A "Atlantic Monthly" de Maio inclui um interessante artigo sobre o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Uma contribuição para compreender uma personagem que ocupa um papel central na América Latina e cuja abordagem se fica muitas vezes pela caricatura.
Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 28 de Abril 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/04/hugo-chvez-na-atlantic.html
sexta-feira, abril 28, 2006
quarta-feira, abril 26, 2006
Apresentação do blog "Em revista", um blog do Público
O objectivo deste blog
"Em Revista" é um blog onde alguns elementos da redacção do Público partilham os artigos interessantes que leram na imprensa internacional. Os jornalistas lêem, por obrigação de ofício e por gosto. Pensámos que seria interessante para os nossos leitores conhecer as leituras que considerámos mais estimulantes, informativas ou divertidas. Este blog não pretende fazer uma revista sistemática da imprensa, nem análises dos principais artigos da semana, e não se irá preocupar com a imprensa diária de referência, já devidamente acompanhada pelo noticiário corrente. É um blog que crescerá ao sabor das leituras preferidas dos seus autores, de acordo com a disponibilidade e as afinidades de cada um. Ele visa apenas fornecer referências de leituras interessantes, às quais esperamos que em breve se juntem as dos nossos leitores.
José Vítor Malheiros - 27 Abril 2006
"Em Revista" é um blog onde alguns elementos da redacção do Público partilham os artigos interessantes que leram na imprensa internacional. Os jornalistas lêem, por obrigação de ofício e por gosto. Pensámos que seria interessante para os nossos leitores conhecer as leituras que considerámos mais estimulantes, informativas ou divertidas. Este blog não pretende fazer uma revista sistemática da imprensa, nem análises dos principais artigos da semana, e não se irá preocupar com a imprensa diária de referência, já devidamente acompanhada pelo noticiário corrente. É um blog que crescerá ao sabor das leituras preferidas dos seus autores, de acordo com a disponibilidade e as afinidades de cada um. Ele visa apenas fornecer referências de leituras interessantes, às quais esperamos que em breve se juntem as dos nossos leitores.
José Vítor Malheiros - 27 Abril 2006
terça-feira, abril 25, 2006
Cheliabinsk, o outro Chernobil
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Abril de 2006
Crónica 15/2006
A explosão de Cheliabinsk contaminou 23.000 quilómetros quadrados e afectou 270.000 a 400.000 pessoas.
Quando se comemoram trinta anos sobre a catástrofe de Chernobil (ver Destaque do Público de hoje), vale a pena lembrar que este não foi o único acidente nuclear grave ocorrido no mundo e que aquela zona da Ucrânia não constitui a região do globo mais atingida pela poluição radioactiva. Essa distinção cabe a uma região russa a sul dos Urais, entre Cheliabinsk e Sverdlovsk, que foi durante muitos anos o centro da indústria nuclear de uso militar na União Soviética e, nomeadamente, o centro de produção de plutónio.
Nesta zona verificou-se há quase cinquenta anos, em Setembro de 1957, uma explosão num depósito de resíduos que se manteve secreta durante quase vinte anos. O acidente mereceria a primeira menção na imprensa europeia a 4 de Novembro de 1976, num artigo escrito na revista britânica "New Scientist" pelo biólogo dissidente russo Zhores Medvedev. O artigo intitulava-se "Two decades of dissidence" e nele Medvedev fazia uma referência de passagem à explosão.
Para sua surpresa – Medvedev julgava o facto conhecido no Ocidente – o anúncio deu origem a uma comoção mediática mundial, marcada por corroborações de soviéticos exilados e por inúmeras reacções de cepticismo. Uma das mais peremptórias veio do presidente da Autoridade da Energia Atómica do Reino Unido, John Hill, que afirmou que o relato de Medvedev era "um disparate" e que uma tal explosão numa lixeira nuclear era impossível pois os soviéticos seguiam as normas de segurança internacionais. Uns dias depois da publicação de Medvedev, os jornais americanos publicavam uma meia confirmação: fontes da CIA admitiam a ocorrência de um acidente em 1957 na região, mas diziam que ele tinha sido num reactor e não num depósito de resíduos.
Zhores Medvedev dedicou uma parte importante dos dois anos seguintes a provar o que tinha dito. Estudou a literatura científica publicada na URSS sobre os efeitos da radiação no ambiente, que apesar de censurada, mostrava a terrível dimensão do que tinha acontecido, e publicou um livro, "Nuclear Disaster in the Urals".
A localização da explosão demorou anos a ser estabelecida e com ela a designação dada ao acidente. Ainda hoje há quem fale de Kishtim, de Cheliabinsk (a grande cidade da região), de Cheliabinsk-40 ou Cheliabinsk-65 (nomes de código da cidade industrial) ou de Mayak (o nome da instalação industrial).
A explosão, que a URSS só admitiu em 1989, contaminou 23.000 quilómetros quadrados, afectando 270.000 a 400.000 pessoas. Ninguém sabe quantas centenas ou milhares morreram nos dias que se seguiram, mas sabe-se que passados dois anos os hospitais da região estavam ainda inundados por pessoas irradiadas. E ainda hoje a região é o exemplo da desolação nuclear.
Há quem considere Cheliabinsk o mais grave desastre nuclear de sempre (ainda que a explosão de 1957 não tenha tido a dimensão de Chernobil) por ele ter ocorrido numa zona já imensamente contaminada – onde se seguiriam outros acidentes aliás.
A história de Cheliabinsk é exemplar pelo facto de a CIA ter tido conhecimento dela mas ter tentado abafá-la, aparentemente para proteger os interesses da indústria nuclear americana (como se descobriria nos anos 70 com a desclassificação de documentos secretos) e pelo facto de nunca ter merecido um tratamento mediático adequado (quando a história foi descoberta já era velha). E lembra-nos, mais uma vez, que o comportamento seguido pelos estados e pelas instituições, no que diz respeito à segurança nuclear, é por regra o segredo e a dissimulação.
Texto publicado no jornal Público a 25 de Abril de 2006
Crónica 15/2006
A explosão de Cheliabinsk contaminou 23.000 quilómetros quadrados e afectou 270.000 a 400.000 pessoas.
Quando se comemoram trinta anos sobre a catástrofe de Chernobil (ver Destaque do Público de hoje), vale a pena lembrar que este não foi o único acidente nuclear grave ocorrido no mundo e que aquela zona da Ucrânia não constitui a região do globo mais atingida pela poluição radioactiva. Essa distinção cabe a uma região russa a sul dos Urais, entre Cheliabinsk e Sverdlovsk, que foi durante muitos anos o centro da indústria nuclear de uso militar na União Soviética e, nomeadamente, o centro de produção de plutónio.
Nesta zona verificou-se há quase cinquenta anos, em Setembro de 1957, uma explosão num depósito de resíduos que se manteve secreta durante quase vinte anos. O acidente mereceria a primeira menção na imprensa europeia a 4 de Novembro de 1976, num artigo escrito na revista britânica "New Scientist" pelo biólogo dissidente russo Zhores Medvedev. O artigo intitulava-se "Two decades of dissidence" e nele Medvedev fazia uma referência de passagem à explosão.
Para sua surpresa – Medvedev julgava o facto conhecido no Ocidente – o anúncio deu origem a uma comoção mediática mundial, marcada por corroborações de soviéticos exilados e por inúmeras reacções de cepticismo. Uma das mais peremptórias veio do presidente da Autoridade da Energia Atómica do Reino Unido, John Hill, que afirmou que o relato de Medvedev era "um disparate" e que uma tal explosão numa lixeira nuclear era impossível pois os soviéticos seguiam as normas de segurança internacionais. Uns dias depois da publicação de Medvedev, os jornais americanos publicavam uma meia confirmação: fontes da CIA admitiam a ocorrência de um acidente em 1957 na região, mas diziam que ele tinha sido num reactor e não num depósito de resíduos.
Zhores Medvedev dedicou uma parte importante dos dois anos seguintes a provar o que tinha dito. Estudou a literatura científica publicada na URSS sobre os efeitos da radiação no ambiente, que apesar de censurada, mostrava a terrível dimensão do que tinha acontecido, e publicou um livro, "Nuclear Disaster in the Urals".
A localização da explosão demorou anos a ser estabelecida e com ela a designação dada ao acidente. Ainda hoje há quem fale de Kishtim, de Cheliabinsk (a grande cidade da região), de Cheliabinsk-40 ou Cheliabinsk-65 (nomes de código da cidade industrial) ou de Mayak (o nome da instalação industrial).
A explosão, que a URSS só admitiu em 1989, contaminou 23.000 quilómetros quadrados, afectando 270.000 a 400.000 pessoas. Ninguém sabe quantas centenas ou milhares morreram nos dias que se seguiram, mas sabe-se que passados dois anos os hospitais da região estavam ainda inundados por pessoas irradiadas. E ainda hoje a região é o exemplo da desolação nuclear.
Há quem considere Cheliabinsk o mais grave desastre nuclear de sempre (ainda que a explosão de 1957 não tenha tido a dimensão de Chernobil) por ele ter ocorrido numa zona já imensamente contaminada – onde se seguiriam outros acidentes aliás.
A história de Cheliabinsk é exemplar pelo facto de a CIA ter tido conhecimento dela mas ter tentado abafá-la, aparentemente para proteger os interesses da indústria nuclear americana (como se descobriria nos anos 70 com a desclassificação de documentos secretos) e pelo facto de nunca ter merecido um tratamento mediático adequado (quando a história foi descoberta já era velha). E lembra-nos, mais uma vez, que o comportamento seguido pelos estados e pelas instituições, no que diz respeito à segurança nuclear, é por regra o segredo e a dissimulação.
terça-feira, abril 18, 2006
À saída da discoteca
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2006
Crónica 14/2006
Morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves
Até anteontem nunca tinha ouvido o seu nome, nem visto a sua cara, nem lido nada que lhe dissesse respeito, nem ouvido fosse quem fosse falar do seu trabalho.
Mas foi fácil perceber que uma parte considerável do país (ou pelo menos dos adolescentes portugueses) ficou em estado de choque pela morte do jovem actor Francisco Adam, um dos protagonistas da telenovela portuguesa "Morangos com Açúcar".
Um indicador objectivo entre outros: nas 24 horas que se seguiram à confirmação da morte do jovem, foram publicados no site do PÚBLICO mais de 340 comentários de leitores, o que faz desse acontecimento o mais comentado de sempre na história do PUBLICO.PT – ultrapassando questões como os processos judiciais em Portugal contra as cópias ilegais de música na Internet (mais de 300 comentários em três dias) e deixando muito para trás assuntos tão polémicos e populares como o abandono da TVI por Marcelo Rebelo de Sousa (mais de 100 comentários). E note-se que os comentários do PUBLICO.PT são submetidos a um escrutínio editorial e não difundidos sem supervisão, como acontece noutros sites.
Depois da consternação e da tristeza que é impossível deixar de sentir quando sabemos que mais um jovem de 22 anos se matou contra um eucalipto ao volante do seu carro, depois de sair às quatro da manhã de uma discoteca, a primeira constatação após todas estas reacções é a da existência de subculturas insuspeitadas e recheadas de paixões violentas em fenómenos que são para tantos de nós tão marginais como as telenovelas. Outra constatação, na mesma linha mas mais perturbadora, é a de que, neste caso, essa subcultura e essas paixões se manifestam não apenas na faixa adolescente mas também na pré-adolescente e até infantil, que se afirmam cada vez mais como alvos preferenciais do marketing mundial.
Nos comentários dos jovens (os autores, pelo menos, parecem jovens), que vão dos "nunca te esqueceremos" aos trágicos "porque é que não fui eu em vez de ti" e chegam às dúvidas sobre a existência de um Deus tão cruel que é capaz de arrebatar "uma das personagens mais divertidas da série", são evidentes as confusões entre o personagem da ficção e a realidade do actor (apenas por parte dos mais novos?) mas é particularmente perturbadora a valorização da ficção como vida projectada alternativa, essa "vida por procuração" que a televisão popular se especializou em fornecer, mostrando-nos a vida do "jet set" ou do que passa por isso e permitindo-nos viver os namoros da "beautiful people" ou da que passa por ela.
Outra constatação, menos previsível, é o fatalismo romântico destas reacções ("Deus levou-te") que não admite qualquer causalidade que não a dos fados, para que o ídolo morto (há referências a "James Dino" em alguns "posts") não possa de alguma forma ser responsabilizado pela sua própria morte. A simples referência à possibilidade de excesso de velocidade, razoável atendendo as circunstâncias do acidente, é refutada liminarmente pelos fãs para não embaciar a memória do actor.
A morte de Francisco Adam, porém, pode servir para nos ajudar a encarar alguns factos: morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves que em muitos casos as incapacitam, para além de dezenas de milhares que sofrem ferimentos mais ligeiros. Muitas destas vítimas são jovens e muitas têm acidentes depois de saírem de bares e discotecas. No caso vertente, as causas do acidente não são conhecidas, mas haveria certamente mortes e ferimentos que se poderiam evitar se se seguisse nos bares e discotecas portuguesas a saudável regra de não servir álcool a quem se sabe que vai conduzir e de responsabilizar criminalmente quem o fizesse. Os fados agradeceriam a ajuda.
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2006
Crónica 14/2006
Morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves
Até anteontem nunca tinha ouvido o seu nome, nem visto a sua cara, nem lido nada que lhe dissesse respeito, nem ouvido fosse quem fosse falar do seu trabalho.
Mas foi fácil perceber que uma parte considerável do país (ou pelo menos dos adolescentes portugueses) ficou em estado de choque pela morte do jovem actor Francisco Adam, um dos protagonistas da telenovela portuguesa "Morangos com Açúcar".
Um indicador objectivo entre outros: nas 24 horas que se seguiram à confirmação da morte do jovem, foram publicados no site do PÚBLICO mais de 340 comentários de leitores, o que faz desse acontecimento o mais comentado de sempre na história do PUBLICO.PT – ultrapassando questões como os processos judiciais em Portugal contra as cópias ilegais de música na Internet (mais de 300 comentários em três dias) e deixando muito para trás assuntos tão polémicos e populares como o abandono da TVI por Marcelo Rebelo de Sousa (mais de 100 comentários). E note-se que os comentários do PUBLICO.PT são submetidos a um escrutínio editorial e não difundidos sem supervisão, como acontece noutros sites.
Depois da consternação e da tristeza que é impossível deixar de sentir quando sabemos que mais um jovem de 22 anos se matou contra um eucalipto ao volante do seu carro, depois de sair às quatro da manhã de uma discoteca, a primeira constatação após todas estas reacções é a da existência de subculturas insuspeitadas e recheadas de paixões violentas em fenómenos que são para tantos de nós tão marginais como as telenovelas. Outra constatação, na mesma linha mas mais perturbadora, é a de que, neste caso, essa subcultura e essas paixões se manifestam não apenas na faixa adolescente mas também na pré-adolescente e até infantil, que se afirmam cada vez mais como alvos preferenciais do marketing mundial.
Nos comentários dos jovens (os autores, pelo menos, parecem jovens), que vão dos "nunca te esqueceremos" aos trágicos "porque é que não fui eu em vez de ti" e chegam às dúvidas sobre a existência de um Deus tão cruel que é capaz de arrebatar "uma das personagens mais divertidas da série", são evidentes as confusões entre o personagem da ficção e a realidade do actor (apenas por parte dos mais novos?) mas é particularmente perturbadora a valorização da ficção como vida projectada alternativa, essa "vida por procuração" que a televisão popular se especializou em fornecer, mostrando-nos a vida do "jet set" ou do que passa por isso e permitindo-nos viver os namoros da "beautiful people" ou da que passa por ela.
Outra constatação, menos previsível, é o fatalismo romântico destas reacções ("Deus levou-te") que não admite qualquer causalidade que não a dos fados, para que o ídolo morto (há referências a "James Dino" em alguns "posts") não possa de alguma forma ser responsabilizado pela sua própria morte. A simples referência à possibilidade de excesso de velocidade, razoável atendendo as circunstâncias do acidente, é refutada liminarmente pelos fãs para não embaciar a memória do actor.
A morte de Francisco Adam, porém, pode servir para nos ajudar a encarar alguns factos: morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves que em muitos casos as incapacitam, para além de dezenas de milhares que sofrem ferimentos mais ligeiros. Muitas destas vítimas são jovens e muitas têm acidentes depois de saírem de bares e discotecas. No caso vertente, as causas do acidente não são conhecidas, mas haveria certamente mortes e ferimentos que se poderiam evitar se se seguisse nos bares e discotecas portuguesas a saudável regra de não servir álcool a quem se sabe que vai conduzir e de responsabilizar criminalmente quem o fizesse. Os fados agradeceriam a ajuda.
À saída da discoteca
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2006
Crónica 14/2006
Morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves
Até anteontem nunca tinha ouvido o seu nome, nem visto a sua cara, nem lido nada que lhe dissesse respeito, nem ouvido fosse quem fosse falar do seu trabalho.
Mas foi fácil perceber que uma parte considerável do país (ou pelo menos dos adolescentes portugueses) ficou em estado de choque pela morte do jovem actor Francisco Adam, um dos protagonistas da telenovela portuguesa "Morangos com Açúcar".
Um indicador objectivo entre outros: nas 24 horas que se seguiram à confirmação da morte do jovem, foram publicados no site do PÚBLICO mais de 340 comentários de leitores, o que faz desse acontecimento o mais comentado de sempre na história do PUBLICO.PT – ultrapassando questões como os processos judiciais em Portugal contra as cópias ilegais de música na Internet (mais de 300 comentários em três dias) e deixando muito para trás assuntos tão polémicos e populares como o abandono da TVI por Marcelo Rebelo de Sousa (mais de 100 comentários). E note-se que os comentários do PUBLICO.PT são submetidos a um escrutínio editorial e não difundidos sem supervisão, como acontece noutros sites.
Depois da consternação e da tristeza que é impossível deixar de sentir quando sabemos que mais um jovem de 22 anos se matou contra um eucalipto ao volante do seu carro, depois de sair às quatro da manhã de uma discoteca, a primeira constatação após todas estas reacções é a da existência de subculturas insuspeitadas e recheadas de paixões violentas em fenómenos que são para tantos de nós tão marginais como as telenovelas. Outra constatação, na mesma linha mas mais perturbadora, é a de que, neste caso, essa subcultura e essas paixões se manifestam não apenas na faixa adolescente mas também na pré-adolescente e até infantil, que se afirmam cada vez mais como alvos preferenciais do marketing mundial.
Nos comentários dos jovens (os autores, pelo menos, parecem jovens), que vão dos "nunca te esqueceremos" aos trágicos "porque é que não fui eu em vez de ti" e chegam às dúvidas sobre a existência de um Deus tão cruel que é capaz de arrebatar "uma das personagens mais divertidas da série", são evidentes as confusões entre o personagem da ficção e a realidade do actor (apenas por parte dos mais novos?) mas é particularmente perturbadora a valorização da ficção como vida projectada alternativa, essa "vida por procuração" que a televisão popular se especializou em fornecer, mostrando-nos a vida do "jet set" ou do que passa por isso e permitindo-nos viver os namoros da "beautiful people" ou da que passa por ela.
Outra constatação, menos previsível, é o fatalismo romântico destas reacções ("Deus levou-te") que não admite qualquer causalidade que não a dos fados, para que o ídolo morto (há referências a "James Dino" em alguns "posts") não possa de alguma forma ser responsabilizado pela sua própria morte. A simples referência à possibilidade de excesso de velocidade, razoável atendendo as circunstâncias do acidente, é refutada liminarmente pelos fãs para não embaciar a memória do actor.
A morte de Francisco Adam, porém, pode servir para nos ajudar a encarar alguns factos: morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves que em muitos casos as incapacitam, para além de dezenas de milhares que sofrem ferimentos mais ligeiros. Muitas destas vítimas são jovens e muitas têm acidentes depois de saírem de bares e discotecas. No caso vertente, as causas do acidente não são conhecidas, mas haveria certamente mortes e ferimentos que se poderiam evitar se se seguisse nos bares e discotecas portuguesas a saudável regra de não servir álcool a quem se sabe que vai conduzir e de responsabilizar criminalmente quem o fizesse. Os fados agradeceriam a ajuda.
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2006
Crónica 14/2006
Morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves
Até anteontem nunca tinha ouvido o seu nome, nem visto a sua cara, nem lido nada que lhe dissesse respeito, nem ouvido fosse quem fosse falar do seu trabalho.
Mas foi fácil perceber que uma parte considerável do país (ou pelo menos dos adolescentes portugueses) ficou em estado de choque pela morte do jovem actor Francisco Adam, um dos protagonistas da telenovela portuguesa "Morangos com Açúcar".
Um indicador objectivo entre outros: nas 24 horas que se seguiram à confirmação da morte do jovem, foram publicados no site do PÚBLICO mais de 340 comentários de leitores, o que faz desse acontecimento o mais comentado de sempre na história do PUBLICO.PT – ultrapassando questões como os processos judiciais em Portugal contra as cópias ilegais de música na Internet (mais de 300 comentários em três dias) e deixando muito para trás assuntos tão polémicos e populares como o abandono da TVI por Marcelo Rebelo de Sousa (mais de 100 comentários). E note-se que os comentários do PUBLICO.PT são submetidos a um escrutínio editorial e não difundidos sem supervisão, como acontece noutros sites.
Depois da consternação e da tristeza que é impossível deixar de sentir quando sabemos que mais um jovem de 22 anos se matou contra um eucalipto ao volante do seu carro, depois de sair às quatro da manhã de uma discoteca, a primeira constatação após todas estas reacções é a da existência de subculturas insuspeitadas e recheadas de paixões violentas em fenómenos que são para tantos de nós tão marginais como as telenovelas. Outra constatação, na mesma linha mas mais perturbadora, é a de que, neste caso, essa subcultura e essas paixões se manifestam não apenas na faixa adolescente mas também na pré-adolescente e até infantil, que se afirmam cada vez mais como alvos preferenciais do marketing mundial.
Nos comentários dos jovens (os autores, pelo menos, parecem jovens), que vão dos "nunca te esqueceremos" aos trágicos "porque é que não fui eu em vez de ti" e chegam às dúvidas sobre a existência de um Deus tão cruel que é capaz de arrebatar "uma das personagens mais divertidas da série", são evidentes as confusões entre o personagem da ficção e a realidade do actor (apenas por parte dos mais novos?) mas é particularmente perturbadora a valorização da ficção como vida projectada alternativa, essa "vida por procuração" que a televisão popular se especializou em fornecer, mostrando-nos a vida do "jet set" ou do que passa por isso e permitindo-nos viver os namoros da "beautiful people" ou da que passa por ela.
Outra constatação, menos previsível, é o fatalismo romântico destas reacções ("Deus levou-te") que não admite qualquer causalidade que não a dos fados, para que o ídolo morto (há referências a "James Dino" em alguns "posts") não possa de alguma forma ser responsabilizado pela sua própria morte. A simples referência à possibilidade de excesso de velocidade, razoável atendendo as circunstâncias do acidente, é refutada liminarmente pelos fãs para não embaciar a memória do actor.
A morte de Francisco Adam, porém, pode servir para nos ajudar a encarar alguns factos: morrem nas nossas estradas todos os anos mais de mil pessoas e cerca de 4.000 sofrem lesões graves que em muitos casos as incapacitam, para além de dezenas de milhares que sofrem ferimentos mais ligeiros. Muitas destas vítimas são jovens e muitas têm acidentes depois de saírem de bares e discotecas. No caso vertente, as causas do acidente não são conhecidas, mas haveria certamente mortes e ferimentos que se poderiam evitar se se seguisse nos bares e discotecas portuguesas a saudável regra de não servir álcool a quem se sabe que vai conduzir e de responsabilizar criminalmente quem o fizesse. Os fados agradeceriam a ajuda.
sábado, abril 01, 2006
Fernando Gil (1937-2006) - Clareza e obscuridade
por José Vítor Malheiros
Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas
“Clareza” é uma expressão que surge com
frequência nos depoimentos dos filósofos
quando se fala da obra de Fernando Gil. No
entanto, para um leigo, os seus livros constituem
um desafio que pode transformar-se
num obstáculo inultrapassável. É verdade
que isso acontece menos numa obra como
“Acentos”, por exemplo, recheada de entrevistas,
com uma clara intenção de divulgação
e ideal para uma abordagem ao filósofo, ou
em muitas das comunicações das conferências
que Fernando Gil coordenou e onde se
reflecte o seu pensamento, mas as suas obras
centrais resistem à divulgação. A questão não
é nova – os filósofos recusam a simplificação
e a redução da profundidade que a divulgação
implica com mais vigor ainda que os cientistas
– mas ela coloca-se, de novo, sempre que
o interesse do público por um autor é despertado
pelos media para ser frustrado pela
sua leitura e constitui mais uma vertente do
problema nacional de iliteracia.
Paulo Tunhas não considera de todo que
haja um problema de falta de clareza em
Fernando Gil, enquanto filósofo: “Creio que
se foi tornando progressivamente mais claro.
Ou melhor: havia desde o princípio uma clareza
intelectual, que progressivamente se foi
acompanhando daquilo que podíamos chamar
uma clareza sensível. ‘A Convicção’ é mais
claro do que a ‘Logique du nom’, porque ele
sabia melhor o que queria dizer. A ‘Logique
du nom’ era clara, mas os problemas dele não
estavam ainda bem definidos, eram ainda em
parte problemas dos outros: na ‘Convicção’,
e já desde há muito antes, os problemas eram
completamente dele. Eram ele.”
Mas o mesmo Paulo Tunhas reconhece o
que podem ser as dificuldades da tarefa da
leitura para um leigo: “Fernando Gil sempre
usou – porque tinha de usar – vocabulário
técnico. E o vocabulário técnico é forçosamente
opaco para quem o não conhece. De
modo que os não-filósofos podem, muito
legitimamente, achá-lo obscuro. A dificuldade
tem a ver com o próprio objecto. Mas, se
constatarmos a total ausência de retórica das
profundidades em Fernando Gil, há que reconhecer
que, desde o princípio, ele se esforçou
por ser claro. Mas há matérias em que querer
ser claro à força é fazer batota e fingir ser um
‘grand seigneur’ do pensamento, sobrevoando
tudo com desprezo pelos detalhes. Isso ele
nunca o fez. O que ele tentou fazer foi tornar
o vocabulário técnico mais sensível.”
“No fundo”, continua Paulo Tunhas, “as
duas coisas vão uma com a outra. A partir
do momento em que a terminologia técnica
(‘intuição’, por exemplo) se vê acompanhada
de um semantismo comum – e ele progredia
cada vez mais nessa direcção – e a partir do
momento em que os problemas vão sendo cada
vez mais bem compreendidos, o espaço da
clareza aumenta. Nesse sentido, eu acho que
‘Acentos’ é a melhor introdução possível ao
pensamento dele. Mas é sempre verdade, como
notou Popper, que, quando se tem algo de
novo para se dizer, é difícil ser cristalino.”
Tunhas chama a atenção, porém, para a
maior liberdade de estilo das últimas obras
de Gil e para a sua escrita menos marcada por
tiques académicos como as notas de rodapé.
André Barata, por seu lado, concede que
não se entra sem ser apresentado no pensamento
de Fernando Gil. “A inteligibilidade
da obra do Fernando Gil tem de ser pensada
dentro dela própria. Quando estudamos Nietzsche
tornamo-nos especialistas de Nietzsche
e quando estudamos Kant tornamo-nos especialistas de Kant. Ficamos dentro daquele
universo, que tem portas e janelas, mas que
é um universo, com uma inteligibilidade própria.
Com Fernando Gil acontece um pouco
o mesmo: é um universo. Nesse sentido o
Fernando Gil é um pouco inacessível, é preciso
entrar na sua obra para a obra despertar.
É um autor difícil. Ou se alinha ou não se
alinha.” José Vítor Malheiros
Algumas datas
1937
Nasce a 3 de Fevereiro em Muecate,
Nampula, em Moçambique
1961
Licencia-se em Direito na Faculdade
de Direito de Lisboa.
Desiste da advocacia e parte para Paris
1964
Licencia-se em Filosofia na Sorbonne
1966
Inicia na Universidade de Paris,
sob a orientação de Suzanne Bachelard,
um doutoramento em Lógica
1984
Publica “Mimésis e Negação”
e recebe pela primeira vez
o Prémio Ensaio do Pen Club
1993
Publica a sua obra mais importante,
“Tratado da Evidência”.
É-lhe atribuído o Prémio Pessoa
2006
Morre em Paris a 18 de Março,
com 69 anos
Obras
Aproximação Antropológica
1961
Livro onde se reflectem preocupações
existenciais de juventude
A Lógica do Nome
1972
Tese de doutoramento no domínio da
lógica, onde se ocupa do problema da
referência dos nomes
Mimésis e Negação
1984
Obra onde defende que o pensamento é
sempre feito por oposições
Provas
1986
Estudo sobre a forma e as condições em
que é feita a prova científica
Tratado da Evidência
1993
Uma das suas obras mais importantes
onde problematiza o conceito de
evidência, questionando o seu carácter
imediato
Modos da Evidência
1998
Obra que procura confirmar em várias
domínios a sua teoria da evidência
Viagens do Olhar
(com Helder Macedo) 1998
A mesma procura de “Modos da
Evidência” na literatura
A Convicção
2000
Estudo sobre a crença e a convicção
enquanto aspectos subjectivos do
conhecimento
Mediações
2001
Obra em que defende que o pensamento é
mediação
Impasses
(com Paulo Tunhas) 2003
Reflexão sobre o pós 11 de Setembro e a
crise no Iraque
Acentos
2005
Conjunto de entrevistas e textos dispersos
sobre alguns temas inesperados
A 4 Mãos
(com Mário Vieira de Carvalho) 2005
Obra sobre Schumann, o seu compositor
preferido
Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas
“Clareza” é uma expressão que surge com
frequência nos depoimentos dos filósofos
quando se fala da obra de Fernando Gil. No
entanto, para um leigo, os seus livros constituem
um desafio que pode transformar-se
num obstáculo inultrapassável. É verdade
que isso acontece menos numa obra como
“Acentos”, por exemplo, recheada de entrevistas,
com uma clara intenção de divulgação
e ideal para uma abordagem ao filósofo, ou
em muitas das comunicações das conferências
que Fernando Gil coordenou e onde se
reflecte o seu pensamento, mas as suas obras
centrais resistem à divulgação. A questão não
é nova – os filósofos recusam a simplificação
e a redução da profundidade que a divulgação
implica com mais vigor ainda que os cientistas
– mas ela coloca-se, de novo, sempre que
o interesse do público por um autor é despertado
pelos media para ser frustrado pela
sua leitura e constitui mais uma vertente do
problema nacional de iliteracia.
Paulo Tunhas não considera de todo que
haja um problema de falta de clareza em
Fernando Gil, enquanto filósofo: “Creio que
se foi tornando progressivamente mais claro.
Ou melhor: havia desde o princípio uma clareza
intelectual, que progressivamente se foi
acompanhando daquilo que podíamos chamar
uma clareza sensível. ‘A Convicção’ é mais
claro do que a ‘Logique du nom’, porque ele
sabia melhor o que queria dizer. A ‘Logique
du nom’ era clara, mas os problemas dele não
estavam ainda bem definidos, eram ainda em
parte problemas dos outros: na ‘Convicção’,
e já desde há muito antes, os problemas eram
completamente dele. Eram ele.”
Mas o mesmo Paulo Tunhas reconhece o
que podem ser as dificuldades da tarefa da
leitura para um leigo: “Fernando Gil sempre
usou – porque tinha de usar – vocabulário
técnico. E o vocabulário técnico é forçosamente
opaco para quem o não conhece. De
modo que os não-filósofos podem, muito
legitimamente, achá-lo obscuro. A dificuldade
tem a ver com o próprio objecto. Mas, se
constatarmos a total ausência de retórica das
profundidades em Fernando Gil, há que reconhecer
que, desde o princípio, ele se esforçou
por ser claro. Mas há matérias em que querer
ser claro à força é fazer batota e fingir ser um
‘grand seigneur’ do pensamento, sobrevoando
tudo com desprezo pelos detalhes. Isso ele
nunca o fez. O que ele tentou fazer foi tornar
o vocabulário técnico mais sensível.”
“No fundo”, continua Paulo Tunhas, “as
duas coisas vão uma com a outra. A partir
do momento em que a terminologia técnica
(‘intuição’, por exemplo) se vê acompanhada
de um semantismo comum – e ele progredia
cada vez mais nessa direcção – e a partir do
momento em que os problemas vão sendo cada
vez mais bem compreendidos, o espaço da
clareza aumenta. Nesse sentido, eu acho que
‘Acentos’ é a melhor introdução possível ao
pensamento dele. Mas é sempre verdade, como
notou Popper, que, quando se tem algo de
novo para se dizer, é difícil ser cristalino.”
Tunhas chama a atenção, porém, para a
maior liberdade de estilo das últimas obras
de Gil e para a sua escrita menos marcada por
tiques académicos como as notas de rodapé.
André Barata, por seu lado, concede que
não se entra sem ser apresentado no pensamento
de Fernando Gil. “A inteligibilidade
da obra do Fernando Gil tem de ser pensada
dentro dela própria. Quando estudamos Nietzsche
tornamo-nos especialistas de Nietzsche
e quando estudamos Kant tornamo-nos especialistas de Kant. Ficamos dentro daquele
universo, que tem portas e janelas, mas que
é um universo, com uma inteligibilidade própria.
Com Fernando Gil acontece um pouco
o mesmo: é um universo. Nesse sentido o
Fernando Gil é um pouco inacessível, é preciso
entrar na sua obra para a obra despertar.
É um autor difícil. Ou se alinha ou não se
alinha.” José Vítor Malheiros
Algumas datas
1937
Nasce a 3 de Fevereiro em Muecate,
Nampula, em Moçambique
1961
Licencia-se em Direito na Faculdade
de Direito de Lisboa.
Desiste da advocacia e parte para Paris
1964
Licencia-se em Filosofia na Sorbonne
1966
Inicia na Universidade de Paris,
sob a orientação de Suzanne Bachelard,
um doutoramento em Lógica
1984
Publica “Mimésis e Negação”
e recebe pela primeira vez
o Prémio Ensaio do Pen Club
1993
Publica a sua obra mais importante,
“Tratado da Evidência”.
É-lhe atribuído o Prémio Pessoa
2006
Morre em Paris a 18 de Março,
com 69 anos
Obras
Aproximação Antropológica
1961
Livro onde se reflectem preocupações
existenciais de juventude
A Lógica do Nome
1972
Tese de doutoramento no domínio da
lógica, onde se ocupa do problema da
referência dos nomes
Mimésis e Negação
1984
Obra onde defende que o pensamento é
sempre feito por oposições
Provas
1986
Estudo sobre a forma e as condições em
que é feita a prova científica
Tratado da Evidência
1993
Uma das suas obras mais importantes
onde problematiza o conceito de
evidência, questionando o seu carácter
imediato
Modos da Evidência
1998
Obra que procura confirmar em várias
domínios a sua teoria da evidência
Viagens do Olhar
(com Helder Macedo) 1998
A mesma procura de “Modos da
Evidência” na literatura
A Convicção
2000
Estudo sobre a crença e a convicção
enquanto aspectos subjectivos do
conhecimento
Mediações
2001
Obra em que defende que o pensamento é
mediação
Impasses
(com Paulo Tunhas) 2003
Reflexão sobre o pós 11 de Setembro e a
crise no Iraque
Acentos
2005
Conjunto de entrevistas e textos dispersos
sobre alguns temas inesperados
A 4 Mãos
(com Mário Vieira de Carvalho) 2005
Obra sobre Schumann, o seu compositor
preferido
Fernando Gil (1937-2006) - As razões para acreditar
por José Vítor Malheiros
Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas
Prova, evidência, controvérsia, convicção, crença, certeza, conhecimento. São algumas das palavras-chave centrais na obra do fi lósofo Fernando Gil, falecido a 18 de Março, em Paris, com 69 anos. Neste dossier, tentamos abordar diferentes facesdesse homem do seu tempo, apaixonado pelo saber e pela acção. Neste texto, tentámos, com a colaboração de dois filósofos que o conheceram de perto e que com ele trabalharam, Paulo Tunhas e André Barata, explicar algo da filosofia de Fernando Gil.
Na obra de Fernando Gil há um elemento central:
um sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que o filósofo
se interroga. Quais são as crenças que este sujeito
possui ou que o habitam? Que convicções tem?
Em que acredita e do que é que está convencido?
De onde vêm estas crenças e estas convicções?
O que é que este sujeito aceita como evidente
e porquê? Quais são os atributos que fazem com
que considere certas coisas como evidências
inquestionáveis, que lhe entram pelos olhos dentro,
e o que é que o faz, noutros casos, exigir provas
sobre provas para conseguir aceitar algo como
verdadeiro? Do que é que se pode deixar convencer
e porquê? Que argumentações o podem demover,
que provas o podem convencer? Porque aceita isto
como evidente, aquilo como verdadeiro, outra coisa
como possível ou provável e outra como impossível?
Porque se deixa governar por uma superstição
e recusa uma verdade científica?
Fernando Gil é por vezes apresentado como
um especialista de lógica. A notícia necrológica
publicada pelo diário francês “Le Monde”
usava esse qualificativo e é um facto que
o seu trabalho inicial passou de uma forma
central por este domínio da filosofia.
A sua primeira obra de relevo, “A Lógica
do Nome”, tese de doutoramento dirigida
por Suzanne Bachelard, filha de Gaston Bachelard,
é considerada pelos especialistas
uma obra de lógica, mas seria uma cruel
caricatura imaginar que Fernando Gil se
poderia satisfazer com jogos de dedução
das consequências lógicas de um qualquer
conjunto de proposições. No trabalho de
Fernando Gil há um elemento central: um
sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que
Gil se interroga. Quais são as crenças que
este sujeito possui ou que o habitam? Que
convicções tem? Em que acredita e do que
é que está convencido? De onde vêm estas
crenças e estas convicções? O que é que
este sujeito aceita como evidente e porquê?
Quais são os atributos que fazem com que
considere certas coisas como evidências inquestionáveis,
que lhe entram pelos olhos
dentro, e o que é que o faz, noutros casos,
exigir provas sobre provas para conseguir
aceitar algo como verdadeiro? Do que é
que se pode deixar convencer e porquê?
Que argumentações o podem demover, que
provas o podem convencer? Porque aceita
isto como evidente, aquilo como verdadeiro,
outra coisa como possível ou provável
e outra como impossível? Porque se deixa
governar por uma superstição e recusa uma
verdade científica?
E como se conseguem conhecer os processos
que produzem convicções de todos
estes graus, com tantos sabores e matizes?
Que abordagem racional pode analisar estas
teias de racionalidade e de irracional?
O conhecimento que interessava Fernando
Gil não é um conhecimento em abstracto
mas o conhecimento que é passível de ser
detido por um sujeito e em particular as
suas crenças e convicções. Foi isso que
constituiu o seu objecto de estudo. O que o
interessava não era tanto a estrutura lógica
do conhecimento (embora isso obviamente
também o interessasse), mas saber como é
que um sujeito pode conhecer e o que o leva
a acreditar nesse conhecimento. Saber o que
leva um sujeito a criar um dado modelo do
mundo e defi nir o que pode alterar, moldar,
reforçar ou pôr em causa esse modelo.
“Não há prova nem saber sem um destinatário”
“Aquilo que Fernando Gil procurou sempre,
pelo menos a partir do seu segundo livro,
‘A Lógica do Nome’”, explica o filósofo
Paulo Tunhas, seu amigo e colaborador em
várias obras, “foi sempre, de uma forma ou
de outra, tentar determinar as razões da
crença, mesmo que essa temática só tenha
aparecido de uma forma explícita com o
‘Tratado da Evidência’. Mesmo em livros
anteriores, como ‘Mimésis e Negação’, o
núcleo das preocupações futuras já estava
lá (a questão da imaginação, por exemplo).
Ao fi m e ao cabo, a preocupação de Fernando
Gil foi sempre a de conseguir determinar,
apurar, as razões pelas quais nós temos razão
para acreditar”.
O filósofo André Barata, que também
colaborou com Fernando Gil, prefere sublinhar
no seu trabalho a perspectiva da
inteligibilidade, a preocupação com aquilo
que pode ser conhecido.
“A meu ver o cerne do trabalho de Fernando
Gil é uma filosofia da inteligibilidade.
Fernando Gil tentou encontrar diferentes registos
de inteligibilidade (a inteligibilidade
da ciência, do senso comum, da filosofia)
e tentou compreender como é que essa
inteligibilidade acontece, preocupando-se,
em particular, com o lado subjectivo que
está subjacente à inteligibilidade. Há uma
expressão particularmente feliz que usa no
último livro: ‘Não há prova nem saber sem
um destinatário’. Toda a prova e todo o saber
estão instalados num sujeito. E Fernando Gil
procurou encontrar não tanto as condições
objectivas (que também o preocupavam)
mas as condições subjectivas do conhecimento”.
O que faz acreditar?
A inteligibilidade que ocupa Fernando Gil
vai porém além da inteligibilidade das coisas
e mesmo da inteligibilidade das provas ou
da argumentação (é possível compreender
algo sem que isso nos convença, sem na
realidade o aceitarmos, sem adesão), para
se estender à inteligibilidade da crença e
da convicção.
“O que Fernando Gil quer saber é o que faz
alguém acreditar, por exemplo, numa teoria
científica, a começar pelo próprio criador da
teoria”, diz Paulo Tunhas.
Para defi nir o que forma essa convicção,
para identificar as regras ou regularidades a
que obedece a formação da convicção, para
tentar encontrar uma lógica da prova e da
convicção, Fernando Gil estudou os exemplos
da história da ciência e da filosofia e
as grandes controvérsias científicas – como
a que opôs no século XIX os naturalistas
franceses Geoffroy Saint-Hilaire e Georges
Cuvier em torno da evolução, ou as teorias
de Kepler.
“Estes estudos eram já tentativas para
estabelecer os mecanismos da relação entre
o criador da teoria e a própria teoria”, explica Tunhas. “É já uma preocupação com
o processo da crença, algo que obedece a
preocupações distintas das de alguém como
Karl Popper. Para Popper, os mecanismos a
que obedece o processo da crença pessoal
na verdade de uma teoria científica são
razoavelmente irrelevantes. Para Gil, são
fundamentais”.
A centralidade do sujeito
Esta centralidade do sujeito, que constitui
uma característica da filosofia de Fernando
Gil e que pode parecer banal para um leigo
(quem poderá conhecer, senão um sujeito?),
é, na realidade, algo que vai a contracorrente
das preocupações dominantes da epistemologia,
onde Gil se move.
“A epistemologia, que é o campo privilegiado
de trabalho de Fernando Gil, tem
como objecto de estudo o conhecimento
científico”, explica André Barata, “e foi
assimilando a preocupação da ciência com
as condições objectivas do conhecimento e
descurando as condições subjectivas desse
conhecimento – que era o que interessava
a Fernando Gil”.
A preocupação da ciência compreende-se:
uma lei científica tem de poder ser validada
de forma independente do sujeito que a
produz ou a analisa e a sua formulação deve
obedecer a critérios que procuram a maior
objectividade possível. Introduzir na ciência
a problemática de sujeitos que podem ou
não ser convencidos por uma lei científi ca,
abalaria o edifício de forma destruidora. A
ciência eliminou o sujeito e a epistemologia
seguiu-a, afastando do caminho as preocupações
com a convicção.
“Eu diria que a introdução do sujeito em
epistemologia é um dos grandes temas de
Fernando Gil”, diz Paulo Tunhas. “As suas
preocupações encontravam-se muito ao arrepio
das doutrinas maioritárias no mundo
filosófico (nomeadamente do mundo filosófico francês, muito marcado pelo desconstruccionismo,
mas também em boa parte do
anglo-saxónico), que eram essencialmente
negativas, empenhadas em mostrar a artificialidade da crença, ou a de noções como
a de sujeito. Fernando Gil, estando atento a
alguns dos bons motivos que moviam essa
crítica, tentou procurar exactamente o contrário:
determinar positivamente o que é que
nos leva a acreditar, o que é a evidência, o
que é que engendra a convicção, o que nos
faz conhecer o mundo. É nesse sentido que
há sem dúvida uma tonalidade afirmativa
do pensamento de Fernando Gil.”
Partilhar a crença
Enunciar em termos simples as contribuições
de Fernando Gil não é uma tarefa simples. Além de que
a filosofia não visa encerrar problemas e a
problematização e a formulação constitui
por si um resultado filosófico. Que respostas
avança Fernando Gil para as perguntas
que lança? Que soluções propõe para os
problemas que levanta? Que teses deixa
sobre a mesa?
“Em última análise, em filosofia ninguém
resolve nada”, responde Paulo Tunhas, “mas
creio que Fernando Gil conseguiu apurar determinados
mecanismos que estão na origem
da convicção e isso é um avanço fi losófi co
grande. Eu creio que aquilo que ele escreve
na ‘Convicção’ sobre a relação entre fundamento
e fundação é uma solução para um
problema filosófico real: a distinção entre
as crenças difusas e vagas e a convicção
apoiada. Fernando Gil diz que as crenças
construídas através do apelo estrito a um
fundamento, a um mecanismo de autoridade
(é assim porque é assim!), não são passíveis
de reconstrução por nenhum outro espírito,
não são partilháveis. Apenas são partilháveis
as crenças construídas através de um
processo de fundação, que são as crenças
que nós sabemos construir, tal como podemos
fazer uma construção matemática. A
fundação é o processo de construção e de
reconstrução da crença. O fundamento é a
imposição da crença.
Enquanto o fundamento apenas pode levar
a crenças difusas, a fundação permite crenças
apuradas e determinadas. Sempre que é
possível passar de uma crença difusa para
uma explicação dos mecanismos da crença,
para um justificação, há um avanço”.
De novo no palco
A “velha tese clássica” da existência do
sujeito é evocada tanto por Paulo Tunhas
como por André Barata como central na
filosofia de Fernando Gil.
“Penso que Fernando Gil produziu teses
(suponho que ele não gostaria da expressão)”,
diz Tunhas, “ que contribuem para a reelaboração
do estatuto do sujeito e que reforçam
a ideia de que o sujeito não é uma ficção
ou uma construção artificial. Fernando Gil
propõe que o nosso conhecimento do mundo,
o conhecimento das ciências, implica sempre
uma adesão pessoal e que os mecanismos da
prova, para serem eficazes, exigem sempre
um processo de transformação da crença em
convicção do próprio sujeito”.
Como é que Fernando Gil coloca o sujeito
no palco? Dando-lhe, na crença, o papel de
um actor central. André Barata explica como:
“O que a crença tem de especial é que empenha
o sujeito da crença. O sujeito é penhor
dessa crença. Para dizer que 2+2 é igual
a quatro eu não preciso de me empenhar
pessoalmente – isso é certo, absolutamente
certo. Mas se eu disser que os homens são
naturalmente bons, tenho de me empenhar,
de me dar como penhor. Isto é importante
porque nos autoriza a falar do incerto, usando
o próprio sujeito como penhor. E o sujeito
pode servir de penhor porque o sujeito (para
si próprio) é a coisa mais certa que há. É como
se as pessoas se apostassem a si mesmas
na verdade de qualquer coisa. Este papel do
sujeito é importantíssimo.”
Mas até que ponto precisamos da crença?
Não nos basta uma convicção científica
baseada em provas de onde o sujeito pode
estar excluído, à maneira Popperiana? Não,
diz Fernando Gil, porque há um estrato
último, irredutível, que é irracional, e que
é inescapável. “Não se trata da crença religiosa”,
diz Tunhas. “É a crença no mundo,
na existência desta cadeira, na existência
do outro, um conjunto de crenças arcaicas
e originárias que estão na base de todas as
outras crenças e convicções”.
Outro Universo
Se há um estrato de crença irracional, básico,
primitivo, indesmontável, há igualmente
um estrato de convicção que também resiste
à análise. Outra ideia cara a Fernando Gil:
a evidência. Aquilo que se mete pelos olhos
dentro, que está aquém do discurso e que
não carece de prova nem de argumentação
para nos convencer.
“Fernando Gil fez algo que nunca ninguém
tinha feito na história da filosofia:
pôs em questão a evidência”, diz André
Barata. “Disse que a evidência não é de
todo evidente e que devia ser questionada.
Quando fazemos uma demonstração, o que
procuramos alcançar é a evidência. Dizemos
‘Isto é evidente!’ e damo-nos por satisfeitos.
E Fernando Gil vem tentar perceber qual é a
singularidade da evidência, perguntar o que
é que a evidência tem de tão especial”.
O questionamento da evidência tem o
seu quê de vertiginoso, pois abre, no meio
da mais inquestionável certeza, a maior
ignorância (como se prova a evidência da
evidência?), como um buraco negro para
onde tudo converge mas de onde sai, “do
outro lado”, um universo paralelo. Mas dá-nos
uma boa medida da inquietação, do rigor
e da exigência rara de Fernando Gil.
Textos publicados no jornal Público a 1 de Abril de 2006
Suplemento Mil Folhas
Prova, evidência, controvérsia, convicção, crença, certeza, conhecimento. São algumas das palavras-chave centrais na obra do fi lósofo Fernando Gil, falecido a 18 de Março, em Paris, com 69 anos. Neste dossier, tentamos abordar diferentes facesdesse homem do seu tempo, apaixonado pelo saber e pela acção. Neste texto, tentámos, com a colaboração de dois filósofos que o conheceram de perto e que com ele trabalharam, Paulo Tunhas e André Barata, explicar algo da filosofia de Fernando Gil.
Na obra de Fernando Gil há um elemento central:
um sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que o filósofo
se interroga. Quais são as crenças que este sujeito
possui ou que o habitam? Que convicções tem?
Em que acredita e do que é que está convencido?
De onde vêm estas crenças e estas convicções?
O que é que este sujeito aceita como evidente
e porquê? Quais são os atributos que fazem com
que considere certas coisas como evidências
inquestionáveis, que lhe entram pelos olhos dentro,
e o que é que o faz, noutros casos, exigir provas
sobre provas para conseguir aceitar algo como
verdadeiro? Do que é que se pode deixar convencer
e porquê? Que argumentações o podem demover,
que provas o podem convencer? Porque aceita isto
como evidente, aquilo como verdadeiro, outra coisa
como possível ou provável e outra como impossível?
Porque se deixa governar por uma superstição
e recusa uma verdade científica?
Fernando Gil é por vezes apresentado como
um especialista de lógica. A notícia necrológica
publicada pelo diário francês “Le Monde”
usava esse qualificativo e é um facto que
o seu trabalho inicial passou de uma forma
central por este domínio da filosofia.
A sua primeira obra de relevo, “A Lógica
do Nome”, tese de doutoramento dirigida
por Suzanne Bachelard, filha de Gaston Bachelard,
é considerada pelos especialistas
uma obra de lógica, mas seria uma cruel
caricatura imaginar que Fernando Gil se
poderia satisfazer com jogos de dedução
das consequências lógicas de um qualquer
conjunto de proposições. No trabalho de
Fernando Gil há um elemento central: um
sujeito que pensa e que sente, com contexto
e com história, e é sobre esse sujeito que
Gil se interroga. Quais são as crenças que
este sujeito possui ou que o habitam? Que
convicções tem? Em que acredita e do que
é que está convencido? De onde vêm estas
crenças e estas convicções? O que é que
este sujeito aceita como evidente e porquê?
Quais são os atributos que fazem com que
considere certas coisas como evidências inquestionáveis,
que lhe entram pelos olhos
dentro, e o que é que o faz, noutros casos,
exigir provas sobre provas para conseguir
aceitar algo como verdadeiro? Do que é
que se pode deixar convencer e porquê?
Que argumentações o podem demover, que
provas o podem convencer? Porque aceita
isto como evidente, aquilo como verdadeiro,
outra coisa como possível ou provável
e outra como impossível? Porque se deixa
governar por uma superstição e recusa uma
verdade científica?
E como se conseguem conhecer os processos
que produzem convicções de todos
estes graus, com tantos sabores e matizes?
Que abordagem racional pode analisar estas
teias de racionalidade e de irracional?
O conhecimento que interessava Fernando
Gil não é um conhecimento em abstracto
mas o conhecimento que é passível de ser
detido por um sujeito e em particular as
suas crenças e convicções. Foi isso que
constituiu o seu objecto de estudo. O que o
interessava não era tanto a estrutura lógica
do conhecimento (embora isso obviamente
também o interessasse), mas saber como é
que um sujeito pode conhecer e o que o leva
a acreditar nesse conhecimento. Saber o que
leva um sujeito a criar um dado modelo do
mundo e defi nir o que pode alterar, moldar,
reforçar ou pôr em causa esse modelo.
“Não há prova nem saber sem um destinatário”
“Aquilo que Fernando Gil procurou sempre,
pelo menos a partir do seu segundo livro,
‘A Lógica do Nome’”, explica o filósofo
Paulo Tunhas, seu amigo e colaborador em
várias obras, “foi sempre, de uma forma ou
de outra, tentar determinar as razões da
crença, mesmo que essa temática só tenha
aparecido de uma forma explícita com o
‘Tratado da Evidência’. Mesmo em livros
anteriores, como ‘Mimésis e Negação’, o
núcleo das preocupações futuras já estava
lá (a questão da imaginação, por exemplo).
Ao fi m e ao cabo, a preocupação de Fernando
Gil foi sempre a de conseguir determinar,
apurar, as razões pelas quais nós temos razão
para acreditar”.
O filósofo André Barata, que também
colaborou com Fernando Gil, prefere sublinhar
no seu trabalho a perspectiva da
inteligibilidade, a preocupação com aquilo
que pode ser conhecido.
“A meu ver o cerne do trabalho de Fernando
Gil é uma filosofia da inteligibilidade.
Fernando Gil tentou encontrar diferentes registos
de inteligibilidade (a inteligibilidade
da ciência, do senso comum, da filosofia)
e tentou compreender como é que essa
inteligibilidade acontece, preocupando-se,
em particular, com o lado subjectivo que
está subjacente à inteligibilidade. Há uma
expressão particularmente feliz que usa no
último livro: ‘Não há prova nem saber sem
um destinatário’. Toda a prova e todo o saber
estão instalados num sujeito. E Fernando Gil
procurou encontrar não tanto as condições
objectivas (que também o preocupavam)
mas as condições subjectivas do conhecimento”.
O que faz acreditar?
A inteligibilidade que ocupa Fernando Gil
vai porém além da inteligibilidade das coisas
e mesmo da inteligibilidade das provas ou
da argumentação (é possível compreender
algo sem que isso nos convença, sem na
realidade o aceitarmos, sem adesão), para
se estender à inteligibilidade da crença e
da convicção.
“O que Fernando Gil quer saber é o que faz
alguém acreditar, por exemplo, numa teoria
científica, a começar pelo próprio criador da
teoria”, diz Paulo Tunhas.
Para defi nir o que forma essa convicção,
para identificar as regras ou regularidades a
que obedece a formação da convicção, para
tentar encontrar uma lógica da prova e da
convicção, Fernando Gil estudou os exemplos
da história da ciência e da filosofia e
as grandes controvérsias científicas – como
a que opôs no século XIX os naturalistas
franceses Geoffroy Saint-Hilaire e Georges
Cuvier em torno da evolução, ou as teorias
de Kepler.
“Estes estudos eram já tentativas para
estabelecer os mecanismos da relação entre
o criador da teoria e a própria teoria”, explica Tunhas. “É já uma preocupação com
o processo da crença, algo que obedece a
preocupações distintas das de alguém como
Karl Popper. Para Popper, os mecanismos a
que obedece o processo da crença pessoal
na verdade de uma teoria científica são
razoavelmente irrelevantes. Para Gil, são
fundamentais”.
A centralidade do sujeito
Esta centralidade do sujeito, que constitui
uma característica da filosofia de Fernando
Gil e que pode parecer banal para um leigo
(quem poderá conhecer, senão um sujeito?),
é, na realidade, algo que vai a contracorrente
das preocupações dominantes da epistemologia,
onde Gil se move.
“A epistemologia, que é o campo privilegiado
de trabalho de Fernando Gil, tem
como objecto de estudo o conhecimento
científico”, explica André Barata, “e foi
assimilando a preocupação da ciência com
as condições objectivas do conhecimento e
descurando as condições subjectivas desse
conhecimento – que era o que interessava
a Fernando Gil”.
A preocupação da ciência compreende-se:
uma lei científica tem de poder ser validada
de forma independente do sujeito que a
produz ou a analisa e a sua formulação deve
obedecer a critérios que procuram a maior
objectividade possível. Introduzir na ciência
a problemática de sujeitos que podem ou
não ser convencidos por uma lei científi ca,
abalaria o edifício de forma destruidora. A
ciência eliminou o sujeito e a epistemologia
seguiu-a, afastando do caminho as preocupações
com a convicção.
“Eu diria que a introdução do sujeito em
epistemologia é um dos grandes temas de
Fernando Gil”, diz Paulo Tunhas. “As suas
preocupações encontravam-se muito ao arrepio
das doutrinas maioritárias no mundo
filosófico (nomeadamente do mundo filosófico francês, muito marcado pelo desconstruccionismo,
mas também em boa parte do
anglo-saxónico), que eram essencialmente
negativas, empenhadas em mostrar a artificialidade da crença, ou a de noções como
a de sujeito. Fernando Gil, estando atento a
alguns dos bons motivos que moviam essa
crítica, tentou procurar exactamente o contrário:
determinar positivamente o que é que
nos leva a acreditar, o que é a evidência, o
que é que engendra a convicção, o que nos
faz conhecer o mundo. É nesse sentido que
há sem dúvida uma tonalidade afirmativa
do pensamento de Fernando Gil.”
Partilhar a crença
Enunciar em termos simples as contribuições
de Fernando Gil não é uma tarefa simples. Além de que
a filosofia não visa encerrar problemas e a
problematização e a formulação constitui
por si um resultado filosófico. Que respostas
avança Fernando Gil para as perguntas
que lança? Que soluções propõe para os
problemas que levanta? Que teses deixa
sobre a mesa?
“Em última análise, em filosofia ninguém
resolve nada”, responde Paulo Tunhas, “mas
creio que Fernando Gil conseguiu apurar determinados
mecanismos que estão na origem
da convicção e isso é um avanço fi losófi co
grande. Eu creio que aquilo que ele escreve
na ‘Convicção’ sobre a relação entre fundamento
e fundação é uma solução para um
problema filosófico real: a distinção entre
as crenças difusas e vagas e a convicção
apoiada. Fernando Gil diz que as crenças
construídas através do apelo estrito a um
fundamento, a um mecanismo de autoridade
(é assim porque é assim!), não são passíveis
de reconstrução por nenhum outro espírito,
não são partilháveis. Apenas são partilháveis
as crenças construídas através de um
processo de fundação, que são as crenças
que nós sabemos construir, tal como podemos
fazer uma construção matemática. A
fundação é o processo de construção e de
reconstrução da crença. O fundamento é a
imposição da crença.
Enquanto o fundamento apenas pode levar
a crenças difusas, a fundação permite crenças
apuradas e determinadas. Sempre que é
possível passar de uma crença difusa para
uma explicação dos mecanismos da crença,
para um justificação, há um avanço”.
De novo no palco
A “velha tese clássica” da existência do
sujeito é evocada tanto por Paulo Tunhas
como por André Barata como central na
filosofia de Fernando Gil.
“Penso que Fernando Gil produziu teses
(suponho que ele não gostaria da expressão)”,
diz Tunhas, “ que contribuem para a reelaboração
do estatuto do sujeito e que reforçam
a ideia de que o sujeito não é uma ficção
ou uma construção artificial. Fernando Gil
propõe que o nosso conhecimento do mundo,
o conhecimento das ciências, implica sempre
uma adesão pessoal e que os mecanismos da
prova, para serem eficazes, exigem sempre
um processo de transformação da crença em
convicção do próprio sujeito”.
Como é que Fernando Gil coloca o sujeito
no palco? Dando-lhe, na crença, o papel de
um actor central. André Barata explica como:
“O que a crença tem de especial é que empenha
o sujeito da crença. O sujeito é penhor
dessa crença. Para dizer que 2+2 é igual
a quatro eu não preciso de me empenhar
pessoalmente – isso é certo, absolutamente
certo. Mas se eu disser que os homens são
naturalmente bons, tenho de me empenhar,
de me dar como penhor. Isto é importante
porque nos autoriza a falar do incerto, usando
o próprio sujeito como penhor. E o sujeito
pode servir de penhor porque o sujeito (para
si próprio) é a coisa mais certa que há. É como
se as pessoas se apostassem a si mesmas
na verdade de qualquer coisa. Este papel do
sujeito é importantíssimo.”
Mas até que ponto precisamos da crença?
Não nos basta uma convicção científica
baseada em provas de onde o sujeito pode
estar excluído, à maneira Popperiana? Não,
diz Fernando Gil, porque há um estrato
último, irredutível, que é irracional, e que
é inescapável. “Não se trata da crença religiosa”,
diz Tunhas. “É a crença no mundo,
na existência desta cadeira, na existência
do outro, um conjunto de crenças arcaicas
e originárias que estão na base de todas as
outras crenças e convicções”.
Outro Universo
Se há um estrato de crença irracional, básico,
primitivo, indesmontável, há igualmente
um estrato de convicção que também resiste
à análise. Outra ideia cara a Fernando Gil:
a evidência. Aquilo que se mete pelos olhos
dentro, que está aquém do discurso e que
não carece de prova nem de argumentação
para nos convencer.
“Fernando Gil fez algo que nunca ninguém
tinha feito na história da filosofia:
pôs em questão a evidência”, diz André
Barata. “Disse que a evidência não é de
todo evidente e que devia ser questionada.
Quando fazemos uma demonstração, o que
procuramos alcançar é a evidência. Dizemos
‘Isto é evidente!’ e damo-nos por satisfeitos.
E Fernando Gil vem tentar perceber qual é a
singularidade da evidência, perguntar o que
é que a evidência tem de tão especial”.
O questionamento da evidência tem o
seu quê de vertiginoso, pois abre, no meio
da mais inquestionável certeza, a maior
ignorância (como se prova a evidência da
evidência?), como um buraco negro para
onde tudo converge mas de onde sai, “do
outro lado”, um universo paralelo. Mas dá-nos
uma boa medida da inquietação, do rigor
e da exigência rara de Fernando Gil.
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