terça-feira, fevereiro 24, 2009

Não há pior cego que o que não quer ouvir

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Fevereiro de 2009
Crónica 6/2009

É estranho como a Web parece ter apanhado tanta gente desprevenida. O que está a acontecer agora já tinha sido previsto

Quando eu era pequeno, o meu pai comprava um jornal de manhã, antes de ir trabalhar, e um jornal à tarde, que lia de regresso a casa. E o mesmo faziam quotidianamente muitos milhões de pessoas (predominantemente homens) em todas as cidades do mundo civilizado. A compra de jornais era não apenas regular mas fiel: comprava-se o mesmo jornal todos os dias e os ardinas reservavam os exemplares necessários para os clientes regulares. Na maior parte dos países os vespertinos foram desaparecendo e a maioria dos compradores passou a comprar apenas um jornal por dia, mas a fidelidade continuou a ser uma marca durante anos.
Estes tempos desapareceram e não vão voltar.
A compra dos jornais começou a ser afectada pela banalização da TV, pelo desenvolvimento da informação na rádio, pelo acesso a múltiplos canais de televisão nacionais e estrangeiros por satélite e cabo, pelos canais televisivos de informação, pela difusão da Web, pelos jornais gratuitos, pela Internet móvel e pela ubiquidade da informação e dos "conteúdos" em toda a espécie de suportes, dos ecrãs de rua aos tickers dos comboios. Em resultado de tudo isto, assistimos nas últimas décadas, nos países industrializados, a uma queda acentuada das vendas de jornais em papel, das suas tiragens, das suas audiências, das suas receitas de publicidade e dos seus investimentos. Essa é a tendência geral nos países industrializados, ainda que haja oscilação nos valores.
Repita-se: o tempo em que as pessoas compravam regularmente um jornal diário em papel está a desaparecer e não vai voltar. E não vai voltar por várias razões, a principal das quais sendo o facto de que aquilo de que os jornais eram há cinquenta anos os únicos fornecedores (notícias), hoje se encontra por todo o lado, gratuitamente, cai-nos no colo mesmo quando não queremos. A notícia tornou-se ubíqua e gratuita, e o jornal de papel como produto de necessidade morreu. Hoje é possível estar extremamente bem informado sem tocar nunca num jornal de papel. Há 50 anos isso não era possível, mas há dez anos já era. O tempo mudou.
A indústria dos jornais reconhece esta verdade há anos no discurso, mas não na prática. Assim, a tendência tem sido a de, a par de um discurso "revolucionário", continuar a trabalhar como se nada de essencial tivesse mudado e como se as dificuldades que a imprensa atravessa fossem apenas conjunturais. Assim se explicam as inúmeras "reestruturações" que os jornais em papel de todo o mundo continuam a fazer, desenvolvendo por vezes excelentes produtos na esperança de encontrar a "bala mágica" que faça os leitores regressar à compra fiel dos seus títulos. Mas, por melhores que sejam as soluções encontradas, isso não vai acontecer. E não vai acontecer porque não há nenhuma razão para isso acontecer.
Durante anos, todos os gestores de jornais do mundo repetiram como papagaios que "na Internet os nossos concorrentes estão à distância de um clique" sem perceber que isso representava uma nova realidade de consumo. Os leitores de jornais não desapareceram; pelo contrário: há cada vez mais e lêem cada vez mais (incluindo os jovens). O que acontece é que se habituaram a ler um leque diversificado de títulos online e não irão trocar isso pelo regresso ao paradigma do "leitor fiel" de há 50 anos, que lia apenas um título ou dois porque os outros nem eram gratuitos nem estavam "à distância de um clique". Hoje são e estão. Por um lado, é estranho como a Web parece ter apanhado tanta gente desprevenida. Tudo o que está a acontecer aos jornais em papel foi antecipado há doze anos por inúmeros observadores em inúmeros fóruns. Mas não há pior cego que o que não quer ouvir.
Jornalista (jvm@publico.pt)

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Essa coisa chamada dignidade

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Fevereiro de 2009
Crónica 5/2009

Ser uma pessoa não é corresponder a um estereótipo de pessoa, mas ser aquele indivíduo que somos, nós, únicos

O trágico fim de Eluana Englaro trouxe de novo à discussão pública, em Itália e no mundo, a legitimidade de suspender tratamentos e alimentação e de facilitar ou acelerar a morte no caso de doentes terminais ou noutras situações-limite.
O caso de Eluana foge a alguns dos parâmetros habituais noutros casos mediáticos. Quando foi suspensa a alimentação artificial que lhe estava a ser ministrada, Eluana estava viva. Não estava em morte cerebral, nem em coma, mas num estado vegetativo de onde não poderia recuperar.
Por outro lado, também não se encontrava em sofrimento - tanto quanto se podia avaliar -, o que significa que não se pode utilizar como argumento a necessidade de "pôr fim ao seu sofrimento". Se havia sofrimento, ele poderá ter existido nas pessoas que a rodeavam, mas não é com base nesse sentimento que teríamos podido decidir a conduta correcta a adoptar.
E, no entanto, parece a muitos que a decisão de suspender a alimentação e de deixar Eluana morrer constituiu a solução mais digna, mais humana, mais compassiva.
Porquê? Porque a vida que Eluana tinha não correspondia às potencialidades que caracterizam a vida humana.
Eluana respirava, o seu coração batia e o seu corpo podia levar a cabo actos reflexos, mas a sua actividade cerebral superior tinha desaparecido, a sua consciência tinha desaparecido e não podia ser recuperada.
Eluana não "dormia" - como disse um responsável da Igreja católica - porque quem dorme tem uma actividade cerebral que pode ser intensa e pode acordar. Eluana não podia acordar nem projectar-se de forma alguma no futuro que não fosse através da continuação do seu batimento cardíaco e de outras funções mecânicas. Eluana era apenas um corpo em fase adiantada de degradação.
E uma pessoa sem consciência cujo corpo apodrece lentamente pode estar aparentemente viva, mas não é uma pessoa. Não é a isso que chamamos vida humana. Há um momento em que o seu corpo é apenas um corpo. Ou teríamos de dizer que um relógio está vivo. Esse corpo merece atenção, cuidado, mas merece também o fim.
Esse corpo já não é uma pessoa porque ser uma pessoa não é ser apenas um corpo, nem corresponder a um estereótipo de pessoa, nem ser uma qualquer pessoa, mas ser aquele indivíduo que somos, nós, únicos e insubstituíveis. E aquele corpo, se podia ser "uma pessoa" sem individualidade, para alguém que conhecesse Eluana não era certamente Eluana. Tal como já não o era para o seu pai e tal como não o seria para ela própria. Estava viva mas sem aquilo que a tornava realmente viva. Será isso tão estranho para alguém que acredita na dualidade do corpo e da alma?
A dignidade da pessoa humana provém da sua consciência e da sua liberdade, do seu livre arbítrio. Quando a consciência e o livre arbítrio desaparecem, há algo que continua a merecer um tratamento digno. Essa dignidade residual é o direito à morte digna.
Não há uma única coisa chamada dignidade. Ainda que haja um corpus comum onde a maioria das pessoas se pode rever, não é possível ditar a outrem o que é a sua dignidade. Não existe por isso alternativa senão deixar o próprio decidir o que é a sua dignidade. Quando o próprio não o pode decidir, podemos usar a regra de ouro que consiste em tentarmos imaginar o que quereríamos nós se estivéssemos naquela situação. Ou imaginar o que sentiria o próprio se acordasse por um minuto, apenas por um minuto, e pudesse escolher. E podemos ouvir os representantes da pessoa - no caso, o pai de Eluana. Qualquer coisa que não seja isso será tentar impor a nossa vontade e o nosso conceito de vida e de morte a alguém que se encontra na posição da máxima fragilidade. O que dificilmente será uma expressão da sua dignidade como pessoa.
Jornalista (jvm@publico.pt)

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Já se sabe de quem é a culpa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Fevereiro de 2009
Crónica 4/2009

Por muito pobre que seja, cada português vai poder orgulhar-se de ter ajudado a pagar alguns carros de luxo

Os responsáveis da crise financeira e económica que está a abalar o mundo, que fez desaparecer o crédito, que fez eclipsar-se o investimento e o consumo privados, que está a provocar a falência de bancos e de outras empresas em cascata, que está a lançar milhões de trabalhadores no desemprego, que está a fazer com que milhões de famílias percam as suas casas, que vai fazer aumentar de forma astronómica os encargos sociais dos Estados, que pôs em causa a liderança económica dos EUA, que faz tremer a Europa, que abala a China, os responsáveis de tudo isto foram finalmente encontrados. Os responsáveis somos nós.

Se pensava que os problemas se deviam à crise do subprime, à ganância desmedida de (muitos) banqueiros, investidores, especuladores e à desonestidade de outros tantos (muitos) banqueiros, investidores, gestores, consultores, agências de rating, entidades reguladoras e fiscais diversos, esqueça. A culpa da crise é sua (e, admito, também minha).
A hipótese começou por ser avançada timidamente mas as provas são esmagadoras e são repetidas pelos especialistas em voz cada vez mais alta. Não podemos continuar a negar. E não devemos ser cépticos pelo facto de serem analistas e propagandistas da direita que o dizem. A direita tem maior familiaridade com as coisas do dinheiro (e com o dinheiro ele próprio) e sabe do que fala. A culpa é mesmo nossa. Sua e minha.
Eles descobriram o que é que você e eu andámos a fazer nos últimos anos. Descobriram que andámos a viver acima das nossas possibilidades e que andámos a comprar... a crédito. A comprar casas com empréstimos e coisas assim. E às vezes até - não vale a pena negar - a usar os nossos cartões de crédito.
A prova que eles descobriram é que o próprio Obama, no discurso de posse, pôs o dedo na ferida e explicou que a crise se devia "ao fracasso colectivo" dos americanos que não souberam fazer as escolhas difíceis que se impunham. Obama não falou de Portugal, mas se tivesse falado teria dito que aqui (e no resto do mundo) a razão é semelhante. A culpa é nossa.
Paul Krugman - Nobel de Economia e colunista do New York Times - não concordou com Obama quanto à culpa colectiva e diz que, pelo contrário, "os americanos" não faziam a mínima ideia das falcatruas dos mercados financeiros e que as pessoas que sabiam juraram aos quatro ventos que a desregulação financeira era uma coisa boa - mas Krugman, aqui entre nós, talvez seja c-o-m-u-n-i-s-t-a e talvez não seja boa ideia acreditar nele. As suas críticas ao sistema financeiro fazem parte de uma conspiração internacional para impor a ditadura do proletariado.
Agora que os analistas têm as provas na mão temos de admitir que, se os trabalhadores da Bordalo Pinheiro, da Tyco Electronics, da Peugeot-Citroën, da Autoeuropa, da Controlinveste, da Philips, da Sonae Indústria, da Delphi e de tantas outras não tivessem vivido acima das suas possibilidades e não tivessem contraído empréstimos para comprar casas para viver, o mundo estaria melhor e eles teriam podido manter os empregos. Já sabíamos que, quando os bancos ganham dinheiro, ele vai para os bolsos dos gestores e accionistas, mas que, quando perdem dinheiro (por má gestão, desvio de fundos, fuga ao fisco), esse dinheiro se vai buscar aos bolsos dos contribuintes. Mas ficámos agora a saber que não é só o dinheiro que é preciso pagar. É preciso arcar com a culpa.
Resta-nos uma consolação. Por muito pobre que seja, cada português vai poder orgulhar-se de ter ajudado a pagar alguns carros de luxo, férias em ilhas exóticas e amantes espampanantes. É verdade que não usufruímos de nada disso, mas sempre consola. E estava dentro das nossas possibilidades. Não é tão mal visto como ter contraído um empréstimo para comprar casa, acima das nossas possibilidades.
Jornalista (jvm@publico.pt)

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Sementes de violência

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 3 de Fevereiro de 2009
Crónica 3/2009

A tortura reforça a determinação do inimigo, oferece-lhe a superioridade moral e permite-lhe engrossar as suas fileiras

W. H. Auden, num dos seus mais famosos poemas, September 1, 1939, lembra algo "que todos os miúdos aprendem na escola": "Aqueles a quem é feito mal, fazem mal por sua vez" ("Those to whom evil is done/Do evil in return").
Pode-se dizer que é uma banalidade que vemos confirmada pela experiência pessoal e por inúmeros estudos sociais, mas é uma banalidade que não está incorporada nas práticas políticas e menos ainda nas situações de conflito.
É evidente que um daqueles palestinianos cujos filhos morreram soterrados num daqueles bombardeamentos "precisos" da aviação israelita sentirá um ódio imenso e indiscriminado por tudo aquilo que possa ser associado aos autores desse crime. Da mesma maneira que um israelita cujo filho morreu num ataque bombista sentirá o mesmo ódio indiscriminado pelo outro lado. É destes ódios que se alimentam todos os conflitos, até chegar alguém que tem a coragem de parar o círculo odioso e de resistir à violência em nome do futuro. De uma forma geral, compreendemos - e esta "compreensão", que decorre da racionalidade, não tem nada de aceitação ética - que um homem ferido desta forma sem esperança se torne ele próprio um animal selvagem, mas esperamos que os estados e outras instituições consigam encarnar o melhor que há em nós, resistir à selvajaria e ter a coragem de fazer a paz. Os bombardeamentos de Gaza foram, assim, para além do mal que representaram em si, sementeiras de ódio e de anti-semitismo que irão dar origem a novas violências e tornar mais distante a paz - por promissoras que sejam as actuais negociações.
Que há muita gente que não percebe que o ódio gera ódio nota-se, nomeadamente nas críticas ou nas reticências ao facto de Obama, no segundo dia da sua presidência, ter posto fim às ordens que autorizavam o uso de tortura, como se a medida, apesar de moralmente justa, representasse um abrandamento da determinação na luta contra o terrorismo.
A oposição ao abandono da tortura ou as hesitações perante a medida são surpreendentes. Antes de mais, pela condenação moral que a tortura tem forçosamente de suscitar. Não se pode defender os direitos humanos e aceitar que se abram nesses direitos algumas excepções para alguns seres humanos, escolhidos por um qualquer poder. Por outro lado, porque a tortura - e são os próprios especialistas de informações que o dizem - é um meio ineficaz, ineficiente e pouco fiável de recolha de informações e pode ser substituído com vantagem por meios legais. Finalmente, porque o instrumento da tortura é ele próprio gerador de ódio e violência e alimenta o conflito que se pretende vencer - reforçando a determinação do inimigo, oferecendo-lhe a superioridade moral e engrossando as suas fileiras.
Um especialista militar americano, Matthew Alexander (um pseudónimo), que dirigiu uma equipa de interrogadores no Iraque, escreveu um livro sobre a questão, intitulado How to Break a Terrorist. Aí, Alexander explica como ficou convencido no Iraque de que a prática da tortura (que ele e a sua equipa se recusaram a praticar) e os abusos levados a cabo nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo foram prejudiciais aos EUA, pois facilitavam o recrutamento da Al-Qaeda e motivavam os seus combatentes. "O número de soldados americanos que morreram por causa da nossa política de tortura nunca se saberá com exactidão", escreveu Alexandre num artigo de opinião publicado em Novembro passado no Washington Post, "mas é razoável dizer que é próximo do número de vidas perdidas em 11 de Setembro de 2001".
Jornalista (jvm@publico.pt)