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terça-feira, abril 21, 2015

José Mariano Gago, o sonho de um país moderno

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2015
Crónica 15/2015


Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.


José Mariano Gago pertencia a um grupo muito restrito de pessoas, que pode ser contado pelos dedos de uma só mão, a quem nunca ouvi fazer uma intervenção pública sem que dissessem algo substantivo e interessante, que nos obrigava a reflectir. Nunca o ouvi fazer um daqueles vácuos discursos de circunstância, cheios de pompa e de banalidades, a que os governantes habitualmente se dedicam, deliciados por serem o centro das atenções. José Mariano Gago estava na política por razões substantivas, porque tinha uma ideia para Portugal e uma estratégia para a pôr em prática, porque tinha a ambição de ajudar a construir uma sociedade europeia cosmopolita de bem-estar para todos, por paixão e por dever de cidadania, e nunca para agradar a algum poder ou servir um partido, para favorecer algum interesse particular ou para seguir um breviário. Era aí que colocava o seu orgulho, nesse trabalho que continuou a preencher até ao último dia da sua vida as páginas da sua agenda, e não nas fúteis disputas territoriais, nas prestações de vassalagem e afirmações de vaidade que são a parte central do quotidiano de tantos políticos. Essa é uma das principais diferenças entre Gago e outros governantes, conhecida ou intuída por todos, e é uma das razões do respeito que granjeou em todos os sectores da vida nacional. Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.

Acima de tudo, José Mariano Gago foi um político capaz de sonhar e com uma enorme ambição para o seu país. Não apenas para a ciência, de que falamos sempre quando falamos dele, mas para todos os homens e mulheres do seu país. Nunca foi um mero gestor preocupado apenas em alterar uns indicadores na folha de Excel, mas sempre um verdadeiro político e um verdadeiro democrata, preocupado com as questões essenciais, com as pessoas, com o reforço da democracia, com a promoção da cultura e da participação dos cidadãos, com um desenvolvimento justo e harmonioso de que todos pudessem beneficiar. Para ele, governar sempre foi melhorar as condições de vida das pessoas, sem fronteiras e sem barreiras de classe.

A história irá reconhecer, como os especialistas de política científica nacionais e estrangeiros reconhecem há muito, como todos nós reconhecemos, o trabalho que, sob a sua orientação (na presidência da JNICT e como ministro de quatro governos), foi realizado no crescimento e na modernização do sistema científico e tecnológico português.

Mantive com José Mariano Gago durante mais de trinta anos uma relação de amizade e, na sexta-feira, quando soube da sua morte, inesperada apesar da sua grave situação clínica, ao recordar muitas das discussões que tivemos sobre política científica, constatei com alguma surpresa que não me lembrava de uma única ocasião na qual tivéssemos estado de acordo.

Discordámos sobre a questão da reforma dos Laboratórios de Estado, sobre a criação dos Laboratórios Associados, sobre a banalização do modelo de instituições de investigação públicas de direito privado, sobre a política de emprego científico, sobre os programas mobilizadores, sobre as propinas universitárias, sobre os programas de apoio à investigação nas empresas e até, entre muitas outras, sobre a criação do próprio LIP, o laboratório que dirigia. A explicação para tanta discordância é fácil: sobre as matérias sobre as quais estávamos de acordo não discutíamos e elas constituíam uma base considerável de consenso.

Algumas das discordâncias tinham a ver com considerações tácticas. José Mariano Gago era um pragmático que gostava de escolher as suas batalhas muito selectivamente e não se lançava em guerras que considerava perdidas à partida para concentrar esforços naquilo que sabia que podia mudar (chamava-me “lírico” quando eu defendia posições mais arrojadas). Outras discordâncias eram mais profundas. Mas, apesar delas, sempre considerei evidente que as suas políticas criaram um verdadeiro sistema científico e tecnológico a partir de algo praticamente inexistente, criaram uma verdadeira comunidade científica multifacetada e vibrante, criaram uma cultura exigente de avaliação da investigação, colocaram a investigação científica na agenda política e afirmaram-na como factor de desenvolvimento económico e cultural. Isto para além de terem começado a destruir as bafientas barreiras entre “investigação fundamental” e “investigação aplicada” (que agora voltam a aparecer no discurso do governo), entre “ciências duras“ e “ciências sociais”, entre “ciência” e “cultura” e, o que não é menor, de terem promovido o ensino experimental das ciências, a cultura científica e o envolvimento da população na ciência. Não é pouco para um país que se encontrava na indigência científica há trinta anos.

Outra das fronteiras que Gago sempre se esforçou por destruir foi a barreira entre o “saber” e o “fazer”, e entre trabalho intelectual e trabalho manual, que considerava uma razão cultural central no atraso português.

Uma das vertentes mais importantes da acção de JMG em Portugal foi a internacionalização da ciência portuguesa, que seria não um simples objectivo mas um eixo central da sua estratégia. Mas não a internacionalização bacoca de que tanto ouvimos falar noutros sectores, que consiste em imitar modelos “lá de fora” para fazer as coisas cá dentro e em tentar ser “o bom aluno” que segue as orientações que vêm do estrangeiro, mas uma internacionalização adulta e responsável, que consistiu em inserir a investigação portuguesa nas redes de investigação europeia e mundial, conquistando uma participação de parte inteira nos debates e nos processos de decisão internacionais. Esta atitude de verdadeira parceria e sem complexos de inferioridade foi sempre uma marca da sua política e Portugal conquistou, em todos os fóruns onde Gago participou ao longo dos anos, uma reputação ímpar, de visão e arrojo, de competência e perseverança. Para Gago, a ciência não era apenas a investigação feita nos laboratórios, mas uma ferramenta capaz de estruturar as relações internacionais em prol do desenvolvimento e da paz, do entendimento e da inclusão, uma ferramenta de democracia - como era evidente no CERN que, com as suas equipas multinacionais, foi para ele não apenas uma escola científica mas uma escola política. As relações internacionais eram, aliás, um dos seus terrenos de predilecção e sempre o considerei um diplomata na alma, que exultava à aproximação de uma mesa de negociação. Europeísta convicto, via a União Europeia, apesar das suas insuficiências, como a mais estimulante das experiências políticas e acreditava que a ciência era uma área central na promoção da identidade e da cooperação europeia.
Diz-se sempre, quando alguém morre, que vai fazer falta e que muito havia a esperar dele. No caso de Gago é verdade. Eu esperava muito dele, até na sua velhice, quando poderia estar menos enredado pelas solicitações do quotidiano. Penso que Portugal precisava dele a trabalhar até aos 80 anos. E eu teria gostado de poder continuar a discordar dele e de o ouvir chamar-me lírico outra vez.



sábado, abril 18, 2015

Uma revolução e uma festa - Comentário na morte de José Mariano Gago

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2015

Quando se escrever a história do Portugal Democrático, haverá uma página sobre a qual não haverá dúvidas: aquela onde se irá contar a revolução e a festa que tiveram lugar no nosso país no domínio da investigação e da cultura científica.

Esta história tem muitos actores mas um só protagonista: José Mariano Gago, que concebeu, negociou e pôs em prática essa estratégia, trabalhando com todos os parceiros de boa vontade, em Portugal e no estrangeiro, ao longo de diferentes governos e de muitos anos, e que transformou um sistema científico quase inexistente numa rede moderna capaz de se renovar e crescer, ao serviço do desenvolvimento, da cultura e da democracia. Que desapareça num momento onde a sua herança está a ser meticulosamente desmantelada é uma ironia da história e uma chamada de atenção para todos nós.

Texto no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/reaccoes-a-morte-de-mariano-gago-1692794

terça-feira, dezembro 23, 2014

O presente envenenado de Crato, Parreira e Seabra

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Dezembro de 2014
Crónica 56/2014
A poda defendida por António Coutinho e executada pela troika da ciência foi na realidade uma operação selvagem de abate de árvores.

O ministro Nuno Crato, a secretária de Estado Leonor Parreira e o presidente da Fundacão para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Miguel Seabra, concluíram ontem uma das empreitadas principais do seu consulado: o chamado “processo de avaliação” das unidades de investigação científica portuguesas.

O processo termina mal, como começou, e consagra, como se esperava, uma hierarquia de unidades de investigação onde cerca de metade é na prática condenada à morte, pois deixa de receber financiamento, onde um quinto dos centros recebe um financiamento considerável e onde os restantes receberão um financiamento suficiente para manterem as suas actividades.

O princípio utilizado nesta operação de avaliação, executada com inúmeros erros e insuficiências pela European Science Foundation, contratada para o efeito pela FCT, foi o princípio da “poda”, cujo principal ideólogo foi o investigador António Coutinho, coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. O princípio da poda enuncia-se brevemente: de forma a promover a excelência, o sistema deve não só premiar as unidades que sejam consideradas “excelentes”, mas destruir as unidades que sejam julgadas “insuficientes”, apenas “razoáveis” ou que sejam mesmo meramente “boas”. Apenas a excelência merece florescer e tudo o resto deve ser cortado.

O princípio merece críticas, para resistir a dizer que se trata de uma pura idiotice. Alguém conhece alguma organização que pudesse resistir e continuar a funcionar se se destruíssem todas as unidades que a compõem com excepção das consideradas excelentes? O princípio da destruição das unidades não excelentes recusa-se a compreender que um sistema científico é um sistema ecológico, com múltiplas interacções e alimentações entre os seus componentes, e não um conjunto de unidades isoladas. Como se recusa a compreender algo ainda mais simples que é o facto de, numa unidade excelente, existirem elementos que não são excelentes e, inversamente, numa unidade de qualidade média, existirem elementos excelentes. Como se recusa a compreender que uma unidade de investigação é um organismo com uma história, que não pode ser destruído e usado como peças sobressalentes sem uma enorme perda do investimento feito.

A poda defendida por António Coutinho e executada pela troika da ciência foi na realidade uma operação selvagem de abate de árvores que deram no passado frutos de grande qualidade e que poderiam continuar ou voltar a dá-los, em vez da cuidadosa e prudente operação de selecção de ramos que uma verdadeira poda deve ser.

A ideia da poda esquece outra coisa, que Nuno Crato, Leonor Parreira e Miguel Seabra não poderiam esquecer se encarassem com a devida seriedade o papel que a sociedade portuguesa lhes confiou: é da responsabilidade dos dirigentes gerir o sistema e não apenas castigar e premiar as unidades de investigação como um mestre-escola do antigamente. O trabalho de coordenação da investigação a nível nacional, que deve ser levado a cabo pela FCT, exige destes dirigentes que avaliem (não em operações de comandos mas de forma contínua) o trabalho produzido nas várias unidades de investigação e o reorientem de forma dialogada, discutida e transparente sempre que necessário. A operação-catástrofe levada a cabo por uma European Science Foundation claramente incompetente na área da avaliação de unidades de investigação é a prova da renúncia de Crato, Parreira e Seabra a levar a cabo as tarefas que lhes foram confiadas e que juraram “cumprir com lealdade”.

Mas esta avaliação foi um desastre por diversas razões e não apenas pela orientação estratégica que lhe foi dada. Foi evidentemente uma avaliação desonesta e isso é patente não devido aos múltiplos erros que foram cometidos pelos avaliadores (muitos deles erros factuais de leitura, de cópia de dados ou de interpretação) mas devido à recusa dos avaliadores em corrigir muitos desses erros quando eles lhos foram apontados. E foi evidentemente uma avaliação desonesta porque existiram quotas impostas aos avaliadores para cada classificação, quotas cuja existência Miguel Seabra continuou a negar com um descaramento inaudito, mesmo quando a mentira era insustentável perante um documento escrito.

A última habilidade de Miguel Seabra consistiu nesta libertação dos dados finais da avaliação nas vésperas de Natal, apostando na dificuldade de mobilização de quem queira contestar os resultados. Também isto é pouco recomendável e nada tem a ver com a transparência, com a lisura e com a disponibilidade para a discussão que se espera de um cientista ou, simplesmente, de uma qualquer pessoa honesta.

O processo levado a cabo por Crato, Parreira e Seabra vai ter de ser revisto e reavaliado pela nova equipa que irá dirigir a investigação portuguesa depois das próximas eleições. Mas muito do mal feito será dificilmente reparável. Cada ano de gestão desta equipa de demolição da ciência levará muito mais de um ano a reparar.

O presente de Natal que Crato, Parreira e Seabra nos deixam é um presente envenenado e vai ser difícil convencer de novo os jovens cientistas talentosos de que Portugal é um país com futuro.



quarta-feira, outubro 29, 2014

Investigação continua entregue aos bichos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Outubro de 2014
Crónica 48/2014

Não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT

1. A avaliação dos centros de investigação portugueses que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) encomendou à European Science Foundation (ESF), e que se poderá traduzir no corte do financiamento e consequente morte para metade destes centros, arrisca-se a ficar na história de ambas as instituições como o momento menos honroso das suas vidas.

Apesar das inúmeras falhas detectadas, documentadas e denunciadas no processo, apesar das irregularidades processuais conhecidas e noticiadas, apesar da descarada batota de tentar impor à partida um resultado com cinquenta por cento de chumbos a essa avaliação e da mais descarada ainda tentativa de negar essa evidência apesar de ela constar de um contrato assinado, tanto a FCT como a ESF continuam a tentar encobrir o sol com uma peneira, tentando dar a entender que quem critica a avaliação o faz apenas porque viu os seus interesses beliscados e não devido ao monte de erros, falhas, irregularidades e batotas do processo.

Na semana passada, ficámos a conhecer mais uma peça do enredo, com a publicação de uma carta do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) dirigida ao ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, cuja acção política neste e noutros domínios se tem resumido a fazer de morto e esperar que o tempo passe.

O CRUP, numa posição consensual assumida pelos seus quinze reitores, escreveu que já não lhe era possível dar o “benefício da dúvida” ao actual processo de avaliação e declarava recusar "a morte anunciada de quase 50% do tecido científico português". Note-se que o CRUP e os reitores têm sido de uma enorme benevolência para com o Governo, apesar dos cortes que têm afectado e vão continuar a afectar a ciência e o ensino superior. É por isso significativo que tenham finalmente perdido a paciência. O documento do CRUP mostra que, mesmo para aqueles que aceitam a retórica da austeridade e estão sempre dispostos a fazer um jeitinho ao poder, a situação se tornou insustentável. “Para que um sistema de avaliação seja capaz de promover a excelência tem de, ele próprio, ser pelo menos excelente, se não excepcional. Não é o caso.”, diz a carta. Os reitores afirmam ainda que os painéis de avaliação, mesmo quando confrontados com os "inúmeros erros de avaliação, muitos inteiramente factuais", se "desculparam de diversas formas para não retirar daí consequências, mantendo avaliações inexplicáveis" e concluem que o processo de avaliação se traduziu num "falhanço pleno" e numa "oportunidade perdida". A tomada de posição do CRUP é tardia, mas não podia ser mais clara.

O que irá fazer o ministro? Corrigir ou anular o processo de avaliação? Provavelmente vai fingir que não leu ou leu mas não percebeu ou telefonar a este ou aquele reitor para deitar água na fervura e pedir-lhes ainda mais um jeitinho, mas a verdade é que já não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT, nem a agenda de estrangulamento da investigação do ministro Nuno Crato e da secretária de Estado Leonor Parreira.

2. Na semana passada também se conheceu uma outra carta, enviada pela ESF à revista Nature, na sequência de uma primeira carta que a mesma ESF tinha dirigido a uma investigadora espanhola que aí tinha publicado um artigo de opinião denunciando falhas no processo de avaliação dos centros de investigação portugueses. Na primeira carta, a ESF ameaçava a autora do artigo de um processo judicial se não mudasse de opinião e se não se retractasse, o que suscitou uma avalanche de críticas contra a ESF por toda a Europa. Desta vez, a ESF decidiu enviar uma mensagem revista e corrigida, para tentar fazer esquecer o tom rufia da primeira, mas volta a considerar que as referências a erros no processo de avaliação "não são sustentadas". É aborrecido que o diga porque, quando uma organização quer provar o seu rigor, deve evitar mentir com este descaramento. De facto, a ESF recebeu inúmeras críticas, correcções e queixas feitas directamente pelos próprios centros, seguindo canais oficiais, no âmbito do processo de contestação e revisão das avaliações. As principais críticas podem ainda ser lidas no blog Rerum Natura, que inclui mesmo posts em inglês, que a ESF poderia (e deveria) ter consultado caso quisesse honestamente informar-se das críticas feitas ao seu trabalho.

Quando a ESF nega a existência evidente dessa sustentação às críticas de que foi objecto, apenas nos conforta na convicção de que foi a organização errada para este trabalho e de que a sua idoneidade está muito abaixo do nível exigido a uma organização europeia com a sua pretensão. Que os dirigentes da FCT não o vejam é mais uma prova lamentável da sua baixa exigência e de que, no processo de avaliação realizado, apenas interessava chegar a um valor pré-definido, independentemente dos métodos usados.

jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1

Nota 1 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - Na carta da 
European Science Foundation (ESF) à Nature que cito na minha crónica de hoje no Público (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1), a primeira refere, de forma algo críptica, a existência de "interferência directa com pares e membros dos painéis", o que condena. Parece que a ESF se queixa (sem o dizer claramente, o que seria mais honesto, mas não podemos ser demasiado exigentes) de que investigadores avaliados tentaram pressionar avaliadores. Se isso aconteceu, é evidente que se trata de algo inaceitável. Mas o que é igualmente inaceitável é que a ESF se queixe da pressão dos índios mas tenha aceite sem rebuço a pressão dos chefes, com a imposição dos 50% de chumbos que o contrato com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)impõe ou que tenha ela própria obrigado avaliadores a baixar notas para satisfazer os desejos do seu cliente. Como é inaceitável que tenha, à vista de todos, ameaçado a investigadora espanhola Amaya Moro-Martin por crime de opinião.
Que a FCT só queira financiar metade dos centros portugueses é uma questão em relação à qual a ESF pode dizer que nada tem a ver. Mas que tenha aceitado martelar as notas para que metade dos centros parecessem fracos e pudessem assim mais facilmente sustentar a escolha política de Nuno Crato, de Leonor Parreira e da FCT é inaceitável.

Nota 2
 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - No meio deste Carnaval, continuamos à espera de que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) se digne divulgar as famosas adendas ao contrato que assinou com a European Science Foundation (ESF) e que constituem a base legal da avaliação realizada pela ESF. A FCT diz que ainda não estão assinadas, mas essa justificação é certamente um lapso, porque o Estado não poderia usar um serviço que lhe é facultado por um fornecedor sem uma cobertura contratual. 




jvmalheiros@gmail.com

quarta-feira, julho 30, 2014

Questionário sobre Diplomacia Científica

Respostas de José Vítor Malheiros ao Questionário sobre Diplomacia Científica elaborado por Sónia Arroz na sequência do seu trabalho de dissertação de mestrado, “Diplomacia Cientifica: justificações, abordagens e ferramentas de uma especialização profissional emergente”. Essa dissertação foi realizada no âmbito do Mestrado de Economia e Gestão de Ciência Tecnologia e Inovação do Instituto Superior de Economia e Gestão – ISEG, no período 2012-2014.

Julho 2014



A Diplomacia Científica é uma junção de duas palavras que pouco significado tem para a sociedade no geral mas é reconhecida pela maioria das economias como meio de promover as relações internacionais no domínio da ciência e da inovação. Se por um lado promove o ambiente científico do país no estrangeiro por outro funciona como instrumento estabilizador de política externa em países com sistemas políticos e ideologias divergentes.(Dolan, 2012)

Um fator crítico de sucesso para a ação da diplomacia científica é a necessidade de encontrar o ator ou o agente certo, para que esta seja colocada em prática. (Flink & Schreiterer, 2010)


Questões

  • Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?
  • Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?
  • Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.
  • Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?
  • Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?
  • Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?
  • Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?





Questões e respostas


Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?


JVM - (A pergunta não é clara. Deve ter havido um problema de edição. Penso que deve ser “Que importância atribui à Diplomacia Científica para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?”)
A Diplomacia Científica é uma parte fundamental da diplomacia e, como tal, tem a importância que toda a Diplomacia tem: é uma ferramenta fundamental para o entendimento entre os povos, para o desenvolvimento harmonioso da Humanidade e para a construção e preservação da paz e do bem-estar.


Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?


JVM - A expressão Diplomacia Científica tem vários significados: a Ciência ao serviço da Diplomacia (a cooperação científica como instrumento das Relações Internacionais), a diplomacia ao serviço da Ciência (visando o aumento da cooperação científica internacional, por exemplo) e a Ciência da Diplomacia (a investigação científica realizada com o objectivo de produzir conhecimento aplicável no domínio da diplomacia). Penso que o mais relevante e o mais nobre é o primeiro.
Segundo alguns historiadores a ciência terá nascido no século XVII em Inglaterra precisamente devido à necessidade de criar consensos depois da Guerra Civil e encontrar pontos comuns objectivos, capazes de unir pessoas de diferentes credos. A ciência possui hoje uma capacidade intrínseca de criar consensos entre pessoas de diferentes regiões, religiões, ideologias e interesses precisamente porque o seu método se baseia na construção de consensos baseados em verdades verificáveis pela experiência e pela discussão argumentada e na sua constante revisão.
O objectivo da Diplomacia Científica é claro: usar a cultura científica, partilhada pela comunidade cientifica de todo o mundo, como base de entendimento entre cientistas de diferentes países, regiões, religiões e ideologias, com diferentes passados e vivendo em diferentes presentes, de forma a criar uma base de confiança sobre a qual se possa construir um diálogo e procurar um entendimento. Nada disso se pode fazer sem a aceitação do outro como outro, sem o conhecimento do outro, e a ciência pode fornecer o pano de fundo sobre o qual isso pode acontecer. O objectivo último é a paz e o desenvolvimento e a felicidade partilhada.


Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.


JVM - Há muitos casos famosos de relativo sucesso, como as Pugwash Conferences on Science and World Affairs (http://en.wikipedia.org/wiki/Pugwash_Conferences_on_Science_and_World_Affairs) ou os International Physicians for the Prevention of Nuclear War (http://en.m.wikipedia.org/wiki/International_Physicians_for_the_Prevention_of_Nuclear_War), ambos aliás distinguidos com o Nobel da Paz, mas o meu exemplo preferido é o CERN, onde trabalham cientistas e engenheiros de todo o mundo, sem qualquer tipo de restrição, e onde indivíduos de países em guerra trabalham juntos, unidos por uma ética de trabalho científico que recusa ódios pessoais ou nacionais e que acredita na ciência como um conhecimento partilhado que deve pertencer a todos e que visa beneficiar todos. Penso que é através de exemplos como estes (pessoas de diferentes origens a trabalhar juntas) que se constrói a paz.
Não consigo citar "um caso de insucesso" porque a diplomacia cientifica existe de forma quase sempre não planeada, tem uma existência marginal e nunca se depositam grandes esperanças nestas iniciativas. Quando funciona é excelente porque se conseguem resultados absolutamente inesperados e que excedem largamente a "job description" dos cientistas.


Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?


JVM - Existe em geral na política portuguesa (particularmente à direita do espectro político) uma visão da ciência que é extremamente limitada e que vê toda a investigação cientìfica que não possa ter uma utilidade industrial imediatamente geradora de receitas como um inútil sorvedouro de dinheiros públicos. Esta visão não reconhece nenhum papel cultural à ciência (a não ser como um “elogio do desperdício” e da “inutilidade”) e abomina qualquer utilização política da ciência - ainda que seja em prol dos mais nobres objectivos. Esta visão considera a ciência exclusivamente como mais um factor de produção económica, que se deve inserir na lógica da produção industrial.
A visão da ciência como protagonista do diálogo entre os povos, como geradora de uma linguagem comum que se sobrepõe às diferenças locias, como exemplo de um entendimento superior ao paroquialismo é rara.
Diria que em Portugal, actualmente, ninguém exerce diplomacia científica como tal, mas essa visão existiu e esteve na base, nomeadamente, da adesão de Portugal às grandes organizações científicas internacionais (CERN, ESO, ESA, EMBL, etc.). Essa adesão pretendeu promover uma modernização acelerada do sistema científico e tecnológico nacional, através da multiplicação de contactos, da formação de cientistas, do desenvolvimento de tecnologias, da internalização de procedimentos exigentes, etc., mas teve também como objectivo um reconhecimento internacional de Portugal e uma inserção de Portugal no “concerto das nações” através destes fóruns. Penso que esse objectivo, diplomático por excelência, foi conseguido em larga medida.
Hoje em dia, devido a considerações financeiras sem visão política, esta perspectiva perdeu peso e penso que está excluída do panorama das relações externas portuguesas, tanto no domínio diplomático em sentido restrito como por parte das próprias organizações científicas.


Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?


JVM - A diplomacia científica deveria integrar a estratégia de relações externas do Estado português e deveria ser posta em prática pelo Governo e pelo sistema científico e técnológico. Não cabe (não deve caber) a este ou àquele actor especificamente mas a todos os actores com algum papel nas relações externas. Deve ser uma orientação dos Negócios Estrangeiros e um critério a seguir em todos os contactos exteriores das instituições científicas.
O Estado deveria deixar claro que considera que a Ciência é um instrumento particularmente eficaz no melhoramento das relações internacionais (de Portugal com outros estados e entre quaisquer partes) e na promoção da paz. A actividade cientifica deveria, assim, ser explorada como um domínio onde é possível construir pontes entre diferentes culturas e povos.
As relações científicas internacionais deveriam ser exploradas numa dupla vertente: a estritamente científica e a da promoção da cooperação internacional.
A ciência deve estar atenta à paz. Um dos graves problemas da nossa civilização é o facto de que existe uma florescente e rentável ciência de guerra e não há uma correspondente ciência da paz.
A “producao de paz” e a melhoria do entendimento internacional deve ser um critério de avaliação das políticas e dos programas científicos de cooperação internacional - e o mesmo deveria acontecer em relação à “redução da desigualdade” (nacional ou internacional) ou à sustentabilidade do planeta.
Devemos exigir da Ciência que produza paz e entendimento como produz vacinas e cereais. Uma ciência que não se preocupa com a paz é uma ciência desumana e desumanizadora que acabará por estar do lado da guerra, da ditadura e da opressão.


Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?


A nível pessoal trata-se de uma questão de cultura e de atitude mais que de competências. O que significa que existe aqui um problema de formação - mas não falo especificamente nem sequer principalmente de formação académica. O ethos do investigador não é inculcado na escola mas na prática científica. Há por isso que definir critérios nas organizações que orientem a acção, os programas científicos e a avaliação dos projectos, programas e organizações.
É necessário inculcar em currículos académicos e nas práticas científicas a ideia da responsabilidade social da ciência e dos cientistas. Uma responsabilidade que excede “fazer honestamente o seu trabalho”. É indispensável que cientistas e organizações percebam que têm a obrigação ética de conhecer o contexto social, económico e político do seu trabalho e o contexto da utilização do fruto do seu trabalho.
A ciência não existe fora do contexto e não se pode analisar fora do contexto político. Não é indiferente quem vai usar um dado conhecimento nem o impacto social dessa utilização. Em Portugal está tudo por fazer no domínio da responsabilidade social do cientistas. A ética está cada vez mais afastada nas preocupações dos cientistas graças a um modelo tecnocrático de producão do conhecimento sempre ao serviço dos poderosos e do dinheiro. Não é admissível que uma organização científica ou que o sistema científico de um pais não se pergunte o si mesmo o que está a fazer pela paz, pelo planeta ou pela justiça e de que forma pode ajudar outros a fazer a diferença.
Não falo de uma actividade militante pela paz, paralela ao seu trabalho: digo que, na escolha e na orientação do trabalho científico, na escolha e na orientação das relações internacionais, estes critérios têm de estar presentes. A diplomacia começa em casa.


Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?


Alguma. Como colunista e como professor de comunicação de ciência, a perspectiva que tento transmitir a leitores e alunos é a da necessidade de uma profunda responsabilidade social da ciência e dos cientistas, que vai muito além do rigor na descrição dos fenómenos observados. Esta actividade, de reflexão e de divulgação, de alimetação do debate no espaço público, é central numa actividade de diplomacia científica.

FIM

terça-feira, julho 22, 2014

A defesa do sistema de investigação é uma questão de soberania

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Julho de 2014
Crónica 35/2014


O problema está no facto de a FCT ter mentido ao negar a existência de quotas.

Vamos ver se nos entendemos sobre a avaliação da investigação nacional actualmente em curso pela European Science Foundation (ESF), sob encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT):

1. O problema não está no facto de a avaliação ter deixado de fora (entre unidades sem financiamento e unidades com um financiamento residual) metade das unidades de investigação.

O problema está no facto de a FCT ter levado a cabo esse corte sem que essa decisão fosse previamente objecto de discussão ou, no mínimo, de anúncio à comunidade científica. Não se realiza um corte com esta violência sem o discutir e defender no espaço público – a não ser que não existam quaisquer argumentos que o possam sustentar.

O problema está no facto de a FCT ter levado a cabo este corte sem que a qualidade de muitas das unidades de investigação sacrificadas o justificasse. Se este corte fosse a consequência de metade das unidades de investigação serem medíocres, haveria muita gente a defendê-lo e a aceitá-lo, por muito doloroso que fosse.

O problema está no facto de a FCT ter mentido ao negar a existência de quotas para o número de centros que passariam à segunda fase, quando o contrato firmado entre a FCT e a ESF define claramente que apenas metade das unidades de investigação deverão passar à segunda fase.

O problema está no facto de a falta de vergonha e o sentimento de impunidade serem tais que o presidente da FCT nega que tenham sido definidas quotas à ESF numa entrevista publicada no mesmo número do PÚBLICO que revela o teor do contrato FCT-ESF, onde essa claúsula aparece preto no branco não uma, mas duas vezes.

O problema está no facto de as notas de algumas unidades terem sido descidas de forma discricionária apenas para se poder argumentar com uma suposta falta de qualidade científica para não as passar à segunda fase. É completamente diferente ter uma boa avaliação científica mas não ter financiamento por falta de dinheiro e ver a sua classificação degradada. É como se uma faculdade de Medicina, apenas por não ter vagas para todos os candidatos, decidisse transformar os 19 valores obtidos nas provas de acesso por um candidato numa classificação de 12 valores.

2. O problema não está no facto de a avaliação ter sido muito exigente e de ter sido levada a cabo por uma organização internacional.

O problema está no facto de não haver uma razão clara para a contratação da ESF, que não possui experiência ou reputação na avaliação de unidades de investigação.

O problema está no facto de a avaliação apresentar tantas falhas que esta página não chega para as enumerar a todas (desde notas enormemente discrepantes dadas à mesma unidade, à avaliação de muitas unidades por não especialistas, a erros factuais persistentes e não corrigidos após o devido rebuttal pelos avaliados, à utilização de indicadores bibliométricos desajustados para avaliar certos parâmetros, etc.)

O problema está no facto de a direcção da FCT ter respondido de forma pouco profissional e pouco transparente às inúmeras chamadas de atenção para estes problemas, feitas com base em dados e documentos, e de ter escolhido uma posição de entricheiramento e de teimosa negação das falhas.

O problema está, em resumo, precisamente no facto de a avaliação ter sido realizada de forma pouco exigente e pouco transparente.

3. O problema também não está no facto de a FCT ter decidido apostar na excelência e de as unidades que ficaram abaixo dessa bitola estarem roídas de inveja.

António Coutinho, em declarações ao PÚBLICO, coloca em alternativa o financiamento da excelência e o financiamento da mediocridade, para afirmar que prefere a primeira estratégia, como se houvesse apenas estes dois pólos. Esta é uma das falácias mais usadas na defesa de uma política de apoio exclusivo à excelência. De facto, entre a excelência e a mediocridade há vários graus e ninguém defende o financiamento da mediocridade. Como ninguém defende que se deixe de apoiar (e de forma muito determinada) a excelência.

Quando se critica o apoio exclusivo à excelência e a condenação à morte dos não excelentes defende-se, simplesmente, que os investigadores e as unidades que são bons não sejam destruídos. Trata-se de uma ideia sensata em termos económicos e ecológicos (não desperdiçar recursos) e justa em termos éticos (não castigar os bons por não serem santos). Trata-se também de ter alguma confiança nos orientadores e nas equipas e de acreditar que é a prática científica que forma o cientista e que, por isso, é possível um bom investigador tornar-se melhor.

Trata-se também de defender que as áreas de saber fundamentais para o país não sejam arrasadas. Imagine-se que a investigação agrária ou a investigação marinha ou as telecomunicações em Portugal tinham apenas o nível “bom”. Seria criminoso destruir estas áreas com esse argumento formal, em vez de as desenvolver, porque o conhecimento é também uma questão de soberania.

jvmalheiros@gmail.com

quinta-feira, julho 17, 2014

FCT: a má avaliação dá mau nome à avaliação

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público Online a 17 de Julho de 2014



É difícil de compreender que a comunidade científica como um todo não seja mais vigorosa na sua contestação, exigindo mais assertivamente da FCT a correcção pública dos erros cometidos e uma prática com o rigor e a transparência a que temos direito.

A propósito da avaliação das unidades de investigação portuguesas, levada a cabo pela European Science Foundation sob contrato da FCT, tenho recebido uma grande maioria de mensagens e comentários extremamente críticos dessa avaliação, onde abundam exemplos particulares de erros dos avaliadores ou incoerências na avaliação (infelizmente muitas vezes de remetente anónimo, o que diz algo sobre o ambiente de escassa liberdade e de medo que grassa na academia portuguesa).

A par dessas recebi também alguns comentários que consideram que muita da investigação feita em Portugal é de baixa qualidade (penso que nem todos serão oriundos de falsos perfis criados por empresas de comunicação amigas do governo), que chegou o momento de separar o trigo do joio e que esta avaliação é um passo nesse sentido.

Alguns comentários:

1. Não tenho, pessoalmente, a mínima dúvida de que uma parte da investigação que se faz em Portugal é de escassa qualidade e que uma parte dos investigadores portugueses são fracos ou pior. Mas não sei dizer quantos e muito menos quais. A minha sensação pessoal, é que a maioria tem uma qualidade aceitável (quero dizer boa), mesmo em termos internacionais, mas trata-se apenas de uma sensação. E é provável que eu tenha ouvido falar sempre dos melhores. Só que, para além da minha sensação, há muitos exercícios de avaliação, alguns deles levados a cabo pela própria FCT, relativos a investigadores e a unidades de investigação, que me confortam nessa convicção (veja-se o “Diagnóstico do Sistema de Investigação e Inovação” (2013)). A investigação portuguesa ainda não ocupa lugares cimeiros nos rankings (ao contrário do que por vezes se poderia pensar, tendo em conta o entusiasmo de alguma cobertura mediática ou de alguns discursos políticos, nomeadamente de dirigentes da própria FCT) mas tem vindo a melhorar as suas posições em termos quantitativos e qualitativos e possui áreas que são internacionalmente muito robustas e com excelente reputação.

Dito isto, conheço e ouvi falar de inúmeros casos de investigadores ausentes, improdutivos ou indiferentes e até de investigadores desonestos e já me cruzei pessoalmente com alguns trabalhos de investigação cuja qualidade não passaria no crivo de um bom editor de um jornal diário. Tal como conheço as queixas de bons investigadores de bons laboratórios que se queixam de que alguns dos seus colegas “não fazem nada”.

2. Conheço igualmente a cultura nepotista, amiguista, bairrista, endogâmica e corporativista que existe em muitas organizações portuguesas e, nomeadamente, em organizações da universidade e da investigação portuguesas. A cultura da troca de favores; da mão que lava a outra e as duas a cara; do tu dás uma boa nota ao meu aluno que eu dou uma boa nota ao teu; dos concursos com um vencedor escolhido à partida; das embaixadas discretas ao ministro, aos secretários de Estado e aos presidentes da FCT em vez das discussões públicas, etc.. Como conheço a cultura dos mandarins da investigação, sempre próximos do poder e do dinheiro, eminências pardas por vocação, calados em público e sussurantes in camera, que têm à partida as avaliações garantidas e o financiamento assegurado por condições de trabalho privilegiadas.

3. Servem os pontos anteriores para sublinhar que sei que existem muitos problemas para resolver na prática da investigação portuguesa e que é necessário resolvê-los - e isto sem falar dos grandes problemas sistémicos da política científica, como são o emprego científico, a decadência dos laboratórios de estado, a investigação nas empresas, os programas estruturais, etc.

4. A correcção desta situação exige antes de mais um rigoroso processo de identificação dos problemas, o que pode ser conseguido no âmbito de um processo de avaliação das unidades de investigação. Mas é importante reflectir sobre o objectivo da avaliação. Se o objectivo da avaliação é condenar ou fechar unidades, exclui-las de participar em concursos futuros ou de beneficiar de determinados investimentos, reduzir gastos e/ou despedir pessoas, estamos a desperdiçar uma ferramenta de gestão e a desperdiçar o investimento já feito (na formação das pessoas, na criação da instituição, na criação de uma rede de contactos, em equipamentos, etc.).

A avaliação não pode ser uma expedição punitiva - e esta avaliação parece ter sido conduzida pela FCT exactamente com esse espírito. A avaliação da FCT é um instrumento de exclusão, à boa maneira da gestão empresarial neoliberal, e é, por isso, um instrumento de infusão de medo e de submissão.

A avaliação da FCT é um processo de destruição de valor (para usar uma expressão do jargão da gestão) e não parte de um processo de identificação de erros, correcção, redireccionamento e melhoramento, como deveria ser, se a FCT tivesse o devido empenho na protecção do património público que lhe compete proteger e desenvolver.

5. A questão é que a avaliação não é um substituto da gestão e, se existem problemas na investigação portuguesa, eles devem ser identificados, encarados, discutidos e resolvidos e não varridos para debaixo do tapete. A classificação de dezenas de unidades de investigação como “razoáveis” ou “insuficientes” não pode ser uma autorização para descurar a gestão do património público e para não promover a sua qualificação.

6. O principal problema com a avaliação agora feita é precisamente o facto de a sua falta de qualidade e o seu enviesamento se constituir como um obstáculo a um futuro exercício de avaliação rigoroso. Uma má avaliação dá um mau nome à avaliação e pode impedir uma boa avaliação durante anos, permitindo a subsistência no sistema de unidades ou investigadores que deveriam de facto ser encerrados ou afastados.

Uma avaliação mal feita significa que ter uma má classificação deixa de ter qualquer custo reputacional e, por isso, não contribui para o estabelecimento de uma cultura de exigência e responsabilização.

7. A falta de transparência do processo, em particular, favorece a manutenção do clima de amiguismo e nepotismo. E não, não é o facto de se publicar documentos no site que torna automaticamente um processo transparente. Um processo é transparente quando os seus trâmites são transparentes, quando a sua racionalidade é transparente, quando as questões são respondidas pelos envolvidos de forma clara. Um processo onde uma unidade de investigação é avaliada com dados factualmente incorrectos, onde corrige na sua resposta ao avaliador esses dados incorrectos e onde esses dados incorrectos são mantidos sem explicação pelo avaliador na avaliação final não é um processo transparente, mesmo que os documentos estejam publicados online.

8. A avaliação não pode ser um instrumento para impor pela porta do cavalo opções estratégicas que nunca foram anunciadas ou discutidas, como o benefício de certas áreas científicas e tecnológicas em detrimento de outras, enviesando à partida os critérios de avaliação. Um sinal de que isso poderá ser um dos objectivos da actual avaliação é, por exemplo, a escolha de critérios e ferramentas bibliométricas que beneficiam claramente as ciências da vida (por coincidência ou não, a área de trabalho do presidente da FCT e da secretária de Estado da Ciência) em detrimento das ciências da computação, que são uma das mais competitivas áreas de investigação nacional.

9. A avaliação das unidades de investigação também não pode ter como principal objectivo libertar verbas que se pretende desviar para outras actividades. As más avaliações não podem ser um mero expediente para criar um pé-de-meia. Sabemos que a FCT reduziu os montantes que despende em bolsas e parece querer agora reduzir os seus gastos com as unidades de investigação. Se a FCT pretende criar uma almofada financeira para dedicar a uma qualquer outra actividade, deve anunciá-lo claramente e colocar essa estratégia (ou essa intenção) à discussão pública. As verbas que a FCT administra - parece ser conveniente lembrá-lo - não são propriedade da sua direcção.

10. Há quem me tenha chamado a atenção para o facto de que unidades de investigação com alguns excelentes investigadores podem ter, apesar disso, uma baixa qualidade média. É evidente que um centro de investigação com meia-dúzia de investigadores excelentes não é, por esse facto, uma unidade de excelência, mas é preciso ser cuidadoso para não deitar fora o bebé com a água do banho. Destruir um centro onde existe investigação de excelência com o argumento de que a sua média é baixa e pôr assim em causa a prossecução das actividades de excelência, é insensato e negligente. É um desperdício que o país não pode tolerar.

11. A verdadeira mania que existe na retórica da FCT com a “excelência”, com a avaliação como forma de identificar essa “excelência” e, em particular, com o recurso à avaliação quantitativa e bibliométrica como núcleo duro da avaliação merece alguns comentários. É evidente que a investigação deve usar critérios exigentes e que não devem ter lugar no sistema de investigação público profissionais incompetentes ou improdutivos. Mas daqui a considerar que se devem apenas financiar a excelência (ou a supra-excelência, seja isso o que for, porque a FCT inventou nada mais do que duas categorias acima de “excelente”) vai um passo que não se deve dar.

Imagine-se que, numa qualquer organização (numa empresa ou no sistema de saúde, por exemplo) se realiza uma exigente e rigorosa operação de avaliação e se despedem todos os trabalhadores não excelentes. É fácil imaginar o que aconteceria a essa organização. Um sistema de investigação tem forçosamente de incluir outras preocupações para além da pura excelência científica - como uma cobertura das principais áreas de investigação, a manutenção de massa crítica nas várias áreas e sub-áreas, etc. Uma selecção de futebol não se faz só com Ronaldos nem se constitui uma selecção sem uma pool alargada de jogadores de futebol. Definir, em nome da excelência, uma bitola exageradamente alta (se fosse esse o caso) destrói qualquer sistema. Pode parecer exigente mas é apenas negligente.

12. Uma das razões por que se deve ser prudente com a mania da excelência é porque um investigador não faz a mesma coisa durante toda a sua vida e pode nem sequer dedicar-se durante toda a vida à mesma área científica. Um investigador que é apenas bom numa dada função pode ser excelente noutra e vice-versa. Tomemos um exemplo prático: Miguel Seabra tem a reputação de ser um excelente investigador na sua área, mas decidiu a dada altura enveredar pela gestão da investigação, onde demonstra uma performance medíocre. É admissível que uma pessoa menos brilhante na investigação médica fosse melhor como gestor de investigação, com ganhos para todos.

13. O presidente da FCT não pode esconder-se atrás de um comunicado perante a vaga de críticas de que a sua instituição é alvo e muito menos usando argumentos de autoridade. Miguel Seabra tem de responder a todas e a cada uma das perguntas feitas e às objecções levantadas à avaliação que realizou e deve fazê-lo não numa reunião de gabinete mas de forma pública e cabal. Mais uma vez, convém lembrar que a FCT é um organismo do Estado e não um grupo de amigos de Miguel Seabra, que gere bens públicos e que tem um dever de transparência e de prestação de contas aos cidadãos.

14. Nota final: perante um processo tão lamentável como este, não é apenas a FCT que sai desacreditada. A FCT conseguiu provavelmente marcar pontos no imaginário popular contra os investigadores, na linha do “todos os beneficiários do RSI são ladrões” e do “todos os desempregados são uns calões” a que este governo nos habituou.

É por isso difícil de compreender que a comunidade científica como um todo não seja mais vigorosa na sua contestação, exigindo mais assertivamente da FCT a correcção pública dos erros cometidos e uma prática com o rigor e a transparência a que temos direito.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, julho 15, 2014

O prédio está a cair, mas a FCT diz que está tudo bem

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Julho de 2014
Crónica 34/2014


Se a FCT considerasse que a avaliação tinha sido bem feita deveria ter ficado em estado de alerta vermelho.
Nuno Crato sempre foi um crente no poder dos exames. Para Crato, basta colocar um exame no final de um ciclo de ensino para se obter uma melhoria automática na qualidade desse ciclo de ensino. Porquê? Porque o sistema se ajusta automaticamente a esse obstáculo e se reorganiza de forma a superar essa prova.

Vem isto a propósito da avaliação das unidades de investigação, que está a ser levada a cabo pela European Science Foundation (ESF) por encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição sob tutela de Nuno Crato, e onde os resultados da primeira fase foram desastrosos para as unidades avaliadas. Das 322 unidades avaliadas, apenas 168 passaram à segunda fase de avaliação e, das restantes, 83 tiveram a classificação de “Bom”, uma classificação fraca, que se traduzirá num financiamento residual, e 71 unidades foram já excluídas de qualquer financiamento futuro. Esta avaliação deu origem a um clamor nacional que não se limitou a contestar os resultados. Unidades de investigação e investigadores vieram denunciar irregularidades várias nesta avaliação, como o facto de certas unidades terem tido más avaliações apesar de os indicadores em que essa avaliação se baseou serem excelentes, o facto de unidades avaliadas como excelentes nas avaliações anteriores terem sem explicação passado a ser classificadas como fracas, o facto de muitos avaliadores fazerem afirmações factualmente falsas sobre as unidades que avaliaram, o facto de as comissões não possuírem especialistas de muitas das áreas que avaliaram, o facto de muitas das unidades terem sido avaliadas por uma maioria de não-especialistas da área avaliada, o facto de ser evidente um enviesamento ideológico em algumas das avaliações feitas, etc..

Se o objectivo da FCT e de Nuno Crato fosse fazer uma avaliação honesta das unidades de investigação, qualquer uma destas reclamações deveria ter acendido uma luz vermelha e dado origem a uma fiscalização rigorosa do processo. Mas não deu. Em resposta à chuva de críticas documentadas que recebeu, a FCT veio apenas dizer que reitera “a sua total confiança na robustez do exercício de avaliação das Unidades de Investigação” e que os critérios de avaliação definidos “foram escrupulosamente cumpridos”.

Paremos para respirar.

Se a FCT considerasse, de facto, que a avaliação tinha sido bem feita, deveria ter ficado em estado de alerta vermelho antes mesmo de receber as reclamações, no exacto momento em que recebeu os resultados da primeira fase da avaliação. E deveria ter ficado alarmadíssima porque estes resultados significam que metade das unidades de investigação do país são medíocres, que um quarto deve ser objecto de execução sumária e que outro quarto vai ser condenada a uma morte lenta – o que, seja qual for a razão, constitui um cataclismo de proporções gigantescas, com impactos em todos os sectores da vida nacional. E deveria também ter ficado alarmadíssima porque estes resultados contrariam frontalmente resultados de avaliações anteriores, feitas sob a sua responsabilidade, que desenhavam uma panorama muito diferente, o que significava que ela própria, FCT, tinha sido clamorosamente incompetente. Mas não. A FCT parece considerar estes resultados como normais e esperados, defende a avaliação e os avaliadores com unhas e dentes e não faz sequer nenhum comentário sobre a substância da avaliação. E o mesmo faz aliás Crato, que desde a sua tomada de posse parece ter tanto a ver com a investigação portuguesa como o pato Donald.

Imaginemos, por um momento, que o presidente da FCT, Miguel Seabra, está de boa-fé e considera que a ESF fez bem o seu trabalho e que, por conseguinte, metade da investigação portuguesa deve ir para o lixo. O que seria normal que a FCT fizesse? Miguel Seabra parece esquecer-se de que a FCT é responsável pela investigação nacional e que lhe compete garantir a gestão e o desenvolvimento do sistema. Se Miguel Seabra acha que metade do sistema está podre, deveria lançar uma operação de emergência para o recuperar e tentar envolver nela todos os parceiros necessários – em vez de o deitar para o lixo de uma penada. Trata-se de organizações, de pessoas, de investimentos e de saber acumulado que constitui um património nacional. Mas é possível que, tal como Crato, Seabra pense que, para melhorar um sistema, basta colocar um exame no fim, chumbar o máximo de avaliados e esperar a resposta automática. Dá certamente menos trabalho e uma grande quantidade de chumbos pode dar uma ideia de exigência.

De uma coisa podemos ter a certeza: a contratação de uma grande organização internacional não é garantia de qualidade. Mas é natural que, também quanto a isto, Miguel Seabra tenha uma opinião diferente, já que foi recentemente eleito presidente da Science Europe, a organização que vai suceder à European Science Foundation que ele contratou.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, julho 08, 2014

Da vergonha, da falta dela e da incapacidade ética

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Julho de 2014
Crónica 33/2014


A avaliação das unidades de investigação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português

O processo de avaliação das unidades de investigação nacionais, levado a cabo pela European Science Foundation (ESF) por encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), cujos primeiros resultados foram publicados há dias, é uma vergonha e um desastre.

É uma vergonha para a FCT e para o seu presidente, Miguel Seabra; para a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira; e para o Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato. E é uma vergonha não apenas porque estas três pessoas são os responsáveis pela operação, mas também porque os três são investigadores e, como oficiais do ofício, não podem sacudir a água do capote invocando um desconhecimento das peculiaridades da área. E é um desastre porque esta avaliação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português e arrisca-se a destruir de uma penada instituições de referência que demoraram décadas a construir e a empurrar mais investigadores de qualidade para o exílio.

O processo de avaliação é uma vergonha porque suscita dúvidas sobre a competência técnica, a competência política e a competência ética de quem o dirige. Quanto à competência técnica, aquilo que se sabe até agora sobre o processo de avaliação torna claro que ele foi levado a cabo de forma superficial (se não negligente), descurando a análise da informação relevante sobre o trabalho das unidades de investigação avaliadas, sem discutir as avaliações com os avaliados, usando critérios incoerentes para avaliar diferentes unidades e por comissões de avaliação que não possuíam especialistas com as competências adequadas.

O processo levanta dúvidas sobre a competência política dos seus dirigentes pois nenhum deles parece dar-se conta de que, a prosseguir nestes termos, esta avaliação vai condenar à morte a prazo metade das unidades de investigação portuguesas, aniquilando áreas de investigação e deixando lacunas impossíveis de colmatar no conhecimento científico e tecnológico nacional, afectando de forma duradoura a credibilidade do Estado e a confiança que os investigadores e os agentes económicos possam ter nas decisões e promessas de política científica e de inovação.

Finalmente, em termos éticos, é absolutamente inadmissível que seja lançado um processo de avaliação onde os critérios não foram objecto de uma apresentação clara e de uma discussão prévia com a comunidade científica (tal como, infelizmente, a FCT já tinha feito com as bolsas de doutoramente e pós-doutoramento), onde não existe transparência na composição das comissões de avaliação, onde não houve o cuidado de incluir especialistas das diferentes áreas a avaliar mas onde o facto também não parece ter inibido os restantes de se pronunciar sobre áreas que desconhecem, onde não existe direito de recurso e onde são evidentes casos de enviezamento ideológico na avaliação. A título de exemplo, basta citar o caso da comissão de avaliação que entendeu criticar o interesse de uma unidade de investigação (o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL) pelas temáticas da desigualdade e das migrações, que considerou “esgotadas em termos de publicações” e exortá-la a dedicar-se a tópicos de pesquisa “mais inovadores”. O que dizer da qualidade científica e da lisura intelectual de uma comissão de sábios que entende não haver nada mais a estudar sobre desigualdade e migrações? E o que dizer da ausência de resposta por parte de Crato à vaga de críticas que a avaliação das unidades de investigação suscitou?

A incompetência ética não significa necessariamente desonestidade. As propostas de investigação chumbadas pela comissão de ética de um hospital não são necessariamente desonestas. O que esta incapacidade ética revela é um menosprezo pela transparência e pelo debate, pela equidade e pela isenção ideológica, pelo escrutínio dos cidadãos em geral e da comunidade científica em particular.

É verdade que é difícil ver racionalidade no que a FCT e Nuno Crato estão a fazer na investigação, mas gostaria de propor uma hipótese justificativa e alternativa da simples estupidez (que, por rigor metodológico, não deve porém ser descartada). Acontece que o investimento das últimas décadas na investigação nasceu de um consenso político laboriosamente construído, do CDS ao PCP, que sustentou um evidente progresso nesta área, beneficiou em cascata inúmeras outras actividades no país e contribuiu em larga medida para fazer de Portugal um país moderno.

Ora a direita furiosa que se encontra no poder não gosta de consensos (ao contrário do que proclama), muito menos de consensos sobre a importância de um papel central do Estado num sector vital para o país e menos ainda de consensos que sustentam ideias de independência, de autodeterminação e sentido crítico. A machadada que Nuno Crato quer dar na investigação é apenas uma forma de o governo mostrar que não existem sectores protegidos da austeridade, que não existem sectores que o estado assuma como responsabilidade sua e que o saber não possui um estatuto particular na escala de valores e na sociedade de mercado que a direita preconiza. O Governo quer mostrar quem manda.
jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/opiniao/noticia/da-vergonha-da-falta-dela-e-da-incapacidade-etica-1661950 

terça-feira, março 04, 2014

Ainda as pressões de Leonor Parreira sobre o CNCT

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Fevereiro de 2014
Crónica 8/2014


É irrelevante se a pressão foi sentida como uma violência ou não. O grave é que ela tenha existido.

Quero agradecer aos membros do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT) a carta que enviaram ao PÚBLICO e que foi aqui publicada no passado dia 22. Sem esta carta, o caso das pressões sobre o CNCT feitas pela secretária de Estado da Ciência (SEC), Leonor Parreira, acabaria provavelmente por ser esquecido, o que seria lamentável. A sua publicação permite-me, porém, voltar a dar ao caso a atenção que ele exige.

São levantadas na carta mais questões do que aquelas que são respondidas, mas penso que é necessário fazer um esforço para tentar esclarecer dois pontos principais.

A primeira questão que se coloca é esta: se o CNCT não foi objecto de “pressões indevidas” por parte da SEC, por que é que os membros subscritores desta carta não vieram a terreiro em devido tempo, quando a notícia dessas pressões foi dada pelos media (incluindo o PÚBLICO,Expresso e RTP, entre outros)?

Esta questão gera uma dupla perplexidade, pois a divulgação de pressões da SEC sobre o CNCT não foi feita apenas pela imprensa, mas foi objecto (a 10 de Fevereiro) de um comunicado oficial do Conselho dos Laboratórios Associados (CLA), um órgão que não só reúne 26 das principais instituições científicas nacionais como possui elementos em comum com o CNCT. Nesse comunicado, o CLA diz expressamente que “o Governo se permitiu exercer pressão sobre as deliberações deste órgão consultivo por si nomeado [CNCT]”, mas estes membros do CNCT também não contestaram essa denúncia, o que é difícil de compatibilizar com a garantia agora dada de que não houve pressões.

A segunda questão tem a ver com o ponto central na carta: a garantia de que o CNCT não foi “indevidamente pressionado por qualquer membro do Governo”. É com algum desconforto com que se lê aquele “indevidamente”, que parece sugerir que existem, na opinião destes membros do CNCT, pressões do Governo sobre um órgão de aconselhamento que são legítimas, mas talvez isso não passe de um descuido de redacção. O que não pode ser atribuído a um descuido é o mail que o coordenador do CNCT enviou aos conselheiros (divulgado pelo Expresso a 5 de Fevereiro) onde lhes transmite o desagrado da secretária de Estado com a primeira versão do comunicado do CNCT que lhe foi enviado.

É verdade que o comunicado do CNCT acabou por ser publicado e poder-se-ia dizer que essa publicação é a prova de que o conselho foi impermeável às pressões da SEC. Só que essa publicação só teve lugar depois (e não antes) de o comunicado ter sido objecto de uma fuga de informação, o que lhe retira esse carácter probatório.

A única forma de compatibilizar o conteúdo desta carta com os factos que conhecemos (recusando cenários extremos como admitir a) a hipocrisia dos seus subscritores ou b) a existência de pressões pessoais sobre cada um deles), é considerar que estes membros do CNCT adoptam um raciocínio tautológico do tipo: “Como não somos pressionáveis, nada do que nos seja dito ou feito constitui uma pressão”. Mas o que estes conselheiros esquecem é que quem está neste caso em questão não é o CNCT, mas Leonor Parreira e o Governo. É irrelevante (para este efeito) se a pressão funcionou ou não. É irrelevante se ela foi sentida como uma violência ou não. O grave é que ela tenha existido.

É possível que, devido à excessiva informalidade do nosso pequeno meio, tenha havido quem considerasse a pressão da SEC um mero desabafo pessoal “da Leonor” com os colegas, amigos ou conhecidos de longa data. Mas um governante não é um agente privado nem possui o mesmo grau de liberdade na acção pública que uma vizinha que fala no patamar da escada. Um governante é (deveria ser) um guardião dos princípios de boa governação e de ética democrática, que não pode manipular a seu bel-prazer nem desbaratar. Os procedimentos que garantem a independência de um órgão consultivo, a transparência de processos e a liberdade de opinião são sagrados e é lamentável que um governante não perceba isso. A médica Leonor pode dizer o que quiser aos seus colegas, mas a secretária de Estado Leonor Parreira tem outras responsabilidades. E, ao dizer aos conselheiros que o seu comunicado é "incorrecto e parcial", que está "escrito em tom muito negativo", que apenas pretende "salvar a imagem pública dos membros do conselho", que não "contribui para uma melhor política da ciência" e que demonstra “má-fé”, ultrapassa uma fronteira que não deveria ultrapassar e viola a esfera que tem a obrigação de defender.

Esta carta permite-nos admitir que nenhum destes conselheiros do CNCT se sentiu pressionado, censurado ou limitado na sua liberdade de opinar e criticar. Não há razão para duvidar deste sentimento. Há mulheres maltratadas que amam os seus maridos abusadores e que acham que, se são espancadas, é porque merecem. Há reféns que sentem simpatia pelos seus raptores. Há estudantes praxados que agradecem aos “veteranos” que os arrastam pela lama. Existe de tudo sob o Sol. Mas, se é assim, o que temos de lamentar por parte destes conselheiros do CNCT é que coloquem tão baixo a fasquia da sua exigência democrática e do seu amor-próprio. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 25, 2014

A chatice das pessoas que pensam pela sua cabeça

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Fevereiro de 2014
Crónica 7/2014


Leonor Parreira considera que os cientistas só devem emitir as opiniões que convenham ao Governo.

A crise durou umas semanas, mas todos os protagonistas esperam que nos esqueçamos rapidamente dela, como costuma acontecer. Isso é aliás particularmente fácil com todos os atentados ao direito, à decência, aos direitos dos cidadãos, ao bom senso e ao bom gosto com que este Governo nos bombardeia quotidianamente.

Só que, neste caso (como na maioria dos outros), nem a crise passou verdadeiramente nem nos devemos esquecer dela e é proveitoso que a revisitemos.

A crise é, na realidade, um folhetim dentro de uma crise. E o folhetim, que pudemos seguir na imprensa, foi o espectáculo dado pela secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, na reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT) de dia 23 de Janeiro e nos dias que se lhe seguiram, que se insere na crise maior que a ciência portuguesa atravessa.

Leonor Parreira presidiu àquela reunião do CNCT por delegação do primeiro-ministro, que é o presidente daquele órgão de aconselhamento do Governo em matéria de política científica e tecnológica. Deixemos passar o facto, bizarro em si, de o primeiro-ministro delegar na secretária de Estado e não no ministro da Educação e Ciência a presidência do CNCT, para mais quando se conhece a situação de turbulência que se vive no sector e a agenda quente que se iria discutir.

A questão substancial nesta história pouco moral é o facto de a secretária de Estado ter tentado alterar um documento produzido pelo CNCT onde este exprimia a sua preocupação pelos últimos acontecimentos na ciência nacional (nomeadamente a redução brutal no número de bolsas de doutoramento), fazendo pressão sobre os seus membros para que alterassem a sua substância ou, no mínimo, o não tornassem público.

É evidente que existem no pensamento de Leonor Parreira algumas confusões que deram origem a actos menos reflectidos da sua parte, mas é importante que os analisemos.

A primeira confusão diz respeito ao papel do CNCT. A secretária de Estado ou não sabe que o CNCT é um órgão consultivo ou não sabe o que significa “consultivo” ou sabe ambas as coisas mas está decidida a não se deixar acanhar por estas minudências. É grave que um membro do Governo tente pressionar um órgão consultivo para que este emita uma “opinião” que sirva determinados interesses políticos. Mas tão ou mais grave do que isso é que a secretária de Estado não perceba que existe valor numa posição que nasce de uma discussão livre no seio de um órgão colegial (cujos membros, para mais, foram escolhidos a dedo pelo próprio Governo) e que uma opinião encomendada pelo poder não vale sequer o papel em que possa ser escrita. Esta confusão na cabeça de Leonor Parreira — motivada, sem dúvida, por aquilo que o seu discernimento lhe sugere serem os mais altos interesses nacionais — é tanto mais grave quanto nos faz duvidar não só da sua capacidade de valorizar a importância de uma opinião livre mas nos faz duvidar de todos os casos em que a própria tenha emitido uma opinião. Se Leonor Parreira interferiu na acção do CNCT da forma como o fez, é porque pensa que tem o direito de o fazer. E se pensa que tem esse direito é porque considera que um cientista (ou um colégio de cientistas) apenas deve emitir as opiniões que convêm ao Governo ou aos partidos que ocupem num dado momento o Governo. Digamos que esta é, no mínimo, uma posição difícil de conciliar com a atitude científica.

Outra das confusões é quanto ao seu papel como “presidente em exercício” do CNCT. Leonor Parreira parece não ter compreendido que o seu papel neste caso lhe permite orientar os trabalhos, mas não lhe dá autoridade para mexer no texto final. O texto é dos conselheiros, não do presidente. Como parece não ter compreendido que o envio prévio do texto era uma cortesia e não uma oportunidade para usar o lápis azul.

Mais grave do que tudo acima, Leonor Parreira não parece perceber esta coisa da democracia, com estas coisas da liberdade de discussão e de opinião e o confronto de ideias — o que é igualmente estranho para um cientista. Para Leonor Parreira, as críticas do CNCT demonstram “má-fé” porque só pode estar de boa-fé quem concorda com o Governo ou escreve o que o Governo dita mesmo que não concorde.

Curiosamente, a todas estas questões vem somar-se uma aparente ingenuidade difícil de admitir num governante. Como é que a secretária de Estado pode ter imaginado que conseguia mandar calar estes vinte cientistas respeitados e obrigá-los a mudar o seu texto? Haverá algo, na sua prática como governante, que a fez acreditar nisso?

Num Governo onde o exercício da política obedecesse a algum critério de exigência ética, as cabeças de Leonor Parreira e de Nuno Crato rolariam. Mas, como é evidente, ninguém espera isso neste caso.

Costuma dizer-se que os cientistas são úteis à ciência na primeira metade da sua vida e prejudiciais na segunda metade. Seria bom que Leonor Parreira não se empenhasse tão afincadamente em provar o aforismo. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 28, 2014

O novo paradigma da ciência: a avaliação opaca

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Janeiro de 2014
Crónica 4/2014


Avaliação é processo. E quando o processo não tem qualidade, o seu resultado não o pode ter


1. O presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Miguel Seabra, acha que as regras são uma chatice que atrasa tudo.

É verdade que houve alterações introduzidas por “razões administrativas” nas avaliações dos candidatos às bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e que essas alterações (que em certos casos alteraram a ordenação dos candidatos) não foram previamente comunicadas e muito menos discutidas com as comissões de avaliação, o que já motivou queixas e demissões por parte de avaliadores. Mas Miguel Seabra explicou na Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, onde foi prestar esclarecimentos a pedido do Bloco de Esquerda, que se se tivesse feito tudo como deve ser a FCT demoraria “mais um mês a publicar os resultados”. Assim foi mais rápido.

Deixemos de lado por um momento o facto de a FCT ser responsável por atrasos crónicos no lançamento e publicação dos resultados dos seus concursos. Deixemos de lado o facto de apenas ter tornado públicos os resultados deste concurso já a meio de Janeiro (para bolsas que deveriam ter tido início a 1 de Janeiro), quando os bolseiros deveriam ter sido informados meses antes, pois têm o direito de planear as suas vidas.

A questão que Miguel Seabra não percebe - e deveria perceber, pois além de alto dirigente de um organismo da Administração Pública é também cientista, o que deveria pressupor alguma compreensão da necessidade de rigor - é que os procedimentos devem ser cumpridos não por picuinhice nem por superstição, nem sequer por legalismo, mas sim porque só o respeito dos procedimentos garante a qualidade do processo em termos científicos e em termos democráticos. E isso é assim porque esses procedimentos foram definidos após longas discussões e consensulizados com a participação de investigadores, juristas, gestores de investigação. A avaliação não é um mero ritual, nem importa apenas que no final a escolha recaia sobre candidatos com qualidade. Importa a qualidade de todo o processo de avaliação, que deve obedecer a regras de equidade, de transparência, de exigência, de isenção, de respeito por todos os intervenientes e pelas regras.

É verdade que o actual Governo pensa que o Estado de Direito é uma mera formalidade incómoda, um obstáculo a contornar de todas as formas possíveis, mas não podemos esperar de um organismo como a FCT a mesma posição, por grande que seja a concordância dos seus dirigentes com a ideologia do Governo e por muito úteis que queiram ser na sua propagação.

As regras democráticas são para cumprir e a qualidade da avaliação afere-se pela qualidade do processo de avaliação. Não tem qualquer cabimento que o presidente da FCT diga que o processo devido foi desrespeitado mas que a avaliação foi bem feita, porque a avaliação É processo. E quando o processo não tem qualidade, o seu resultado não o pode ter.

É como a democracia: uma lei não é democrática quando parece bem feita. Uma lei é democrática quando resulta de um processo democrático. Ou (para fugir ao domínio das ciências sociais e humanas, que não estão nas boas graças da FCT, e para entrar num campo onde Miguel Seabra estará mais à vontade) como a prescrição de uma droga a uma pessoa. Esse acto só será um acto médico se o processo que conduz a essa prescrição obedecer a uma miríade de regras, condições e procedimentos prévios.

2. Da mesma forma, o actual problema com os cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento não se deve exclusivamente ao facto de eles terem existido. Pode ser admissível reduzir o número de bolsas. Como pode ser admissível alterar os critérios de avaliação das bolsas, dos projectos de investigação ou do que for. Ou os procedimentos da avaliação. Como pode até ser admissível reduzir o investimento em ciência e tecnologia.

O que não é admissível é fazer tudo isto e não o anunciar previamente e claramente, não enunciar claramente a estratégia a que a decisão obedece (o “novo paradigma”), os critérios, os procedimentos e não os submeter ao escrutínio público para discussão dos directamente interessados e de toda a sociedade. O que não é admissível é fazer tudo isto e negar que se fez. Não só os candidatos a bolseiros têm o direito de saber com que linhas se cosem e de organizar a sua vida, como os cidadãos têm o direito de saber e de decidir o que se faz com o seu dinheiro. O que não é admissível é fazer tudo isto e esperar que as pessoas não dêem por nada, ou que se queixem um pouco e depois se calem. Ou que percebam as trafulhices mas tenham medo de as denunciar por receio de represálias da FCT. Ou que aceitem sem mais a política do facto consumado. É desonesto. Não se faz política científica à traição, a ver se se apanham os investigadores e os cidadãos distraídos.

A FCT sempre foi objecto de críticas por parte da comunidade científica, quase sempre justas. Mas algumas coisas nunca tinham sido postas em causa até hoje: a dedicação e a competência do seu (escasso) staff e a honestidade dos seus dirigentes. Hoje, os concursos deixam suspeitas de favorecimento, de atropelo às regras (veja-se o caso do concurso Investigador FCT, com 1700 candidatos a denunciar irregularidades processuais) e são de uma opacidade a toda a prova. É a reforma do Estado que a direita quer. Estamos servidos. (jvmalheiros@gmail.com)