sábado, novembro 15, 2008

1932-2008 João Martins Pereira O radical que gostava de compreender as coisas

Por José Vítor Malheiros

Públicado no jornal Público, caderno P2, a 15 de Novembro de 2008


Engenheiro, ensaísta de fundo, governante efémero, jornalista acidental, estudioso do capitalismo português, fundador do MES, amante da igualdade e da liberdade, independente contumaz, marxista heterodoxo, sartriano revolucionário e radical

Descobriu o que era esquerda e direita no final dos anos 50, "à custa da guerra da Argélia", durante uma estadia de dois anos na Alemanha, onde esteve a frequentar um estágio profissional que o iria preparar para dirigir um alto-forno na Siderurgia Nacional. Não que a guerra da Argélia marcasse particularmente o dia-a-dia na Alemanha - ou na Áustria, onde também esteve durante o mesmo período - mas porque foi aí, na livraria francesa de Düsseldorf, que descobriu a leitura do Express, do France Observateur (depois Nouvel Observateur) e dos Temps Modernes de Jean-Paul Sartre, que se manterá para sempre como uma referência central, a sua "única família" política. É o próprio João Martins Pereira que conta assim a sua descoberta da esquerda na entrevista que concedeu à sua amiga Maria João Seixas na revista PÚBLICA de 1 de Abril de 2001.
Referência incontornável da esquerda portuguesa que viveu os anos 60 e 70, pensador inconformista de uma política que entendia como algo que tinha o dever de "reduzir as desigualdades e alargar o leque de escolha das pessoas, a liberdade", João Martins Pereira, engenheiro de formação, engenheiro fabril e de projecto de profissão, ensaísta de fundo, governante efémero, jornalista acidental, estudioso da história do capitalismo português e de economia industrial, investigador desse mistério que é como pôr uma economia de inovação ao serviço de uma política de liberdade, fundador do Movimento de Esquerda Socialista (MES) e independente contumaz, marxista heterodoxo e não dogmático que nunca foi comunista nem católico, sartriano revolucionário e radical e conversador emérito morreu anteontem em Lisboa, em sua casa, a dias de cumprir os 76 anos, vítima de um cancro tardiamente diagnosticado.
Se é difícil encontrar hoje quem reconheça o seu nome entre os menores de 50 anos, para além dos leitores habituais das suas crónicas no Combate, onde colaborou desde o fim dos anos 80, é impossível encontrar alguém que não o reconheça, acima desse limiar etário, entre os cultores da política e nos meios da esquerda portuguesa.
Porquê o desconhecimento dos mais jovens? "O João Martins Pereira não fazia o circuito das televisões nem dos colóquios", diz o líder do Bloco de Esquerda Francisco Louçã, seu amigo e camarada de Combate. "O João era um conversador extraordinário mas tinha um certa timidez que o mantinha afastado de certos meios. Além de que os seus livros se dirigem a um público um pouco especializado. Mas era sem dúvida o pensador marxista mais criativo em Portugal, de um marxismo que não estava preso a nenhuma ortodoxia."
Um marxismo que ele mantinha como referência no pensamento económico, ainda que não como filosofia política. Ontem, aliás, no Colóquio Internacional Karl Marx, a decorrer em Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, o historiador Fernando Rosas faria uma evocação de Martins Pereira, dizendo que, se ele fosse vivo, estaria certamente ali, contribuindo para os trabalhos com a sua "inteligência crítica".
João Martins Pereira teve uma passagem meteórica pela governação, em 1975, no IV Governo Provisório, presidido por Vasco Gonçalves. Foi secretário de Estado da Indústria e Tecnologia, a convite do seu amigo João Cravinho, que ocupou a pasta da Indústria e Tecnologia. No site do Governo na Internet, na secção Arquivo Histórico, pode ver-se a composição do Governo. E lá aparece João Bahuto Pereira da Silva - não parece, mas é João Martins Pereira.
"O João Martins Pereira nunca tinha querido estar na acção política directa, assumir cargos políticos", conta João Cravinho, "Mas quando o fui convidar nessa altura, ele achou que não era possível dizer que não. Tinha a noção de que se tratava de um momento-chave. Lembro-me que me disse algo do género 'Isto agora é que é. Ou pegamos nisto e levamos isto para a frente ou isto perde-se'."
A missão que coube ao secretário de Estado foi histórica: as nacionalizações das grandes empresas industriais, que vieram na sequência da anterior nacionalização da banca, imediatamente depois do golpe do 11 de Março. "Naquele contexto, as nacionalizações da indústria eram inevitáveis", continua João Cravinho. "As empresas estavam profundamente endividadas e a visão política da época era a de que a consolidação da democracia só seria possível através dessas nacionalizações. A alternativa seria não o fazer e ajudá-las com financiamentos públicos maciços - o que naquele contexto político era impensável - e enveredar por um regime de democracia musculada que continuaria a ser tutelada por esses cinco ou seis grandes grupos económicos - a solução preconizada por Spínola."
As nacionalizações abrangeram a siderurgia, os cimentos, os estaleiros navais, a química pesada e petroquímica, as celuloses. Feitas as nacionalizações, Martins Pereira deixou o Governo, sem conflitos mas desiludido com o rumo da governação e com as inúmeras coisas que não era possível fazer. Antes de sair empenhou-se na criação daquilo que hoje se chamaria um cluster de metalo-mecânica, negociando com muitas empresas do sector redes de cooperação que esperava pudessem servir de empurrão à economia, quase paralisada.
Quando entrou para o Governo, a sua reputação já estava estabelecida. O seu primeiro livro, "Pensar Portugal Hoje" (D. Quixote, 1971) uma colectânea de artigos cuja primeira edição de 3000 exemplares se esgotou num mês, foi uma obra central para aqueles que, contra ou nas margens do regime, ansiavam pela modernização e pela democracia.
"O João Martins Pereira tinha uma enorme capacidade analítica e uma grande capacidade crítica e o Pensar Portugal Hoje era uma proposta de reflexão do país, à esquerda", diz João Cravinho. "O livro tinha uma conceptualização ideológica forte, mas não era um livro de chavões, não fazia as leituras que na altura eram as convencionais na esquerda. Era um livro aberto, com uma grande frescura analítica, que se opunha àquelas ortodoxias que às vezes não tinham grande apoio na realidade. Não era um livro a preto e branco."
Era essa abertura que fazia de João Martins Pereira uma figura sui generis, onde habitava, a par de uma grande radicalidade política que o colocava no extremo do espectro político - apoiante de Otelo Saraiva de Carvalho, nas presidenciais 1976; próximo do Bloco de Esquerda, em cuja convenção fundadora fez uma das intervenções de fundo -, um sentido crítico e um sentido da realidade social que frequentemente o fazia entrar em choque com os mais dogmáticos. Aconteceu aliás na própria fundação do BE, onde a sua intervenção suscitou reacções pouco apreciadoras.
A sua intervenção cívica e intelectual, constante, fê-lo passar, em 1967-1968, pelo corpo redactorial da Seara Nova. Em 1969-1970 fez parte do grupo que lançou a segunda série de O Tempo e o Modo. Integrou a equipa colectiva que publicou, em 1969, o livro "Alguns Aspectos do III Plano de Fomento" (Ed. Seara Nova) e foi responsável pela secção económica da revista Vida Mundial entre Novembro de 1974 e Março de 1975. Seria mais tarde director interino do semanário Gazeta da Semana e, posteriormente, director da Gazeta do Mês.
Na universidade, depois de se licenciar em engenharia química no Instituto Superior Técnico - onde "foi um aluno brilhante e bateu alguns recordes de notas", como lembra o colega João Cravinho -, foi professor de 1970 a 1972: assistente de Economia Industrial no ISCEF (depois Instituto Superior de Economia).
A lista de obras que publicou inclui títulos como "Indústria, Ideologia e Quotidiano" (Afrontamento, 1974), "Sistemas Económicos e Consciência Social" (F. Calouste Gulbenkian, 1980), "No Reino dos Falsos Avestruzes" (A Regra o Jogo, 1983), "O Dito e o Feito" (Ed. Salamandra, 1989), "À Esquerda do Possível" (Edições Colibri, 1993).
O seu livro mais recente, "Para a História da Indústria em Portugal, 1941-1965" (ICS, 2005), parte de um ambicioso projecto que fica incompleto: um estudo, sector a sector, da indústria portuguesa. O objectivo? "Tentar compreender as razões por que a indústria portuguesa tem uma geração de atraso", explica Francisco Louça, com quem discutiu o projecto. "Tentar compreender as razões do fracasso da burguesia portuguesa como projecto económico e social."

Tentar compreender. Como sempre.
O funeral sai hoje às 16h45 da Biblioteca do Palácio Galveias, no Campo Pequeno, para o cemitério do Alto de São João. 

terça-feira, agosto 12, 2008

Da pintura das passadeiras

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Agosto de 2008
Crónica xxx/2008

Os cidadãos reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que a norma pública manifesta por eles

Numa das ruas que atravesso a pé nos meus trajectos diários apareceu há tempos uma passadeira pintada de fresco. A passadeira era uma zebra daquelas onde não há semáforo e onde não há dúvidas quanto a quem tem prioridade: são mesmo os peões.

Aconteceu que a passadeira foi pintada de fresco e os carros começaram a parar para os peões passarem.

Não era aquele habitual abrandar envergonhado para não dar parte de fraco enquanto os peões correm para se pôr a salvo. Os carros paravam mesmo e os peões passavam. Era prático.

À medida que o tempo passava, a tinta foi enegrecendo, o contraste foi-se tornando menos nítido entre as riscas brancas e pretas da zebra e aconteceu o inevitável. A lógica binária induzida pela passadeira pintada de fresco (pára, anda) foi substituída por uma lógica fuzzy (abranda às vezes; nem abranda; deixa passar um, mas não dois; as mulheres sim, os homens não) que traduzia em termos normativos os graus de cinzento do asfalto manchado.
Há muitas interpretações para o facto. Pode-se pensar que os carros deixaram de obedecer à passadeira em virtude daquilo que os americanos chamam plausible deniability. ("Passadeira? Qual passadeira? Eu vi umas marcas muito sumidas, mas pensava que fossem de uma passadeira antiga que já nem existisse"). Pode-se pensar que alguns dos automobilistas não vejam mesmo as marcas (é por isso que a deniability é plausible). E pode-se pensar que outros não queiram ser alvo da chacota dos seus colegas automobilistas se pararem ("Tás a parar na passadeira, ó betinho? Pensas que tás na Suíça? Não tás a ver cas marcas tão tão sumidas quisto dá plausible deniability? Anda mazé pá frente, ó tótó!..."), numa situação a que se poderia dar o nome de cascading plausible deniability ou plausible deniability chain reaction (ou também incivilidade viral).

Mas a minha teoria é outra. Penso que a razão por que as pessoas param numa passadeira bem pintada mas não numa passadeira suja e sumida não é porque no segundo caso se possam safar facilmente sem sanção, mas sim porque reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que essa norma pública manifesta por eles. A atitude não será desculpável, mas é compreensível e mesmo defensável.

No fundo, é a mesma razão que faz com que, numa praia cheia de lixo, um veraneante não se importe de atirar a lata vazia de cerveja para o areal e numa outra praia imaculada, onde seja evidente o cuidado posto na sua limpeza, faça cem metros ao sol para ir buscar uma lata de cerveja vazia para servir de cinzeiro. O campo colhe o que semeia e a cidade também. E as passadeiras sumidas e sujas semeiam automobilistas que não respeitam peões.

A mensagem subliminar da passadeira sumida é que, de facto, o seu papel não é muito importante, que a regra que ela pretensamente impõe não é respeitável, que ela não é levada a sério por ninguém e que ninguém se importará muito se ela não for respeitada. Uma sociedade democrática rege-se por regras consensualmente impostas para benefício de todos, mas para isso é fundamental que o princípio de equidade seja respeitado. Eu só respeitarei uma regra se ela for respeitada por todos, só pararei na passadeira se todos pararem, só pagarei impostos se eles forem pagos por todos, etc.

A passadeira sumida declara que quem a pintou não acata a disciplina que exige de mim ou, alternativamente, declara que, na realidade, não exige disciplina de ninguém.

Não sei se o homem é naturalmente bom ou naturalmente mau (tendo a pensar que é naturalmente assim-assim) mas tenho a certeza de uma coisa: se houvesse mais passadeiras bem pintadas, seria melhor do que é. Jornalista

terça-feira, maio 13, 2008

Homlipse ou a existência das coisas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Maio de 2008
Crónica x/2008
 
A "General History of Labyrinths", de Silas Haslam, é um livro com belíssimas ilustrações feitas pela mulher do autor

Uma coisa que têm de fascinante a arte ou a religião (poderia dizer-se o pensamento ou a linguagem) é a sua impossibilidade de ter como referente o inexistente. Basta nomear algo para essa coisa existir. Basta imaginar que se intuiu, sonhar que se imaginou.

Não precisamos de resolver se o pensamento é possível ou não sem a linguagem para saber que ambos são indissociáveis da criação. Criamos como respiramos, mesmo sem querer, e inventamos sentido de forma automática para o mais ténue dos ectoplasmas. É impossível que algo não tenha uma história. Tudo evoca algo.

Vistas as coisas assim, não há nada que não exista. As coisas existem mais ou menos corporeamente, apenas. Mais ou menos consensualmente. Mas todas as coisas nomeáveis existem, todas as coisas vislumbradas, sentidas, imaginadas, desejadas. No mundo do pensamento ou da linguagem, o real é apenas uma das categorias das coisas, o irreal é apenas outra.

Quando George W. Bush falou de "nucular weapons" elas passaram a existir como expressão, aliás rica de significado (veja-se www.wikiality.com/Nucular_weapons), ainda que não como armas físicas. Exactamente da mesma maneira que a expressão "pensamento político de Luís Filipe Menezes" também existe.

Curiosamente, esta produção de sentido - racional por excelência, mas não exclusivamente devida à razão (vide Damásio) - constitui um contraponto à ciência moderna. Enquanto na Idade Média tudo era possível - um dragão podia fazer desaparecer um castelo com um sopro -, a ciência do século XVII fez surgir o impossível, com a sua tónica na experimentação, em causas e efeitos. O impossível do mundo real desvanece-se na nossa mente e é por isso que até sabemos a cor das escamas do dragão.

Lembro-me de uma vez, antes da Web, ter telefonado para a livraria inglesa Hatchards para fazer uma encomenda e de ter incluído no rol um livro que fez o meu livreiro franzir o sobrolho: "A General History of Labyrinths", de Silas Haslam. "Onde é que viu essa referência? Por acaso foi num livro de Borges?" "Ah... acho que sim... porquê?" "É uma daquelas brincadeiras que ele faz. Esse livro não existe." Fiquei desiludido porque se trata de um livro excelente, de grande erudição, com belíssimas ilustrações feitas pela mulher do autor, Anna, uma estudante de Belas-Artes vienense que viria a enlouquecer e que morreu num manicómio em Londres, mas não havia nada a fazer. Se o livro não existia não o podia comprar. Mas sei como ele é.

A revista "New Yorker" possui uma secção sobre língua onde os leitores podem sugerir palavras que não existem mas deviam existir. A maior parte delas são complexas e eruditas, mas é provável que alguma acabe por entrar na língua, apesar da estreiteza da porta. E todas estas palavras existem, todas possuem origens e sentido.

Numa conversa sobre palavras (não, não foi o acordo ortográfico) com a minha filha de nove anos, onde ela evidenciava o conservadorismo natural da idade, desafiei-a a dada altura a dizer uma palavra que não existisse. "Homlipse!" foi a resposta rápida, logo seguida de dúvida "Já existe?..." "Agora já! Inventaste-a!" "E o que é que quer dizer?" "Escreve-se com agá ou sem agá?" "Com agá!" "Uma homlipse é todo o pensamento de onde o humano está ausente. É quando não se pensa nas pessoas mas só nas coisas". "Inventaste agora, não foi?" "Tu inventaste a palavra, eu tinha de dar um significado. É uma palavra um bocado difícil". "É porque tinha de ser uma palavra que não existisse."

Agora já existe mesmo e daqui a uns dias até pode ser procurada no Google. Por enquanto, o Google dá como alternativa "homeclips". Jornalista