por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2012
Crónica 32/2012
A falta de entendimento à esquerda é um problema, mas está longe de ser "o problema"
Nos últimos anos — e com mais vigor desde o início da actual crise financeira e do seu mais recente desenvolvimento, a chamada crise das dívidas soberanas, — tem havido uma preocupação crescente no seio da esquerda em congregar os diversos partidos e movimentos que se reclamam desta tradição política em torno de causas, propostas e acções comuns.
No entanto, esta preocupação só episodicamente atinge as lideranças dos partidos de esquerda ou semi-esquerda, ainda que ela seja cada vez mais viva e mais urgente nos discursos dos seus apoiantes menos comprometidos com as lideranças, que não percebem por que razão, perante o mais violento ataque das últimas décadas contra o Estado Social, a esquerda não se consegue unir em torno da meia dúzia de ideias simples que sempre formaram o núcleo duro das suas convicções políticas.
Essas ideias são as que se encontram no coração do chamado Estado Social. É o empenhamento activo na redução das desigualdades sociais, que não são apenas uma indignidade para quem as sofre e uma vergonha para todos nós, mas constituem uma causa objectiva e reconhecida de atraso nacional. É a promoção do trabalho como fonte de dignidade pessoal e forma de produção de riqueza e a concomitante promoção dos direitos laborais. É a existência de uma rede de segurança social universal e mutualista, que garanta uma protecção e uma situação de dignidade a todos os cidadãos em situação de fragilidade, das crianças aos idosos, dos desempregados aos doentes e incapacitados. É a existência de um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, universal e verdadeiramente acessível a todos, como aquele de que Portugal já gozou no passado com os excelentes resultados que conhecemos. É uma Escola Pública universal e de qualidade, para a qual a inclusão é uma razão de ser e que produz elites porque consegue alargar-se democraticamente a toda a população e oferecer condições de desenvolvimento a todos os talentos, em vez de começar por excluir os que não correspondem a certos padrões de classe.
Seria fácil alargar esta lista de atributos, mas as ideias listadas acima constituem o núcleo duro em torno do qual deveria ser não só possível à esquerda, mas até fácil, encontrar plataformas de acção comum — tanto mais quanto vivemos uma situação onde estes direitos de todos estão a ser saqueados debaixo dos nossos olhos, para concentrar privilégios nas mãos de alguns.
A prova que muitos sentem uma acção coordenada da esquerda como indispensável e urgente são as iniciativas que têm surgido em Portugal nos últimos meses, congregando apoiantes do BE, do PCP, do PS e independentes, que buscam, se não a criação institucional de uma frente unida, pelo menos uma unidade de acção da esquerda. Iniciativas como o Manifesto para uma Esquerda Livre ou o Congresso Democrático das Alternativas — declaração de interesses: sou subscritor de ambas — são um exemplo disto. Mas é significativo que, mesmo aqui, as lideranças dos partidos à esquerda se mantenham prudentemente à distância destas iniciativas, tentando minimizar a sua importância, em vez de interpretar o seu surgimento como significativo de uma vontade clara do povo de esquerda.
Esta necessidade de "união das esquerdas" tem condicionado em grande medida o discurso da esquerda, considerado globalmente. O resultado é que a esquerda fala com frequência para si própria, repetindo paradoxalmente algo com que todos os seus interlocutores concordam, mas sem nunca conseguir a sua concordância activa em torno de acções concretas.
Penso que neste discurso, onde a esquerda se dirige a si própria e tenta convencer-se a si própria de algo de que todos se dizem convencidos e mobilizar-se a si própria para algo para o qual todos se dizem mobilizados sem nunca verdadeiramente o conseguir (por enquanto?), há um mal-entendido: a convicção de que esta falta de entendimento à esquerda é "o problema" e que, caso ele seja resolvido, a sociedade de justiça e bem-estar que queremos poderia finalmente começar a ser construída.
Esta convicção parece basear-se na ideia de que a esquerda continua a ser sociologicamente hegemónica - algo que penso estar hoje muito longe da realidade — e que, se por uma vez se puser de acordo, poderá fazer vingar os seus princípios.
De facto, quando a direita diz que o "memorando da troika" conta com o apoio de partidos que representam 80 por cento dos eleitores está a dizer algo que é mais do que uma estatística eleitoral. A verdade é que, por incompreensível que isso nos pareça, a esmagadora maioria da população não considera (ou não tem considerado) que as conquistas do Estado Social desde o 25 de Abril mereçam ser defendidas com real afinco.
Houve de facto algo que se perdeu, um sonho que se esqueceu, uma narrativa que deixou de fazer eco e que tem de se reinventada, reconstruída, refeita de raiz. Podemos atribuir isso a uma sistemática lavagem ao cérebro efectuada pelos media (que é tragicamente real) ou a outros factores, mas a verdade é que existe hoje um terrível divórcio entre a população e a defesa dos seus interesses, devido a uma narrativa reaccionária e caceteira que se tornou hegemónica e que conseguiu impor a ideia do Estado Social como fonte de desperdício, da Segurança Social como sustento de parasitas, do Serviço Nacional de Saúde como um luxo incomportável, da solidariedade social como algo "insustentável", da Escola Pública inclusiva como "facilitista", dos apoios à Cultura como "elitistas", etc.. A verdade é que a direita tem conseguido vender com absoluto despudor e grande eficácia este discurso, voltando trabalhadores contra trabalhadores e convencendo uma grande parte de que os direitos excessivos dos outros, dos subsidio-dependentes, dos ciganos, dos que não querem trabalhar, dos velhos, dos doentes, dos disléxicos, dos bolseiros, são a causa da pobreza de cada um — ao mesmo tempo que vende os privilégios dos agiotas como algo de inquestionável e positivo.
Que a esquerda tem de se unir em torno do que para si é importante, penso que é uma evidência para todos os defensores de uma sociedade decente, livre e justa. Mas a grande batalha que temos de travar no campo das ideias não se resume à arena da esquerda. Quem temos de convencer são todos os cidadãos que, seduzidos ou adormecidos pelas historietas da direita, continuam a votar nos que lhes roubam o trabalho, os direitos e as riquezas, eternizando desigualdades injustas e privilégios.
Enquanto o discurso populista da direita sobre o Rendimento Social de Inserção como sustento de parasitas e sede de fraudes continuar a colher, o nosso trabalho estará longe de estar feito. (jvmalheiros@gmail.com)
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