quinta-feira, maio 31, 2012

Comentários aos princípios definidos por Kovach e Rosenstiel no livro “The Elements of Journalism” (2001 e 2007)



Contributo para o Projecto Jornalismo e Sociedade:

Princípios e desafios do jornalismo na época dos media digitais em rede (CIES-IUL – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa)

por José Vítor Malheiros

Comentários de ordem geral

Os princípios são pouco específicos do jornalismo. Quase todos se poderiam aplicar a cientistas ou juízes, por exemplo.
Os princípios não se referem à tarefa específica do jornalismo (descrever a realidade) ainda que dedique vários princípios à maneira como os jornalistas devem levar a cabo essa tarefa não especificada.

Comentários ponto a ponto

1º - A primeira obrigação do jornalismo é para com a verdade
OK

2º - O jornalismo deve manter-se leal, acima de tudo, aos cidadãos
Este “acima de tudo” contraria o ponto 1. Afinal é acima de tudo ao serviço da verdade ou acima de tudo ao serviço dos cidadãos? Seria aceitável “O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos”, mas prefiro uma referência à sociedade e à cidadania a uma referência aos cidadãos, que poderia
PROPOSTA: O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos e ao interesse público.

3º - A essência do jornalismo assenta numa disciplina da verificação
Não gosto da “essência”. Parece que falamos de algo intangível e aqui parece-me que é bastante tangível. Trata-se de procedimentos, de critérios.
Podemos dizer algo mais do que “verificar”. Verificar pode ser fazer a mesma coisa duas vezes.
PROPOSTA: A prática do jornalismo assenta numa disciplina de validação da informação e no confronto de diferentes fontes.

4º - Aqueles que o exercem devem manter a sua independência em relação às pessoas e aos acontecimentos que relatam.
Primeira referência ao facto de que os jornalistas relatam algo.
Não gosto de “manter”. Parece-me demasiado passivo. Prefiro “preservar” porque sugere que a independência é um bem constantemente submetido a um ataque.
PROPOSTA: Aqueles que o exercem devem preservar a sua independência em relação às pessoas e aos acontecimentos que relatam.

5º - O jornalismo deve vigiar o poder de forma independente
Repete inultilmente o valor da independência, que já estava afirmado no ponto anterior.
Da maneira que está escrita não se sugere que esta é uma tarefa essencial do jornalista. Com a actual formulação pode interpretar-se que, quando o jornalista, uma vez por acaso, vigia o poder, o deve faer de forma independente.
Prefiro “os poderes”. Há muitos e devemos sublinhar esse facto.
PROPOSTA: O jornalismo deve vigiar os poderes de forma activa.

6º - O jornalismo deve proporcionar um fórum para a crítica e o compromisso públicos
Não gosto de “um fórum”. Há muitos fóruns, mesmo dentro do jornalismo. Dá uma ideia demasiado organizada do que é e deve ser o debate público.
Não gosto de “deve proporcionar”. O jornalismo deve fazer mais do que isso. Não apenas “proporcionar” o fórum mas “estimulá-lo”, “alimentá-lo”, “promovê-lo”.
O debate não é apenas crítica e compromisso. É também produção de ideias novas, confronto de modelos, etc.
PROPOSTA: O jornalismo deve estimular o debate público e a consolidação da opinião pública.

7º - O jornalismo deve esforçar-se por tornar relevante e interessante o que é significativo
Porquê aqui o “esforçar-se por” quando nos outros princípios somos muito mais peremptórios?
Porquê significativo? Tudo é significativo. Sejamos mais atrevidos. Há uma grande sobreposição entre relevância e importância e entre relevância e significado
PROPOSTA: O jornalismo deve tornar interessante o que é importante.

8º - O jornalismo deve produzir notícias abrangentes e proporcionadas
Muito redutor. Só notícias?
Não sei o que quer dizer “abrangente”.
Gosto de pluralidade. Tem uma ideia de complexidade e riqueza.
Acho que este princípio devia aparecer mais acima, ainda que a ordem não represente uma hierarquia. É a primeiro que diz o que o jornalismo faz. Os outros dizem como o deve fazer.
PROPOSTA: O jornalismo deve produzir narrativas equilibradas e que descrevam a realidade em toda a sua pluralidade.

9º - Aqueles que o exercem devem ser livres de seguir a sua própria consciência
OK
Só preferia repetir jornalismo em vez de usar o pronome.
PROPOSTA: Aqueles que exercem o jornalismo devem ser livres de seguir a sua própria consciência.

10º - Também os cidadãos têm direitos e responsabilidades, no que diz respeito à
informação noticiosa
Penso que é descabido que, num documento onde se alinham os princípios que os jornalistas devem respeitar, se definam responsabilidades para os cidadãos. Isso é para a Carta de Princípios dos Cidadãos, não para esta.
Quanto aos direitos dos cidadãos, toda esta carta (e não apenas este ponto) foi feita para os garantir.
PROPOSTA: Cortar na totalidade.

Sugestão de novos princípios

Sugestão 1
Há uma preocupação de equidade que o jornalismo não tem de facto e que deve ser uma das suas preocupações centrais: dar voz a quem não a tem, “go where the silence is”.

PROPOSTA: O jornalismo deve empenhar-se em dar voz e visibilidade a todos os cidadãos.

Sugestão 2
Os princípios que regem a prática do jornalismo devem ser públicos. O segredo não é a alma deste negócio.

PROPOSTA: O jornalismo pauta-se por critérios e procedimentos públicos e transparentes.

Sugestão 3
O século XXI é o século de um jornalismo que deixou de ser apenas top-down para ser também comunicação horizontal e bottom-up. A conversa deve fluir em todos os sentidos e o jornalismo, de forma a reconquistar a sua credibilidade, deve saber submeter-se ao escrutínio, à critíca e as correcções dos seus leitores/ouvintes/telespectadores.
A torre de marfim corporativa é algo que não é apenas mau para o negócio: é algo que contraria a missão do jornalismo.

PROPOSTA: O jornalismo deve oferecer-se à crítica dos cidadãos e ao debate público.

Sugestão 4
O jornalismo é algo que deixou de ser feito apenas por jornalistas. Mesmo quando se defende o valor específico do jornalismo feito por profissionais obrigados a regras deontológicas próprias, é inegável a importância da contribuição dos cidadãos na produção das narrativas jornalísticas e das opiniões (através de comentários, informações, críticas, etc.).
Há um novo jornalismo a fazer não para os cidadãos, nem por causa dos cidadãos, mas com os cidadãos.

PROPOSTA: O jornalismo deve facilitar a participação dos cidadãos na construção das narrativas noticiosas e da opinião pública.

José Vítor Malheiros
Maio 2012

terça-feira, maio 29, 2012

E não se pode extingui-los?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Maio de 2012
Crónica 22/2012


Os serviços de informações pagos pelos nossos impostos tornaram-se um exército privado ao serviço de interesses obscuros

Para que servem os serviços de informações? Todos sabemos para que podem servir os serviços de informações, em teoria, e todos lemos suficientes romances de espionagem para saber aquilo para que os serviços de informações podem servir. Mas a pergunta refere-se à realidade actual e a Portugal.
Para que servem hoje os serviços de informações portugueses? Se tivermos em conta as notícias que temos lido nos últimos meses, a resposta é fácil: os serviços de informações servem exclusivamente como exército privado ao serviço do partido que domina o aparelho de Estado num determinado momento e são usados para a recolha de informação privada ou reservada ao serviço de interesses particulares e para o exercício de pressões para servir os mesmos interesses.
No fundo, servem apenas para que umas quantas pessoas com poder e sem escrúpulos aumentem o seu poder e a sua conta bancária e intimidem os seus rivais e adversários graças ao trabalho de serviços públicos pagos por si e por mim.
Para além disto, se fazem mais alguma coisa não fazemos a mínima ideia do que seja.
Os especialistas respondem que é mesmo assim que deve ser, porque é da natureza dos serviços de informações agirem na sombra. Mas a sensação que qualquer cidadão não pode deixar de ter é que essa opacidade - que em teoria protege a operacionalidade e a eficácia dos serviços - na prática apenas serve para esconder malfeitoirias e para subtrair a acção dos espiões ao escrutínio democrático e da justiça. É verdade que existe um Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa, mas a composição desse conselho não é impermeável à pressão de um SMS de um ex-espião, que consegue melhor ainda do que substituir uma “deputada chata”: consegue chutá-la para cima, onde pode ser vigiada de perto e onde se espera que não continue a defender inconveniências como um período de nojo que dificulte o livre-trânsito de espiões entre serviços secretos e empresas.
Ou seja: não só a actividade dos serviços secretos nos parece mais perniciosa que benéfica para a democracia, como ela não parece ser objecto de nenhum escrutínio eficaz. É verdade que só conhecemos a ponta do iceberg da actividade das secretas e que existe uma imensa massa de acções submersas em profundidades misteriosas que, dizem alguns, fazem um trabalho essencial à segurança da república. No entanto, pelo meu lado, não vejo nenhuma razão para acreditar em tal coisa. É que, se fosse assim, se houvesse alguma acção digna de mérito, alguma operação bem sucedida, algum gesto exemplar de competência policial, alguma missão republicana entre aquela massa de serviços prestados aos amigos, aos amigalhaços, aos patrões e aos correligionários, mão amiga já a teria dado a conhecer aos quatro ventos há muito.
Reconheço que talvez seja injusto dizer que os serviços de informação estão ao serviço do partido do poder e dos seus amigos e sócios. Talvez seja mais rigoroso dizer que estão ao serviço apenas de uma facção do partido do poder, da clique que se mostra mais determinada e menos manietada pelos escrúpulos. E talvez seja aindamais rigoroso  dizer que estão apenas ao serviço de uma dada loja neo-maçónica. Só que o problema não se torna por isso menos grave, pelo contrário. É que o PSD ainda vai a votos. A loja Mozart nem isso.
Como cidadão, indigna-me que o aparelho de Estado que se devia empenhar na promoção da liberdade e na redução das desigualdades seja colocado ao serviço de interesses particulares, sirva para sequestrar direitos aos cidadãos e concentrar a riqueza nas mãos de uns quantos. E espanta-me que os “liberais” que falam tanto do mercado, não se indignem com este enviesamento do mercado, esta corrupção da concorrência. Estranhos “liberais” que guincham se os nossos impostos forem para uma empresa pública, mas aplaudem se forem para os bolsos de Eduardo dos Santos ou da Ongoing.
Ia escrever que, se os partidos da maioria tivessem um resto de vergonha, deviam investigar isto até ao fim, levar a tribunal os suspeitos, reformular os serviços de informação de cima a baixo, renovar o sistema de fiscalização, talvez acabar com os serviços de informações. Mas não vale a pena escrever isso. O Governo, Passos e sus muchachos, Relvas e os seus aventais, continuam a sua marcha, indiferentes ao lodo que se lhes cola às pernas e ao nome. Desde que o país empobreça e definhe, tudo está bem.
Há, no meio de tudo isto, algo positivo: saber-se que Francisco Pinto Balsemão foi objecto de uma investigação que não se coibiu de recolher informações sobre a sua vida íntima. Não porque o acto não seja ignóbil, como é. Mas porque só a evidência da absoluta falta de escrúpulos das pessoas que se apoderaram do aparelho de Estado poderá levar os restantes a obrigá-los a arrepiar caminho. Lembram-se do poema? “Primeiro vieram buscar os comunistas, mas como eu não era comunista não disse nada...” (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, maio 23, 2012

Estertor na relva

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2012
Crónica 21/2012

Imagine o leitor que está na pele de Miguel Relvas. Não lhe saberia a pouco a declaração do primeiro-ministro?
Se me acusassem de ter feito chantagem com alguém - de, por exemplo, ter ameaçado uma jornalista de divulgar algo sobre a sua vida privada na Internet caso ela publicasse uma notícia sobre mim que eu achasse pouco elogiosa - penso que teria uma de duas reacções: ou soltaria uma franca gargalhada ou ficaria furioso. Também é possível que ficasse furioso e que soltasse a gargalhada na mesma. E penso que a reacção das pessoas que me conhecem seria semelhante - e aqui aposto mais na gargalhada.

Por isso, a respeito das acusações feitas ao ministro Miguel Relvas por jornalistas deste mesmo jornal onde escrevo - de ter ameaçado (por duas vezes) de que iria promover um blackout de todo o Governo em relação ao Público e de que iria publicar na Net dados da vida privada de uma jornalista caso o jornal entendesse prosseguir a cobertura da sua relação com o ex-espião Jorge Silva Carvalho - a minha primeira reacção é de surpresa.

Só que não se trata de surpresa pelas acusações mas de surpresa (e de tristeza) pela ausência de surpresa. Ausência de surpresa no meio político, no meio jornalístico e até ausência de surpresa nos cafés e na rua. Que estas acusações apenas tenham conseguido suscitar vagos comentários dubitativos por parte de correligionários de Miguel Relvas, que sabemos obrigados por razões de lealdade partidária, diz muito sobre a estatura moral das pessoas a quem se confiou o Governo deste país. Mais: se alguém tivesse feito um inflamado discurso de defesa de Miguel Relvas - que outras personalidades, se tivessem sido acusadas da mesma coisa, poderiam ter suscitado - penso que o resultado seria, igualmente, uma sonora gargalhada do Minho aos Açores.
Esta é, pois, a primeira tristeza. Que, a propósito de um ministro da República, número 2 ou número 1 do Governo, dirigente partidário de primeiro plano, seja tão fácil - com razão ou sem ela - imaginarmos da sua parte o comportamento indigno de que é acusado. Isto significa que - mais uma vez, com razão ou sem ela - a reputação de Miguel Relvas se situa algo aquém daquilo que um cidadão tem o direito de esperar de um governante.

Note-se que a própria resposta de Pedro Passos Coelho em relação ao caso é cautelosa. O primeiro-ministro, interpelado por jornalistas em Chicago, preferiu fazer um comentário generalista sobre “o Governo”, garantindo que "não há nenhum ataque a coisa nenhuma” e que “se há coisa que o Governo tem privilegiado é muita transparência nesse aspecto". Imagine o leitor que está na pele de Miguel Relvas, que não fez pressão nenhuma sobre jornalista algum, que sempre adoptou uma posição escrupulosamente honesta em todas as suas acções políticas, que considera todas as dúvidas lançadas sobre a sua pessoa como intoleráveis. Não lhe saberia a pouco esta declaração do PM? Não esperaria uma declaração de confiança mais veemente?

A minha segunda tristeza diz respeito à “comunicação” feita por Relvas à Entidade Reguladora da Comunicação, que já anunciou a sua intenção de proceder a uma averiguação. Imagine mais uma vez, caro leitor, que ainda está na pele de Relvas e que - faça um esforço - não cometeu nenhum dos actos de que os jornalistas deste jornal o acusam. Qual é o seu primeiro gesto de defesa? Queixar-se à ERC de que uma jornalista do Público faz “jornalismo interpretativo”? Calar-se perante as câmaras de TV? Não explicar sequer por que razão pediu desculpa à direcção do Público? Ou quereria explicar preto no branco cada um dos seus gestos, cada uma das suas palavras e indignar-se pela descabida acusação? Não quereria que fossem investigadas as críticas que lhe fazem? Não quereria contrapor a sua verdade à versão de quem o acusa? Pareceria normal, não é? Em teoria, Relvas pode estar inocente daquilo de que o acusam. Mas a sua atitude não reforça essa convicção. Pode ser um problema de percepção, pode ser daquela rigidez corporal, daquele ar de lobo acossado, de qualquer outra coisa, mas há algo na sua pose que não funciona, que não dá confiança. Se Relvas ameaçou, chantageou e intimidou, deve sair do Governo. Mas, se não fez nada disso, deve sair porque parece que fez. Muitos ministros saíram por menos. Um por ter feito uns cornos com a mão, outro por ter contado uma anedota de mau gosto.

Finalmente, em resumo, trata-se neste caso, como em tantos outros, de uma questão de confiança. Temos duas versões: temos de um lado duas jornalistas (e a direcção do jornal) que garantem ter havido ameaças de Relvas. Temos, do outro lado, o próprio, que nega, laconicamente. Saber em quem acreditar neste caso, se em Maria José Oliveira e Leonete Botelho, de um lado, ou se em Miguel Relvas, do outro, constitui aquilo a que os americanos chamam um no-brainer. Uma pergunta a que nem é preciso ter cérebro para poder responder. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, maio 17, 2012

Manifesto para uma Esquerda Livre

Chegava o mês de Maio

era tudo florido
e tudo era possível
era só querer

Ruy Belo


Apresentado numa sessão pública no dia 17 de Maio de 2012, no cinema São Jorge, em Lisboa.

Esta é uma iniciativa política de pessoas livres, unidas pelos ideais da esquerda e pela prática democrática. Aberta a todos os cidadãos, com ou sem partido. Acreditamos que apenas a expressão de uma forte vontade cívica, por parte de cada um de nós, poderá dar a resposta adequada aos problemas do nosso tempo.

Portugal afunda-se, a Europa divide-se e a Esquerda assiste, atónita.

As raízes desta crise estão no desprezo do que é público, no desperdício de recursos, no desfazer do contrato social, na desregulação dos mercados, na desorientação dos governos, na desunião europeia e na degradação da democracia.

Em Portugal e na Europa, a direita domina os governos, as instituições e boa parte do debate público. A direita concerta-se com facilidade, tem uma agenda ideológica e um programa para aplicar. A direita proclama que o estado social morreu e que os direitos, a que chamam adquiridos, são para abater.

Em Portugal e na Europa, a esquerda está dividida entre a moleza e a inconsequência. Esta esquerda, às vezes tão inflexível entre si, acaba por deixar aberto o caminho à ofensiva reacionária em que agora vivemos, e à qual resistimos como podemos. Resistir, contudo, não basta.

É necessário reconstruir uma República Portuguesa digna da palavra República e construir uma União Europeia digna da palavra União.

É preciso propor aos portugueses, como aos outros europeus, um horizonte mais humano de desenvolvimento, um novo caminho para a economia e um novo pacto de justiça social.

É possível fazê-lo. Uma esquerda corajosa deve apresentar alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise, debatidas de forma aberta e em plataformas inovadoras.

A democracia pode vencer a crise. Mas a democracia precisa de nós.

Apelamos a todos aqueles e aquelas que se cansaram de esperar – que não esperem mais.

É a nós todos que cabe construir:

UMA ESQUERDA MAIS LIVRE, com práticas democráticas efetivas, sem dogmas nem cedências sistemáticas à direita, liberta das suas rivalidades, do sectarismo e do feudalismo político que a paralisa. Uma esquerda de cidadãos dispostos a trabalhar em conjunto para que o país recupere a esperança de viver numa sociedade próspera e solidária.

UM PORTUGAL MAIS IGUAL, socialmente mais justo, que respeite o direito ao trabalho condigno e combata as injustiças e desigualdades que o tornam insustentável. Um país decidido a superar a crise com uma estratégia de desenvolvimento económico e social, com uma economia que respeite as pessoas e o ambiente, numa democracia mais representativa e mais participada, com um Estado liberto dos interesses particulares que o parasitam.

UMA EUROPA MAIS FRATERNA, à altura dos ideais que a fundaram, transformada pelos seus cidadãos numa verdadeira democracia. Uma Europa apoiada na solidariedade e na coesão dos países que a formam. Uma Europa que ambicione um alto nível de desenvolvimento económico, social e ambiental. Uma União que faça do pleno emprego um objetivo central da sua política económica, que dê um presente digno aos seus cidadãos e um futuro promissor às suas gerações jovens.

Alguns dos subscritores iniciais

Alexandra Lucas Coelho
Alfredo Barroso
Ana Benavente
Ana Gomes
André Barata
António Mega Ferreira
Carlos Nô
Daniel Oliveira
Fernando Vendrell 
Francisco Belard
Hélder Costa
Ivan Nunes
João Macdonald
Jorge Bateira
José Rei
José Vítor Malheiros
Manuel Frias Martins
Mário de Carvalho
Marta Loja Neves
Miguel Real
Miguel Vale de Almeida
Nuno Artur Silva
Nuno Serra
Olga Pombo
Paula Gil
Raquel Freire
Renato Miguel do Carmo
Rui Cardoso Martins
Rui Tavares
Rui Zink
Safaa Dib

Imprensa

Manifesto para esquerda livre quer provocar partidos - Público - 15 Maio 2012

terça-feira, maio 15, 2012

Passos Coelho e os desempregados

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Maio de 2012
Crónica 20/2012


Temos mais de um milhão de Microsofts em potência a chocar nos ventres vazios de outros tantos desempregados

Pedro Passos Coelho disse no fim de semana aos jornalistas que estava “cansado de crises artificiais”, quando estes o confrontaram com as reacções suscitadas pelas suas declarações de sexta-feira passada sobre os desempregados. Pedro Passos Coelho tem razão. Esta crisinha é apenas uma tempestade num copo de água e os media apenas se preocupam com isto porque é um fait-divers fácil de reportar sem horas de investigação e que diverte as massas.

O que os media deviam estar a fazer era confrontar o primeiro-ministro com o número crescente de desempregados, com o número crescente de desempregados sem subsídio de nenhum tipo, com a falta de crédito para empresas que acabam por falir, com a redução dramática da oferta de formação profissional, com o encerramento das Novas Oportunidades (Passos Coelho disse que aquilo só servia para certificar a ignorância e não quer voltar atrás), com a limitação no acesso à saúde, com o escândalo dos bancos que retomam as casas cuja compra financiaram mas que querem que os credores fiquem seus escravos durante cinquenta anos, etc. Pedro Passos Coelho tem toda a razão. Os media, em vez de se preocuparem com estas crises artificiais, deviam começar por se preocupar com as verdadeiras crises. Só que os jornalistas fazem o que podem e, entre os três serviços por dia e a falta de tempo para passar dias a investigar, atiram-se aos comentários mentecaptos que os políticos enfiam pelos microfones abaixo.

Só que os media (e a oposição) não estão completamente errados. É que estes comentários dão-nos a medida de uma pessoa.

Quando Passos Coelho diz que "estar desempregado não pode ser um sinal negativo”, que “despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma” e que “tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida” está de facto a dizer-nos várias coisas sobre os seus valores e os do seu Governo e a transmitir-nos imensa informação de forma condensada, nomeadamente quanto àquilo que o seu Governo não vai fazer pelos desempregados.

Antes de mais, este tipo de discurso não é novo. Desde Thatcher que o ouvimos, em diversos tons. “Foi despedido? Parabéns! Aproveite para criar a sua empresa e ficar rico!”. Até há livros disto e há autores que vivem disto. E há, é claro, os casos exemplares de sucesso, de jovens empreendedores que se viram sem trabalho e, com uma formação em universidades de élite, uma ideia genial, muito trabalho, acesso a recursos humanos altamente qualificados, um ambiente empresarial propício e financiamento disponível saltaram para a capa da Fortune. Estes casos conferem um véu de verosimilhança às narrativas do american dream e permitem desculpabilizar e desresponsabilizar os governos (de Thatcher ou de Passos Coelho)pelo desemprego e pelo futuro dos desempregados. Lutar contra o desemprego? Porquê, se é uma coisa tão boa? Porquê, se permite que os desempregados se transformem em Steve Jobs? É por isso que o Governo mantém 800.000 desempregados sem subsídio: a necessidade aguça o engenho.

Uma das coisas que ficámos a saber preto no branco foi que, para o Governo, o desemprego é bom. Uma coisa simpática, que cheira a aventura, que abre horizontes. Portanto não se queixem, desempregados. Não reivindiquem, sindicatos. Parem com o estigma, media. Temos mais de um milhão de Microsofts em potência a chocar nos ventres vazios de outros tantos desempregados. Como pode isto ser mau?

Também ficámos a saber que, para Passos Coelho, um desempregado é apenas um agente económico, passível de reconversão. Para Passos Coelho não há tragédia pessoal porque aquilo que ele lê nas colunas do INE não são pessoas.

De facto, a tragédia do desemprego não é apenas económica: é social e pessoal. Um desempregado não é apenas uma pessoa sem trabalho. É uma pessoa cuja rede social se desmoronou, cujo sentimento de utilidade social desapareceu, cujo saber e cuja competência deixou de ter valor, cuja auto-estima se esfumou, cuja identidade se desagrega, cuja vida parece de repente não só não ter valor mas ter-se até transformado num fardo para todos. E tudo isso, em grande medida, devido aos Passos Coelhos deste mundo, que fazem a sua carreira política a estigmatizar os “parasitas subsidio-dependentes” que vivem à conta do Estado.
Se Passos Coelho tivesse a mínima ideia do que é um desempregado diria: “Sabemos que o desemprego é uma tragédia pessoal e social que afecta mais de um milhão de pessoas e gera um sofrimento imenso nas suas famílias. Queremos minimizar esta tragégia e criar novas oportunidades para estas pessoas. Acreditamos na sua capacidade para melhorar as suas vidas e para proporcionar um impulso à economia. Vamos por isso abrir uma linha de crédito para a criação de micro e mini-empresas por estas pessoas, dando-lhes toda a formação e apoio técnico possível.” Mas não lhe chegou a língua. Nem a vontade. Os desempregados são apenas baixas na guerra pelo enriquecimento dos ricos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 08, 2012

Regressar ao que importa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Maio de 2012
Crónica 19/2012


É necessário voltar a colocar no discurso político questões básicas que a direita conseguiu afugentar


"E, quando estiver no termo do meu mandato e olhar à minha volta, para ver o que fiz pelo meu país, vou-me colocar apenas duas questões: Será que fiz avançar a causa da igualdade? Será que permiti que a nova geração ocupasse o lugar a que tem direito no seio da República?"


As perguntas retóricas de François Hollande, no discurso que fez ontem, logo após o anúncio do resultado das eleições presidenciais francesas que lhe deram a vitória, não podiam ser senão enunciadas por um homem de esquerda. Isto não significa que o discurso me tenha parecido entusiasmante (não me pareceu, fazendo jus ao cinzentismo de que Hollande dá mostras na maioria das suas intervenções) ou sequer promissor (há muita ambiguidade e é possível, como diz Marine Le Pen, que Hollande apenas acrescente uma nota de rodapé sobre crescimento económico ao "tratado orçamental", para fingir que cumpre as suas promessas), mas há aqui, pelo menos na retórica, uma pedra branca que simboliza a esquerda: a igualdade. 


É verdade que em França, pátria da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a igualdade não desapareceu do discurso político. Está por todo o lado nas insígnias da República e antes do euro estava nos francos, nos bolsos de todos os franceses. Mas daí a fazer da igualdade um ponto forte do discurso político ia um grande passo. E daí a fazer da igualdade a pedra de toque de uma política ia um abismo. Mas foi isso que Hollande fez ontem e isso é, em si, significativo e bom. E é bom porque, independentemente do que Hollande faça como Presidente, é tão necessário como pão para a boca voltar a colocar no discurso político algumas questões básicas que a direita conseguiu afugentar, combatendo, com um bullying eficaz e com um discurso pseudocientífico digno do materialismo histórico, todas as tentativas para as introduzir no debate social. 


A igualdade é não só a parente pobre da trilogia republicana - principalmente depois da queda da URSS, que arrastou muitos bebés na enxurrada de água do banho justamente despejada no esgoto - mas a pedra de toque de uma política de esquerda. Não é concebível uma política de esquerda sem um combate activo à desigualdade e uma empenhada promoção da igualdade dos cidadãos. 


Não é politicamente aceitável nem eticamente admissível que os benefícios sociais de que usufruem os cidadãos dependam do bairro onde nasceram, da família onde nasceram, da cor da sua pele, da sua religião, da maneira como se vestem ou da sua vida sexual. E no entanto, como sabemos, é isso que acontece, com a esmagadora maioria dos políticos fingindo hipocritamente que a desigualdade gritante e crescente que vemos nas nossas sociedades se deve apenas às diferentes aptidões manifestadas pelos vários indivíduos. De facto, a sociedade portuguesa - e a das muitas outras imperfeitas democracias - é uma sociedade de castas não oficiais, onde podemos apostar sobre o futuro que está reservado a uma criança conhecendo apenas a casa onde nasceu ou o sotaque dos pais. E isso porque deixámos de nos preocupar com a igualdade, que é apenas outro nome da justiça e da dignidade. 


Para muitos políticos, nomeadamente para muitos dos que se dizem ou pensam de esquerda, a igualdade tornou-se uma ideia fora de moda, não só contrária à ideologia dominante mas impossível de defender sem ser acusado de idealismo, contrária ao pragmatismo necessário nesta era de "mercados". Segundo esta ideologia, que defende que apenas a competição entre os cidadãos permite o progresso, que a desigualdade é a consequência inevitável dessa competição e que ela é, por isso, não só inevitável como desejável, na boa linha do darwinismo social, a ideia da igualdade é o maior inimigo a abater. Compreende-se. A vingar, ela poria em causa a crescente acumulação de riqueza e de poder que tem lugar num número cada vez mais restrito de pessoas e de empresas. Daí, por exemplo, a febre de "avaliação individual" a que se assiste nas empresas e no Estado, uma ferramenta pseudocientífica que visa destruir qualquer ideia de igualdade e de cooperação, avalizar tratamentos diferentes e justificar privilégios, em nome das diferenças pessoais. 


No último livro do historiador Tony Judt, Thinking the Twentieth Century, a transcrição de uma série de conversas que manteve antes de morrer com o também historiador Timothy Snyder, Judt atribui uma grande parte da responsabilidade pela degradação da ideia social-democrata e de bem público ao facto de os políticos, a partir dos anos 1970, terem deixado de se perguntar se algo estava "certo ou errado" para começar a avaliar as políticas segundo o seu impacto na produtividade. É a essa "catástrofe moral", para usar a expressão de Judt, que temos de tentar pôr fim, voltando a preocupar-nos com aquilo que continua a ser a tarefa nobre da política: proporcionar a todos, sem excepção, uma vida decente. Sabemos que a esquerda nunca o conseguiu fazer, mas também sabemos que a direita não o vai tentar alcançar. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 01, 2012

A democracia ligada à máquina

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2012
Crónica 18/2012


Saudemos aqueles que sentiram o dever de dizer alto e bom som que o Governo vai nu



A ausência dos militares de Abril, de Mário Soares e de Manuel Alegre nas comemorações oficiais do 25 de Abril suscitou um apoio limitado à esquerda e uma vaga de censuras, discretas ou efusivas, que cobriu um amplo sector do leque político. É verdade que, tacticamente, a posição é difícil de gerir. (Basta pensar como se descalça a bota: o que será necessário, agora, para que estes mesmos protagonistas regressem às comemorações? Nunca mais vão regressar? Se regressarem, isso não será interpretado como um aval ao Governo do momento?) Mas é inegável que, como gesto político, representou uma importante condenação simbólica do regime economicamente ultraliberal e politicamente autoritário que o actual Governo tenta subrepticiamente impor, a coberto da situação financeira e das imposições da troika.
Como todos os gestos políticos, este foi também uma aposta. Se tivesse acendido as consciências e suscitado outras condenações, poderia ter tido algum efeito e a sua avaliação seria hoje diversa. Mas não teve, nem suscitou. No entanto, por muito errado tacticamente que o gesto possa ter sido, é de saudar aqueles que sentiram que tinham o dever de dizer alto e bom som que o Governo vai nu. Às vezes, os erros dos homens são mais dignos de louvor que os seus êxitos.
As críticas dirigidas à Associação 25 de Abril e a Mário Soares têm a ver com o facto de, segundo os seus críticos, ser falsa e injusta a acusação segundo a qual a actuação do Governo “deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril configurado na Constituição da República Portuguesa”. Segundo estas vozes, vivendo nós em normalidade democrática, com partidos políticos e eleições, e saindo o actual Governo de eleições, não existe qualquer razão para a condenação moral e política dos militares e de Mário Soares, podendo haver unicamente discordâncias, que se devem dirimir na arena política do Parlamento e das campanhas.
É curiosa esta dicotomia: ou há democracia ou não há. E em Portugal há. A prova? Temos partidos políticos, eleições, Parlamento, liberdade de expressão. Só que as coisas não são tão simples como isso. Se há pedras de toque para a democracia, há sempre questões de grau. E a democracia, mesmo quando existe formalmente, nem sempre está realmente viva. Às vezes respira mas está apenas ligada à máquina. Como em Portugal.
Portugal hoje é um bom exemplo de uma situação em que a democracia formal não representa sequer formalmente a vontade do povo. A própria direita aceita aliás sem rebuço que Portugal vive hoje em regime de protectorado, devendo sujeitar-se às imposições da troika. Dizer que isto é democracia representa uma curiosa interpretação, que corresponde a dizer que um prisioneiro que pode escolher a cor das paredes da sua cela é, no fundo, uma pessoa livre e não pode por isso mencionar sequer a sua falta de liberdade.
É aliás curioso que, quando Jürgen Habermas fala do “domínio pós-democrático“ que se vive na Europa, haja um assentimento unânime, mas que, quando alguém tenta aplicar essa reflexão no terreno real da política nacional, a histeria se generalize.
Para além do regime de protectorado (ou desprotectorado...) é difícil dizer que vivemos numa democracia quando tanta coisa no sistema político está artilhado, trucado, viciado, com mais batotas que regras. É possível falar de democracia quando a Europa que comanda os nossos gestos é dirigida por órgãos que não elegemos? Quando os mercados sem rosto decidem das nossas políticas através dos nossos ministros, que irão contratar daqui a três anos?
As eleições, onde elegemos partidos com base em promessas e programas eleitorais rasgados com a maior desfaçatez no dia seguinte, representam a vontade do povo? Podemos pelo menos fazer a pergunta? Alguém votou o fim dos subsídios de férias e Natal? Era inevitável? Alguém nos disse isso antes das eleições? Ou mentiram-nos? Os deputados submetidos à disciplina de voto representam o povo? Os deputados pagos pelas grandes empresas defendem o interesse público? Os deputados respondem aos eleitores, quando nem sequer podemos riscar os que sabemos que são corruptos dos boletins? A justiça impõe o primado da lei, quando condena menores que copiam canções na Internet e sem-abrigo que roubam chocolates e deixa de fora as maiores facínoras? O fisco leva a cabo a função distributiva e promotora de justiça social que a Constituição determina quando cai sobre os trabalhadores e deixa os ricos pôr as fortunas nos off-shores?  A liberdade de expressão e manifestação existe quando a PSP diz que um ajuntamento de DUAS ou mais pessoas necessita de autorização prévia? Esta democracia não tem pelo menos umas parecenças com uma ditadura? Não, não digo que seja ela, é claro que se trata de outra pessoa. Mas não há ali umas parecenças de família, a esta luz, quando nos olha de lado?
(jvmalheiros@gmail.com)