era um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
É impossível não concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes custos e não o podia dizer antes sem arriscar a cabeça.
O que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as instituições financeiras, os analistas, os media e a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter outro resultado.
Se não houvesse outra, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos com a eleição do Syriza na Grécia.
2. As declarações de Juncker são raras num político, mas não são a história toda. E a história toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política ou intelectual para ficarem na história.
A história completa-se com a reacção do Governo português às declarações de Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi beliscada” pela troika.
Como se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que não há razão para penitências nem para falar de indignidade?
A explicação é chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais exigente na defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.
Para Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal sob a tutela das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como se se tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é algo extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.
Outra razão por que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta indignidade não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus maiorais.
3. Quando o Governo grego disse que não negociaria com a troika e acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do FMI na troika durante o “programa” português. A Grécia conseguiu arredar a troika do panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/dignidade-aquele-conceito-que-o-governo-nao-entende-1687055
terça-feira, dezembro 16, 2014
A esquerda não pode perder por falta de comparência
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Dezembro de 2014
Crónica 55/2014
A presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas.
Tenho a certeza de que uma maioria significativa dos portugueses deseja que, das próximas eleições legislativas, saia um novo governo que ponha em prática uma política que recuse o modelo austeritário, que defenda os interesses de Portugal na União Europeia e não os interesses dos nossos credores, que seja capaz de encontrar aliados na UE para combater as políticas europeias que põem em causa a democracia, a independência e o desenvolvimento nacional (a começar pelo Tratado Orçamental e pela TTIP-Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), que combata de forma vigorosa as desigualdades e a pobreza, que promova uma educação e uma saúde de acesso universal, que defenda a ciência e a cultura, que combata os poderes ilegítimos e a corrupção, que promova o emprego e a dignidade do trabalho, que garanta um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, que permita enfim a todos os cidadãos uma vida decente numa sociedade democrática.
Ou seja, uma política que seja diametralmente oposta à política lesa-pátria do actual Governo, de favorecimento do capital financeiro, de submissão generalizada aos poderes estrangeiros, de submissão à vontade dos credores, de empobrecimento generalizado da população, de apropriação e delapidação do património do Estado, de destruição dos serviços públicos, de desprezo pela independência nacional, pela democracia e pelas suas próprias promessas eleitorais.
A política que penso que a maioria do povo português deseja é uma política de esquerda, feita em nome de todos os portugueses para servir todos os portugueses e não uma política desenhada para servir grupos de oligarcas, na esperança de vir um dia a integrar as suas fileiras, como aquela que hoje, para nossa tristeza e sua vergonha, os nossos governantes levam a cabo.
Quando se faz um retrato deste tipo, daquilo que seria uma política desejável, é frequente que apareça alguém que nos diz: “Mas isso não é característico de uma política de esquerda. Eu sou de direita e também quero tudo isso!” E, de facto, não é importante o que lhe chamemos. No entanto, o facto é que uma política de combate activo às desigualdades, de erradicação da pobreza, de universalidade de acesso à Saúde e à Educação sem entraves de classe social ou económica, de defesa dos serviços públicos, de combate aos privilégios, de defesa do trabalho e de combate ao poder ilegítimo do capital financeiro é uma política que possui as características de uma política de esquerda.
A grande questão é: com quem se pode contar para pôr em prática essa política?
Em Portugal, os movimentos que têm surgido tendo como ideia central a convergência da esquerda para a construção de um governo de esquerda – em contraponto a uma esquerda instalada no protesto – têm sido acusados de pretender “aproximar-se” do PS apenas para conseguir aceder ao poder. A acusação é por vezes apenas difamatória, outras vezes será uma crítica política séria. A questão é que o PS, a posição do PS, as políticas que o PS irá defender e as que quererá pôr em prática se chegar ao governo são uma questão central para todos nós e, em particular, para todos os que têm urgência de ver uma governação à esquerda. É evidente, e sabemo-lo todos, que a presença do PS no governo está longe de ser uma condição suficiente para uma política de esquerda. Ainda que tenha tomado posições importantes na defesa do Estado social, o PS tem governado à direita e, por vezes, escandalosamente à direita. Mas a presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas. Não para fazer do governo um governo de esquerda, mas para fazer da esquerda uma esquerda no governo.
Não se trata de aderir ao PS para o “mudar por dentro”, como tantos no passado anunciaram querer fazer sem êxito (curiosamente, em geral para saírem pela direita do PS), mas de criar um lastro à sua esquerda que produza não só políticas de esquerda viáveis, mas passíveis de recolher o apoio parlamentar necessário. Como partido ideologicamente híbrido que é, o PS vive ele próprio sob a assombração das maldições da direita: a inevitabilidade da austeridade, a imutabilidade das políticas europeias, a invencibilidade do capital financeiro, a impossibilidade de reformar de forma radical a sociedade e a política. E uma das razões que apresenta para o seu “there is (almost) no alternative” é o seu receio de que não exista apoio social e político suficiente para ser algo diferente. É essa dúvida que, quer no plano do apoio social, quer no plano da construção programática, é preciso afastar. É possível uma política de esquerda viável, realista, justa e com amplo apoio social. É este o desafio ao qual a esquerda à esquerda do PS tem de responder e o desafio que tem de lançar ao PS. Se o PS quiser escolher a direita para parceiro de governo ou compère parlamentar que o faça, mas que não diga que foi por falta de comparência que não foi possível governar à esquerda.
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/a-esquerda-nao-pode-perder-por-falta-de-comparencia-1679506
Texto publicado no jornal Público a 16 de Dezembro de 2014
Crónica 55/2014
A presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas.
Tenho a certeza de que uma maioria significativa dos portugueses deseja que, das próximas eleições legislativas, saia um novo governo que ponha em prática uma política que recuse o modelo austeritário, que defenda os interesses de Portugal na União Europeia e não os interesses dos nossos credores, que seja capaz de encontrar aliados na UE para combater as políticas europeias que põem em causa a democracia, a independência e o desenvolvimento nacional (a começar pelo Tratado Orçamental e pela TTIP-Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), que combata de forma vigorosa as desigualdades e a pobreza, que promova uma educação e uma saúde de acesso universal, que defenda a ciência e a cultura, que combata os poderes ilegítimos e a corrupção, que promova o emprego e a dignidade do trabalho, que garanta um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, que permita enfim a todos os cidadãos uma vida decente numa sociedade democrática.
Ou seja, uma política que seja diametralmente oposta à política lesa-pátria do actual Governo, de favorecimento do capital financeiro, de submissão generalizada aos poderes estrangeiros, de submissão à vontade dos credores, de empobrecimento generalizado da população, de apropriação e delapidação do património do Estado, de destruição dos serviços públicos, de desprezo pela independência nacional, pela democracia e pelas suas próprias promessas eleitorais.
A política que penso que a maioria do povo português deseja é uma política de esquerda, feita em nome de todos os portugueses para servir todos os portugueses e não uma política desenhada para servir grupos de oligarcas, na esperança de vir um dia a integrar as suas fileiras, como aquela que hoje, para nossa tristeza e sua vergonha, os nossos governantes levam a cabo.
Quando se faz um retrato deste tipo, daquilo que seria uma política desejável, é frequente que apareça alguém que nos diz: “Mas isso não é característico de uma política de esquerda. Eu sou de direita e também quero tudo isso!” E, de facto, não é importante o que lhe chamemos. No entanto, o facto é que uma política de combate activo às desigualdades, de erradicação da pobreza, de universalidade de acesso à Saúde e à Educação sem entraves de classe social ou económica, de defesa dos serviços públicos, de combate aos privilégios, de defesa do trabalho e de combate ao poder ilegítimo do capital financeiro é uma política que possui as características de uma política de esquerda.
A grande questão é: com quem se pode contar para pôr em prática essa política?
Em Portugal, os movimentos que têm surgido tendo como ideia central a convergência da esquerda para a construção de um governo de esquerda – em contraponto a uma esquerda instalada no protesto – têm sido acusados de pretender “aproximar-se” do PS apenas para conseguir aceder ao poder. A acusação é por vezes apenas difamatória, outras vezes será uma crítica política séria. A questão é que o PS, a posição do PS, as políticas que o PS irá defender e as que quererá pôr em prática se chegar ao governo são uma questão central para todos nós e, em particular, para todos os que têm urgência de ver uma governação à esquerda. É evidente, e sabemo-lo todos, que a presença do PS no governo está longe de ser uma condição suficiente para uma política de esquerda. Ainda que tenha tomado posições importantes na defesa do Estado social, o PS tem governado à direita e, por vezes, escandalosamente à direita. Mas a presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas. Não para fazer do governo um governo de esquerda, mas para fazer da esquerda uma esquerda no governo.
Não se trata de aderir ao PS para o “mudar por dentro”, como tantos no passado anunciaram querer fazer sem êxito (curiosamente, em geral para saírem pela direita do PS), mas de criar um lastro à sua esquerda que produza não só políticas de esquerda viáveis, mas passíveis de recolher o apoio parlamentar necessário. Como partido ideologicamente híbrido que é, o PS vive ele próprio sob a assombração das maldições da direita: a inevitabilidade da austeridade, a imutabilidade das políticas europeias, a invencibilidade do capital financeiro, a impossibilidade de reformar de forma radical a sociedade e a política. E uma das razões que apresenta para o seu “there is (almost) no alternative” é o seu receio de que não exista apoio social e político suficiente para ser algo diferente. É essa dúvida que, quer no plano do apoio social, quer no plano da construção programática, é preciso afastar. É possível uma política de esquerda viável, realista, justa e com amplo apoio social. É este o desafio ao qual a esquerda à esquerda do PS tem de responder e o desafio que tem de lançar ao PS. Se o PS quiser escolher a direita para parceiro de governo ou compère parlamentar que o faça, mas que não diga que foi por falta de comparência que não foi possível governar à esquerda.
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/a-esquerda-nao-pode-perder-por-falta-de-comparencia-1679506
terça-feira, março 11, 2014
Quer transportes públicos? Denuncie o seu vizinho!
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2014
Crónica 10/2014
O Governo encontrou uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres
A campanha usou a técnica do teaser. Primeiro, começaram a aparecer nas estações de Metro e nos autocarros de Lisboa uns cartazes de fundo branco, mostrando apenas um par de lindíssimos olhos azuis femininos esbugalhados, enquadrados por umas belas sobrancelhas arqueadas. Passados uns dias, foram substituídos por outros com a mesma fotografia mas já com dizeres: “Abra os olhos e combata a fraude” e, por baixo, “A falta de validações pode sair-lhe caro” (sic), seguida da lista de castigos que o utente dos transportes públicos (porque é disso que se trata) deve esperar: “menos carreiras, menos comboios, maior tempo de espera, degradação do serviço”. Por baixo, os logos do Metro e Carris.
A campanha tem uma enorme qualidade gráfica e estética e, não fora a incorrecção gramatical, poderia considerar-se tecnicamente excelente. Mas o seu conteúdo é moralmente abjecto e politicamente obsceno.
A campanha, que acontece sobre o pano de fundo da concessão dos transportes públicos a empresas privadas por imposição da troika e da Comissão Europeia, pretende transmitir uma ideia muito simples: se os transportes públicos são maus e serão cada vez piores a culpa não é da inexistência de uma política de transportes públicos justa e sustentável nem é do Governo que subfinancia estas empresas públicas. A culpa também não se deve ao facto de o Governo querer forçar estas empresas a ter um resultado de exploração positivo apesar do serviço social que prestam e de as obrigar por isso a reduzir carreiras e a degradar o serviço. A culpa da má qualidade dos transportes públicos é nossa. Dos cidadãos, dos utentes. E porquê? Porque fazemos fraude ou deixamos que os outros façam.
A tese do Governo é que os maus resultados das empresas de transportes públicos se devem, antes de mais, ao facto de serem públicas (daí que seja imperativo passar a sua gestão para mãos privadas) e, depois, à fraude. A prova que a fraude aumentou? O facto de o número de viagens pagas ter diminuído. Não será porque as pessoas têm menos dinheiro e porque todos os que podem cortam nos passes e nos bilhetes? Não será porque o desemprego aumentou e as pessoas que não precisam imperativamente de se deslocar ficam em casa ou andam a pé? Não. O Governo diz que é a fraude e tem um estudo onde a Carris aparece com números substancialmente mais elevados que os que a própria empresa estima.
A ideia percebe-se bem. A tese da fraude em massa que arrasta as empresas de transportes públicos para o fundo serve a agenda política do governo, que consiste em colocar os cidadãos uns contra os outros, desviar as atenções das malfeitorias do governo e preparar a opinião pública para a concessão dos transportes a privados. Neste quadro, não são apenas as empresas públicas que não funcionam e que têm uma gestão deficiente. São também os utentes das empresas públicas que agem de forma irresponsável - ao contrário dos clientes das empresas privadas, que são cidadãos responsáveis. Para o Governo, há algo de intrinsecamente pecaminoso nas empresas públicas. E esta campanha é para nos convencer a todos disso. É, mais uma vez, dinheiro público gasto a fazer a propaganda ideológica extremista do Governo PSD-CDS.
Uma vez estabelecida que a culpa é dos utentes que cometem fraudes podemos passar ao passo seguinte que é a mensagem explícita da campanha: abra os olhos. Denuncie quem tenta viajar sem bilhete. Não os deixe passar. São eles, os pobres, que nos estão a lixar a vida. Não é o Governo, nem a troika. Aqueles lindos olhos azuis são os olhos do Big Brother, a ver se você denuncia os pobres ou se os deixa passar.
É provável que a fraude nos transportes públicos tenha aumentado, porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro e há cada vez mais pessoas sem dinheiro nenhum. Muitas dessas pessoas deixaram de usar os transportes públicos - cujos passes sociais são demasiado caros - e muitas tentarão talvez viajar sem bilhete. Mas a fraude, se aumenta, é, antes de mais, um indicador da existência de um preço que não é “social” e de um transporte que é cada vez menos “público”. Poucas pessoas gostam de andar a fugir aos fiscais e à polícia ou arriscar-se a pagar uma multa gigantesca se puderem não o fazer. Mas o Governo vê aqui uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres.
2. Sobre a birra de Pedro Passos Coelho no Parlamento, quando Catarina Martins referiu algo tão verdadeiro, tão evidente e tão fácil de provar como a ausência de valor da sua palavra: será que alguém poderia explicar ao primeiro-ministro que, quando ele se apresenta no Parlamento, é ao povo que responde, através dos seus representantes legítimos, e não a esta ou àquela pessoa? E será que alguém pode explicar a mesmíssima coisa à inefável reformada que preside ao Parlamento? E será que alguém pode explicar a ambos que “responsabilidade” significa o dever de responder? Ou será que PPC e Assunção Esteves acham que o Governo apenas é responsável perante a troika? (jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2014
Crónica 10/2014
O Governo encontrou uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres
A campanha usou a técnica do teaser. Primeiro, começaram a aparecer nas estações de Metro e nos autocarros de Lisboa uns cartazes de fundo branco, mostrando apenas um par de lindíssimos olhos azuis femininos esbugalhados, enquadrados por umas belas sobrancelhas arqueadas. Passados uns dias, foram substituídos por outros com a mesma fotografia mas já com dizeres: “Abra os olhos e combata a fraude” e, por baixo, “A falta de validações pode sair-lhe caro” (sic), seguida da lista de castigos que o utente dos transportes públicos (porque é disso que se trata) deve esperar: “menos carreiras, menos comboios, maior tempo de espera, degradação do serviço”. Por baixo, os logos do Metro e Carris.
A campanha tem uma enorme qualidade gráfica e estética e, não fora a incorrecção gramatical, poderia considerar-se tecnicamente excelente. Mas o seu conteúdo é moralmente abjecto e politicamente obsceno.
A campanha, que acontece sobre o pano de fundo da concessão dos transportes públicos a empresas privadas por imposição da troika e da Comissão Europeia, pretende transmitir uma ideia muito simples: se os transportes públicos são maus e serão cada vez piores a culpa não é da inexistência de uma política de transportes públicos justa e sustentável nem é do Governo que subfinancia estas empresas públicas. A culpa também não se deve ao facto de o Governo querer forçar estas empresas a ter um resultado de exploração positivo apesar do serviço social que prestam e de as obrigar por isso a reduzir carreiras e a degradar o serviço. A culpa da má qualidade dos transportes públicos é nossa. Dos cidadãos, dos utentes. E porquê? Porque fazemos fraude ou deixamos que os outros façam.
A tese do Governo é que os maus resultados das empresas de transportes públicos se devem, antes de mais, ao facto de serem públicas (daí que seja imperativo passar a sua gestão para mãos privadas) e, depois, à fraude. A prova que a fraude aumentou? O facto de o número de viagens pagas ter diminuído. Não será porque as pessoas têm menos dinheiro e porque todos os que podem cortam nos passes e nos bilhetes? Não será porque o desemprego aumentou e as pessoas que não precisam imperativamente de se deslocar ficam em casa ou andam a pé? Não. O Governo diz que é a fraude e tem um estudo onde a Carris aparece com números substancialmente mais elevados que os que a própria empresa estima.
A ideia percebe-se bem. A tese da fraude em massa que arrasta as empresas de transportes públicos para o fundo serve a agenda política do governo, que consiste em colocar os cidadãos uns contra os outros, desviar as atenções das malfeitorias do governo e preparar a opinião pública para a concessão dos transportes a privados. Neste quadro, não são apenas as empresas públicas que não funcionam e que têm uma gestão deficiente. São também os utentes das empresas públicas que agem de forma irresponsável - ao contrário dos clientes das empresas privadas, que são cidadãos responsáveis. Para o Governo, há algo de intrinsecamente pecaminoso nas empresas públicas. E esta campanha é para nos convencer a todos disso. É, mais uma vez, dinheiro público gasto a fazer a propaganda ideológica extremista do Governo PSD-CDS.
Uma vez estabelecida que a culpa é dos utentes que cometem fraudes podemos passar ao passo seguinte que é a mensagem explícita da campanha: abra os olhos. Denuncie quem tenta viajar sem bilhete. Não os deixe passar. São eles, os pobres, que nos estão a lixar a vida. Não é o Governo, nem a troika. Aqueles lindos olhos azuis são os olhos do Big Brother, a ver se você denuncia os pobres ou se os deixa passar.
É provável que a fraude nos transportes públicos tenha aumentado, porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro e há cada vez mais pessoas sem dinheiro nenhum. Muitas dessas pessoas deixaram de usar os transportes públicos - cujos passes sociais são demasiado caros - e muitas tentarão talvez viajar sem bilhete. Mas a fraude, se aumenta, é, antes de mais, um indicador da existência de um preço que não é “social” e de um transporte que é cada vez menos “público”. Poucas pessoas gostam de andar a fugir aos fiscais e à polícia ou arriscar-se a pagar uma multa gigantesca se puderem não o fazer. Mas o Governo vê aqui uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres.
2. Sobre a birra de Pedro Passos Coelho no Parlamento, quando Catarina Martins referiu algo tão verdadeiro, tão evidente e tão fácil de provar como a ausência de valor da sua palavra: será que alguém poderia explicar ao primeiro-ministro que, quando ele se apresenta no Parlamento, é ao povo que responde, através dos seus representantes legítimos, e não a esta ou àquela pessoa? E será que alguém pode explicar a mesmíssima coisa à inefável reformada que preside ao Parlamento? E será que alguém pode explicar a ambos que “responsabilidade” significa o dever de responder? Ou será que PPC e Assunção Esteves acham que o Governo apenas é responsável perante a troika? (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, dezembro 31, 2013
Mais pobres, mais desiguais, mas sempre à procura do futuro
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Dezembro de 2013
Crónica 49/2013
A sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas
Li algures que os nomes próprios que os pais escolhem para os seus filhos têm uma relação com o ambiente económico que se vive na época em que estes nascem.
Épocas de crescimento económico e de grande desenvolvimento, de pleno emprego e de investimentos arrojados, que permitem alimentar grandes esperanças para o futuro, suscitam o aparecimento de Júlios Césares, de Alexandres Magnos e de nomes de ressonâncias históricas mais nacionais mas sempre com uma predominância de nomes próprios duplos. Épocas de recessão, de desemprego e de pobreza, de retracção e ansiedade, onde o futuro se anuncia preocupante, suscitam o aparecimento de nomes singelos e discretos, prudentes Joões, Marias e Josés.
Não sei se a actual crise está a ter este reflexo onomástico, mas lembrei-me disto nos últimos dias ao ver a moderação dos títulos de tantos comentários de balanço do ano que hoje acaba ou de prospectiva do que amanhã começa, alguns deles intitulados simplesmente "2013" ou "2014", como se nenhuma esperança autorizasse o arrojo de sonhar um mundo para além da mera continuação do negro presente, como se não sobrasse energia para nenhuma iniciativa além da mera constatação do tempo que passa ou como se a simples menção da data (qualquer delas), com o que encerra de inominável, fosse suficiente para nos saturar de significado, como “1984”.
A contenção destes títulos é outra forma de dizer como é difícil, nestes tempos marcados por mentiras e desilusões, erguer bandeiras que consigam despertar paixões e mobilizar vontades.
George Steiner fala num texto feliz de como, durante a Revolução Francesa, todo o futuro parecia estar finalmente ali, à mão de semear, de como todo o futuro parecia que ia acontecer “segunda-feira de manhã”. Hoje, em Portugal, e em grande parte da mesma Europa da Revolução Francesa, o futuro parece já ter acontecido todo há muitos anos e a sua simples invocação parece um cruel exercício de cinismo, quando não de hipocrisia.
E, no entanto, devia ser fácil despertar paixões e mobilizar vontades. Devia ser fácil reunir milhões de cidadãos em torno de um programa de justiça social e de decência, de progresso económico e de emprego, de qualificação e inovação, em vez da apagada e vil tristeza da actualidade, da destruição do Estado para enriquecer os mais ricos e para empobrecer os mais pobres. Pode aceitar-se a dificuldade em acreditar numa alternativa, mas não a falta de vontade de procurar uma. Em 2014 voltaremos a andar à procura do futuro.
2. Falar de mentiras e desilusões é falar das mensagens de Natal de Passos Coelho e de António José Seguro.
Não vale a pena sublinhar a mentira dos 120.000 postos de trabalho inventados por Passos Coelho, mas vale a pena retermo-nos na “recuperação” que se vai seguir à “austeridade”. É verdade que há indicadores económicos que melhoraram e que alguns deles (exportações) são de facto positivos. É verdade que a troika pode não voltar ao Terreiro do Paço a partir de meados de 2014 e que Portugal talvez se possa financiar “nos mercados”. Mas qual é a sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas? A sociedade que herdaremos será uma sociedade muito mais pobre do que antes do “resgate” financeiro (em 2013 teremos o mesmo PIB que tínhamos treze anos antes, em 2000) e muitíssimo mais desigual, pois esta brutal perda de riqueza do país em geral foi acompanhada pelo enriquecimento dos muitos ricos, o que significa que os pobres e a classe média sofreram um empobrecimento superior à da média do país. Esta pobreza vai marcar gerações, pois o peso da dívida (que é impagável e terá de ser reestruturada) agravou-se por causa da “austeridade”. A sociedade que herdaremos terá não só muitos mais pobres mas muitos mais pobres-trabalhadores, devido à “compressão” dos custos do trabalho e à degradação das condições laborais. Teremos trabalhadores mais mal pagos em nome da ”competitividade” internacional. Teremos mais trabalhadores obrigados à docilidade pelo medo do desemprego e da miséria. Teremos empresas menos inovadoras pois o medo não incentiva a imaginação, não motiva nem impele ao risco. Teremos talvez menos desempregados oficiais, porque os mais bem preparados emigrarão ainda mais e os menos preparados deixarão de procurar emprego e aceitarão a miséria como destino. Teremos menos e piores serviços públicos. Teremos funcionários públicos humilhados e desmotivados. Teremos um sistema de investigação e inovação descapitalizado e que terá perdido uma geração de altíssima qualificação.Teremos um Estado mais pobre, com menos património, que terá sido passado a bom preço para as mãos de empresas amigas. Teremos mais conflitos sociais e mais violência. Teremos uma maior desconfiança das instituições e dos políticos em geral. Teremos um estado social amputado e instituída a caridade dispensada aos indigentes como forma de “acção social”. Passos Coelho, Paulo Portas e Mota Soares continuarão a sorrir sem vergonha e será cada vez mais difícil garantir às crianças que a indecência não compensa.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 31 de Dezembro de 2013
Crónica 49/2013
A sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas
Li algures que os nomes próprios que os pais escolhem para os seus filhos têm uma relação com o ambiente económico que se vive na época em que estes nascem.
Épocas de crescimento económico e de grande desenvolvimento, de pleno emprego e de investimentos arrojados, que permitem alimentar grandes esperanças para o futuro, suscitam o aparecimento de Júlios Césares, de Alexandres Magnos e de nomes de ressonâncias históricas mais nacionais mas sempre com uma predominância de nomes próprios duplos. Épocas de recessão, de desemprego e de pobreza, de retracção e ansiedade, onde o futuro se anuncia preocupante, suscitam o aparecimento de nomes singelos e discretos, prudentes Joões, Marias e Josés.
Não sei se a actual crise está a ter este reflexo onomástico, mas lembrei-me disto nos últimos dias ao ver a moderação dos títulos de tantos comentários de balanço do ano que hoje acaba ou de prospectiva do que amanhã começa, alguns deles intitulados simplesmente "2013" ou "2014", como se nenhuma esperança autorizasse o arrojo de sonhar um mundo para além da mera continuação do negro presente, como se não sobrasse energia para nenhuma iniciativa além da mera constatação do tempo que passa ou como se a simples menção da data (qualquer delas), com o que encerra de inominável, fosse suficiente para nos saturar de significado, como “1984”.
A contenção destes títulos é outra forma de dizer como é difícil, nestes tempos marcados por mentiras e desilusões, erguer bandeiras que consigam despertar paixões e mobilizar vontades.
George Steiner fala num texto feliz de como, durante a Revolução Francesa, todo o futuro parecia estar finalmente ali, à mão de semear, de como todo o futuro parecia que ia acontecer “segunda-feira de manhã”. Hoje, em Portugal, e em grande parte da mesma Europa da Revolução Francesa, o futuro parece já ter acontecido todo há muitos anos e a sua simples invocação parece um cruel exercício de cinismo, quando não de hipocrisia.
E, no entanto, devia ser fácil despertar paixões e mobilizar vontades. Devia ser fácil reunir milhões de cidadãos em torno de um programa de justiça social e de decência, de progresso económico e de emprego, de qualificação e inovação, em vez da apagada e vil tristeza da actualidade, da destruição do Estado para enriquecer os mais ricos e para empobrecer os mais pobres. Pode aceitar-se a dificuldade em acreditar numa alternativa, mas não a falta de vontade de procurar uma. Em 2014 voltaremos a andar à procura do futuro.
2. Falar de mentiras e desilusões é falar das mensagens de Natal de Passos Coelho e de António José Seguro.
Não vale a pena sublinhar a mentira dos 120.000 postos de trabalho inventados por Passos Coelho, mas vale a pena retermo-nos na “recuperação” que se vai seguir à “austeridade”. É verdade que há indicadores económicos que melhoraram e que alguns deles (exportações) são de facto positivos. É verdade que a troika pode não voltar ao Terreiro do Paço a partir de meados de 2014 e que Portugal talvez se possa financiar “nos mercados”. Mas qual é a sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas? A sociedade que herdaremos será uma sociedade muito mais pobre do que antes do “resgate” financeiro (em 2013 teremos o mesmo PIB que tínhamos treze anos antes, em 2000) e muitíssimo mais desigual, pois esta brutal perda de riqueza do país em geral foi acompanhada pelo enriquecimento dos muitos ricos, o que significa que os pobres e a classe média sofreram um empobrecimento superior à da média do país. Esta pobreza vai marcar gerações, pois o peso da dívida (que é impagável e terá de ser reestruturada) agravou-se por causa da “austeridade”. A sociedade que herdaremos terá não só muitos mais pobres mas muitos mais pobres-trabalhadores, devido à “compressão” dos custos do trabalho e à degradação das condições laborais. Teremos trabalhadores mais mal pagos em nome da ”competitividade” internacional. Teremos mais trabalhadores obrigados à docilidade pelo medo do desemprego e da miséria. Teremos empresas menos inovadoras pois o medo não incentiva a imaginação, não motiva nem impele ao risco. Teremos talvez menos desempregados oficiais, porque os mais bem preparados emigrarão ainda mais e os menos preparados deixarão de procurar emprego e aceitarão a miséria como destino. Teremos menos e piores serviços públicos. Teremos funcionários públicos humilhados e desmotivados. Teremos um sistema de investigação e inovação descapitalizado e que terá perdido uma geração de altíssima qualificação.Teremos um Estado mais pobre, com menos património, que terá sido passado a bom preço para as mãos de empresas amigas. Teremos mais conflitos sociais e mais violência. Teremos uma maior desconfiança das instituições e dos políticos em geral. Teremos um estado social amputado e instituída a caridade dispensada aos indigentes como forma de “acção social”. Passos Coelho, Paulo Portas e Mota Soares continuarão a sorrir sem vergonha e será cada vez mais difícil garantir às crianças que a indecência não compensa.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, dezembro 03, 2013
O governo não merece a nossa delicadeza
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Dezembro de 2013
Crónica 45/2013
Texto publicado no jornal Público a 3 de Dezembro de 2013
Crónica 45/2013
Um aplauso a um membro do Governo é um gesto político. E este Governo não merece nem o aplauso de circunstância.
Na antiga Roma, para ser imperador era preciso ser aclamado. Certamente pelo exército, porque os imperadores eram impostos e mantidos pela espada, no melhor dos casos também pelo Senado, mas especialmente pelo povo. Os aplausos de que o imperador era objecto no teatro ou nas arenas mediam não apenas a sua popularidade mas também a sua legitimidade, o nível de aceitação da sua autoridade pelo povo. Os teatros serviam tanto para medir e reforçar essa legitimidade como para o divertimento da cidade. E durante séculos, nas mais diversas regiões do globo, os reis foram ungidos por Deus nas catedrais mas tinham de ser aclamados pelo povo nas ruas para poderem ostentar as suas coroas com merecimento. Um rei não aclamado era um intruso, um impostor, um monarca à espera de ser deposto.
Hoje, a escolha e a legitimidade dos dirigentes políticos é feita e conferida de outras formas, graças aos processos eleitorais que a democracia instituiu, mas nenhum político prescinde de avaliar a sua popularidade através de sondagens e da sua imagem nos media e existem limites aquém dos quais qualquer dirigente sabe que o seu poder periclita porque a sua legitimidade se perde.
O Governo actual possui uma legitimidade formal que lhe advém do apoio de uma maioria parlamentar e da confiança do Presidente da República. Possui, por outro lado, uma ilegitimidade substantiva que advém do facto de ter sido escolhido pelos eleitores com base em mentiras eleitorais e de governar contra a Constituição e contra o povo e ao serviço de poderes estranhos ao país, em flagrante traição do juramento que os seus elementos fizeram e da mais elementar noção de patriotismo. Mas, curiosamente, apesar de ser atacado na arena política e desprezado pela maioria dos comentadores, o governo continua a ser tratado pela sociedade em geral, nos raros eventos públicos onde os ministros e secretários de Estado se aventuram, como se se tratasse de pessoas civilizadas e de governantes com um mínimo de decência. Em particular, não lhes atiram ovos podres nem tomates maduros, quando tudo na sua acção o justificaria, para não referir o arremesso de objectos mais contundentes, que pertencem a outro domínio.
Um dos reflexos desse tratamento normal, com que o governo é generosamente brindado, é o facto de os seus elementos serem em geral aplaudidos no final das suas intervenções públicas, digam as sandices que disserem e anunciem os atentados aos cidadãos que anunciarem.
É evidente que, com a excepção de plateias do PSD ou de grandes empresários rentistas, esses aplausos são o que se chama aplausos “de circunstância”, dados e julgados devidos por uma questão de mera cortesia, como os que se oferecem aos oradores para recompensar o facto de terem tido o trabalho de subir ao palco mesmo quando o que dizem é imbecil ou banal. No entanto, quando se trata de declarações políticas, como as que os nossos governantes fazem, os aplausos que se oferecem não podem ser julgados apenas de circunstância e contêm um carga política que os aplaudentes por vezes não se dão conta. Por hábito, por conveniência ou por ingenuidade, os governantes pensam que os aplausos que ouvem, por escassos que sejam, avalizam as suas palavras e as suas políticas. E alguns dos assistentes podem pensar a mesma coisa.
A questão é que o aplauso que se faz a um político representa sempre alguma adesão ao que é dito ou a quem o diz. Não é uma questão de cortesia. E não pode ser oferecido de forma irreflectida.
É fundamental passar a demonstrar ao governo em geral e a cada um dos seus membros em particular que as suas políticas são rejeitadas por todos e a maneira mais simples de o fazer é retirar-lhes o aplauso que os governantes têm por adquirido. Hoje, quando são tão escassas as ferramentas de que o cidadão dispõe para agir politicamente, sequestrado o regime e o Estado por partidos dispostos a não deixar da democracia pedra sobre pedra, é fundamental que cada um de nós se apodere de todas as que restam. E uma delas é fazer-se ouvir pelo silêncio.
Rimbaud escreve num poema que por delicadeza perdeu a vida. Seria infeliz que os portugueses, pela mesma delicadeza, sacrificassem o uso de uma das últimas formas de protestar que lhes resta e preferissem deixar a gente que ocupa o poder roubar o futuro dos seus filhos.
Não existe cortesia que justifique pactuar com a barbárie. Não existe etiqueta que se sobreponha ao exercício da mais básica forma de liberdade de expressão que consiste em não aplaudir. Não é o último direito que nos resta mas quase. O governo age como se tivesse sido eleito ditador por quatro anos. Mas a cidadania não pode ser posta fora da lei durante quatro anos. O mínimo dos mínimos que podemos fazer é garantir que nenhum aplauso “de circunstância” saído das nossas mãos irá confortar o governo na sua certeza de impunidade. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, novembro 05, 2013
O Parlamento não é do Governo
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Novembro de 2013
Crónica 41/2013
Um ministro deve abandonar todas as lealdades particulares e dedicar-se apenas ao serviço do povo
Penso que os membros do Governo têm exclusivamente um dever para com o povo. É verdade que a Constituição declara que “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República” mas isso é apenas porque o PR e a AR são legítimos representantes do povo, eleitos por voto universal, directo e secreto. A prestação de contas que o Governo faz à AR ou ao PR é ao povo que a deve. E é por isso, aliás, que, além da prestação de contas a estes órgãos, o Governo tem um dever genérico de informação e de transparência perante o povo, assim como o dever de consulta de diferentes instituições da sociedade e de debate com essas instituições. A lealdade que o Governo deve, é ao povo que a deve. A soberania reside no povo e em mais nenhum sítio. Nenhuma lógica e nenhuma lealdade se pode sobrepor ao dever que o Governo tem para com o povo. O seu único objecto tem de ser servir o povo.
E quando se diz “povo” isso quer dizer “o povo todo” e não apenas partes seleccionadas do povo. O dever do Governo é para com todos os cidadãos e para com cada cidadão, pobre ou rico, desempregado ou banqueiro, crente ou ateu, monárquico ou anarquista.
E, quando a Constituição diz que “o Governo é responsável perante a Assembleia da República” não diz que é responsável perante apenas uma parte da Assembleia da República. É perante o órgão Assembleia da República que o Governo é responsável e não apenas perante os deputados que o apoiam.
É por isso que, ao entrar para um Governo, cada um dos seus ministros deve abandonar todas as outras lealdades particulares que possua - com a única excepção das que façam parte da sua vida privada. Um ministro não pode ser do Benfica, nem maçon, nem beirão, nem católico, nem advogado.
Isto não significa que se tenha de despojar da sua história e de todas as crenças que constituem a sua identidade - o que não seria possível - mas quer dizer que, enquanto ministro, tem de pôr de lado as lealdades particulares que estão associadas a estas diferentes pertenças. Um ministro não deve tomar decisões “enquanto benfiquista”, nem seleccionar os membros do seu ministério “enquanto maçon”, nem decidir investimentos “enquanto beirão”, nem aprovar isenções fiscais “enquanto católico”, nem contratar serviços jurídicos “enquanto advogado”.
Esperamos e exigimos de um ministro que pense e aja enquanto ministro de todos os portugueses, sem privilegiar interesses particulares. Esperamos de um ministro que, durante o seu ministério, não faça visitas ao seu gabinete de advogado, por exemplo. E que não agite o cachecol do seu clube durante um jogo. Porque as suas funções exigem dele uma serena equidistância e independência. Esperamos de um ministro que faça o difícil exercício da isenção e que decida sem sectarismos.
E esperamos até de um ministro que abandone (ou suspenda) o seu sectarismo partidário e que pense no bem do país e de todo o povo em vez de pensar na maneira de promover o seu partido e de fazer tropeçar os adversários políticos. Não é lirismo. Apenas um imperativo ético.
Deveria ser claro que um ministro, mesmo que seja militante de um partido, durante a sua passagem pelo Governo trabalha apenas para o Governo, apenas para o país, apenas para o povo, e não deve dedicar uma hora que seja a qualquer outra actividade, a qualquer outra lealdade que não seja essa. Que passe um fim-de-semana com a família é algo que releva da sua vida inalienável vida privada. Mas que dedique uma tarde a uma reunião partidária é um abuso da confiança que lhe foi concedida pelo povo, porque tudo o que ele sabe e viu como ministro é algo que ou merece discrição ou que deve ser partilhado com todos os portugueses, mas nunca apenas com um grupo seleccionado com base no cartão do partido.
Sabemos que isto é comum, mas isso não torna a situação eticamente mais admissível. Seria desejável que um militante de um partido suspendesse a sua actividade partidária durante a sua passagem pelo Governo, mas o que vemos é que não só isso não acontece como vemos ministros abusar da sua condição de governantes para fazer o coaching dos deputados dos seus partidos, fornecendo-lhes informações e disponibilizando-se para discussões que negam aos restantes deputados, num inaceitável enviesamento do que deve ser a equidade de tratamento dos deputados da AR pelo Governo.
A pouca-vergonha que vimos nas Jornadas Parlamentares do PSD e do CDS, com membros do Governo oferecendo um tratamento preferencial aos deputados dos partidos da maioria, é algo comum, a que outros Governos nos habituaram, mas não é por isso menos condenável, tanto mais quando isso acontece nas próprias instalações do Parlamento.
Que a AR ceda instalações para actividades partidárias dos grupos parlamentares é normal, mas não é aceitável ceder instalações da AR para que o Governo leve a cabo um acto de favorecimento partidário, contrariando o seu dever de equidade no tratamento dos deputados. O Parlamento não é do Governo. Será que a presidente da Assembleia da República consegue esquecer o seu cartão partidário e dar-se conta da iniquidade da situação? (jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 5 de Novembro de 2013
Crónica 41/2013
Um ministro deve abandonar todas as lealdades particulares e dedicar-se apenas ao serviço do povo
Penso que os membros do Governo têm exclusivamente um dever para com o povo. É verdade que a Constituição declara que “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República” mas isso é apenas porque o PR e a AR são legítimos representantes do povo, eleitos por voto universal, directo e secreto. A prestação de contas que o Governo faz à AR ou ao PR é ao povo que a deve. E é por isso, aliás, que, além da prestação de contas a estes órgãos, o Governo tem um dever genérico de informação e de transparência perante o povo, assim como o dever de consulta de diferentes instituições da sociedade e de debate com essas instituições. A lealdade que o Governo deve, é ao povo que a deve. A soberania reside no povo e em mais nenhum sítio. Nenhuma lógica e nenhuma lealdade se pode sobrepor ao dever que o Governo tem para com o povo. O seu único objecto tem de ser servir o povo.
E quando se diz “povo” isso quer dizer “o povo todo” e não apenas partes seleccionadas do povo. O dever do Governo é para com todos os cidadãos e para com cada cidadão, pobre ou rico, desempregado ou banqueiro, crente ou ateu, monárquico ou anarquista.
E, quando a Constituição diz que “o Governo é responsável perante a Assembleia da República” não diz que é responsável perante apenas uma parte da Assembleia da República. É perante o órgão Assembleia da República que o Governo é responsável e não apenas perante os deputados que o apoiam.
É por isso que, ao entrar para um Governo, cada um dos seus ministros deve abandonar todas as outras lealdades particulares que possua - com a única excepção das que façam parte da sua vida privada. Um ministro não pode ser do Benfica, nem maçon, nem beirão, nem católico, nem advogado.
Isto não significa que se tenha de despojar da sua história e de todas as crenças que constituem a sua identidade - o que não seria possível - mas quer dizer que, enquanto ministro, tem de pôr de lado as lealdades particulares que estão associadas a estas diferentes pertenças. Um ministro não deve tomar decisões “enquanto benfiquista”, nem seleccionar os membros do seu ministério “enquanto maçon”, nem decidir investimentos “enquanto beirão”, nem aprovar isenções fiscais “enquanto católico”, nem contratar serviços jurídicos “enquanto advogado”.
Esperamos e exigimos de um ministro que pense e aja enquanto ministro de todos os portugueses, sem privilegiar interesses particulares. Esperamos de um ministro que, durante o seu ministério, não faça visitas ao seu gabinete de advogado, por exemplo. E que não agite o cachecol do seu clube durante um jogo. Porque as suas funções exigem dele uma serena equidistância e independência. Esperamos de um ministro que faça o difícil exercício da isenção e que decida sem sectarismos.
E esperamos até de um ministro que abandone (ou suspenda) o seu sectarismo partidário e que pense no bem do país e de todo o povo em vez de pensar na maneira de promover o seu partido e de fazer tropeçar os adversários políticos. Não é lirismo. Apenas um imperativo ético.
Deveria ser claro que um ministro, mesmo que seja militante de um partido, durante a sua passagem pelo Governo trabalha apenas para o Governo, apenas para o país, apenas para o povo, e não deve dedicar uma hora que seja a qualquer outra actividade, a qualquer outra lealdade que não seja essa. Que passe um fim-de-semana com a família é algo que releva da sua vida inalienável vida privada. Mas que dedique uma tarde a uma reunião partidária é um abuso da confiança que lhe foi concedida pelo povo, porque tudo o que ele sabe e viu como ministro é algo que ou merece discrição ou que deve ser partilhado com todos os portugueses, mas nunca apenas com um grupo seleccionado com base no cartão do partido.
Sabemos que isto é comum, mas isso não torna a situação eticamente mais admissível. Seria desejável que um militante de um partido suspendesse a sua actividade partidária durante a sua passagem pelo Governo, mas o que vemos é que não só isso não acontece como vemos ministros abusar da sua condição de governantes para fazer o coaching dos deputados dos seus partidos, fornecendo-lhes informações e disponibilizando-se para discussões que negam aos restantes deputados, num inaceitável enviesamento do que deve ser a equidade de tratamento dos deputados da AR pelo Governo.
A pouca-vergonha que vimos nas Jornadas Parlamentares do PSD e do CDS, com membros do Governo oferecendo um tratamento preferencial aos deputados dos partidos da maioria, é algo comum, a que outros Governos nos habituaram, mas não é por isso menos condenável, tanto mais quando isso acontece nas próprias instalações do Parlamento.
Que a AR ceda instalações para actividades partidárias dos grupos parlamentares é normal, mas não é aceitável ceder instalações da AR para que o Governo leve a cabo um acto de favorecimento partidário, contrariando o seu dever de equidade no tratamento dos deputados. O Parlamento não é do Governo. Será que a presidente da Assembleia da República consegue esquecer o seu cartão partidário e dar-se conta da iniquidade da situação? (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, julho 09, 2013
Interrogações sem resposta e coisas que não vamos perceber nunca
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Julho de 2013
Crónica 26/2013
Passos Coelho consegue falar com Portas, ainda que muito firme e hirto, ou vai continuar só a mandar-lhe SMS?
A que vai ficar reduzido o papel do primeiro-ministro se Paulo Portas passa a ser o responsável pela coordenação económica, pelas negociações com a troika e pela reforma do Estado, num cenário onde é a troika que toma as decisões fundamentais? Ficámos com dois co-PM?
Como é possível uma relação de cooperação entre Pedro Passos Coelho e Paulo Portas se ambos se detestam e se desprezam? Como é possível um Governo onde todos se tentam envenenar em segredo? Como é possível imaginarem que nós não sabemos isso?
Como é possível que Portas regresse ao Governo depois de uma demissão “irrevogável”, motivada por imperativo de “consciência”, de confessar por escrito que apenas tem sido um verbo de encher no Governo, que tem sido “reiteradamente” ignorado por Passos Coelho e que ficar no Governo seria um “acto de dissimulação”?
Que argumentos usou Passos Coelho quando fez a Paulo Portas a proposta de regresso ao Governo que ele não pôde recusar? Como podia estar tão seguro de que podia convencer Portas quando recusou o seu pedido de demissão?
Passos Coelho pensa que aquela encenação do discurso no hotel deu uma imagem de reconciliação e unidade?
Passos Coelho consegue falar com Portas, ainda que muito firme e hirto, ou vai continuar só a mandar-lhe SMS?
Como é possível que Portas vá conviver no Governo - e tutele de facto - Maria Luís Albuquerque quando a apresentou como a gota que fez transbordar o vaso, quando considerou, por escrito, que a sua escolha não foi cuidadosa e quando considerou que ela constituía uma continuidade inaceitável da política seguida nas Finanças, num momento em que era imperioso “abrir um ciclo político e económico diferente”?
Como é possível que Maria Luís Albuquerque aceite ser tutelada por Paulo Portas? Que briefings fará Pedro Passos Coelho a Maria Luís Albuquerque? E a ministra, com quem despachará?
Que sentido tem dar a pasta das Finanças à adjunta de Vítor Gaspar, para prosseguir as suas políticas, depois deste ter admitido por escrito e em público o fracasso dessas mesmas políticas?
Que política orçamental vai ser seguida pelo Governo? A de Vítor Gaspar/Maria Luís Albuquerque ex-negociadores com a troika ou a de Paulo Portas, futuro negociador com “esses senhores” que vai tentar pôr fora do país o mais depressa possível?
Cavaco Silva vai aceitar a remodelação só hoje porque achou que uma crise no Governo não era nada que justificasse acelerar as audições aos partidos e encurtar o fim-de-semana?
Cavaco Silva sabe que pode demitir o Governo ou acha que só o Parlamento o pode fazer?
Passos Coelho vai passar a informar atempadamente o PR das demissões no Governo?
O que acontecerá quando Paulo Portas continuar a ser ignorado por Passos Coelho e perceber que o seu contributo continua a ser dispensável, que afinal não vai coordenar a economia, não vai dirigir as negociações com a troika, não vai decidir nada na reforma do Estado e tem um contrato assinado com sangue a dizer que está proibido de protestar em público?
Paulo Portas tinha mesmo alguma ideia na cabeça quando se demitiu ou foi só uma ideia que lhe passou pela cabeça mas não ficou lá?
Portas achava que o CDS o ia seguir como um só homem, mesmo sem perceber nada daquilo que ele não lhes tinha explicado, e que aceitava perder, sem estrebuchar, a oportunidade de estar no Governo?
Paulo Portas percebe que perdeu toda a credibilidade política no seio do seu partido, do Governo e do país ou pensa que gastou apenas mais uma vida?
O CDS percebe que perdeu uma fatia considerável da sua credibilidade política ou pensa que, desde que continue no Governo, está tudo bem?
Passos Coelho pensa que ganhou por ter obrigado o seu rival a ficar dentro da tenda? Paulo Portas pensa que ganhou porque tem mais pastas? Cavaco Silva pensa que ganhou por ter adiado as eleições?
Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva pensam mesmo que a solução encontrada garante a estabilidade e são todos mais (ou ainda mais) limitados do que parecem?
Seguro e Portas e Passos e Cavaco pensam mesmo que o país perdeu três mil e tal milhões de euros com a crise da semana passada? Nenhum deles sabe o que representam as cotações?
O que teriam feito o PR, o povo e todos os partidos se António José Seguro desse alguma mostra de ter um mínimo de competência, de consistência, de capacidade de liderança, em vez de ser o adolescente inseguro que é?
Que sentido tem a troika continuar a exigir a continuação da austeridade quando o FMI já admitiu reiteradamente que se enganou na receita e que as políticas que eles pensavam que seriam expansionistas são afinal fortemente recessivas? Que sentido tem o Governo português continuar a querer seguir a receita que a troika admitiu estar errada?
Quando é que o PS, o PSD, o CDS-PP, o Governo e Cavaco Silva reconhecem aquilo que todos os economistas sabem e admitem que esta dívida não pode ser paga, que tem de ser renegociada, parcialmente perdoada, os seus juros reduzidos e os prazos de pagamento redefinidos de acordo com a evolução da economia? (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, abril 09, 2013
Passos Coelho e Vítor Gaspar prosseguem com o plano A
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Abril de 2013
Crónica 13/2013
Se no fim não houver Portugal nem portugueses não faz mal. O que é preciso é pagar.
1. Conhecem aquelas empresas de “consultoria de gestão” que, quando são chamadas para aconselhar uma empresa em dificuldades, com receitas de nove milhões de euros e despesas de dez milhões, sugerem um despedimento de vinte por cento do pessoal, o que faz a última linha do balanço regressar ao azulna folha de Excel e depois cobram 500.000 euros pelo conselho como se tivessem resolvido alguma coisa? Todas têm algo em comum: são empresas experientes no Excel, por vezes hábeis no PowerPoint, e todas têm uma indiferença absoluta pela empresa que os contratou, pela qualidade dos seus produtos, pela satisfação dos seus clientes, pelo bem-estar dos seus trabalhadores, pela sociedade onde a empresa actua e pela dignidade das pessoas em geral. O que irá acontecer no longo prazo à empresa também lhes é absolutamente indiferente. Se algo correr mal, se a empresa se desagregar, se a sua reputação for destruída, se falir, dirão sempre que a responsabilidade foi da execução dos outros. A sua folhinha de Excel estava perfeita.
Estes consultores nunca têm dúvidas e raramente hesitam. Na sua folhinha de Excel é fácil chegar aos lucros. Basta fazer delete de uma coluna, reduzir 10 por cento na outra coluna, aumentar 20 por cento os valores de uma outra e o resultado aparece. Sempre.
Pedro Passos Coelho e Vítor Gaspar são os nossos exemplos caseiros destes tecnocratas de cálculo rápido e escrúpulo escasso. O Tribunal Constitucional chumba algumas medidas do orçamento? Aproveita-se a oportunidade para explicar que isto do Estado de Direito é uma chatice que só prejudica, mas não há problema: corta-se uma percentagemzinha nas colunas da Segurança Social, da Saúde e da Educação e na coluna das empresas públicas põe-se a receita da sua venda. Não há problema. Era o que já estávamos a fazer. Olha, já bateu certo! Cá está: os 1300 milhões do orçamento deste ano, mais os 4.000 milhões que a gente já tinha dito, mais os 1600 milhões que afinal também era preciso porque não eram bem 4.000 milhões... Eu não disse que não era preciso plano B?
Gaspar tinha razão. O plano foi sempre e continua a ser o Estado mínimo, a destruição do Estado Social e a sua substituição pela caridade privada, a alienação do património público, a privatização dos serviços públicos, o empobrecimento da população, a criação de um exército de desempregados disponíveis para aceitar remunerações de miséria. E pagar a dívida e os juros. É para isso que o Governo cá está. E se no fim não houver Portugal nem portugueses não faz mal. É o plano A. Continua a ser o plano A. Sempre foi o plano A.
2. António José Seguro garante estar disponível, pronto e desejoso de governar Portugal, ainda que apenas após eleições. Mas quando interrogado sobre a forma como resolveria o problema do orçamento de 2013 responde que o problema não é seu e que quem criou o problema que o resolva. Alguém pode explicar a Seguro (sei lá, um tio ou um vizinho ou assim) que governar significa ter de resolver todos os problemas do país, incluindo os que o Governo anterior deixou? Ou Seguro, quando for primeiro-ministro, tenciona chamar Passos Coelho para tratar dos dossiers que tenham ficado pendentes?
(Já agora: alguém faz ideia de quem seria o Governo de António José Seguro? Só para termos uma noção.)
3. Na sua comunicação ao país, Pedro Passos Coelho nunca colocou sobre a mesa a possibilidade de uma renegociação da dívida ou dos termos do memorando assinado com a troika, nunca esboçou qualquer atitude de maior firmeza negocial com os credores, nunca sugeriu a mínima intenção de jogar uma cartada que fosse em defesa do país e dos portugueses - quando tudo justificaria que o fizesse, por imperativo de Estado, por razões de táctica política na relação com os restantes países da União Europeia, por razões humanitárias e até por razões de dignidade pessoal. Apesar de ser evidente que a dívida é impossível de pagar, que os esforços nesse sentido apenas pioram a situação financeira e destroem a economia, que os juros sacrificam os portugueses e colocam em causa o futuro do país. Para Passos Coelho, as únicas prioridades são o pagamento da dívida, custe o que custar. Um pagamento que nunca estará concluído e que condena o país a uma escravatura eterna. Para Passos Coelho, os credores mandam, os usurários merecem respeito e os mercados são os únicos senhores. Nunca um primeiro-ministro se mostrou tão servil perante um poder estrangeiro (porque é também de relações entre países que se trata), tão zeloso na sua posição de lacaio dos mais fortes e tão indiferente perante o sofrimento dos mais fracos. Nunca nesta república um primeiro-ministro, que jurou cumprir a Constituição e defender a soberania nacional, desrespeitou de forma tão descarada o seu juramento solene e aviltou desta forma a honra do país que devia servir.
terça-feira, janeiro 29, 2013
Esquemas piramidais e luta de classes
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Janeiro de 2013Crónica 4/2013
O maravilhoso “regresso aos mercados” não é senão mais um pedido de empréstimo que vai aumentar o endividamento
“Dívida! MÁ! MÁ!!! Dívida PFFFF! MÁ dívida, MÁ!!”
Deve-se dizer isto várias vezes com ar de grande nojo e repulsa, esfregando a dívida no focinho do cão e agitando-a de forma irritante de forma que ele associe para sempre a dívida a algo profundamente odioso. Não deixe o cão morder a dívida para que a frustração do animal aumente a sua agressividade. Ao fim de algumas semanas o efeito deve ser visível.
“Financiamento! BOM! BOM! Oh, financiamento lindo! BONITO! BONITO! Olha o regresso aos mercados, tão lindo!! BONITO! BONITO!” O processo deve ser idêntico ao anterior mas simétrico. Enquanto se mostra o financiamento, deve-se acarinhar o cão e mostrar uma intensa alegria. Deixe o cão brincar um pouco com o regresso aos mercados enquanto lhe coça a barriga e lhe acaricia a cabeça atrás das orelhas. Faça festinhas no regresso aos mercados e repita “AMIGO! AMIGO!”. Durante a brincadeira, dê uns biscoitos ao cão.
É assim que o Governo, os partidos da maioria, os media que repetem o que estes dizem (o que significa praticamente toda a televisão e a esmagadora maioria da restante imprensa) e uma parte considerável do PS nos têm tratado - e a estratégia tem resultado. Endividamento é mau! Regresso aos mercados é bom! E nós abanamos a cauda, sem perceber bem porquê e repetimos o mantra.
Mas, se pararmos para pensar um bocadinho, constatamos que este maravilhoso “regresso aos mercados”, que este vitorioso “acesso ao financiamento” não é senão mais um pedido de empréstimo... o que vai necessariamente aumentar o endividamento. E, o que é mais preocupante, que vai provavelmente substituir dúvida antiga, a juro mais baixo, por dívida actual, a juro mais alto.
Qual é a vantagem então deste “regresso aos mercados” e por que é que tanta gente embandeira em arco? A vantagem é, antes de mais, uma vitória de propaganda. Seria uma excelente notícia se os mercados, apesar da sua sacanice intrínseca e do seu conhecido disfuncionamento, considerassem que Portugal oferecia condições de segurança para fazer investimentos. Isso quereria dizer que se esperava que a economia portuguesa tivesse um crescimento espectacular e isso seria bom. Mas, na realidade, nada permite alimentar a ideia de que os mercados pensem isto. O “regresso aos mercados” foi possível, como sabemos, porque o BCE garantiu em última instância a dívida contraída e, apesar disso, vamos ter de pagar por este maravilhoso regresso aos mercados juros superiores aos que nos cobra o maléfico FMI. Ou seja: os mercados desconfiam.
Em teoria, é evidente que é melhor poder pedir dinheiro emprestado a várias entidades do que a uma só. Se o mercado funcionasse, isso quereria dizer que poderíamos regatear e obter melhores condições nos empréstimos. Mas como “os mercados” sabem que precisamos de ir “aos mercados” para fingir que está tudo bem, só conseguimos comprar dinheiro mais caro.
O que o Governo conseguiu fazer com o regresso aos mercados foi empurrar a dívida para a frente com a barriga (sim, aquilo que acusa o governo Sócrates e o PS em geral de ter feito) e espera poder fazê-lo ainda mais vendendo dívida a mais longo prazo nas futuras emissões. Trata-se - como uma grande parte do jogo da finança nos últimos anos - de uma espécie de esquema piramidal: contrair dívida futura para pagar dívida de hoje, ficar a dever cada vez mais e esperar um milagre um dia para poder pagar tudo. O regresso aos mercados é uma boa notícia para o Governo, mas apenas porque lhe permite realizar o seu programa ideológico: eternizar o programa de “austeridade”, de “ajustamento”, de empobrecimento, de escravização da população portuguesa em favor dos credores. A verdade insofismável é que devemos cada vez mais, a nossa economia está cada vez mais enfraquecida, as pessoas cada vez mais pobres, a sociedade cada vez mais desigual.
O regresso aos mercados também permite aos bancos a mesma fuga para a frente - contrair dívida a pagar cada vez mais tarde e usar o crédito caro para escravizar mais umas quantas empresas e acentuar o seu carácter rentista. Claro que, pelo caminho, é possível que umas quantas empresas consigam financiamento necessário que até agora lhes estava vedado - e isso é bom. Mas é difícil ver nesta operação vantagens para a população em geral.
E isto é uma das conclusões evidentes de toda esta salganhada em que nos meteram. Governo e partidos do Governo e media continuam a falar destas operações como se fossem boas para “o país” e para “os portugueses”, escamoteando que os interesses dos bancos ou dos patrões não são de forma alguma os mesmos dos trabalhadores e da população em geral. Votado ao ostracismo o conceito de luta de classes, apenas mencionado com rubor, os políticos persistem em esconder o facto insofismável que existem interesses opostos nas diferentes classes - como a crescente desigualdade criada pela crise mostra à evidência. O desemprego crescente que afecta uma grande parte da população tem como contrapartida o aumento da venda de Lamborghinis noutra camada restrita da população. O regresso aos mercados não é igual para todos. (jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 29 de Janeiro de 2013Crónica 4/2013
O maravilhoso “regresso aos mercados” não é senão mais um pedido de empréstimo que vai aumentar o endividamento
“Dívida! MÁ! MÁ!!! Dívida PFFFF! MÁ dívida, MÁ!!”
Deve-se dizer isto várias vezes com ar de grande nojo e repulsa, esfregando a dívida no focinho do cão e agitando-a de forma irritante de forma que ele associe para sempre a dívida a algo profundamente odioso. Não deixe o cão morder a dívida para que a frustração do animal aumente a sua agressividade. Ao fim de algumas semanas o efeito deve ser visível.
“Financiamento! BOM! BOM! Oh, financiamento lindo! BONITO! BONITO! Olha o regresso aos mercados, tão lindo!! BONITO! BONITO!” O processo deve ser idêntico ao anterior mas simétrico. Enquanto se mostra o financiamento, deve-se acarinhar o cão e mostrar uma intensa alegria. Deixe o cão brincar um pouco com o regresso aos mercados enquanto lhe coça a barriga e lhe acaricia a cabeça atrás das orelhas. Faça festinhas no regresso aos mercados e repita “AMIGO! AMIGO!”. Durante a brincadeira, dê uns biscoitos ao cão.
É assim que o Governo, os partidos da maioria, os media que repetem o que estes dizem (o que significa praticamente toda a televisão e a esmagadora maioria da restante imprensa) e uma parte considerável do PS nos têm tratado - e a estratégia tem resultado. Endividamento é mau! Regresso aos mercados é bom! E nós abanamos a cauda, sem perceber bem porquê e repetimos o mantra.
Mas, se pararmos para pensar um bocadinho, constatamos que este maravilhoso “regresso aos mercados”, que este vitorioso “acesso ao financiamento” não é senão mais um pedido de empréstimo... o que vai necessariamente aumentar o endividamento. E, o que é mais preocupante, que vai provavelmente substituir dúvida antiga, a juro mais baixo, por dívida actual, a juro mais alto.
Qual é a vantagem então deste “regresso aos mercados” e por que é que tanta gente embandeira em arco? A vantagem é, antes de mais, uma vitória de propaganda. Seria uma excelente notícia se os mercados, apesar da sua sacanice intrínseca e do seu conhecido disfuncionamento, considerassem que Portugal oferecia condições de segurança para fazer investimentos. Isso quereria dizer que se esperava que a economia portuguesa tivesse um crescimento espectacular e isso seria bom. Mas, na realidade, nada permite alimentar a ideia de que os mercados pensem isto. O “regresso aos mercados” foi possível, como sabemos, porque o BCE garantiu em última instância a dívida contraída e, apesar disso, vamos ter de pagar por este maravilhoso regresso aos mercados juros superiores aos que nos cobra o maléfico FMI. Ou seja: os mercados desconfiam.
Em teoria, é evidente que é melhor poder pedir dinheiro emprestado a várias entidades do que a uma só. Se o mercado funcionasse, isso quereria dizer que poderíamos regatear e obter melhores condições nos empréstimos. Mas como “os mercados” sabem que precisamos de ir “aos mercados” para fingir que está tudo bem, só conseguimos comprar dinheiro mais caro.
O que o Governo conseguiu fazer com o regresso aos mercados foi empurrar a dívida para a frente com a barriga (sim, aquilo que acusa o governo Sócrates e o PS em geral de ter feito) e espera poder fazê-lo ainda mais vendendo dívida a mais longo prazo nas futuras emissões. Trata-se - como uma grande parte do jogo da finança nos últimos anos - de uma espécie de esquema piramidal: contrair dívida futura para pagar dívida de hoje, ficar a dever cada vez mais e esperar um milagre um dia para poder pagar tudo. O regresso aos mercados é uma boa notícia para o Governo, mas apenas porque lhe permite realizar o seu programa ideológico: eternizar o programa de “austeridade”, de “ajustamento”, de empobrecimento, de escravização da população portuguesa em favor dos credores. A verdade insofismável é que devemos cada vez mais, a nossa economia está cada vez mais enfraquecida, as pessoas cada vez mais pobres, a sociedade cada vez mais desigual.
O regresso aos mercados também permite aos bancos a mesma fuga para a frente - contrair dívida a pagar cada vez mais tarde e usar o crédito caro para escravizar mais umas quantas empresas e acentuar o seu carácter rentista. Claro que, pelo caminho, é possível que umas quantas empresas consigam financiamento necessário que até agora lhes estava vedado - e isso é bom. Mas é difícil ver nesta operação vantagens para a população em geral.
E isto é uma das conclusões evidentes de toda esta salganhada em que nos meteram. Governo e partidos do Governo e media continuam a falar destas operações como se fossem boas para “o país” e para “os portugueses”, escamoteando que os interesses dos bancos ou dos patrões não são de forma alguma os mesmos dos trabalhadores e da população em geral. Votado ao ostracismo o conceito de luta de classes, apenas mencionado com rubor, os políticos persistem em esconder o facto insofismável que existem interesses opostos nas diferentes classes - como a crescente desigualdade criada pela crise mostra à evidência. O desemprego crescente que afecta uma grande parte da população tem como contrapartida o aumento da venda de Lamborghinis noutra camada restrita da população. O regresso aos mercados não é igual para todos. (jvmalheiros@gmail.com)
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