terça-feira, janeiro 27, 2004

Estado de Graça

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 27 de Janeiro de 2004
Crónica 4/2004

Os anúncios de coisas novas que não são novas e de números que não são números fazem parte das razões por que os cidadãos se sentem tão ofendidos com a política.


Uma das novidades dos últimos dias foi o anúncio feito pelo Governo da sua nova aposta na Ciência e na Tecnologia, que se traduziria num novo investimento de mil milhões de euros que a ministra da Ciência e do Ensino Superior teria conseguido arrancar, com esforço e arte mais que humanos, da pérfida Bruxelas.

O anúncio do Governo compreende-se. Constrangidos pelo uso da tanga, esmagados pelo esmagamento do défice, com o amor-próprio pelas ruas da amargura, os portugueses bem precisam de um pouco de futuro ao fundo do túnel e a ciência parece ideal para lho fornecer (não anda o próprio Bush a prometer a Lua aos americanos?).

Tudo estaria bem não fosse dar-se o caso de o novo investimento não ser afinal novo, de os mil milhões de euros serem afinal 400, de o dinheiro não ter vindo de Bruxelas mas ser um desvio de gastos de outras rubricas já incluídos no Quadro Comunitário de Apoio (ou dinheiro não incluído em qualquer programa mas já alocado a Portugal) e de ser duvidoso que sejam de facto todos para investigação científica e tecnológica (os 7.000 bolseiros da Administração Pública irão fazer investigação?).

Mais uma vez, nada do que se diz no parágrafo anterior seria grave se isso tivesse sido anunciado de raiz desta forma: se se tivesse começado por anunciar que se tinham realocado verbas, que nem tudo era para investigação mas seria pelo menos para formação de alto nível e que os números eram os que eram. O que é grave é a desfaçatez do anúncio e a forma como, interpelada pela comunicação social, pela comunidade científica e pela oposição, a ministra Graça Carvalho tentou misturar alhos com bugalhos e responder às perguntas com um sorriso esfíngico em vez de clareza e rigor.

A mesma desfaçatez se verificou com a lei do mecenato científico — outra "novidade" da aposta na ciência do Governo de Durão Barroso — inicialmente apresentada como nova e revolucionária, para depois se concluir que afinal já existia e iria apenas ser melhorada.

Os anúncios de coisas novas que não são novas, de números que não são números e a fuga às perguntas directas fazem parte das razões por que os cidadãos se sentem tão ofendidos com a política. É que, se há matéria de opinião — e um Governo ou um ministro têm toda a legitimidade para discordar do anterior — há também matéria de facto. Graça Carvalho tem toda a legitimidade para achar má a lei do mecenato científico e para a alterar, mas tem de nos dizer isso claramente (e de explicar as suas razões para tal) em vez de tentar reescrever a história e tentar convencer-nos de que nunca houve nenhuma lei de mecenato científico.

Nesta triste polémica, a comunidade científica, com poucas excepções, fez o seu habitual triste papel (que diferença com as posições dos cientistas em França!). Em vez de pedir clarificações, de tentar saber de onde vinha o dinheiro e para onde ia, de repor os factos e de expor as suas razões, resumiu-se a declarações de tímido regozijo ("é bom que o Governo fale de ciência, seja qual for a razão") quando não de aberta bajulação. Os cientistas serão pobres em Portugal, mas não há razão para perder a dignidade por um prato de lentilhas.

Depois de ter asfixiado os bolseiros e os centros de investigação em 2003, o Governo tenta agora vender a ideia que a aposta na Ciência vai recomeçar e nos garante o futuro. Só que a Ciência não pode progredir sem continuidade e não é por receber um balão de oxigénio em 2004 que se compensa uma punhalada em 2003. A recuperação nestas áreas é lenta, como a ministra saberá. Nem é este vaivém de investimentos (se existir) que vai convencer os jovens valores que a investigação em Portugal é uma área de futuro.

terça-feira, janeiro 20, 2004

Botões

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2004
Crónica 3/2004

Uma teoria garante que os botões dos semáforos são parte de uma discreta e tenebrosa campanha para convencer os cidadãos da sua própria irrelevância.

Chego à beira do passeio e espero que o sinal dos peões passe para vermelho. Espero. Passados uns minutos reparo que, no poste do semáforo do lado de lá, há uma caixinha com um botão.

Do meu lado há uma igual. Carrego no botão. O sinal continua vermelho para os peões e os carros continuam a passar. Juntam-se mais pessoas. Os recém-chegados vão carregando no botão. "Será que isto funciona?", diz alguém a meia-voz, para ninguém em especial. Ao fim de uns minutos, aproveitando as abertas no tráfego automóvel, vamos atravessando todos, com sinal vermelho. Já no passeio do lado de lá olho para trás: o semáforo dos peões ficou verde mas já não há ninguém para atravessar.

Acabei de presenciar um dos grandes mistérios da vida urbana: os semáforos com botão para os peões. Em teoria, destinam-se a facilitar o tráfego — se não houver peões para atravessar, os carros não são obrigados a parar; se houver peões, basta accionar o botão para estes poderem passar em segurança — mas é evidente que essa não é a função. Destinar-se-ão a testar os limites da paciência humana? Serão um meio clandestino de recolha de impressões digitais para enviar para os EUA?

A experiência quotidiana nunca me conseguiu convencer da existência de qualquer relação causa-efeito entre o accionar do botão e a passagem do botão a verde. Uma teoria que começa a ganhar adeptos garante que os botões dos semáforos não são senão parte de uma tenebrosa campanha secreta para convencer os cidadãos da sua própria irrelevância, destinada a fomentar a indiferença cívica, a alimentar a abstenção eleitoral e a concentrar as decisões nas mãos de cada vez menos. É verdade que é uma teoria conspirativa, mas não é impossível que haja conspirações pois não?

Há quem diga que se trata de uma mera questão de poder, que os automobilistas nunca estiveram dispostos a abdicar da sua supremacia e a vergar-se a um gesto de simples peões e que teriam imposto aos técnicos do trânsito a total desconexão de todos os botões, mantidos apenas por uma questão de aparência.

Do lado dos técnicos há, pelo contrário, quem garanta que a coisa funciona mesmo, mas tem de funcionar assim, ao ritmo da Santa Paciência e não da Senhora dos Aflitos: senão, dizem, poderia haver brincadeiras, poderia haver quem carregasse no botão sem querer atravessar... A lógica da resposta escapa-nos. Quem quiser carregar no botão para chatear os automobilistas pode fazê-lo de qualquer forma. O compasso de espera entre acção e efeito (se efeito existe) é até a melhor maneira de garantir a impunidade aos brincalhões: quando o semáforo obriga os carros a parar já eles estão a quilómetros.

O que é verdade é que, da maneira que os botões funcionam, não funcionam: depois de um tempo de espera razoável toda a gente atravessa com vermelho, com os riscos e as perturbações de trânsito inerentes. Se é verdade que a gestão do tráfego tem como objectivo equilibrar dois objectivos conflituantes, fluidez e segurança, os semáforos de botão não permitem nem uma coisa nem outra. Porque a maioria dos peões carrega de facto no botão (prejudicando a fluidez), mas a mesma maioria atravessa ainda no vermelho (gerando insegurança). A única opção razoável seria a passagem imediata a amarelo (para os carros) quando se acciona o botão, com a subsequente passagem a vermelho, garantindo um intervalo mínimo de x minutos entre sinais vermelhos para que o tráfego automóvel não seja prejudicado. Mas é claro que isso seria levar demasiado em conta as necessidades dos peões numa cidade que se vai transformando numa rede de auto-estradas e viadutos com casino no meio. Entretanto, com a crónica falta de passadeiras e o desrespeito das que existem pelos carros, faça a única coisa razoável, como se diz em Nova Iorque: quando o semáforo diz "Don't Walk", obedeça. Corra.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Mensageiros, jornalistas e censores

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Janeiro de 2004
Crónica 2/2004

A metáfora do mensageiro é perigosa porque ela transmite a imagem de um jornalista irresponsabilizável.

No debate à volta do caso Casa Pia e do papel da imprensa deu-se uma erupção da metáfora do jornalista como mensageiro. A limitação da imagem é evidente para os oficiais do ofício, mas convém esclarecer os mal-entendidos que possa gerar no público em geral.


Os jornalistas não são mensageiros porque o seu papel não consiste em transportar de um lugar para outro — das folhas de um processo para as páginas de um jornal, por exemplo — uma dada mensagem. Um jornalista não é um estafeta reduzido a um papel de mero transporte, nem um pé de microfone.


O papel dos jornalistas não é — não deve ser — o de reproduzir as informações que recebem e dar-lhes projecção, mas sim o de divulgar as informações que possuem relevância social, que permitem que os cidadãos conheçam, compreendam e possam agir sobre o mundo que os rodeia.

É claro que isto se presta a diversas interpretações e subjectividades — o que é o interesse público? que assuntos merecem ser objecto de notícia? que limites deve haver a essa divulgação? — e as formas como os critérios dos jornalistas são criados e usados são há décadas objecto de intenso estudo científico e debate ético, que deram origem a uma razoável produção de textos normativos. Mas a questão fundamental é que os jornalistas, sendo mediadores porque estabelecem uma mediação entre leitores e sociedade, são produtores de informação e possuem o dever de escolher, filtrar e validar as notícias que dão — a partir da informação que recolhem activamente ou que recebem passivamente — e até de traduzir, descodificar, explicar, enquadrar ou mesmo comentar as notícias que o exijam. São os autores das notícias.


É precisamente porque um jornalista não é um mensageiro que ele é responsável — e deve ser responsabilizado — pelas informações que produz e divulga.


A metáfora do mensageiro é perigosa porque ela transmite a imagem de um jornalista irresponsabilizável, cujo papel é apenas o de reflectir especularmente e acriticamente a realidade.


A invasão dos jornais por esta imagem sobreveio ao lançamento da proposta da maioria PSD-PP de reduzir a liberdade de imprensa consignada na Constituição, supostamente de forma a evitar a repetição de algumas atitudes condenáveis ocorridas na cobertura do caso Casa Pia.


A tentação da redução das liberdades é uma infeliz marca dos tempos.


Vale a pena afirmar que a liberdade é um valor de suprema importância e que só deve ser reduzida (momentaneamente e de forma limitada) se apenas dessa forma se conseguir atingir algum outro objectivo, igualmente ou mais importante para a sociedade.


A única razão para pretender limitar a liberdade de imprensa e para ameaçar os jornalistas com mais pesadas sanções é a vontade de instaurar um clima que os torne mais receosos de executar o papel de fiscalização dos poderes.


É tanto mais claro que essa é a intenção quanto as leis que existem — e que permitem responsabilizar jornalistas e órgãos de comunicação social — não são usadas (nem mesmo pelo Ministério Público) mesmo quando há uma patente situação de abuso, inverdade, manipulação ou difamação por parte dos media. O poder não quer melhor jornalismo.


É evidente que o objectivo do projecto PSD-PP não é obter uma reparação para os eventuais ofendidos pela imprensa, o que a credibilizaria e reforçaria o seu papel, mas tentar calar todos os jornalistas com uma lei que pretende até proibi-los de publicar algo que possa prejudicar "a formação das crianças e dos jovens" (como diz o projecto do PSD-PP!).


A ideia, propagada nos últimos tempos graças ao apoio da pior imprensa e dos seus abusos, de que o "poder dos jornalistas" exige leis mais musculadas, é um perigo para a democracia. Nada é mais prejudicial à "formação das crianças e dos jovens".

terça-feira, janeiro 06, 2004

Dar e receber

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2004
Crónica 1/2004

É preciso alterar os hábitos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra.

O Natal voltou mais uma vez a trazer, apesar de todas as crises, a habitual avalanche de brinquedos, bonecos, jogos e passatempos, que lançámos diligentemente sobre as nossas crianças e que ajudámos a lançar sobre as crianças dos outros.

A prova disso não vem só da experiência limitada que podemos ter das árvores de Natal e dos quartos de brinquedos da nossa família e amigos (ainda que ela, só por si, possa ser suficientemente convincente) mas do ambiente dos centros comercias e hipermercados e das intensas campanhas de publicidade destinadas às crianças que por esta época invadem as televisões.

Que um excesso de brinquedos — ou de qualquer outra coisa — não traz quaisquer benefícios às crianças já se sabe. E parece até provável que tenha alguns inconvenientes — porque a quantidade acaba por desvalorizar o objecto e acaba por gerar desinteresse e desperdício, porque esse desperdício se torna um hábito, porque as crianças não dedicam o tempo suficiente a cada jogo para o descobrir e se envolver com ele. Para mais, a ênfase no brinquedo industrial e a adesão às campanhas de acumulação ou da sua eterna substituição pelos modelos mais recentes ou mais evoluídos e pelos últimos acessórios acaba por dar origem a relações superficiais com os brinquedos que não têm nem riqueza emocional, nem conteúdo pedagógico, nem fornecem o estímulo do imaginário com que desculpamos a nossa prodigalidade. Claro que há brinquedos e brinquedos e que ter vinte livros não é a mesma coisa que ter vinte Barbies, mas o facto é que com frequência enterramos as nossas crianças num mundo de superabundância que sabemos que não pode promover nada de bom.

Pode dizer-se que este panorama descreve na realidade o mundo dos ricos e que existem inúmeras crianças para quem nada disto é assim — e isso é verdade. Mas é também verdade que, devido à necessidade de alargamento do mercado infantil e à redução dos custos industriais, o número de crianças para quem isto é assim é cada vez maior, pelo menos no mundo industrializado (sendo que, para maior ironia, isso às vezes acontece graças ao trabalho infantil de outra zona do mundo).

Como gerir este excesso? A primeira resposta é que é necessário alterar alguns hábitos quase obscenos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra — e que transcendem qualquer ideal religioso.

Outra ordem de resposta, de índole mais prática, é que é possível aprender a transformar o influxo de presentes num programa de verdadeira troca — ensinando as crianças a oferecer os brinquedos com que já não brincam a crianças que deles precisam. Se é verdade que existem em Lisboa instituições de solidariedade social que recebem tantos brinquedos de doadores que são obrigados a recusar alguns, é verdade que há instituições menos afortunadas, na província e noutras regiões do mundo.

Se conseguirmos transformar o Natal num momento do ano em que oferecemos aos nossos filhos o prazer de dar (dar verdadeiramente, algo que é seu) a alguém a quem a prenda pode proporcionar alguma felicidade, ter-lhes-emos dado o melhor que é possível oferecer.