terça-feira, agosto 28, 2012

Só temos a múmia?


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Agosto de 2012
Crónica 34/2012
Uma democracia que só se anima durante um dia de quatro em quatro anos não é uma democracia

O exercício da cidadania numa democracia não se esgota na prática do voto durante as eleições - ainda que seja a isso que se limita a prática democrática da maioria dos cidadãos, para não falar do número, crescente, daqueles que se abstêm até desse gesto mínimo.

Espera-se de um cidadão responsável que, na medida das suas possibilidades e interesses, aja politicamente, que participe nos debates políticos onde estão em causa os princípios que moldam a vida pública e as normas da vida em sociedade, que tome posição, que defenda os seus pontos de vista e os seus interesses usando os meios à sua disposição, da discussão pública no café ou no Facebook ao uso dos meios de comunicação clássicos e de outros fóruns.

Espera-se de um cidadão responsável que interpele os poderes, que use os instrumentos legais para o fazer, da participação em reuniões públicas da sua autarquia ao lançamento de petições e abaixo-assinados, que promova iniciativas legislativas cidadãs e envie projectos de lei ao Parlamento. Que participe nas organizações profissionais e sindicais que lhe dizem respeito, que lute por condições que garantam maior equidade, justiça e bem-estar para si, para os seus camaradas de trabalho e para a sociedade em geral. Que se envolva na actividade partidária, que participe em movimentos de cidadãos, que se envolva em organizações de defesa dos direitos humanos, de defesa do ambiente, de promoção do património cultural, de solidariedade social, que faça trabalho voluntário para causas humanitárias. Que se envolva nas organizações que visam melhorar as condições de vida do seu bairro, da sua cidade, da sua escola ou do seu emprego. Que denuncie os crimes de que tem conhecimento ou suspeita, que não feche os olhos à corrupção.

Espera-se de um cidadão responsável que reclame e que se indigne, que proteste e que se manifeste no espaço público em defesa dos direitos de todos, que promova concentrações, que organize manifestações, que lance palavras de ordem, que mobilize os seus concidadãos para as causas que lhe são mais caras.

Espera-se de um cidadão responsável numa democracia que não se cale e não se acomode, porque é esta inquietação e este envolvimento, são estas palavras e estes gestos, são estes sentimentos de dever e de responsabilidade para connosco, para com os outros e para com os nossos filhos que constituem o sangue da democracia - e não os rituais cada vez mais desprovidos de sentido das eleições, que nada ou quase nada mudam, onde apenas se escolhem nomes de entre opções pré-seleccionadas por umas dezenas de apparatchiki desconhecidos e de idoneidade duvidosa, onde todos os compromissos são jurados mas nenhum é cumprido, onde nenhuma responsabilização individual é possível, onde as opções possíveis estão limitadas a um oligopólio de partidos e onde o poder, faça-se o que se fizer, nunca foge a um cartel que tem como credo o servilismo absoluto ao poder corrupto e nunca escrutinado da finança.

Estes cidadãos responsáveis e empenhados são essenciais à democracia porque uma democracia que só se anima durante um dia de quatro em quatro anos não é uma democracia, mas apenas a múmia seca de uma democracia. Só que estas acções, esta agitação democrática, só faz sentido se ela estiver de facto entretecida com a democracia das organizações, dos partidos, da política, do poder, do Estado. Esta vida democrática só faz sentido e só a declaramos como vital porque pressupomos que, nas organizações da sociedade, nos poderes e no Estado, alguém a ouve e que ela alimenta a acção política. E a nossa natural bondade gosta de pensar que esse alguém que ouve o povo é um poder benigno ou pelo menos que tenta ser justo ou, no mínimo, prudente. Gostamos de pensar que entre esta sociedade civil (para usar a fórmula consagrada) e um Estado democrático existe diálogo e que todas as manifestações dos cidadãos são de facto ouvidas, levadas em conta, pesadas. E que, em caso de grande dissidência, existe sempre a Justiça para arbitrar os conflitos.

Mas... e quando isso não acontece? E quando do lado do poder temos governantes sem escrúpulos e que apenas conquistaram o poder mentindo? E quando se fazem surdos a tudo porque a única coisa que querem é construir uma sociedade de senhores e de escravos invocando a legitimidade do seu mandato para governar? E quando tudo o que pretendem é espoliar o Estado das suas riquezas para as entregarem aos donos dos negócios onde eles já asseguraram o seu emprego futuro? E quando os tribunais aceitam suspender a lei para se submeterem aos ditames deste Governo? E quando as regras do jogo limitam os cidadãos, mas os governantes podem fazer batota? E quando todos os dados estão viciados? E quando todas as formas de intervenção democrática que não sejam a múmia estão bloqueadas aos cidadãos? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 21, 2012

Verão

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Agosto de 2012
Crónica 33/2012

Os raros momentos de felicidade das crianças durante o Verão são quando imaginam o que vão fazer nas férias quando forem crescidos

1. Os veraneantes andam como pinguins. Bamboleiam-se de um lado para o outro, deixando cair o peso do corpo ora numa perna ora na outra, lentamente, indolentemente, por baixo do chapéu de palha. Deve ser do calor. Deambulam mais do que andam. Mesmo quando vão, andam como se passeassem. Avançam em ziguezagues para a esquerda e para a direita mesmo quando querem ir em frente, como se navegassem à bolina. Talvez não queiram seguir em frente. Pode ser uma declaração de princípios, uma maneira de dizer que, durante estes quinze dias, durante esta semana, aqui à beira-mar, são livres de andar por onde lhes apetece e que, se seguem em frente, bem podiam virar à esquerda ou à direita, parar ou até, suprema rebeldia, voltar para trás. Era só quererem. Claro que não é bem assim, porque a rotina das férias é tão férrea como a dos dias de trabalho na cidade, mas gostam de sonhar que podem fazer deste dia o que quiserem e que, hoje, são donos dos seus destinos. Daí o passo gingão, despreocupado. Mas também pode ser daquela combinação de suor, sal, sol, areia e o roçar do nylon dos calções de banho, que provoca aquelas assaduras no interior das pernas que obriga a sábias combinações de creme solar Nivea e de Halibut. Quem sabe?

2. George Carlin, famoso, genial e falecido humorista americano, dizia que, quando vamos na estrada, todos os que conduzem mais devagar do que nós sāo idiotas e todos os que conduzem mais depressa que nós são loucos. Não é só na estrada. Também é difícil cruzarmo-nos com gente que nos pareça cordata na praia. Só se estiver longe, sozinho e se só interromper a leitura do seu livro para fazer uma sesta. Estendal de toalhas, cadeiras e chapéus de sol, bolas de futebol, de voleibol, raquetas e frisbees, cães e filhos, discussões familiares, tudo se conjuga para nos convencer de que estamos ali a mais. Há quem se ache no direito natural a ocupar toda a praia e espalhe imperialmente os seus pertences pelo areal e nos olhe de forma sobranceira enquanto exibe as etiquetas dos seus óculos de sol e polos e bermudas e sacos e toalhas, numa profusão de heráldica de centro comercial. Mas também há os que se aproximam levados pelo sentimento comunitarista que diz que, se estamos todos na mesma praia, devemos tratar-nos como vizinhos ou parentes e nos pedem para vigiar o bebé ou a carteira enquanto vão ao banho só um bocadinho. Que a extensão democratizada dos areais não permita colocar suficiente areia entre nós e os loucos e os idiotas é uma das tristezas do Verão.

3. A razão por que há mais birras, caprichos e amuos por parte das crianças e adolescentes durante as férias que durante o resto do ano devia ser objecto de estudo por parte dos pedopsicólogos e similares. Talvez já tenha sido e eu não tenha dado por isso. É impossível encontrar uma família em férias onde as crianças estejam satisfeitas com a escolha da praia, do sítio onde se planta o chapéu de sol, do fato de banho, do boné, do lugar onde se toma banho, do que se vai comer, do que se vai fazer a seguir, de onde se vai passear à noite ou do que quer que seja. Penso que é da amplitude do leque da escolha. Depois de um ano de rotinas, de horários para levantar e comer e estudar e de ementas repetidas semanalmente, também as crianças sonham com um Verão de liberdade e de vontades satisfeitas, sem compromissos nem negociações, com pais benevolentes e sorridentes quando não ridentes e, como os adultos bem sabem, isso não existe senão nalguns anúncios da televisão.


A verdade é que a liberdade é sempre uma decepção e as crianças ainda não o sabem. É este choque entre as expectativas ilimitadas e a realidade sempre aquém do desejo que gera a frustração estival típica das crianças. É diferente, mas é um bocado como conhecer aquele escritor que sempre admirámos e constatar que cheira mal da boca.
Por que razão não se hão-de comer gelados de todos os sabores em vez de escolher só um e ficar na praia até ser noite escura? Porque é que a água está fria e tem algas e a bandeira está vermelha e a senhora romena já não tem bolas de Berlim com creme e porque é que eu não posso jantar só batatas fritas? Porquê? E porque é que este ano ainda não alugámos uma casa com piscina? E porque é que estamos sempre a  comer peixe? E porque é que, depois destes dias de praia, em vez de voltarmos para casa, não vamos fazer um cruzeiro? E porque é que não podemos pelo menos jantar fora todos os dias, como toda a gente faz? Porque é que eu não posso comprar absolutamente tudo aquilo que me apetece? E porque é que eu não posso ir passear à vila sozinha com as minhas amigas e porque é que não me deixas comprar aquele biquini com lantejoulas?
Os raros momentos de felicidade absoluta das crianças durante o Verão são quando imaginam tudo o que vão fazer nas férias quando forem crescidos, quando a sua liberdade for total e absoluta e quando os pais já não mandarem neles. Nem desconfiam que vão ter de aturar os filhos deles.


A infelicidade do Verão não tem fim. O Verão, felizmente, sim. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 14, 2012

Em busca da narrativa perdida


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2012
Crónica 32/2012


A falta de entendimento à esquerda é um problema, mas está longe de ser "o problema"


Nos últimos anos — e com mais vigor desde o início da actual crise financeira e do seu mais recente desenvolvimento, a chamada crise das dívidas soberanas, — tem havido uma preocupação crescente no seio da esquerda em congregar os diversos partidos e movimentos que se reclamam desta tradição política em torno de causas, propostas e acções comuns.

No entanto, esta preocupação só episodicamente atinge as lideranças dos partidos de esquerda ou semi-esquerda, ainda que ela seja cada vez mais viva e mais urgente nos discursos dos seus apoiantes menos comprometidos com as lideranças, que não percebem por que razão, perante o mais violento ataque das últimas décadas contra o Estado Social, a esquerda não se consegue unir em torno da meia dúzia de ideias simples que sempre formaram o núcleo duro das suas convicções políticas.

Essas ideias são as que se encontram no coração do chamado Estado Social. É o empenhamento activo na redução das desigualdades sociais, que não são apenas uma indignidade para quem as sofre e uma vergonha para todos nós, mas constituem uma causa objectiva e reconhecida de atraso nacional. É a promoção do trabalho como fonte de dignidade pessoal e forma de produção de riqueza e a concomitante promoção dos direitos laborais. É a existência de uma rede de segurança social universal e mutualista, que garanta uma protecção e uma situação de dignidade a todos os cidadãos em situação de fragilidade, das crianças aos idosos, dos desempregados aos doentes e incapacitados. É a existência de um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, universal e verdadeiramente acessível a todos, como aquele de que Portugal já gozou no passado com os excelentes resultados que conhecemos. É uma Escola Pública universal e de qualidade, para a qual a inclusão é uma razão de ser e que produz elites porque consegue alargar-se democraticamente a toda a população e oferecer condições de desenvolvimento a todos os talentos, em vez de começar por excluir os que não correspondem a certos padrões de classe.

Seria fácil alargar esta lista de atributos, mas as ideias listadas acima constituem o núcleo duro em torno do qual deveria ser não só possível à esquerda, mas até fácil, encontrar plataformas de acção comum — tanto mais quanto vivemos uma situação onde estes direitos de todos estão a ser saqueados debaixo dos nossos olhos, para concentrar privilégios nas mãos de alguns.

A prova que muitos sentem uma acção coordenada da esquerda como indispensável e urgente são as iniciativas que têm surgido em Portugal nos últimos meses, congregando apoiantes do BE, do PCP, do PS e independentes, que buscam, se não a criação institucional de uma frente unida, pelo menos uma unidade de acção da esquerda. Iniciativas como o Manifesto para uma Esquerda Livre ou o Congresso Democrático das Alternativas — declaração de interesses: sou subscritor de ambas — são um exemplo disto. Mas é significativo que, mesmo aqui, as lideranças dos partidos à esquerda se mantenham prudentemente à distância destas iniciativas, tentando minimizar a sua importância, em vez de interpretar o seu surgimento como significativo de uma vontade clara do povo de esquerda.

Esta necessidade de "união das esquerdas" tem condicionado em grande medida o discurso da esquerda, considerado globalmente. O resultado é que a esquerda fala com frequência para si própria, repetindo paradoxalmente algo com que todos os seus interlocutores concordam, mas sem nunca conseguir a sua concordância activa em torno de acções concretas.

Penso que neste discurso, onde a esquerda se dirige a si própria e tenta convencer-se a si própria de algo de que todos se dizem convencidos e mobilizar-se a si própria para algo para o qual todos se dizem mobilizados sem nunca verdadeiramente o conseguir (por enquanto?), há um mal-entendido: a convicção de que esta falta de entendimento à esquerda é "o problema" e que, caso ele seja resolvido, a sociedade de justiça e bem-estar que queremos poderia finalmente começar a ser construída.

Esta convicção parece basear-se na ideia de que a esquerda continua a ser sociologicamente hegemónica - algo que penso estar hoje muito longe da realidade — e que, se por uma vez se puser de acordo, poderá fazer vingar os seus princípios.
De facto, quando a direita diz que o "memorando da troika" conta com o apoio de partidos que representam 80 por cento dos eleitores está a dizer algo que é mais do que uma estatística eleitoral. A verdade é que, por incompreensível que isso nos pareça, a esmagadora maioria da população não considera (ou não tem considerado) que as conquistas do Estado Social desde o 25 de Abril mereçam ser defendidas com real afinco.

Houve de facto algo que se perdeu, um sonho que se esqueceu, uma narrativa que deixou de fazer eco e que tem de se reinventada, reconstruída, refeita de raiz. Podemos atribuir isso a uma sistemática lavagem ao cérebro efectuada pelos media (que é tragicamente real) ou a outros factores, mas a verdade é que existe hoje um terrível divórcio entre a população e a defesa dos seus interesses, devido a uma narrativa reaccionária e caceteira que se tornou hegemónica e que conseguiu impor a ideia do Estado Social como fonte de desperdício, da Segurança Social como sustento de parasitas, do Serviço Nacional de Saúde como um luxo incomportável, da solidariedade social como algo "insustentável", da Escola Pública inclusiva como "facilitista", dos apoios à Cultura como "elitistas", etc.. A verdade é que a direita tem conseguido vender com absoluto despudor e grande eficácia este discurso, voltando trabalhadores contra trabalhadores e convencendo uma grande parte de que os direitos excessivos dos outros, dos subsidio-dependentes, dos ciganos, dos que não querem trabalhar, dos velhos, dos doentes, dos disléxicos, dos bolseiros, são a causa da pobreza de cada um — ao mesmo tempo que vende os privilégios dos agiotas como algo de inquestionável e positivo.

Que a esquerda tem de se unir em torno do que para si é importante, penso que é uma evidência para todos os defensores de uma sociedade decente, livre e justa. Mas a grande batalha que temos de travar no campo das ideias não se resume à arena da esquerda. Quem temos de convencer são todos os cidadãos que, seduzidos ou adormecidos pelas historietas da direita, continuam a votar nos que lhes roubam o trabalho, os direitos e as riquezas, eternizando desigualdades injustas e privilégios. 

Enquanto o discurso populista da direita sobre o Rendimento Social de Inserção como sustento de parasitas e sede de fraudes continuar a colher, o nosso trabalho estará longe de estar feito. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 07, 2012

A dignidade não é sustentável?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Agosto de 2012
Crónica 31/2012

Será que a revolução neoliberal em curso tem plena consciência dos valores que está a pregar?

1. Ficámos a saber há dias que Miguel Pais do Amaral, presidente da Media Capital, dona da TVI, é a pessoa que ocupa mais lugares em conselhos de administração de empresas portuguesas: Pais do Amaral administra nada menos de 73 empresas (segundo dados da CMVM relativos ao final de 2010) e isto sem contar as empresas estrangeiras onde ocupa os mesmos cargos, nomeadamente em Angola e no Brasil. Se se incluírem também estas, Pais do Amaral terá assento em mais de cem conselhos de administração. E isto, note-se, apenas em conselhos de administração, sem considerar quaisquer outras funções e actividades.

O facto foi uma surpresa para o próprio que, segundo as suas declarações aos media, confessou achar "até alguma piada" ao facto de ser recordista da modalidade. E, quando lhe perguntaram como conseguia gerir tantas empresas ao mesmo tempo, Pais do Amaral explicou que "muitas dessas empresas têm conselhos de administração que não reúnem ou reúnem semestralmente", acrescentando a seguir que não considerava que essa fosse "uma questão muito relevante", sinalizando desta forma aos jornalistas que preferia que eles não insistissem neste tema delicado.

Que uma pessoa não consegue gerir cem empresas ao mesmo tempo, dedicando a cada uma delas a atenção que as regras prudenciais recomendam, é evidente. Mas todos sabemos que as regras não são iguais para todos e, se há empresas privadas que entendem convidar Pais do Amaral para os seus conselhos de administração mesmo sabendo que ele não lhes poderá dedicar senão alguns minutos de atenção por ano e se o próprio entende que deve aceitar esses convites, apenas podemos espantar-nos com a generosidade dos primeiros e a vaidade do segundo. Mas porque se inclui num conselho de administração alguém que, manifestamente, não terá tempo para levar a cabo esse trabalho? É possível que, nalguns casos, Pais do Amaral apenas esteja a servir de jarra (o que se pode considerar uma função em si) mas penso que noutros casos a sua inclusão nem sequer tem esse objectivo. É que "pôr" Pais do Amaral num conselho de administração parece simplesmente algo "natural", um privilégio de casta que nada tem a ver com eventuais competências, com real disponibilidade ou com qualquer expectativa de trabalho por parte da organização. Trata-se, antes de mais, de uma questão de estatuto: Pais do Amaral pertence à categoria dos administradores, faça o que fizer ou mesmo que não faça nada, como outros pertencem à categoria dos desempregados ou dos quinhenteuristas, ainda que sejam brilhantes, criativos, trabalhadores e doutorados. É isso que quer dizer uma sociedade de castas e é nisso que a sociedade portuguesa se está a transformar a passos largos, regressando à estratificação típica do Estado Novo.

2. Também nos últimos dias, ficámos a saber em que consistiam as medidas de apoio ao emprego jovem incluídas no programa Impulso Jovem, criado pelo Governo. Essas medidas consistem em subsídios dados às empresas que empreguem jovens desempregados há mais de um ano e com menos de 30 anos de idade. Os subsídios (que têm a forma de reembolsos de uma percentagem da Taxa Social Única) são pagos durante os primeiros 18 meses de vigência dos contratos de trabalho, sendo os benefícios máximos para salários até aos 980 euros (para contratos a prazo) e até aos 735 euros (para contratos sem termo). O que este sistema de incentivos diz às empresas é simples: contratem jovens até aos 30 anos, contratem-nos por prazos não superiores a 18 meses, paguem-lhes salários baixos, de forma a maximizar os vossos reembolsos de TSU. E, naturalmente, este incentivo à precariedade e aos baixos salários é financiado pelos nossos impostos.


Se fosse preciso uma admissão do desejo do Governo de aumento da desigualdade e de degradação dos salários, ela não poderia ser mais clara. E é claro que isso é feito em nome da promoção da competitividade e apresentado com a desvergonha habitual como sendo uma medida de promoção do emprego. Percebe-se: estes jovens desempregados não se chamam Pais do Amaral. São cidadãos de outra categoria.


3- O discurso de defesa da desigualdade crescente - que já não é apresentada como um flagelo a combater mas como uma infeliz inevitabilidade, quando não como uma ferramenta da promoção da competitividade internacional - é, aliás, cada vez menos eufemístico. Num dos últimos programas da Quadratura do Círculo, o advogado António Lobo Xavier levava a desfaçatez ao ponto de declarar que a redução das desigualdades sociais não era "sustentável" (repare-se na apropriação do léxico politicamente correcto, como um dedinho piroso espetado ao pegar na chávena de chá) e dizia que a relativa redução das desigualdades durante dois anos dos governos Sócrates teriam provado isso mesmo, pelo descalabro financeiro que teriam provocado. O mantra da direita caceteira que temos no poder é "gostávamos de combater as desigualdades, mas não temos dinheiro para isso", da mesma forma que Paulo Macedo diz que a única forma de defender o Serviço Nacional de Saúde é destruí-lo e que Mota Soares diz que a única forma de defender o Estado Social é acabar com ele. Os indicadores da desigualdade enchem todos os dias as páginas dos jornais: há 463 mil desempregados sem qualquer tipo de apoio, há 40 mil idosos em Lisboa que deixaram de ter dinheiro para comprar passe, os escândalos tornaram-se estatística quotidiana. O discurso político demoniza estes miseráveis, humilhados e ofendidos. São o peso-morto que o Estado não pode suportar, que nos "puxam para baixo". Era bom se os pudéssemos ajudar mas não temos meios. É pena, mas vamos ter de os deixar morrer. Todo o dinheiro que temos é para pagar aos banksters, a esses não podemos deixar de pagar, custe o que custar. O dinheiro que temos é para tapar o buraco que os amigos de Cavaco deixaram no BPN e o que sobrar é para subsidiar a compra do BPN pelos angolanos. Não temos dinheiro para mais. Não temos dinheiro para ser solidários, não temos dinheiro para ser humanos. E aliás as pessoas já estão a habituar-se. Para Pais do Amaral seria um choque deixar de ter dinheiro para comer, seria impensável, sorrimos perante a simples ideia, mas é uma pessoa de outra qualidade. Esta gente está habituada. A humanidade não é sustentável, a dignidade não é sustentável. É isso que a direita teima em nos ensinar: a humanidade não é uma opção política. Será que eles sabem mesmo o que nos estão a dizer? (jvmalheiros@gmail.com)