por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Abril de 2010
Crónica 17/2010
Crónica 17/2010
O PSD preferiu dar um tiro no pé a correr o risco de defender o Parlamento dos ataques populistas
O conselho de administração da Assembleia da República aprovou finalmente na semana passada o pagamento das viagens semanais da deputada Inês de Medeiros a Paris – a cidade onde reside, apesar de ter sido eleita pelo círculo eleitoral de Lisboa. A decisão – tomada depois de o conselho de administração e o presidente do Parlamento terem empurrado um para o outro a decisão e depois de pedido um parecer jurídico – não é mais que a aplicação do critério utilizado na Assembleia da República relativamente aos deputados que residem nas regiões autónomas e a quem o Parlamento também paga viagens semanais à sua zona de residência.
A decisão é razoável e, o que é igualmente importante, resulta da aplicação de um critério – o que significa que respeita a indispensável equidade no tratamento dos deputados.
A decisão constitui um caso “único”, mas não é uma “excepção” a qualquer regra.
Apesar disso, a decisão foi criticada pelo PSD e foi recebida com um coro de violentos protestos na webosfera, com os habituais comentários sobre a desonestidade e o parasitismo dos deputados. Um inquérito on-line feito neste jornal dava ontem 7918 votos contra o pagamento a Inês de Medeiros (93,7 %) e 536 a favor (6,3%).
O que é surpreendente é como, perante o coro de protestos quase unânimes do género “só lá estão para nos roubar”, não haja ninguém que apareça para defender a honra do convento onde hoje funciona o Parlamento.
Como é surpreendente o evidente mal-estar do próprio presidente do Parlamento perante o desenrolar do caso.
Como é surpreendente o comportamento do respeitável e ministeriável PSD que, por razões de politiquice partidária, preferiu dar um tiro no seu pé parlamentar (o seu pé esquerdo) a correr o risco de defender a instituição dos ataques populistas de que foi alvo.
É evidente que, perante uma situação inédita como foi esta (em geral os eleitos pelo círculo X moram no círculo X ou no Y, ali ao lado, e não noutro país) se deve tentar encontrar e aplicar o mesmo critério usado em situações semelhantes. Foi isso que foi feito. É igualmente evidente que, se se considera que as regras actuais são omissas num ponto importante (como agora aconteceu) se deve colmatar essa lacuna para evitar repetições de uma situação que se considera indesejável. O Parlamento deve assim clarifi car as suas regras e pode passar a considerar expressamente que os deputados vivem sempre nos círculos pelos quais foram eleitos, mas essa medida apenas pode entrar em vigor após as próximas eleições, já que as regras do jogo não se devem alterar a meio.
Seria refrescante que alguém viesse dizer em público que as viagens de Inês de Medeiros não representam nada em termos fi nanceiros e que são de facto irrelevantes.
Porque é verdade. Como o seria se alguém viesse dizer convictamente que tem de haver regras e equidade e que sem isso não pode haver justiça.
Como o seria também que alguém viesse dizer em voz alta que os deputados ganham pouco, que as suas ajudas de custo são justas e que o que nos devia preocupar não são os seus salários elevados mas a sua lealdade à causa pública, a qualidade do seu trabalho dentro e fora do Parlamento, a sua independência de interesses privados, se o seu comportamento honra o compromisso que assumiram para connosco de defender aquilo que acreditam ser o melhor para a República. Do que precisamos é de melhores deputados e não de deputados mais baratos.
Defender este último objectivo é garantir que eles serão de facto maus – não só porque ganham pouco, mas porque a poupança na sua remuneração corresponde a uma menorização da sua actividade, ao não reconhecimento de dignidade ao seu estatuto.
Quando o Parlamento tem vergonha a democracia está em risco. Porque ou tem razões para isso, o que lamentável, ou não as tem mas falta-lhe a coragem para defender as opções menos populares que tem de tomar. (jvmalheiros@gmail.com)