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sexta-feira, maio 19, 2017

Grandes poderes, nenhum escrutínio - Crónica no Jornal Económico

Por José Vítor Malheiros

Empresas globais como a Google e o Facebook possuem um poder ilimitado de manipulação dos comportamentos.

19 Mai 2017 - Crónica no Jornal Económico/5 e última

“Um grande poder acarreta uma grande responsabilidade”. A frase tem vários autores ilustres, desde Churchill a Jesus Cristo, mas a versão que conquistou a imortalidade (“With great power comes great responsibility!”) é a de Benjamin Parker, o “Tio Ben” de Peter Parker, mais conhecido como Homem-Aranha.

A noção é central na filosofia política e no exercício da política em democracia, onde a preocupação em equilibrar um poder com outros poderes e em construir formas de escrutínio, controlo, limite e responsabilização de todos os poderes é tanto maior quanto maior for o seu alcance.

Nenhum sistema político moderno defende a concentração de poderes numa só pessoa ou organização e muito menos uma concentração de poderes isenta de escrutínio. Apesar disso, assistimos hoje a uma concentração crescente de poder na mão de um número limitado de empresas globais que, precisamente devido ao seu carácter global e à sua não-territorialidade, não são submetidas a nenhum escrutínio digno desse nome e cujo poder não é praticamente limitado por nenhuma instância jurídica ou outra.

De uma forma geral, olhamos com complacência estes poderes, que nos parecem benignos e que nos fornecem a baixo preço serviços sem os quais hoje viveríamos dificilmente. Mas qual é o verdadeiro preço que estamos a pagar?

Nos últimos meses, foram publicados na imprensa vários artigos sobre o envolvimento de empresas especializadas em guerra psicológica nas campanhas de Donald Trump nos EUA e do referendo do Brexit no Reino Unido. Estas empresas, ligadas aos meios da direita e extrema-direita globais, podem ter influenciado o comportamento de votantes indecisos através de campanhas de publicidade online extremamente eficazes, construídas com base em dados coligidos, nomeadamente através do Facebook, que permitem conhecer os valores, gostos, atitudes e comportamentos de grupos de pessoas mesmo sem conhecer a identidade pessoal dos seus membros. A questão é que um poder desta dimensão, capaz de manipular o comportamento de massas, exige um enorme escrutínio e controlo, sem o que a nossa actual e imperfeita democracia se pode ir transformando, insensivelmente, num sistema totalitário onde apenas julgamos fazer escolhas livres.

O Google, por seu lado, determina hoje quase toda a informação a que temos acesso. No passado, jornais e TV com um poder infinitamente menor, eram submetidos a regras estritas para limitar a sua influência, mas o Google, escudando-se atrás de uma falsa neutralidade dos seus algoritmos, possui um poder virtualmente ilimitado de manipulação de crenças e comportamentos. O debate sobre o controlo destes poderes é essencial, se queremos manter alguma esperança de democracia.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

terça-feira, setembro 01, 2015

Um mundo de coisas a esconder - Artigo publicado no número 1 da revista da CNPD - Julho 2015

por José Vítor Malheiros

Artigo publicado no número 1 da revista da CNPD - Comissão Nacional de Protecção de Dados - Julho 2015


“Se quiserem vasculhar a minha vida que vasculhem! Não tenho nada a esconder!”
É um argumento que ouvimos muitas vezes, em tom displicente, às vezes dito
com orgulho ou mesmo em modo de desafio. No entanto, penso que é uma das posições mais lesivas da liberdade pessoal que existe nas nossas sociedades modernas, crescentemente vigiadas.
É um argumento que fragiliza mais ainda os mais fracos (os vigiados ou potencialmente vigiados), que reforça mais os poderes dos mais fortes (os que vigiam ou que podem vigiar) porque lhes garante total liberdade de acção, que apresenta como alienável um direito que é de facto inalienável, que compromete mais o nosso futuro, que põe em causa o nosso direito a viver a nossa vida como queremos, sem ser submetido ao escrutínio permanente dos nossos pares, dos nossos chefes, de todos aqueles que queiram submeter-nos e reduzir a nossa liberdade.
Porquê? Porque transforma a defesa de um direito fundamental numa suspeita, numa acusação, quase num crime, invertendo totalmente os valores em causa. Porque transforma a defesa de um direito numa infâmia. Porque insinua que quem protege a sua vida da devassa de outros, dos vizinhos, das empresas, dos patrões, das polícias, do Estado, dos sites da Internet, o faz porque comete ou cometeu actos inconfessáveis, ilegais, ilícitos, vergonhosos. Porque é uma posição que não compromete apenas aquele que a enuncia, mas contribui para definir um padrão social que irá limitar a liberdade de todos os outros.
Numa sociedade democrática (e não preciso de dizer democrática liberal porque a liberdade é condição da democracia, tem de estar na sua base, sem o que não há democracia) as pessoas têm direito a reservar a sua vida, diferentes aspectos da sua vida (aqueles que queiram, à la carte), do escrutínio de outros (aqueles que queiram, à la carte).


Não é só a intimidade


É costume falarmos da “reserva da vida privada” e a Constituição da República Portuguesa defende o direito (artigo 26º) “à reserva da intimidade da vida privada e familiar”, mas não se trata apenas da “vida privada e familiar”.
Para além deste sanctum sanctorum da nossa identidade, cuja devassa poucos hesitam em condenar, há inúmeros aspectos da nossa vida que, não sendo estritamente privados nem familiares, não nos importamos de revelar a uns mas queremos proteger do conhecimento de outros.
Uma pessoa pode frequentar aulas de ballet e, ainda que isso seja do domínio público no clube onde frequenta as aulas, que até podem ter assistência, pode querer manter isso em segredo dos seus colegas de trabalho. Outra pessoa pode querer manter em segredo de certas pessoas o seu emprego, porque o considera por alguma razão embaraçoso, mas este pode ser do domínio público num outro contexto. E a divulgação dessas informações no contexto errado poderia constituir uma violência imensa para a pessoa em causa, fonte de sofrimento, de culpa, vergonha, de possível coacção ou extorsão.
Todos conhecemos exemplos semelhantes e - mais significativamente - todos protegemos certas informações “não íntimas”,  “não privadas” e “não familiares” dos olhos de certas pessoas. Não porque sejam crimes ou sequer pecados, mas porque queremos moldar a persona que mostramos às pessoas com quem nos relacionamos. E temos esse direito. Todos mostramos diferentes personagens, diferentes personas, diferentes facetas a diferentes grupos e a diferentes pessoas. Não porque as queremos enganar, mas porque, tratando-se de pessoas diferentes, as tratamos como pessoas diferentes. Alguém conta as mesmas anedotas aos colegas da tropa e aos sogros? Alguém apresentará a mesma atitude nas reuniões do trabalho e quando fala ao namorado da filha? Será isso hipocrisia? Será isso um pecado? Ou será apenas o direito a exercermos a nossa liberdade de sermos diferentes conforme a circunstância, o interlocutor, o momento, o nosso objectivo nesse momento e a nossa história?


Os graus de cinzento e o contexto


A questão é que não existem de um lado dados que não nos importamos de revelar (públicos) e do outro lado dados que queremos preservar da observação dos outros (privados). A distinção não é tão clara e muito menos binária. Não é por acaso que discriminamos: dados familiares, pessoais, privados, íntimos. Informação sobre a nossa situação bancária, saúde, vida amorosa, sexualidade, sonhos. Existe um longo continuum entre estes dois mundos, público e privado, plenos de matizes e ramificações, de cinzentos infinitesimamente mais escuros ou mais claros.
E, para tornar tudo mais complexo, para cada informação não existe apenas o contexto de onde ela é originária, o contexto onde essa informação foi recolhida, o seu mundo de origem (saúde, finanças) mas o contexto em que ela é difundida, que muda tudo. Há informações absolutamente privadas num dado contexto, que constituiriam uma violência para a pessoa se fossem tornadas públicas nesse contexto, e que são partilhadas abertamente noutro grupo. A informação mais íntima, uma informação sobre a nossa saúde, sobre uma doença que nos aflige, que mantemos secreta do mundo, no nosso emprego, que podemos esconder até da nossa família e dos nossos amigos, pode ser partilhada num grupo de entre-ajuda de doentes, entre pessoas quase desconhecidas. A relação que mantemos com estas pessoas e com a nossa família é diferente e a faceta que queremos mostrar-lhes também.
Teremos esse direito? O direito de modular a informação sobre nós que permitimos que os outros consultem, que permitimos que os outros vejam? Penso que sim. Penso mesmo que essa deve ser a regra e que todas as invasões da nossa vida privada e todas as divulgações de dados pessoais devem ser as excepções, cuidadosamente e criteriosamente decididas. Felizmente, também a lei e a CNPD pensam, em geral, assim. E isso porque a relação de poder que temos com as diferentes pessoas com quem nos relacionamos é diferente. Há informação que receamos que possa ser, de alguma forma, usada contra nós num dado contexto e que não temos razão para recear difundir noutro contexto.
Colher informação num dado contexto e transplantá-la para outro - ou colher toda a informação que disponibilizamos voluntariamente “publicamente” nos vários contextos e disponibilizá-la em todos os outros contextos seria uma enorme violência. Seria literalmente despir a pessoa da sua persona e obrigá-la a exibir-se sem a roupa que escolheu para a sua vida social nos diferentes grupos a que pertence, nos diferentes mundos que frequenta.


Expectativa de privacidade


É por isso que, apesar de estarmos em público quando andamos numa rua, não é necessariamente aceitável, por esse simples facto, filmar as pessoas que passem nessa rua e muito menos divulgar essa informação publicamente.
Mesmo nos casos onde essa informação é recolhida - e deve haver um exigente escrutínio das razões para tal, dos benefícios dessa recolha e dos prejuízos possíveis - ela deve ser protegida tanto quanto possível, limitando as imagens colhidas, o tempo de arquivo e os acessos permitidos. E isto porque as pessoas têm, apesar de tudo, uma expectativa de relativa privacidade mesmo quando andam numa rua. A relativa privacidade que lhes é garantida pelo anonimato da cidade, da multidão, da hora de ponta, do lusco-fusco ou o que for e pelo facto de estar aqui e não estar ali (ou seja: de ter a expectativa de poder estar, eventualmente, a fornecer informação sobre a sua localização a um determinado grupo de pessoas, as que se encontram na mesma rua, mas não ao mundo inteiro).
Se disséssemos a alguém que, sempre que passasse pela rua X, essa informação seria transmitida a todos os elementos da sua rede social, a toda a gente que a conhece ou conheceu, é provável que essa pessoa preferisse escolher outro trajecto. Não porque tencione fazer algo condenável na rua X, mas porque prefere não estar sob o foco da atenção alheia de milhares de pessoas. E tem esse direito. O direito ao anonimato, o direito a ser deixada em paz.


O segredo é condição de liberdade


A questão é que, quando estamos a ser escrutinados, observados, vigiados, não gozamos da mesma liberdade que quando nos julgamos fora do alcance da observação alheia. Agimos de maneira mais livre quando não somos vigiados, de maneira mais de acordo com o nossa verdadeira vontade, sem receio de críticas, admoestações, condenações, reparos, registo para eventual uso futuro. É por isso que o voto democrático é o voto secreto, o que podemos fazer sem que ninguém nos veja. É por isso que nos sentimos tão incomodados quando alguém espreita pelo buraco da fechadura, violando uma regra social que não parece muito relevante mas é, para todos, preciosa.
A verdade é que somos seres sociais mas somos, também, seres privados, indivíduos com uma mente secreta só nossa e esse espaço virtual de absoluta liberdade é essencial para sermos quem somos. Precisamos desse recato, da certeza de não estarmos a ser observados, para levar a cabo aquele diálogo connosco mesmos que define o nosso eu, os nossos pensamentos, que estrutura os nossos actos, que nos dá a coerência com o nossa história e as nossas ideias. Que escritor conseguiria escrever com alguém a espreitar por cima do seu ombro? Que compositor conseguiria compor? Quem conseguiria criar submetido a um escrutínio constante, a uma observação constante, por discreta e por benevolente que ela fosse? E isso não acontece porque se trate de obras secretas - o escritor e o compositor escrevem para o mundo - mas o momento da criação exige absoluta liberdade e a liberdade exige ausência de escrutínio, de observação alheia, respeito.


Os novos velhos problemas da Internet


Transplantar a informação pessoal de um contexto para outro, de um tempo para outro, de um grupo para outro, foi algo que a Internet tornou constante. Porque a informação que se partilha nas redes sociais online é informação pessoal (quem sou, onde nasci, com quem namoro, como se chama o meu pai, onde passo férias, de que música gosto, onde estou neste momento e com quem e porquê) e porque toda essa informação, colhida em diferentes momentos, na companhia de diferentes pessoas, em diferentes contextos, é depois colocada num mesmo espaço onde fica para sempre, à mercê dos futuros utilizadores que não sabemos quem serão. É assim que o nosso patrão acede às fotografias da bebedeira que apanhámos em Porto Covo e fica a saber em que partido votámos nas últimas (e provavelmente também nas próximas) eleições. É assim que uma pessoa minimamente interessada que se dê ao trabalho fica a saber praticamente tudo sobre nós, esse conjunto de informações “públicas” que, devidamente articuladas, fazem um detalhadíssimo “retrato privado” da nossa vida.
É o que se chama o problema da “big data” e do respectivo “data mining”, que coloca nas mãos de não sabemos quem, mais informações do que gostaríamos de lhes ter dado. Alterações no padrão do nosso comportamento (das compras que fazemos no supermercado, por exemplo) permitem a uma entidade com um software sofisticado e acesso aos dados (o nosso supermercado, por exemplo) saber algo que nem sequer contámos a ninguém: que estamos doentes, que estamos a fazer dieta, que estamos com problemas de dinheiro e talvez desempregados, que estamos apaixonados, que vamos ter um filho.
Há inúmeros problemas de privacidade nascidos com a Internet. Outro consiste no facto de que a maior parte dos utilizadores continua a pensar que a informação que disponibiliza (aos sites onde se inscreveu ou a outros utilizadores) apenas é vista pelo seu reduzido e simpático grupo de amigos. Sabem que não é assim, mas querem acreditar que é assim. Afinal, não têm nada a esconder, pois não?
Outro é o facto de que a maior parte dos utilizadores continua a pensar que a informação que disponibiliza na Internet desaparece no dia seguinte porque não está na última página do Face. Sabem que não é assim, mas querem acreditar que é assim.
E outro, maior, é o desaparecimento do tal contexto. Em vez de termos o grupo dos colegas, dos amigos do coração, das colegas do liceu, da malta da tropa, do grupo do judo, das amigas da avó, dos colegas da faculdade, que existem no mundo em diferentes mundos, a quilómetros de distância, a horas diferentes, a Internet é um único contexto, onde a avó sabe que patuscadas combinamos e o antigo namorado sabe que mudámos de emprego. Na Internet verifica-se o que chamo o flattening de todos os universos onde existimos - todos passam a ser apenas um. Todos se encontram no mesmo Facebook e o Twitter guarda as mensagens da noite para mostrar no dia seguinte a quem estava a dormir. O mesmo Facebook, o mesmo Twitter.


Velho problema, novas soluções


Não é um enorme problema, mas obriga a uma nova aprendizagem por parte dos utilizadores. Uma aprendizagem que ainda não amadureceu e que, provavelmente, só vai emergir depois de algum sofrimento, como o caso de Justine Sacco, a directora de comunicação de uma grande empresa que descobriu, ao aterrar no país onde ia passar férias, que tinha sido despedida durante o voo por causa de um tweet que tinha enviado antes de o avião descolar e que o seu chefe considerou racista - assim como muitos milhares de pessoas que o difundiram pela rede, tornando a sua vida um inferno nos anos seguintes.
A Internet torna mais difícil compartimentar a nossa vida, como fazemos IRL (in real life). É fácil dizer, como dizem muitos (Scott McNealy, CEO da Sun; Mark Zuckerberg, CEO do Facebook) que a privacidade morreu e tudo o que temos a fazer é adaptarmo-nos a isso.
Não penso assim. É evidente que a Internet e as redes socias e a descoberta do valor comercial de certos dados (a nossa lista de compras) nos pressionaram a partilhar/difundir/desproteger muita informação, que hoje oferecemos sem pudor. É verdade que a tecnologia disponível permite hoje conhecer quase tudo sobre os cidadãos. É verdade que podemos saber muitas coisas uns sobre os outros que antes era difícil saber e que as empresas e outros poderes podem saber muito mais, quase tudo, com a possível excepção do que nos passa pela cabeça. Habituámo-nos a um certo grau de nudez, maior do que antes. Aquilo que queremos reservar mudou. Há trade-offs que estamos dispostos a fazer. Aquilo a que chamamos “vida privada” não é a mesma coisa a que chamávamos “vida privada” há vinte anos, tal como deixou de ser atrevido mostrar as pernas, mas a protecção da vida privada como conceito não perdeu actualidade, pelo contrário. É o direito a reservar aquilo que queremos reservar do escrutínio público. E aqui quem decide tem de continuar a ser a lei democrática, como tradução da moral, e não as possibilidades da tecnologia. Nem tudo o que é possível é desejável. Nem tudo o que é possível deve ser permitido. A vida privada tornou-se apenas um jardim mais difícil de cuidar. Mas é aí que está o cerne da nossa humanidade.


José Vítor Malheiros
Julho 2015

terça-feira, janeiro 20, 2015

A liberdade é só uma

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2015
Crónica 3/2015


"12 anos escravo" é um filme de 2013 que se baseia nas memórias de Solomon Northup, um negro americano nascido livre em Nova Iorque em 1808, que foi raptado aos 33 anos em Washington, vendido como escravo e obrigado a trabalhar em plantações da Louisiana. Ao fim de doze anos, Northup conseguiu finalmente enviar informações sobre o seu paradeiro à família, que conseguiu a sua libertação.

O happy ending do filme é a cena onde Northup é libertado por um xerife, perante a indignação do seu “proprietário” e o espanto dos outros escravos, e os espectadores sentem que no final foi feita justiça. Porém, a sensação é não apenas deprovida de razão mas profundamente perversa.

De facto, não há nada em Solomon Northup, a não ser a sua situação jurídica à luz de um ordenamento jurídico iníquo e desumano, que lhe confira mais direito à liberdade que aos outros escravos da plantação, nascidos escravos e legalmente vendidos e comprados. Foi aliás assim que o entendeu o próprio Northup, que se tornaria um activo abolicionista nos anos posteriores ao seu rapto.

Por que temos, apesar de tudo, uma tendência para empatizar mais com Northup que com os outros escravos? Porque a história o usa como figura central. Empatizamos mais com ele porque o conhecemos melhor que aos outros. É por esta razão que adoptamos sempre o ponto de vista dos protagonistas nos filmes, sejam polícias ou ladrões.

Esta empatia, que nasce do conhecimento e da familiaridade, é um sentimento universal. Na imprensa chama-se a isto “proximidade” e constitui um dos principais critérios de noticiabilidade usados pelos jornalistas. Segundo este critério, um acidente que mate um português terá a mesma cobertura que um acidente idêntico que mate dez italianos ou cem chineses. E é também pela mesma razão que, quando uma catástrofe mata mil pessoas do outro lado do mundo, a imprensa portuguesa se preocupa em saber se não haverá um português entre as vítimas.

Quando milhões de pessoas em todo o mundo declararam a sua solidariedade a "Charlie Hebdo", não faltou quem perguntasse por que não declaravam estes manifestantes, tão empenhados na luta pela liberdade e pelos direitos humanos, a sua solidariedade a tantas outras vitimas de terrorismo no mundo. A Amnesty International, por exemplo, para aproveitar a vaga "Charlie" mas não sem alguma mágoa, lançou a sua campanha "We are Raif", pela libertação do blogger saudita Raif Badawi, condenado a dez anos de cadeia, uma pesada multa e mil chicotadas por se ter atrevido a criticar os clérigos sunitas do seu país.

Também não faltou quem lembrasse os sanguinários ataques terroristas do Boko Haram, na Nigéria e nos países limítrofes, de uma violência raramente vista, para perguntar se estas crianças (uma grande parte dos muitos milhares de vítimas do Boko Haram são crianças) não mereceriam o mesmo cuidado, o mesmo carinho, a mesma memória, a mesma indignação, a mesma atenção mediática, as mesmas manifestações que as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo.

Não tem grande sentido nem utilidade discriminar graus dentro do horror, ou fazer rankings de morticínios, mas não pode haver dúvidas de que não existe maior horror do que aquele a que são submetidas as crianças raptadas pelo Boko Haram, torturadas, violadas, obrigadas a matar e usadas como bombas humanas. Como se descreve o horror de uma menina de dez anos, raptada depois de ver a sua família chacinada à sua frente e a sua aldeia arrasada, que é embrulhada em explosivos e enviada para o meio de um mercado para ser despedaçada e despedaçar as pessoas à sua volta?

E como se descreve o sofrimento das crianças sem-abrigo, de que falou Glyzelle Palomar, a menina filipina que vivia na rua e que perguntou ao papa por que razão Deus permitia que as crianças fossem forçadas a usar drogas e à prostituição?

Não acredito que os manifestantes chocados pelo ataque ao Charlie se sintam menos indignados por estes outros crimes ou menos mobilizados para o seu combate. O que acontece é que todos nós combatemos as batalhas que podemos combater, as que nos aparecem pela frente.

Compreendo o abafado sentimento de injustiça dos que lutam pela libertação de Raif Badawi ou das meninas nigerianas ao ver tantos milhões mobilizados pelo ataque de Charlie. Compreendo que perguntem com desespero, como Glyzelle, “porque há tão pouca gente a lutar por nós, connosco?” mas a batalha é a mesma. Lutar pela liberdade de fazer caricaturas anti-religiosas é lutar pela liberdade de educação das raparigas que o Boko Haram ataca e é lutar pelo mundo civilizado onde um dia não haverá crianças sem-abrigo. Mas é preciso dizê-lo, sempre, de cada vez. Dizer que a batalha pela liberdade é por todos, os distantes e os próximos, os intelectuais e os analfabetos, os que estão na televisão e os que não têm voz. Só há uma liberdade. Só há uma humanidade. Quando se mata a liberdade na Nigéria é a nossa liberdade que é morta. Quando se chicoteia um homem por criticar o poder, são as nossas costas que são chicoteadas.


terça-feira, dezembro 10, 2013

Como a política pode estar ao serviço da decência

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Dezembro de 2013
Crónica 46/2013

Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.

1. Nos últimos dias, depois da morte de Nelson Mandela, vimos várias vezes o seu nome associado a dois outros grandes combatentes da liberdade e da igualdade, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, numa espécie de quadro de honra do nosso panteão pessoal e talvez de toda a humanidade.

Lembro-me de que, quando eu era pequeno, quando se queria referir um exemplo de grande autoridade moral, os nomes que vinham à ideia e à boca de todos eram o de Gandhi e o de Albert Schweitzer, médico e missonário franco-alemão, que tinha dedicado a sua vida à assistência médica num canto perdido do Gabão e que tinha recebido o prémio Nobel da Paz em 1952.

A influência de King e o seu papel na conquista dos direitos cívicos dos negros americanos tornar-se-iam conhecidos fora dos Estados Unidos principalmente depois da sua morte, em 1968, e, apesar de todas as suas conhecidas imperfeições humanas, o seu nome tornar-se-ia um sinónimo de perseverança e coragem no combate pela dignidade humana e na recusa da violência como meio para a alcançar.

A popularidade de Schweitzer, inversamente, acabaria por se desvanecer depois da sua morte, em 1965, em resultado de uma crítica moderna que viu na sua vida um exemplo do paternalismo do homem branco em relação aos africanos e um obstáculo à sua auto-determinação.

Mandela, por seu lado, começa a tornar-se uma presença constante no panorama mediático em 1980, com a campanha internacional “Free Mandela”, como símbolo da luta contra o apartheid e, após a sua libertação, a negociação do fim do apartheid, da instauração da democracia e da transferência de poder para as mãos da maioria negra transformam-no sem hesitações no homem mais admirado do planeta. Poucos imaginavam que a África do Sul poderia desatar o nó górdio do apartheid sem um banho de sangue e num espaço de tempo tão curto. Mandela consegue-o, substituindo a vingança pela verdade e reconciliação e pondo em prática uma política literalmente desarmante.

O que é espantoso num trio como Gandhi, King e Mandela, que são talvez os três homens cuja vida é objecto de maior admiração no mundo moderno, é que se trata de três políticos.

Ninguém adivinharia, quando se vê o respeito, o fervor e a emoção com que estes três homens são olhados, que os políticos sejam considerados, em Portugal e em tantos outros países do mundo, um exemplo de corrupção, de falsidade, de falta de princípios, de deslealdade, de subserviência perante os fortes, de indiferença.

Poder-se-ia argumentar com a diferença entre os políticos de “antes” e os de “hoje”, mas Mandela, que abandonou a presidência em 1999 e continuou uma actividade pública depois disso, é claramente um homem do nosso tempo.

O que este trio nos mostra é a política no seu melhor. A política como ela deve ser e como ela pode ser. A política como instrumento de libertação, de progresso, de paz e de fraternidade. Não a política da subserviência ou do falso consenso. Mas a política do combate sem tréguas contra a iniquidade, da inflexibilidade na luta pela dignidade. É admirável que Mandela, que dirigiu a luta armada contra o apartheid, tenha recusado o ódio como móbil da sua acção política e tenha convencido todo um país a fazê-lo. Mas Mandela nunca abdicou do essencial: o fim do apartheid e a democracia. É por isso que o admiramos: pela sua firmeza no essencial e pela sua eficácia, por não aceitar a indignidade nem na forma como os negros eram tratados nem na forma como poderiam ter tratado os brancos.

O que a admiração das pessoas evidencia é que o melhor da política continua a ser a nossa maior aspiração e o mais nobre dos objectivos a que os homens se podem dedicar. Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.

Em Portugal, particularmente, já tínhamos esquecido que a política pode ser exaltante. Isso é outra coisa que podemos agradecer a Mandela.

Não precisamos de menos política. Precisamos apenas de outros políticos.

Outra coisa curiosa no nosso trio é que dois destes homens (Gandhi e Mandela) eram advogados - uma profissão quase com tão má reputação como a dos políticos. Como era advogado Aristides de Sousa Mendes, que é hoje homenageado pela Ordem dos Advogados.

2. Há, no consenso que pareceu existir nos últimos dias sobre o legado de Mandela, uma esperança. Não falo do consenso hipócrita que pretende reescrever a história e colher louros indevidos aproveitando a morte de um grande homem. Mas falo daqueles para quem, com sinceridade, o legado de Mandela é admirável, desde a sua decisão de abraçar a luta armada ao seu abandono da violência. Há, em todos os gestos de Mandela, um núcleo de crenças que podem ser um ponto de entendimento entre um grande número de pessoas. Constituem o que podemos chamar a decência. A crença em direitos iguais para todos os homens e mulheres. Governar para servir todo o povo. O direito de todos a viver e a trabalhar com dignidade.

Também nós esperamos que um dia, em breve, de surpresa, como o fim do apartheid, a política possa deixar de nos repugnar e possa escolher a decência e começar a servir os cidadãos. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, novembro 28, 2013

A Web é demasiado importante para estar na mão do mercado

Por José Vítor Malheiros
Julho 2013
Comentário escrito para a entrada "Web", da autoria de Hermínio Martins e José Luís Garcia, da obra “Portugal Social de A a Z”, edição do Instituto de Ciências Sociais (ICS, 2013) sob coordenação de José Luís Cardoso, Pedro Magalhães e José Machado Pais, lançado no dia 28 de Novembro de 2013
 

Particularmente marcantes nas profundas mudanças que a evolução da Web e do seu uso imprimiram na nossa vida nos últimos 20 anos, e que a entrada “Web” de Hermínio Martins e José Luís Garcia abordam [ver abaixo], são o carácter cada vez mais público da nossa vida privada e, paralelamente, o carácter cada vez mais privado dos espaços públicos onde se exerce e se manifesta a nossa cidadania.

É verdade que “público” e “privado” não se referem aqui rigorosamente à mesma dimensão, como as palavras poderiam sugerir.

Quando falamos do carácter cada vez mais público da nossa vida privada referimo-nos à sua exposição e publicidade - activa e assumida ou pelo menos consentida, ainda que talvez não informadamente consentida - e à desintegração ou reconfiguração de uma certa ideia de esfera privada e de esfera íntima que é hoje subvalorizada.

Por sua vez, quando falamos do carácter cada vez mais privado dos espaços públicos que ocupamos e usamos referimo-nos à sua propriedade. De facto, os “espaços públicos” virtuais representados pelas redes sociais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube são serviços de empresas privadas, que definem as suas próprias regras, que se apropriam dos conteúdos que os seus utilizadores publicam nas suas páginas, que podem aplicar sanções como a suspensão ou a expulsão de utilizadores individuais ou de grupos de utilizadores e que podem mesmo cessar a sua actividade de um dia para o outro devido a uma decisão que seria, no âmbito empresarial, legal e legítima.

Porém, se esta antinomia público-privado não é, na acepção em que usamos as duas palavras, perfeita, ambos os fenómenos reflectem faces de uma mesma alteração que a Web promove: uma alienação de algo que era uma prerrogativa minha e uma propriedade minha (de mim como indivíduo ou da sociedade a que pertenço) em favor de algo que nem sou eu nem a sociedade onde vivo. Há aqui uma perda, palpável, mas difícil de quantificar, tanto mais quanto ela é voluntária (no caso da publicidade da vida privada), quanto o risco é apenas potencial (no caso da propriedade privada das nossas discussões públicas) e quanto ela tem lugar como contrapartida de uma acção que confere uma real sensação de autonomia e influência - se não um real poder. Esta perda de recolhimento, de reflexão, de introspecção, esta dessensibilização em relação à exibição da intimidade, esta renúncia a um tempo só meu, a um pensamento só meu, desvalorizará inevitavelmente o que é único e pessoal e intransmissível ou poderá estar na origem de uma nova proximidade e compreensão entre as pessoas, de uma nova transmissibilidade? Tornar-nos-emos mais humanos ou mais espectadores por causa disso?

E o estatuto privado dos novos espaços públicos saldar-se-á pela construção de um espaço virtual verdadeiramente comunitário, um commons da web (ar, água, comida, terra... Internet?), ou pela sua evolução para condomínios fechados, espaços de exclusão? Vamos nacionalizar ou privatizar as redes sociais?

As relações de poder no tabuleiro da Web estão ainda em grande turbilhão, mas o que é evidente desde já é que a Web se tornou demasiado central como campo de exercício de cidadania para ser controlada pelas regras do mercado - ainda que isso não queira dizer que tal coisa não possa acontecer. As regras que temos de fazer vingar nesta arena são as regras da democracia e as dos direitos humanos. O que significa, no mínimo, que há um commons que é preciso inventar na web e defender e que vai muito para além da defesa da neutralidade da infraestrutura da web. Se a Web não for democrática, nada o será. E não, ninguém disse que ia ser fácil.

José Vítor Malheiros
Julho 2013


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“Portugal Social de A a Z” - Edição do Instituto de Ciências Sociais (ICS) 2013Coordenação de José Luís Cardoso, Pedro Magalhães e José Machado Pais

WEB
por Hermínio Martins e José Luís Garcia

A Web, sensivelmente como funciona hoje, data da década de 1990. Trata-se pois de um acontecimento recente, embora tão incorporado no quotidiano que se “naturalizou” tanto ou mais como qualquer outro fenómeno cultural, qualquer “tecno-facto” da vida pré-digital. Para além dos computadores pessoais habituais, hoje temos que ter em conta a difusão dos dispositivos de comunicação móveis, smartphones e tablets, especialmente os com acesso à Internet de banda larga. Os smartphones têm estado a adquirir variadíssimas funcionalidades, tornando-se um paradigma do dispositivo digital maxi-funcional. Acrescem ainda as dezenas de milhares de aplicações (apps) já desenvolvidas com outras a aparecer constantemente, para uso local ou trans-local, para sectores restritos da população ou para um grande universo de utilizadores, em rápida expansão. A velocidade de difusão dos telemóveis foi considerável, mas a difusão internacional dos smartphones tem sido avaliada por muitos comentadores como a mais rápida das tecnologias de consumidor em toda a história da civilização industrial, decerto da história das telecomunicações. De qualquer modo, o mundo, e a vida quotidiana, tornaram-se inimagináveis e mesmo impossíveis, sem esta aparelhagem, a sua presença e disponibilização contínua.

Em 2000 tinham acesso à Internet de banda larga cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2012 contavam-se 2 mil milhões de pessoas (mais de um terço da população mundial). Em alguns anos, segundo extrapolações correntes, poderão contar-se 5 mil milhões de pessoas, o que tornaria a Internet a mais planetária e planetarizante das tecnologias de informação e comunicação na história. Mesmo assim, as preocupações com a “fractura” ou “fosso digital”, ou melhor os fossos digitais, têm sido permanentes nas últimas décadas. O exemplo mais óbvio desta assimetria, inicialmente, foi a disparidade entre os países avançados e os outros, em especial no caso dos países africanos, onde a infraestrutura de telecomunicações estava bem menos articulada, embora os telemóveis se tenham difundido extremamente nalguns países, ainda que sem acesso à Internet. De qualquer modo, esta distância está a diminuir constantemente. Alguns países saltaram para além da época dos telefones fixos para a era dos telemóveis (na Índia o número de assinantes de telemóveis é quase o mesmo que o dos habitantes do país), e agora para a era dos smartphones e dos tablets sem fios, embora com acesso limitado à Internet de banda larga, sem passar pela fase de expansão de telemóveis que nos países ocidentais precedeu a erupção dos smartphones.

O fosso digital dentro dos países, entre classes, grupos etárias ou gerações, por exemplo, deve ser registado: mesmo nos EUA, vinte milhões de pessoas não estão conectadas à Internet, por razões económicas. A disparidade mais comentada dentro dos países “avançados” tem sido entre as gerações, e especialmente entre os chamados “nativos digitais” e os que tiveram de se adaptar às novas tecnologias com um certo atraso ou capacidades limitadas. No entanto, em vários países tem-se verificado uma disposição cada vez maior para aceder à Internet da parte da população mais idosa, não só para informações de todo o tipo, para contactos pessoais e para entretenimento. A população mais jovem, dezenas ou mesmo centenas de milhões de adolescentes em todo o mundo, consome parte das suas energias psíquicas envolvidos em jogos online. Fora dos grupos mais jovens, o nível de instrução marca significativamente as disparidades na utilização regular da Internet. Em Portugal encontramos uma diferença de 58% entre os níveis de maior e menor instrução, por comparação à média da União Europeia a 27, onde existe uma distância de 46 pontos percentuais (dados Eurostat referentes a 2012).

O homo connexus, a pessoa que vive online, que se liga aos outros instantaneamente por dispositivos digitais, qualquer que seja a distância, paradoxalmente, é também cada vez mais um homo urbanus, concentrado em gigantescos centros urbanos. Parece que, mesmo com a grande “densidade dinâmica” de ligações virtuais muito extensas e de todos os tipos, cognitivas, afectivas, lúdicas, profissionais, e a alegada “morte da distância” precisamos ainda de viver em grandes cidades, ou numa série delas. Sujeitamo-nos à condição de estarmos “sós juntos” (o “alone together” de Sherry Turkle), vivendo “solidões interactivas” (no conceito de Dominique Wolton), assim como não-interactivas. Em Portugal, a concentração na costa marítima urbanizada parece uma tendência irresistível. Os tele-modos em rede de comunicação (emails, IMs, Web, redes sociais informáticas variadas, gerais ou especializadas), de cooperação, trabalho, negociação, coordenação, discussão, colaboração intelectual, comunicação e pesquisa científica, convívio, sexualidade, evangelização, comércio, mobilização humanitária ou política, etc., virtuais, são de vasta e crescente utilização. No nosso país, 45% da população publicava mensagens em redes sociais online ou enviava mensagens instantâneas, e 33% carregava conteúdo criado pelos próprios (dados Eurostat referentes a 2012).

Foi já proclamado o advento da “ciência-em-rede” (Michael Nielsen), da “economia em rede”, da “sociedade-em-rede” (Manuel Castells), da “sociedade de indivíduos-em-rede” (Barry Wellman), da “inteligência colectiva” dos internautas (Pierre Lévy), da “sabedoria das multidões” (James Surowiecki). No limite, surge a visão da Internet, com os seus milhares de milhões de internautas, como uma “mente-colmeia” (hive mind) planetária emergente, uma espécie de super-mente gerada pelas sinergias dos internautas: uma imagem inspirada no conceito de “noosfera” de Teilhard de Chardin. No entanto, os contactos pessoais, presenciais, em lugares físicos, como em reuniões, debates, colóquios, congressos (muitos deles com milhares de pessoas vindo de vários países e continentes), conferências, cimeiras, nacionais, internacionais, globais, multiplicam-se como nunca, especialmente em grandes centros urbanos (há excepções como Davos, e outras desse tipo, em que se encontram as super-elites económicas, financeiras, políticas, globais em locais afastados das metrópoles). É verdade que mesmo nesses encontros da vida real passa-se uma boa parte do tempo a ler e enviar mensagens electrónicas ou conversar com terceiros pelo telemóvel, quando não se está a olhar para ecrãs electrónicos ou para ecrãs de computadores, quase apagando a diferença entre seminários e webinars, entre conferências e tele-conferências. Muitos empresários e académicos passam a vida online e a viajar de avião, situação resumida na frase “net and jet”.

O Sistema Internet de hoje não foi desenhado, planeado ou instituído por ninguém em particular: constituiu-se gradualmente pelas interacções e ajustes mútuos de inúmeros agentes, inventores e organizações, como uma verdadeira “ordem espontânea” no sentido dado pelo teórico da economia Friedrich Hayek. Mesmo se este tenha pensado essencialmente em formações sócio-culturais como as linguagens naturais, o dinheiro como instituição, as tradições, os mercados e a “Common Law” da Inglaterra como emergentes não desenhados e planeados, a Internet hoje representa um excelente exemplo do que Hayek tinha em mente. Isto é especialmente verdade se nos lembrarmos que salientou que aquelas formações emergentes complexas não podem ser compreendidas de forma consciente na sua totalidade pelos participantes ou por terceiros, dependendo de conhecimento tácito, muito disperso, não codificável ou redutível a algoritmos (o que também é válido para os sistemas computacionais em geral). Hayek não se cansava de nos prevenir da vulnerabilidade de formações sociais e culturais não desenhadas, com os seus preciosos bens civilizacionais, pois podem ser corroídas ou mesmo rapidamente destruídas por factores políticos ou ideológicos, pela hybris cientificista ou tecnocrática, após terem sido obras de séculos.

A Internet de hoje constituiu-se espontaneamente, mas hoje representa o sistema tecnológico mais complexo do mundo, pelo menos à escala planetária, numa era de sistemas tecnológicos ou tecnocientíficos (como o Large Hadron Collider) muito complexos, e de todos os tempos. Estes sistemas tecnológicos são vulneráveis, especialmente os de tight coupling entre os seu subsistemas. Isto não só por impactos exteriores (desastres naturais, ataques bélicos, terrorismo), mas também por factores endógenos, inerentes, variados, que explicam que os acidentes ocorram “normalmente” (na acepção de Charles Perrow), quaisquer que sejam os cuidados contínuos e os mecanismos de segurança instalados. A Internet adquiriu uma grande resiliência, mas falhas e colapsos parciais e episódicos podem ocorrer, possivelmente devido a ciber-ataques intensos como ocorreu recentemente na Holanda. Apesar daquela capacidade de resposta, existe uma ciber-insegurança permanente dentro desse quadro. As investidas de piratas informáticos, vírus e outras formas de malware, a organizações económicas e todos os sistemas tecnológicos, tecno-económicos, industriais, militares, governamentais, controlados a algum nível por programas de software com alguma ligação à Internet, ocorrem constantemente. Esses ataques informáticos ou ciber-ataques podem partir de agências estatais, militares ou civis, criminosos, conjuntos de pessoas partilhando convicções ideológicas (o caso dos wikileaks ou offshore leaks), ou mesmo de pessoas isoladas sem qualquer objectivo definido, para além da satisfação pessoal de conseguir aceder ao proibido e vedado por códigos de segurança ultra-sofisticados, como os do Pentágono ou da Marinha dos EUA. Todos os sistemas conectados à Internet são vulneráveis a este tipo de agressões. O volume ou importância desses ataques, que têm lugar entre certos Estados de ciber-espionagem económica e militar em grande escala mas também de destruição ou de incapacitação de complexos tecnológicos via malware (como no caso do Stuxnet e o nuclear no Irão), é tal que se poderia dizer que de certo modo já vivemos na era de guerra fria cibernética. O ciberespaço adicionou-se à terra, o ar, os mares, e o espaço exterior dos satélites, como um quarto domínio de combate militar e de luta política envolvendo Estados e actores não-estatais.

Segundo a regra da “neutralidade da rede”, a Internet seria acessível a todos, sem discriminação de conteúdos, com excepções que se teriam de justificar caso a caso. No entanto, os filtros sucedem-se, em regimes democráticos, mas sobretudo em autoritários. Caso paradigmático é a “Grande Muralha Digital da China”, que impede o acesso a diversos sítios Web e conteúdos aos seus nacionais. Há que considerar também que um pequeno número de mega-plataformas gozam da preferência de centenas de milhões de internautas, como Google, Facebook, Twitter, reproduzindo domínios tecnológicos anteriores como os da Microsoft e da Apple, apesar do contra-movimento do software livre. Como explicar esta concentração, além do poder económico e de lóbis políticos? Um factor crucial foram os “efeitos de rede”. Segundo a “lei de Metcalfe”, as vantagens de empresas das indústrias digitais crescem exponencialmente com o número de utilizadores, podendo resultar assim a longo prazo num pequeno número de empresas gigantescas.

Como sugere Tim Wu, a história das indústrias digitais recentes recapitula o padrão histórico da economia das telecomunicações desde o século XIX, mas com a especificidade do “poder de redes” associado a algumas inovações de Silicon Valley nas últimas décadas. Sem dúvida que essas empresas podem abusar do seu poder, que querem ampliar com meios por vezes ilegais. A Microsoft, em particular, tem sido objecto de processos nos tribunais de vários países e na União Europeia devido a leis anti-monopolísticas. O “poder de redes” favorece a concentração neste domínio, como outras leis de potência (das quais a lei de Metcalfe é um exemplo), segundo as quais a distribuição de rendimento, riqueza, fama, prestígio, citações, status das universidades, o tamanho demográfico das cidades, etc., tende a aproximar-se de um padrão de desigualdade nos moldes da clássica “lei de Pareto”, 20/80. De acordo com esta lei, existe uma tendência forte para que a longo prazo se efectue uma convergência para um estado de coisas em que, mais ou menos, 20 % de uma população nacional possua 80% da riqueza ou desfrute de 80% do rendimento nacional (as proporções exactas podem variar consideravelmente).

Desde a década de 1970 as economias ocidentais sofreram um processo de concentração de rendimento, contrariando a tendência histórica de quase cem anos para maior igualdade da sua distribuição, que alguns cientistas sociais caracterizaram como uma lei de evolução das sociedades industriais. As leis de potência da economia das redes, inclusive do sector das telecomunicações digitais, ou mesmo de todos os domínios sócio-económicos afectados pela Revolução Digital, seguem esta trajectória: a “economia do imaterial”, a “economia de redes”, em que programas de software contam decisivamente em todos os domínios da vida tecno-económica e da vida social, está sujeita a “efeitos de rede” sem fim. As novas tecnologias da informação e a gestão do conhecimento pelo mercado como uma matéria prima substancial das economias estão a ser os meios através dos quais se está a operar a transformação do capitalismo no século XXI num modelo de exploração do máximo de possibilidades produtivas digitais. O novo tipo de capitalismo tem na dimensão informativa, tecnocientífica e cognitiva o seu grande capital imaterial. Um novo mundo, de patentes, de propriedade intelectual, aplicações, recursos humanos, comunicação e publicidade, plasma a nova dimensão do capitalismo. Como observa um dos vários teóricos da economia digital, Ramón Zallo (2011), se o ambiente digital congrega oportunidades inegáveis, relativas à distribuição da cultura, os riscos e problemas não são menores. A concentração do capital traduz-se em perda substantiva do pluralismo quanto à criação e distribuição culturais. Agudizam-se as limitações à diversidade cultural, a que se articula a clivagem crescente entre uma cultura transnacional de matriz anglo-saxónica e as culturas locais, remetidas cada vez mais para circuitos de nicho. A desterritorialização dos serviços intelectuais suscita também problemas quanto ao reconhecimento e remuneração da produção informativa e cultural, de que são expressões a usurpação e a imitação. A sociedade de informação global tem representado fundamentalmente a integração da informação e do conhecimento na esfera e dinâmica do mercado mundial.

Que modelos de relações sociais, que formas de vida, que modos de sociabilidade e de associação serão particularmente favorecidos a longo prazo pela saturação das nossas economias e sociedades pelos media digitais, e pela Internet, como medium dos media digitais? Uma tese abrangente elaborada por sociólogos recentemente pode ser resumida como a do “individualismo de redes”, que floresce neste mundo de digitalização e reticularização, com a Revolução Tripla. No essencial, afirma que há uma certa perda de relação com os grupos sociais tradicionais, para participarmos, anonimamente ou com identidades múltiplas, em redes sociais de vários tipos, que se multiplicam em termos de diferentes interesses e preocupações (por exemplo, de pacientes, de doentes de uma ou outra doença específica, de aficionados de um desporto ou outro, de uma actividade de lazer ou outra, de adolescentes obcecados com o suicídio…). Mesmo os nossos contactos, irregulares, frequentes ou mesmo diários, com a família, a escola, os amigos, colegas, as comunidades locais, fazem-se em parte através de redes sociais digitais ou pelo menos on-line (ainda mais no caso de participarmos em escolas virtuais e associações virtuais). O mesmo ocorre com a concertação de acções no mundo físico, cívicas ou políticas, desde as flash mobs até aos movimentos da Primavera Árabe e outros análogos.

Com as tecnologias digitais, todos podem procurar informação actualizada navegando na Internet, desafiando os peritos (um exemplo da muito apregoada “desintermediação”), mas faltam ainda mecanismos relativamente adequados para assegurar a fiabilidade do que se encontra ou de corrigir erros e falsidades (de informações e de fotos). Estamos longe de nos aproximarmos de um espaço público em que a racionalidade comunicativa proposta por Habermas possa avançar com relativa facilidade. O “imperativo de partilha on-line”, especialmente potente com respeito a música, fotos e vídeo, parece ser um dos traços de maior importância na sociedade de redes. Todavia, a partilha on-line é também de rumores e notícias falsas, de parcialidades, e inclusivamente de ódios. Muitas vezes o homo connexus surge como homo credulus, intoxicando-se com teorias conspirativas ou negacionistas de toda a espécie, “virais”. Todos podem ser autores, editores, broadcasters, propagandistas ou agitadores através das redes sociais digitais ou blogues, mas as leis de potência funcionam aqui também. A “electrografia”, a escrita em processador de texto ou em dispositivos móveis (mensagens de texto em especial), tem evidentemente alterado ortografia, sintaxe e léxico entre muitos cibernautas jovens devido em parte aos imperativos de concisão em mensagens rápidas: degradação cognitiva segundo alguns, criatividade segundo outros (a epistolografia da intimidade on-line tem sido comentada dos mesmos modos). Seja como for, a electrografia representa hoje uma força na transformação da linguagem e das línguas nacionais.

Se existe um individualismo de redes, funcionam também colectivos em redes digitais por toda a parte: as organizações económicas, os partidos políticos, as organizações estatais, funcionam também cada vez mais em rede. É pois adequado falar de uma economia de redes, de sistemas políticos em rede, de Estados em vias de reticularização, enfim, de “colectivos de redes”, e até de “colectivismo de redes” (Jaron Lanier chegou a falar de “Maoismo digital”). A tendência para o individualismo de redes representa uma aposta em que as facilidades de florescimento da vida individual num mundo reticular irão prevalecer sobre as outras formas de sociação transindividual em redes que poderão redefinir a escolha livre, a criatividade, a mobilidade cultural. Esta redefinição terá sentidos menos conformes a um individualismo moral e político consentâneo com a autêntica continuação do individualismo ocidental, com o seu legado cristão e kantiano, que prezava a vida privada (a eliminação da privacidade decorre da vida digital), a responsabilidade moral, o sentido crítico, a independência perante a doxa, o distanciamento da mundanidade.

Além disso, não há e-mail, mensagem de texto, mensagem instantânea, que não deixe rasto: todos os cibernautas deixam a sua “pegada digital”, a sua “sombra digital”. A vida on-line é praticamente toda capturável por Estados, e muita dela a acessível a várias agências ou piratas informáticos. A nossa vida on-line é arquivada por multinacionais e outras empresas, que procuram satisfazer-nos pelo conhecimento das “preferências” registadas pelos nossos actos digitais (todos os cliques), desde a mais tenra idade até à morte, mas que tornam os internautas em clientes a cada segundo do nosso quotidiano. A “aldeia global” manifesta-se hoje como um “centro comercial global”, a mercantilização universaliza-se pari passu com a digitalização e reticularização das nossas vidas individuais, profissionais, colectivas, organizacionais. O “individualismo de redes” é acompanhado pela economia de redes, o sistema financeiro de redes, o sistema político de redes, o mercado mundial de redes. O individualismo de redes também se pode caracterizar como “individualismo de redes de mercado” (com os cibernautas observados e solicitados permanentemente por empresas) ou como um individualismo de redes monitorizadas por Estados. E ainda não se vê como o individualismo de redes poderá superar a força das identidades primordiais, do sentido de pertença, da necessidade de pertença, a grupos e comunidades como etnias, comunidades linguísticas, nações, comunidades religiosas transnacionais (que recorrem também às tecnologias digitais com uma certa eficácia).

A Internet, a Web e as tecnologias digitais de informação e comunicação afectam praticamente todos os domínios sociais, económicos, financeiros, políticos, culturais, artísticos, científicos, religiosos da nossa civilização, bem como os nossos cérebros e mentes. Evidentemente, nestas páginas só nos foi possível aflorar alguns tópicos de um vasto leque de assuntos que a Revolução Digital em curso pode sugerir.




BIBLIOGRAFIA

Castells, Manuel. (2007) A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Lisboa, Gulbenkian

Doueihi, Milad (2008) La grande conversion numérique Paris, Seuil

Furtado, José Afonso (2012) Uma cultura da informação para o universo digital Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos

Rainie, Lee and Barry Wellman (2012) Networked: The new social operating system. Cambridge, MIT Press.

Turkle, Sherry (2011) Alone and together – why we expect more from technology and less from each other NY, Basic Books

Wu, Tom (2010) The master switch – the rise and fall of information empires NY, Random House

Lanier, Jaron (2006) "Digital Maoism: The hazards of the new online collectivism." The Edge 183.

Zallo, Ramón (2011) Estructuras de la comunicación y de la cultura. Políticas para la era digital. Barcelona. Editorial Gedisa.









terça-feira, março 12, 2013

“É um bastardo, mas é o nosso bastardo!”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Março de 2013
Crónica 9/2013

Um desempregado sem apoios sociais é um cidadão que vive sob ditadura

A coisa mais surpreeendente na abordagem da morte de Hugo Chávez é o sectarismo sem estados de alma de tantas notícias e comentários. É um facto que Chávez cometeu atropelos no domínio dos direitos cívicos e o seu estilo não me merece qualquer admiração, a começar pela concentração de poder na pessoa do presidente e terminando nas suas tentativas de controlo do poder judicial. Mas há algo que o regime de Chávez fez que não pode deixar de ser olhado com apreço: a sua determinação no combate à pobreza. Durante a presidência de Chávez, no espaço de quinze anos, houve mais de sete milhões de pessoas que foram resgatadas da pobreza e mais de três milhões que foram libertadas da pobreza extrema.

Há quem minimize o facto, reconhecido mesmo pelos seus inimigos, dizendo que tudo o que o regime fez foi atirar para cima dos pobres uma parte do dinheiro fácil ganho com a venda do petróleo. Isso em si já seria bom mas, na verdade, houve algo mais do que dinheiro: a rápida redução da pobreza foi acompanhada de um acesso alargado a serviços de saúde e educação, como os pobres (metade da população em 1998!) nunca tinham conhecido. Do que se tratou, foi de um gigantesco movimento de empoderamento de milhões de indivíduos, antes sem direitos e sem voz, que se descobriram de repente cidadãos. E isso é fundamental porque é disso que trata a democracia: de permitir que todos beneficiem dos frutos da prosperidade e participem na vida da cidade. Por isso, falar de Chávez sem falar da redistribuição da riqueza do país, da assunção de direitos por milhões que não tinham voz e da redução da pobreza na Venezuela é fazer um retrato profundamente distorcido da sua acção política.

Mas o que me espanta não é este discurso sobre Chávez e a Venezuela, que afinal a esmagadora maioria dos portugueses não conhece bem e de quem também eu apenas sei o que leio nos jornais. O que me espanta é que, entre as pessoas que se indignam com o chavismo pelos seus tiques antidemocráticos e pela forma como limita os direitos da oposição, não haja uma pessoa que se indigne com o governo de PPC pela forma como impede milhões de portugueses de exercer os seus direitos como cidadãos, lançando-os na miséria do desemprego e excluindo-os dos parcos apoios sociais.

O desemprego, a pobreza e a miséria extrema, nos seus diversos graus, não são exclusivamente uma questão de dinheiro. Um desempregado sem quaisquer apoios (e, segundo os números oficiais, certamente subestimados, há 530.000 nesta situação) não é apenas alguém que tem de recorrer à caridade para comer.
Será que estes 530.000 têm garantida a sua integridade moral e física, como afirma o artigo 25 da Constituição? Será que todos eles estão protegidos de tratos cruéis, degradantes ou desumanos? Será que a todos estes são reconhecidos os direitos ao desenvolvimento da personalidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, como diz o artigo 26?

De que liberdade goza um desempregado? Terá a liberdade de se deslocar livremente no território nacional (artigo 44), de aprender e de ensinar (artigo 43), de se dedicar à criação intelectual, artística e científica (artigo 42) e de gozar as criações dos outros? À segurança social já sabemos que não tem direito, apesar do artigo 63 garantir essa protecção a “todos”. Terá direito à protecção da sua saúde (artigo 64)? Terá direito “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66)? A resposta a estas perguntas é simples: não tem direito a nada. Um desempregado sem apoios é um cidadão roubado dos seus direitos. É um cidadão que vive em ditadura. Sob a ditadura da necessidade constante.

Mas nem é preciso perder todos os apoios: um desempregado fica, pela simples razão de não ter trabalho, reduzido nos seus direitos, na sua dignidade e na sua voz. E é para este estatuto que o Governo de Pedro Passos Coelho vai empurrando os portugueses, tão eficazmente como se os lançasse na cadeia, uns milhares de cada vez. Exilando-os da vida laboral, da vida cultural, da vida política, da vida do bairro, da vida familiar e, finalmente, da própria vida.

Porque é que há pessoas que ficam tão chocadas quando Chávez atropela direitos dos venezuelanos e tão indiferentes quando Pedro Passos Coelho rouba os direitos dos portugueses? Há uma explicação histórica: quando disseram a Franklin D. Roosevelt que o ditador Somoza da Nicarágua não seria um aliado recomendável para os EUA porque era um “bastard”, ele respondeu: “He may be a bastard, but he's our bastard.” A regra continua a ser essa: “our bastards” são sempre poupados aos ataques dos poderes, desde que desempenhem o seu papel de obedientes defensores dos privilégios de alguns e mesmo que para isso tenham de sacrificar os seus povos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 14, 2012

Em busca da narrativa perdida


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2012
Crónica 32/2012


A falta de entendimento à esquerda é um problema, mas está longe de ser "o problema"


Nos últimos anos — e com mais vigor desde o início da actual crise financeira e do seu mais recente desenvolvimento, a chamada crise das dívidas soberanas, — tem havido uma preocupação crescente no seio da esquerda em congregar os diversos partidos e movimentos que se reclamam desta tradição política em torno de causas, propostas e acções comuns.

No entanto, esta preocupação só episodicamente atinge as lideranças dos partidos de esquerda ou semi-esquerda, ainda que ela seja cada vez mais viva e mais urgente nos discursos dos seus apoiantes menos comprometidos com as lideranças, que não percebem por que razão, perante o mais violento ataque das últimas décadas contra o Estado Social, a esquerda não se consegue unir em torno da meia dúzia de ideias simples que sempre formaram o núcleo duro das suas convicções políticas.

Essas ideias são as que se encontram no coração do chamado Estado Social. É o empenhamento activo na redução das desigualdades sociais, que não são apenas uma indignidade para quem as sofre e uma vergonha para todos nós, mas constituem uma causa objectiva e reconhecida de atraso nacional. É a promoção do trabalho como fonte de dignidade pessoal e forma de produção de riqueza e a concomitante promoção dos direitos laborais. É a existência de uma rede de segurança social universal e mutualista, que garanta uma protecção e uma situação de dignidade a todos os cidadãos em situação de fragilidade, das crianças aos idosos, dos desempregados aos doentes e incapacitados. É a existência de um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, universal e verdadeiramente acessível a todos, como aquele de que Portugal já gozou no passado com os excelentes resultados que conhecemos. É uma Escola Pública universal e de qualidade, para a qual a inclusão é uma razão de ser e que produz elites porque consegue alargar-se democraticamente a toda a população e oferecer condições de desenvolvimento a todos os talentos, em vez de começar por excluir os que não correspondem a certos padrões de classe.

Seria fácil alargar esta lista de atributos, mas as ideias listadas acima constituem o núcleo duro em torno do qual deveria ser não só possível à esquerda, mas até fácil, encontrar plataformas de acção comum — tanto mais quanto vivemos uma situação onde estes direitos de todos estão a ser saqueados debaixo dos nossos olhos, para concentrar privilégios nas mãos de alguns.

A prova que muitos sentem uma acção coordenada da esquerda como indispensável e urgente são as iniciativas que têm surgido em Portugal nos últimos meses, congregando apoiantes do BE, do PCP, do PS e independentes, que buscam, se não a criação institucional de uma frente unida, pelo menos uma unidade de acção da esquerda. Iniciativas como o Manifesto para uma Esquerda Livre ou o Congresso Democrático das Alternativas — declaração de interesses: sou subscritor de ambas — são um exemplo disto. Mas é significativo que, mesmo aqui, as lideranças dos partidos à esquerda se mantenham prudentemente à distância destas iniciativas, tentando minimizar a sua importância, em vez de interpretar o seu surgimento como significativo de uma vontade clara do povo de esquerda.

Esta necessidade de "união das esquerdas" tem condicionado em grande medida o discurso da esquerda, considerado globalmente. O resultado é que a esquerda fala com frequência para si própria, repetindo paradoxalmente algo com que todos os seus interlocutores concordam, mas sem nunca conseguir a sua concordância activa em torno de acções concretas.

Penso que neste discurso, onde a esquerda se dirige a si própria e tenta convencer-se a si própria de algo de que todos se dizem convencidos e mobilizar-se a si própria para algo para o qual todos se dizem mobilizados sem nunca verdadeiramente o conseguir (por enquanto?), há um mal-entendido: a convicção de que esta falta de entendimento à esquerda é "o problema" e que, caso ele seja resolvido, a sociedade de justiça e bem-estar que queremos poderia finalmente começar a ser construída.

Esta convicção parece basear-se na ideia de que a esquerda continua a ser sociologicamente hegemónica - algo que penso estar hoje muito longe da realidade — e que, se por uma vez se puser de acordo, poderá fazer vingar os seus princípios.
De facto, quando a direita diz que o "memorando da troika" conta com o apoio de partidos que representam 80 por cento dos eleitores está a dizer algo que é mais do que uma estatística eleitoral. A verdade é que, por incompreensível que isso nos pareça, a esmagadora maioria da população não considera (ou não tem considerado) que as conquistas do Estado Social desde o 25 de Abril mereçam ser defendidas com real afinco.

Houve de facto algo que se perdeu, um sonho que se esqueceu, uma narrativa que deixou de fazer eco e que tem de se reinventada, reconstruída, refeita de raiz. Podemos atribuir isso a uma sistemática lavagem ao cérebro efectuada pelos media (que é tragicamente real) ou a outros factores, mas a verdade é que existe hoje um terrível divórcio entre a população e a defesa dos seus interesses, devido a uma narrativa reaccionária e caceteira que se tornou hegemónica e que conseguiu impor a ideia do Estado Social como fonte de desperdício, da Segurança Social como sustento de parasitas, do Serviço Nacional de Saúde como um luxo incomportável, da solidariedade social como algo "insustentável", da Escola Pública inclusiva como "facilitista", dos apoios à Cultura como "elitistas", etc.. A verdade é que a direita tem conseguido vender com absoluto despudor e grande eficácia este discurso, voltando trabalhadores contra trabalhadores e convencendo uma grande parte de que os direitos excessivos dos outros, dos subsidio-dependentes, dos ciganos, dos que não querem trabalhar, dos velhos, dos doentes, dos disléxicos, dos bolseiros, são a causa da pobreza de cada um — ao mesmo tempo que vende os privilégios dos agiotas como algo de inquestionável e positivo.

Que a esquerda tem de se unir em torno do que para si é importante, penso que é uma evidência para todos os defensores de uma sociedade decente, livre e justa. Mas a grande batalha que temos de travar no campo das ideias não se resume à arena da esquerda. Quem temos de convencer são todos os cidadãos que, seduzidos ou adormecidos pelas historietas da direita, continuam a votar nos que lhes roubam o trabalho, os direitos e as riquezas, eternizando desigualdades injustas e privilégios. 

Enquanto o discurso populista da direita sobre o Rendimento Social de Inserção como sustento de parasitas e sede de fraudes continuar a colher, o nosso trabalho estará longe de estar feito. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 08, 2009

A Europa espera que Aminetu Haidar morra em Lanzarote?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 8 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009

Um crime grave: Haidar deixou em branco o campo da nacionalidade no impresso da polícia fronteiriça…

A ilha canária de Lanzarote é conhecida como destino turístico e por ser a residência de José Saramago, mas, nas últimas semanas, tem aparecido no noticiário internacional por outra razão: numa sala do aeroporto da ilha, mergulhada num estado de extrema debilidade, a activista sarauí Aminetu Haidar está em greve de fome desde o dia 16 de Novembro, sem ingerir senão água com açúcar. A sua situação clínica é preocupante, tanto mais que a sua saúde, fragilizada por muitas prisões e torturas – esteve “desaparecida” nas prisões marroquinas durante quatro anos –, já há muitos anos que não é robusta. Haidar, cuja luta pacífica em defesa dos direitos humanos e da autodeterminação do Sara Ocidental, ocupado por Marrocos desde 1975, são reconhecidos e respeitados em todo o mundo, iniciou a sua greve da fome depois de ter sido expulsa de Marrocos, no dia 14.
Haidar tinha regressado no dia anterior de uma viagem a Nova Iorque, onde tinha ido receber mais um dos muitos prémios que já recebeu pela sua defesa dos direitos humanos, e tinha acabado de aterrar no aeroporto de Laâyoune, a capital do Sara Ocidental, quando foi detida pelas autoridades, lhe foi confiscado o seu passaporte, foi acusada de “traição” e embarcada à força num avião para as Canárias. Pela sua militância independentista? Não. A acusação, neste caso, deveu-se ao facto de ter deixado em branco o campo da nacionalidade no impresso da polícia fronteiriça e escrito como local de residência “Sara Ocidental”.
Crimes graves para o regime de Mohammed VI, que tem endurecido nos últimos meses as suas posições contra os independentistas. Num discurso feito n início do mês passado, precisamente para comemorar os 34 anos da “Marcha Verde” – a designação oficial para a anexação do Sara Ocidental – o monarca marroquino deixava bem clara a opção: “Ou se é um patriota, ou se é um traidor. Não há meio-termo. Não se podem gozar os direitos e privilégios da cidadania para abusar deles e para conspirar com os inimigos da mãe-pátria.”
Aminetu Haidar é apenas o exemplo mais visível da nova política e Marrocos parece decidido a levar o exemplo até ao fim. O Governo espanhol de Zapatero, por seu lado, joga o jogo dúplice e vergonhoso de manter o discurso da defesa dos direitos humanos desde que isso não ofenda os poderosos. Ofereceu asilo a Haidar, mas não quer ofender o ditador de Marrocos. E fala com a voz suave da mais indefensável cobardia, a cobardia de quem se põe ao lado de uma ditadura que impõe uma medida ilegal contra uma cidadã indefesa que apenas pode ser causada por um crime de opinião.
A posição de Espanha é infame. O que esperam os outros países da União para salvar a honra da Europa? O que falta à Europa para perceber que, se não é pelos direitos humanos, sempre e em todas as circunstâncias, não é nada senão uma casca vazia? A comissária europeia para as Relações Externas, Benita Ferrero-Waldner, lamentou a situação e mostrou-se preocupada com a “deterioração do estado de saúde” de Haidar, mas considerou que se tratava de “uma questão bilateral” entre Madrid e Rabat. Desde quando é que os direitos humanos são “uma questão bilateral”?
José Saramago, António Guterres e José Ramos-Horta estão entre os muitos que já manifestaram a sua solidariedade a Aminetu Haidar, que mostra a sua vontade de ferro de sempre e que continua a recusar alimentação. O que exige? Regressar ao seu país. Um direito que todas as leis reconhecem. É assim tão difícil dizer a Marrocos que deve parar de tremer de medo perante esta mulher? É assim tão difícil dizer a Marrocos que, se quer entrar no clube das democracias, tem de respeitar a lei? É assim tão difícil defender a justiça mesmo a partir do conforto dos gabinetes, quando mulheres como Aminetu Haidar arriscam a sua vida todos os dias? (jvmalheiros@gmail.com)