terça-feira, setembro 24, 2013

O cordão sanitário

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Setembro de 2013
Crónica 35/2013


Não se pode pôr em prática políticas indecentes a nível nacional e pretender ser decente ao nível local


O resultado das autárquicas não pode ser lido como uma avaliação das políticas dos partidos a nível nacional mas sim e apenas como uma avaliação da gestão autárquica e da qualidade das propostas feitas pelas organizações locais dos partidos, coligações e movimentos de cidadãos que se apresentam ao escrutínio. Certo? Errado.

É verdade que existem descarados abusos na leitura feita pelos partidos no day after das autárquicas, com todos os partidos a cantar vitória - porque tiveram mais votos, porque tiveram mais câmaras, porque tiveram mais deputados municipais, porque conquistaram uma câmara, porque perderam menos votos ou menos câmaras do que se esperava - e tudo isso vai acontecer de novo. O PSD vai dizer que o seu resultado (seja ele qual for) mostra como o povo compreende a acção do Governo e a necessidade dos sacrifícios desumanos a que Pedro Passos Coelho o tem submetido. O PS vai usar um voto a mais para cantar vitória e para garantir que o povo confia nos socialistas e em António José Seguro como uma sólida alternativa de poder. E sabemos que nenhuma das coisas será verdade.

Mas, posto isto, é um facto que, na situação a que chegámos, onde os partidos do Governo - no Governo, no Parlamento e fora dele - defendem o indefensável, vendem o país a retalho por pura subserviência ou por benefício pessoal, atraiçoam os seus compromissos eleitorais e os juramentos por sua “honra”, espezinham a Constituição e as leis em geral, humilham os pobres e escarnecem dos necessitados, incitam os jovens a abandonar precocemente o ensino, os desempregados a emigrar e os velhos a morrer por falta de tratamentos médicos, não é aceitável entregar o voto aos protagonistas desta política. Desta vez, mais do que nunca, o voto autárquico vai ter uma leitura nacional e isso será mais justo do que alguma vez foi.

Um voto tem muitas leituras e serve para muitas coisas. Ele representa uma vontade pessoal dos votantes (que nunca poderemos conhecer) mas os resultados eleitorais são submetidos também a uma leitura por parte dos partidos e dos comentadores ajudando a sedimentar a opinião pública. E é evidente que uma votação expressiva nos partidos do Governo - ainda que com perda de percentagens e de câmaras - será lida, se não como um apoio, pelo menos como um gesto de resignação perante as políticas criminosas do Governo.

E isso é algo que o povo português não pode fazer, sob pena de perder não só a pele mas também a alma.

Num país onde a venda de automóveis de luxo apresenta as maiores taxas de crescimento (a Jaguar teve um aumento de 59% nas suas vendas em Agosto) mas onde há cada vez mais famílias a recorrer a cantinas sociais para dar de comer aos filhos, não é admissível votar nos partidos que integram o Governo que impõe esta situação, ainda que se trate de uma eleição para uma Junta de Freguesia. A política que o Governo e os partidos do Governo defendem e põem em prática a nível nacional é uma política indecente, e quem defende políticas indecentes a nível nacional não pode ser decente ao nível local. Quem defende uma política de venda do país às mais ricas potências estrangeiras na esperança de receber trinta dinheiros quando sair do Governo, não pode pretender ter o interesse das populações locais no seu coração. Quem concebe e põe de pé uma política de desemprego, de descida dos salários e de pobreza crescente, não pode pretender defender uma política de pleno emprego e de desenvolvimento harmonioso e sustentável a nível local. Quem defende uma política de venda do património público mais rentável às empresas privadas, não pode pretender defender o património a nível local. Quem defende a destruição do Estado e a privatização de serviços públicos essenciais para poder transferir os lucros para os oligarcas que serve, não pode pretender querer uma Câmara centrada nas pessoas e activa na acção social. Quem é servil perante os fortes em todas as circunstâncias, não pode pretender defender os seus munícipes perante os interesses privados ou os poderes centrais. Quem pactua com a mentira e encobre cambalachos de todos os tipos, quem nomeia Relvas e Machetes e Marias Swaps, não pode pretender ter uma política de verdade e de lisura.

A avaliação do resultado das autárquicas deve ser feita à escala nacional porque há desta vez uma clara escolha ideológica entre um modelo neoliberal de destruição do estado social, representado pelo PSD e pelo seu sidekick CDS, que tem o dinheiro como único “valor” e um modelo de sociedade centrado nas pessoas.

Admito que, num ou noutro caso muito particular, haja razões para votar localmente PSD ou CDS. Mas quem o fizer deve saber que o seu voto será usado para validar a actual política. Só isso deveria chegar para evitar o gesto. Há pessoas e políticas que devem ser cuidadosamente cercadas por um cordão sanitário. (jvmalheiros@gmail.com)

domingo, setembro 22, 2013

Declaração de apoio à candidatura de Bernardino Soares à Câmara de Loures - 2013

Declaração de apoio à candidatura de Bernardino Soares (CDU) à Câmara Municipal de Loures 

Eleições Autárquicas de 29 Setembro 2013


A qualidade da gestão autárquica da CDU é reconhecida por todos, incluindo os seus adversários políticos, mas o meu apoio a esta candidatura de Bernardino Soares e o meu apelo à sua eleição como presidente da Câmara Municipal de Loures vai além da simpatia partidária.

Conheço bem Bernardino Soares e sei que ele possui todas as capacidades necessárias para dirigir o município de Loures. Como sei que os enormes problemas que Loures enfrenta exigem alguém com as suas excepcionais qualidades humanas e políticas.

Bernardino Soares tem certamente a competência, a inteligência, a capacidade de trabalho, a sensibilidade e a capacidade de diálogo que Loures exige, mas Bernardino Soares é, acima de tudo, um político de uma inquestionável integridade, que irá gerir Loures de acordo com os mais rigorosos padrões de exigência, rigor e transparência, tendo como objectivos o desenvolvimento do concelho, o bem-estar de todos os munícipes e a justiça social de que o concelho tanto carece.

A gestão de Loures foi grosseiramente negligenciada nos últimos anos e o concelho tem demasiados problemas para poder desperdiçar a oportunidade de eleger Bernardino Soares como presidente.

Sabemos que Portugal tem de mudar de rumo e que a política tem de mudar de feição.

Loures é um excelente lugar para começarmos a fazer política de uma maneira diferente. Uma política honesta, inclusiva e sustentável, ao serviço de todos, com a participação de todos, com alegria e com esperança.

José Vítor Malheiros
Setembro 2013

terça-feira, setembro 17, 2013

Os impostos são só para os outros?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Setembro de 2013
Crónica 34/2013

O objectivo das empresas com morada na Holanda é a dupla não-taxação: não pagar nem cá nem lá.

O relatório tem como título “Avoiding Tax in Times of Austerity” e como pós-título “Energias de Portugal (EDP) and the Role of the Netherlands in Tax Avoidance in Europe”, foi publicado há dias e já deu origem a várias notícias de jornal. O seu autor é a SOMO, uma organização holandesa sem fins lucrativos, dedicada ao estudo do desenvolvimento sustentável e que há quarenta anos monitoriza o funcionamento das multinacionais e o impacto da sua acção no desenvolvimento económico, no ambiente e nos direitos humanos.
O que diz o relatório? Explica como é que as grandes empresas portuguesas fogem aos impostos em Portugal criando empresas-fantasma na Holanda (mailbox companies, assim chamadas por terem pouco mais do que uma caixa de correio), fazendo passar por elas os seus fluxos financeiros, beneficiando não só das condições fiscais vantajosas que a Holanda oferece às empresas estrangeiras como conseguindo por vezes, como fez a EDP, acordos especiais com o fisco holandês que lhes garantem uma “dupla não-taxação”. 

“Dupla não taxação”? Sim. Estas empresas não pagam ou quase não pagam impostos nem cá nem lá, graças a uma hábil utilização das leis fiscais, à conivência das autoridades fiscais holandesas que ganham com o negócio das empresas-fantasmas cerca de mil milhões de euros por ano e, claro, à benevolência generalizada, em Portugal e na UE, relativamente aos abusos do grande capital.

A expressão “double non-taxation” aparece 15 vezes nas 30 páginas do relatório e é o Santo Graal do “planeamento fiscal agressivo” - o eufemismo utilizado para descrever a fuga, legal ou ilegal, aos impostos.

O relatório da SOMO não tem nenhuma novidade de fundo. Os advogados que aconselham as empresas sobre as melhores maneiras de fugir aos impostos, os activistas que combatem a mesma fuga aos impostos, os políticos e os jornalistas da área conhecem bem esta situação, que é objecto de discussão em organizações internacionais há anos. Por isso, o relatório foi objecto de algumas notícias mas não suscitou a indignação generalizada que teria sido justa. E, no entanto, esta é uma das razões principais da crise que vivemos, da desigualdade crescente das nossas sociedades, da erosão da democracia que todos sentimos. Graças aos buracos nas leis nacionais e às lacunas nas leis internacionais, as grandes empresas conseguem fugir às suas obrigações fiscais e defraudar o Estado enquanto usam as infraestruturas que os cidadãos pagam com o seu trabalho. A fuga aos impostos é o roubo por alguns do património de todos.

É por isso que é chocante a mentira que Passos Coelho gosta de repetir segundo a qual “não há dinheiro”. Não há dinheiro para a saúde ou para a educação. Não há dinheiro para pensionistas ou para desempregados. Não há dinheiro para as universidades ou para as pequenas empresas. Mas há dinheiro para compensar a fuga aos impostos das grandes empresas. Mais: os mesmos políticos que repetem que não há dinheiro são os que nunca levantam um dedo nos fóruns internacionais para combater a evasão fiscal. E os empresários que mais falam de patriotismo e que pregam que temos de trabalhar mais são os mesmos que vivem à conta dos impostos que nos roubam. Dezanove das empresas do PSI 2 têm empresas de fachada na Holanda. E o Governo adula as grandes empresas que fogem aos impostos enquanto esmifra os trabalhadores por conta de outrem. Como a famosa milionária americana Leona Helmsley (que foi presa por fuga ao fisco) o Governo acha que só os pobres é que devem pagar impostos.

A Comissão Europeia estima que o total perdido devido à fuga aos impostos é de um milhão de milhões de euros por ano. Quando se olha para o que as empresas roubam à comunidade através dos seus advogados pagos a peso de ouro e dos políticos corruptos que metem no bolso percebe-se de onde vem a dívida pública. Quando nos roubam é natural que fiquemos com um défice. Só a parte legal dessa fuga aos impostos é estimada em 150.000 milhões de euros. Mais do que o orçamento total da União Europeia.

Não há dinheiro para pagar pensões quando as grandes empresas dão o golpe do baú todos os anos, perante o sorriso seráfico de Maria Swap Albuquerque. A SOMO diz aliás a certa altura que “apenas podemos especular sobre as razões por que as autoridades fiscais portuguesas não levantam junto das autoridades fiscais holandesas” a questão da fuga aos impostos das empresas portuguesas.

Imagine por um momento que tínhamos um Governo honesto, empenhado em fazer cumprir a lei, em combater este regime de crime social tolerado. Qual seria a importância da nossa dívida? Seria possível continuar a destruir o Estado Social com o argumento da falta de dinheiro? Seria possível continuar a vender ao desbarato o património público? Não. É por isso que podemos ter a certeza de que, com este governo, a actual situação de saque legal e fuga das empresas para paraísos fiscais como a Holanda irá continuar. (jvmalheiros@gmail.com)

sábado, setembro 14, 2013

Ciência sem Comunicação de Ciência?

Por Joana Lobo Antunes, José Vítor Malheiros, Sílvia Castro, Sílvio Mendes
artigo de Opinião publicado no Público de 14 de Setembro de 2013


Nos últimos anos, o Estado Português tem investido numa área científica chamada Promoção e Administração de Ciência e Tecnologia (PACT), atribuindo 7 a 11 bolsas de doutoramento e pós-doutoramento por ano desde 2005. Esta era a única área transdisciplinar em todo o leque disponível nos concursos de bolsas individuais que a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) tem atribuído anualmente, tanto pelo perfil do painel de investigadores que fazia a avaliação das candidaturas (um matemático/divulgador científico, um especialista de Ciências de Educação e um de Ciências Sociais) como pelos percursos e projectos dos bolseiros seleccionados, que cruzam áreas de conhecimento em projectos que promovem e divulgam ciência junto de públicos-alvo tão díspares quanto os existentes na sociedade portuguesa.

Graças a essas bolsas pudemos ter ciência num grande festival de música, ciência em espectáculos de stand-up comedy, ciência em livros, ciência em documentários, ciência portuguesa na imprensa estrangeira, ciência nas redes sociais, ciência em pacotes de açúcar e em chávenas de café, ciência na televisão, rádio e jornais. Para além de encontrar formas inovadoras e apelativas de comunicar ciência, estes bolseiros também se dedicaram a avaliar o impacto das suas actividades junto dos vários públicos e a publicar os seus resultados, submetendo-os ao processo de revisão pelos pares característico da produção científica. Ou seja, estes investigadores não só fizeram comunicação de ciência como conseguiram que a comunicação de ciência de afirmasse como ciência ela mesma em Portugal, a exemplo do que sucede noutros países.

Em Maio deste ano, organizámos o 1º Congresso de Comunicação de Ciência em Portugal, que permitiu que os profissionais que se dedicam a esta área se reunissem e conhecessem o trabalho uns dos outros. O congresso reuniu mais de duzentos profissionais durante dois dias e foi surpreendente e recompensador verificar a quantidade e qualidade do trabalho que tem sido feito em Portugal. Analisando os trabalhos seleccionados, verifica-se que a fonte principal de financiamento desta área é a FCT e que cerca de metade dos trabalhos científicos provinham de bolseiros PACT.

Contudo, no preciso momento em que a comunidade se orgulha do trabalho feito e se congratula pelos objectivos atingidos, coisa rara nos dias de hoje, verificámos o desaparecimento das PACT no actual concurso de atribuição de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento da FCT,  que decorre até dia 19 de Setembro. Este ano, à semelhança do que se está a esboçar para os futuros financiamentos europeus, a comunicação e promoção da ciência deixa de ser uma área própria e passa a ser incluída no seio das restantes áreas do saber, podendo as candidaturas deste domínio ser apresentadas à área que pareça mais adequada. Fica-se assim dependente da bondade de estranhos, dependente de que o presidente de cada um dos painéis das diversas áreas científicas considere estas candidaturas suficientemente interessantes para convocar peritos externos ou de outros painéis para poder avaliar em toda a sua real dimensão a importância e potencial impacto do projecto e assim lhe atribuir uma nota, permitindo-lhe concorrer com as demais propostas.

Este procedimento suscita-nos várias reservas: a primeira, óbvia, é a dúvida de que, num contexto de redução de bolsas, um painel de avaliação decida financiar projectos de comunicação de ciência em detrimento de outros específicos da sua área, se não houver para isso uma indicação clara por parte da entidade financiadora. A segunda, provém do receio de que a eliminação da única área verdadeiramente interdisciplinar destes concursos, sem apresentar qualquer alternativa, possa significar a morte a curto prazo do que apenas agora estava a começar a dar frutos, o que seria um lamentável desperdício do investimento feito. Mais nos surpreende esta decisão depois da participação do Ministro da Educação e Ciência no Congresso de Comunicação de Ciência, há apenas quatro meses, onde, depois de referir o “progresso extraordinário” feito nesta área nos últimos anos, sublinhou a importância das actividades da comunicação para a própria ciência e tecnologia e até para a economia.

Note-se que, a acompanhar o crescimento do sector, começou também a haver oferta formativa para profissionais (e aspirantes) em comunicação de ciência: mestrados, cursos livres, cursos de verão e até um doutoramento. Para quê? Para quem? Um aumento de recursos especializados, de qualidade, que esbarra numa porta que se fecha.

As bolsas PACT têm (tinham), decerto, as suas limitações. Mas, em vez de assistirmos à sua evolução para propostas mais consistentes, como seria desejável, que dessem sequência ao reconhecimento da importância deste trabalho já feito pela tutela, constatamos o seu desaparecimento. Perante a extinção das bolsas PACT é fundamental que os profissionais da área (que têm as suas bolsas em curso, ou potenciais candidatos (que tinham já a sua candidatura preparada) percebam qual a estratégia da tutela para a comunicação de ciência, o que exige um esclarecimento público do Ministério da Educação e Ciência e da FCT e a explicitação das novas regras de candidatura inerentes a estes casos.

Está online desde 30 de Agosto um Manifesto pela Comunicação da Ciência em Portugal, de apoio à continuação das PACT, que subscrevemos.


*Membros da Comissão Organizadora do Congresso de Comunicação de Ciência - SciCom Portugal 2013


terça-feira, setembro 10, 2013

A escravatura como forma de combater o desemprego?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Setembro de 2013
Crónica 34/2013

Estágios não remunerados tornaram-se puras ferramentas de exploração e não têm justificação1. As notícias sobre o emprego em Portugal são óptimas e mostram que a retoma vem aí, como o Governo não se cansa de repetir.

Para começar, a taxa de desemprego, que se dizia que era de 17,8% em Abril, foi corrigida para 17,3% pelo Eurostat. E a taxa de Maio, depois da revisão do Eurostat, passou dos 17,6% para os 17%. Depois ainda foi corrigida dos 17,4% para os 16,7% em Junho e depois ainda desceu para os 16,5% em Julho. Com as revisões do Eurostat, Portugal passou a ser o quinto país da União Europeia com a mais alta taxa de desemprego e deixou de ser o terceiro, o que é óptimo.

Ou não será óptimo? Antes de mais, é bom ter presente que a taxa de desemprego não mede o número de pessoas sem trabalho mas o de pessoas que procuram emprego e que não o encontram. E todos sabemos que existem muitas pessoas que, devido ao seu perfil de especialização ou falta dela e outras razões (idade, género, deficiência) já desistiram de procurar emprego porque sabem que não o encontrarão. Há assim muitos que deveriam ser contabilizados como desempregados e não o são, o que significa que devemos desconfiar dos números absolutos de desempregados, certamente mais elevados do que diz o Governo. No entanto, mesmo que o cálculo seja enviesado, desde que a taxa seja calculada sempre da mesma forma ela serve pelo menos para nos mostrar se as coisas estão a piorar ou a melhorar. E, como mostra a evolução da taxa, o que interessa é que as coisas estão a melhorar, o que é óptimo.

Ou não será óptimo? Vejamos outro dado, recentemente divulgado: a evolução do número de empregos remunerados. Se fosse verdade que o desemprego está a descer, este número deveria estar a subir, mas a verdade é que não está.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), dos 4,499 milhões de empregos que existem em Portugal, neste momento apenas 3,85 milhões são remunerados, o que representa o número mais baixo desde o início de 1997. O número mais baixo dos últimos 16 anos e meio!

Nestes “trabalhadores não remunerados” (onde estão, por exemplo, familiares dos donos de pequenas empresas) há muitos desempregados que não procuram outro emprego porque não têm esperança de o encontrar - já que não é crível que alguém prefira trabalhar sem receber se tiver alternativa.

É possível que a taxa de desemprego continue a descer, já que os salários estão a sofrer uma forte degradação. Só que isso, ao contrário do que pretendem os neoliberais, não representa uma melhoria das condições de vida das pessoas ou da economia. É evidente que, se os salários continuarem a descer e os despedimentos forem cada vez mais fáceis, haverá cada vez mais empregadores dispostos a oferecer trabalho por baixos salários. A questão é a qualidade desses postos de trabalho. Portugal já tem a vergonha de ser um país onde ter um emprego não representa uma protecção contra a miséria e o que tudo indica é que o número de empregados pobres vai continuar a aumentar. O que pode coincidir com uma descida da taxa de desemprego, mas está longe de ser óptimo. Se o governo levasse a sua avante e o salário mínimo fosse eliminado (um sonho dos neoliberais) o desemprego provavelmente desceria de forma radical. Seria possível contratar trabalhadores em troca de um prato de sopa ou de um par de sapatos e haveria suficientes “empregos” para todos e muitos desesperados prontos a aceitá-los. Afinal, nas sociedades esclavagistas não havia escravos desempregados. A desvalorização do trabalho, as descidas de salários, os despedimentos, o aumento de impostos, o empobrecimento geral da sociedade têm este objectivo: reduzir os salários até ao ponto em que os trabalhadores se vejam reduzidos a uma quase escravidão. Entretanto, as televisões ir-nos-ão dando as boas notícias do Eurostat!

2. Defendi ao longo da minha vida de jornalista a realização de estágios não remunerados de jovens candidatos a jornalistas e coordenei pessoalmente muitos desses estágios.

Tratou-se sempre de situações onde tinha a absoluta convicção de que a formação que estava a dar aos estagiários era profissionalmente útil, pessoalmente enriquecedora e com um valor reconhecido pelo mercado. E parecia-me aceitável que esses estágios não fossem remunerados porque acreditava que aquilo que dávamos aos nossos formandos valia muito mais que um ordenado. Mas a verdade é que é cada vez mais raro que um estágio não remunerado seja concebido e executado como uma acção de formação séria e, na esmagadora maioria dos casos, é apenas um eufemismo para uma exploração sem-vergonha de trabalhadores jovens em busca do primeiro emprego. Muitos dos não-desempregados-não-empregados que não aparecem nas estatísticas de desemprego são estagiários explorados por empresas sem escrúpulos. Hoje penso que os estágios não remunerados se tornaram puras ferramentas de exploração e, por isso, devem acabar. Um estagiário merece pelo menos o salário mínimo. (jvmalheiros@gmail.com)

sábado, setembro 07, 2013

Swaps: a compra de lotaria como técnica de gestão financeira

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 7 de Setembro de 2013 no blog Esquerda.net (http://www.esquerda.net) incluído no dossier "O escândalo dos swaps"


A coisa mais digna de nota em todo o estranho caso dos swaps das empresas públicas não é o facto de o Governo, pela mão de Maria Luís Albuquerque, ter tentado esconder que sabia o que sabia de facto ou ter fingido que não sabia para poder acusar o governo anterior de sonegar informação. 

Também não é o facto de o governo ter decidido adiar a sua intervenção nestas empresas e deixar degradar ainda mais a sua situação financeira para poder contar com mais uma arma de arremesso contra o PS. Também não é o facto de Maria Luís Albuquerque ter levado o seu contorcionismo ético-semântico para além do que o pudor e o bom senso aconselhariam, nem o facto de a ministra ter uma noção demasiado vaga de quais são os deveres de um ministro para com o Parlamento. 
Também não é o facto de o Governo ter contratado um swapboy para secretário de Estado, nem o facto de este ter conseguido enredar-se de tal maneira nas suas diferentes versões dos factos que teve de ser sumariamente aliviado das suas responsabilidades antes que magoasse mais alguém. 
Também não é sequer o facto de estes swaps nos irem custar a todos, cidadãos-trabalhadores-contribuintes, uns milhares de milhões de euros, que se traduzirão em sacrifícios desumanos para os mais pobres (pois, infelizmente, casos com este desenlace são frequentes, como se vê na saga das PPP).

O que é mais espantoso no caso dos swaps é que as empresas públicas que os contrataram, como se tornou evidente pelas declarações dos seus vários gestores, ou não faziam ideia do que estavam a comprar (algo traduzido pelo eufemismo “produtos complexos”) ou sabiam que o que estavam a comprar era um produto de alto risco mas estavam dispostos a correr esse risco porque sabiam que esse era o preço a pagar para adiar por uns anos o momento em que a verdadeira dimensão dos problemas financeiros das suas empresas se tornaria evidente - momento esse que, se tudo corresse bem, aconteceria depois da sua saída da empresa.

O que o caso dos swaps mostra são as empresas públicas e o Estado como uma gigantesca coutada privada onde os grandes bancos entram e saem a seu bel-prazer, onde vêm caçar quando querem e como querem, onde conseguem “colocar” os seus produtos tóxicos a bom preço com um mínimo de entraves e garantia de lucros. A chave? Vender facilidades imediatas em troca de catástrofes futuras, mas que acontecerão apenas depois de os mandatos dos administradores terem terminado e depois de a legislatura ter chegado ao fim.

É evidente que pelo menos algumas destas empresas compraram algo extremamente caro, cujo custo punha em causa a sobrevivencia das suas empresas, cujo verdadeiro valor e utilidade não tinham capacidade para avaliar, mas que o compraram, apesar disso, conhecendo os riscos a que expunham o património público. Como é que isto pôde acontecer?

Uma primeira explicação tem certamente a ver com a desmesurada força negocial dos bancos, a quem esta história prova que é difícil dizer que não. Não interessa quão tóxicos são os produtos em venda: um banco de investimento conseguirá sempre encontrar clientes para eles no sector público, para que nós lhes paguemos os seus lucros. Que misteriosos poderes de persuasão terão os bancos sobre os gestores e políticos é algo que apenas podemos tentar imaginar.

Uma segunda explicação tem a ver com o carácter aleatório e volátil da especulação financeira, que está no cerne da cultura económica de hoje, totalmente desligada de qualquer ideia de produção de riqueza real. Há uma geração atrás seria impensável que um gestor comprasse um produto financeiro que não percebesse como funciona ou cuja evolução não tivesse quaisquer ferramentas para prever. Hoje, no ambiente de política de casino em que o mundo vive, isso tornou-se normal. Mais: é assim que se faz dinheiro a sério. É assim que brincam os meninos grandes. Por isso, nada mais natural que comprar bilhetes de lotaria para tentar cobrir as perdas que podem ocorrer numa empresa. As probabilidades estão contra eles? É verdade, mas podem sempre dizer que a intenção era boa e que, se lhes tivesse saído a sorte grande,…

Só que os cidadãos, nós, os accionistas destas empresas (digamos “accionistas” porque, no mundo da finança, conceitos como “cidadão” ou “pessoa” possuem uma cotação insignificante) temos o direito de exigir racionalidade e transparência na gestão das nossas empresas. Não basta dizer que “as outras empresas também fazem” ou que o banco que apresentou a proposta tem uma “reputação irrepreensível” no mercado. É imperioso que um gestor, quando toma uma decisão destas, tenha uma boa razão, compreensível, explicável, honrosa e responsável para a defender. E é igualmente imperioso que o Estado defina um quadro de actuação claro para as empresas públicas, que defina claramente os seus objectivos e responsabilidades, que lhes forneça os meios de trabalhar e não as coloque sob uma pressão que é apenas capaz de gerar contas marteladas e decisões irracionais, para exclusivo benefício dos bancos.

A não ser que o benefício dos bancos, ainda que seja à custa da destruição dos bens públicos, seja o único objectivo da operação.

terça-feira, setembro 03, 2013

Um governo de traição nacional

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Setembro de 2013
Crónica 33/2013

O governo de Passos Coelho é ele próprio uma caricatura, um excesso de mentiras e pouca-vergonha

A história e a política estão cheias de grandes tiradas, de declarações que mudaram o rumo do mundo e que inflamaram o desejo e o sonho de milhões durante décadas ou séculos. “Obviamente, demito-o!”. “De l’audace, toujours de l’audace, encore de l’audace!”. “We shall fight on the beaches…”. “Os proletários não têm nada a perder senão as suas grilhetas!”…
E há também frases aparentemente banais que, por uma conjugação de circunstâncias, conseguem mudar o curso dos acontecimentos. O fim do senador republicano americano Joseph McCarthy foi ditado quando, durante um das famosas audições no Senado, o advogado do Exército dos EUA Joseph Nye Welch lhe perguntou simplesmente, com um ar de profundo desdém, “Have you no sense of decency?” Uma pergunta que bastou para os americanos - havia 20 milhões a seguir a transmissão televisiva em directo - adquirirem a consciência de que aquele arruaceiro pomposo era apenas um pequeno traste à procura de poder. O homem não merecia senão desprezo.
O que é espantoso é como, na actual situação política portuguesa, há tão pouca gente a fazer a mesma pergunta a todos e a cada um dos membros do governo português, de cada vez que abrem a boca, quando é tão evidente que essa gente é apenas, como McCarthy, um bando sem escrúpulo, sem noção de decência, sem respeito pela lei, sem apego à democracia e com um profundo desprezo pela vida dos cidadãos e uma subserviência criminosa em relação aos interesses financeiros internacionais.
Há decência nos swaps? Na destruição da escola pública? Na humilhação dos pobres? Na destruição da Universidade? No aumento do desemprego a que chamam flexibilização? Na destruição da administração pública a que chamam requalificação?
Não têm o sentido da decência? Não. Não têm, não querem ter e têm raiva a quem tem.
Parece uma caricatura? Parece. Mas isso é apenas porque o governo de Passos Coelho é de facto uma caricatura, um excesso de mentiras e pouca-vergonha, uma organização de rapina que governa sem qualquer escrúpulo. Aquele conjunto é de facto caricatural. Portas é caricatural. Mota Soares é caricatural. Maduro é caricatural. Passos Coelho é caricatural como todas as pessoas sem escrúpulos são caricaturais. Porque é que as enormidades que diz não são denunciadas como as enormidades que são? Porque é que se acha aceitável este estilo de títere tiranete? Porque há uma reserva de boa-vontade nas pessoas que lhes diz que as coisas talvez não sejam tão más como parecem e que as pessoas podem não ser tão desprovidas de princípios morais e de sentimentos como parecem na televisão. Há sempre pessoas que levam a sua magnanimidade até à estultícia. E os Passos Coelhos deste mundo contam com isso. Com isso, com os crédulos que podem convencer a continuar a votar em si e com os moluscos que os servem no Parlamento.
É assim que este governo fora-da-lei pode continuar a roubar aos milhares de milhões os portugueses, roubando-lhes os bolsos, os empregos, as pensões, os ordenados, os subsídios, os serviços públicos que eles pagam, o património que construíram, as empresas públicas que são de todos, destruindo o progresso que se alcançou nas últimas décadas apenas para poder enriquecer ainda mais os muito ricos e para poder aniquilar os resquícios de soberania que possam teimar em existir, espalhando a miséria e reduzindo os portugueses à inanição e à subserviência.
O que temos é um governo não de salvação mas de traição nacional. De traição às suas promessas eleitorais, às suas juras de tomada de posse, às instituições democráticas e aos compromissos da civilização que todos abraçámos, de traição ao povo, espremido e vendido barato para enriquecer os credores.
E, no entanto, os portugueses não se movem. Ou quase não se movem.
As acções do bando de malfeitores que se apoderou do governo com falsas promessas parece tão inconcebível que parece impossível que alguém as leve a cabo sem que haja fortíssimos razões de interesse público, ainda secretas. Imagina-se que deve haver aí alguma racionalidade. Talvez o que o governo diz da austeridade seja verdade. Talvez seja justo matar os pobres à fome para pagar aos bancos.
Custa a creditar que alguém possa ser tão desonesto, tão insensível, com um tal ódio aos mais fracos. Pensamos que isto não é possível, que a lei nos protege, que a filosofia nos protege, que a história nos protege, que a decência que temos o direito de esperar dos outros nos protege
Mas a história está cheia de exemplos destes. Durante anos ninguém acreditou que Hitler quisesse exterminar os judeus, ninguém acreditou que Pol Pot tivesse dizimado um quarto da população do Cambodja. E na sombra destes grandes ditadores sempre houve pequenos velhacos, pequenos capatazes como Passos Coelho ou Mota Soares que fizeram o trabalho sujo apenas para terem as migalhas da mesa do poder. Há racionalidade na acção do governo, mas é a racionalidade do saque, do roubo descarado, da tirania da oligarquia. A decência está fora da equação. (jvmalheiros@gmail.com)