por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Maio de 2013
Crónica 20/2013
E se a PGR fizesse uma lista dos epítetos que podem ser usados contra Cavaco Silva?
O que se pretende dizer quando, no âmbito de um debate político, se diz que Cavaco Silva é um palhaço? Aquilo que se quer dizer é que Cavaco Silva não deve ser levado a sério e que, portanto, aqueles que o fazem cometem um enorme erro de julgamento. Ou pode querer-se dizer que Cavaco Silva não pode ser levado a sério e que, portanto, ninguém (por muito que tente) consegue considerar seriamente as suas análises, declarações, propostas e decisões, seja qual for a solenidade do ambiente em que elas têm lugar. Em ambos os casos, o que se pretende transmitir é um julgamento político da capacidade e da imagem de Cavaco Silva.
A expressão tem uma carga depreciativa? Sem dúvida. Quem a profere diz claramente que Cavaco Silva ou não tem as competências e as faculdades que justificariam que o levassem a sério ou que, tendo-as ou não, possui uma reputação de tal forma degradada que não possui condições políticas para exercer o seu magistério.
Trata-se de uma expressão que pretende apenas atingir o homem que, por acidente do destino, ocupa a Presidência da República (como aconteceria com um insulto comum como seria chamar-lhe “camelo”, por hipótese)? Ou trata-se, pelo contrário, de uma expressão que possui um conteúdo preciso, crítico da actuação política do presidente? Parece evidente que estamos perante a segunda hipótese.
Será que a expressão deveria ter sido substituída por outra menos agressiva mas de valor equivalente, como seria, por hipótese, a expressão “comediante”? Será que o cidadão Cavaco Silva e/ou o Presidente da República se sentiriam menos ofendidos na sua honra se a frase proferida tivesse sido “Nós já temos um comediante. Chama-se Cavaco Silva.”? Será possível que o que foi considerado ofensivo na expressão pelo Presidente da República tenha sido o carácter popular da expressão “palhaço” e que uma expressão com raízes mais eruditas pudesse ter sido julgada mais civil? É provável, mas parece evidente que o direito não deve avaliar o conteúdo de um epíteto do ponto de vista de um preconceito de classe mas sim segundo o seu valor semântico.
Esmiucemos então a semântica. Há algo de indigno que a expressão de palhaço sugira? Há. Não devido à profissão dos palhaços em si ou às actividades circenses em geral, apreciadas e admiradas por todos, mas por razões que têm a ver com a impropriedade. Um palhaço tem o seu lugar num circo, num palco ou numa festa, mas a sua presença noutro contexto é vista como inadequada. Um palhaço que actua como palhaço está revestido da dignidade e da aura do espectáculo, do humor, do riso, da ironia, da magia, da infância. Mas a incongruência, a leviandade ou a gaucherie que nos fazem rir num palhaço chocam-nos num Presidente da República que nos lembra um palhaço. Um PR que nos lembra um palhaço está ferido de indignidade.
Dizer que Cavaco Silva é um palhaço é dizer que ele não possui dignidade para o cargo que ocupa. Não é de forma alguma uma “ofensa à honra do Presidente da República”, como a Presidência da República e a Procuradoria-Geral da República parecem ter entendido, mas uma defesa da honra da instituição Presidente da República. É dizer que, em nome da honra da Presidência da República, Cavaco não devia estar ali.
Se a PGR considerar que dizer que alguém não tem dignidade para ocupar o cargo de Presidente da República é ofender a honra do Presidente da República estará a pôr em causa o coração do debate democrático, pois estará a dizer que existe um lugar na hierarquia do Estado que não pode ser sujeito à crítica ou a sátira. E, se isso acontecer, será porque já não vivemos em democracia.
O Presidente da República deve estar protegido pelas mesmas leis que protegem o bom nome de qualquer cidadão. Mas não tem sentido que esteja protegido de forma particular, pois essa protecção particular seria uma limitação inaceitável do debate público e da crítica política, que por vezes é agressiva e desagradável, mas que constitui a seiva da liberdade e da procura da verdade.
É curioso ver, a este propósito, como a Presidência da República e a Procuradoria-Geral da República actuam de forma selectiva. Há uns dias, Marcelo Rebelo de Sousa, pitonisa da direita política, lançou esta tirada: “Cavaco é herbívoro, não é carnívoro. Ele come erva, não come carne." Não consta que a PR ou a PGR tenham desencadeado algum inquérito. Será admissível chamar herbívoro a Cavaco Silva mas não palhaço? Será aceitável dizer que Cavaco come erva mas não que é um palhaço? O critério não é claro. Talvez a PGR devesse fazer uma lista dos epítetos que considera admissíveis e não admissíveis. Ou o peso da justiça dependerá da posição no espectro político por parte de quem profere estas apóstrofes? E será possível chamar herbívoro a Cavaco Silva em geral mas não em particular, escolhendo uma espécie de herbívoro definida? Será admissível dizer que Cavaco Silva é um rinoceronte ou a PGR considerará isso uma afronta à honra do PR? Será admissível dizer que é um boi, o primeiro exemplo de herbívoro oferecido na Wikipédia? Tantas perguntas... (jvmalheiros@gmail.com)