quarta-feira, julho 30, 2014

Questionário sobre Diplomacia Científica

Respostas de José Vítor Malheiros ao Questionário sobre Diplomacia Científica elaborado por Sónia Arroz na sequência do seu trabalho de dissertação de mestrado, “Diplomacia Cientifica: justificações, abordagens e ferramentas de uma especialização profissional emergente”. Essa dissertação foi realizada no âmbito do Mestrado de Economia e Gestão de Ciência Tecnologia e Inovação do Instituto Superior de Economia e Gestão – ISEG, no período 2012-2014.

Julho 2014



A Diplomacia Científica é uma junção de duas palavras que pouco significado tem para a sociedade no geral mas é reconhecida pela maioria das economias como meio de promover as relações internacionais no domínio da ciência e da inovação. Se por um lado promove o ambiente científico do país no estrangeiro por outro funciona como instrumento estabilizador de política externa em países com sistemas políticos e ideologias divergentes.(Dolan, 2012)

Um fator crítico de sucesso para a ação da diplomacia científica é a necessidade de encontrar o ator ou o agente certo, para que esta seja colocada em prática. (Flink & Schreiterer, 2010)


Questões

  • Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?
  • Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?
  • Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.
  • Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?
  • Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?
  • Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?
  • Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?





Questões e respostas


Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?


JVM - (A pergunta não é clara. Deve ter havido um problema de edição. Penso que deve ser “Que importância atribui à Diplomacia Científica para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?”)
A Diplomacia Científica é uma parte fundamental da diplomacia e, como tal, tem a importância que toda a Diplomacia tem: é uma ferramenta fundamental para o entendimento entre os povos, para o desenvolvimento harmonioso da Humanidade e para a construção e preservação da paz e do bem-estar.


Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?


JVM - A expressão Diplomacia Científica tem vários significados: a Ciência ao serviço da Diplomacia (a cooperação científica como instrumento das Relações Internacionais), a diplomacia ao serviço da Ciência (visando o aumento da cooperação científica internacional, por exemplo) e a Ciência da Diplomacia (a investigação científica realizada com o objectivo de produzir conhecimento aplicável no domínio da diplomacia). Penso que o mais relevante e o mais nobre é o primeiro.
Segundo alguns historiadores a ciência terá nascido no século XVII em Inglaterra precisamente devido à necessidade de criar consensos depois da Guerra Civil e encontrar pontos comuns objectivos, capazes de unir pessoas de diferentes credos. A ciência possui hoje uma capacidade intrínseca de criar consensos entre pessoas de diferentes regiões, religiões, ideologias e interesses precisamente porque o seu método se baseia na construção de consensos baseados em verdades verificáveis pela experiência e pela discussão argumentada e na sua constante revisão.
O objectivo da Diplomacia Científica é claro: usar a cultura científica, partilhada pela comunidade cientifica de todo o mundo, como base de entendimento entre cientistas de diferentes países, regiões, religiões e ideologias, com diferentes passados e vivendo em diferentes presentes, de forma a criar uma base de confiança sobre a qual se possa construir um diálogo e procurar um entendimento. Nada disso se pode fazer sem a aceitação do outro como outro, sem o conhecimento do outro, e a ciência pode fornecer o pano de fundo sobre o qual isso pode acontecer. O objectivo último é a paz e o desenvolvimento e a felicidade partilhada.


Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.


JVM - Há muitos casos famosos de relativo sucesso, como as Pugwash Conferences on Science and World Affairs (http://en.wikipedia.org/wiki/Pugwash_Conferences_on_Science_and_World_Affairs) ou os International Physicians for the Prevention of Nuclear War (http://en.m.wikipedia.org/wiki/International_Physicians_for_the_Prevention_of_Nuclear_War), ambos aliás distinguidos com o Nobel da Paz, mas o meu exemplo preferido é o CERN, onde trabalham cientistas e engenheiros de todo o mundo, sem qualquer tipo de restrição, e onde indivíduos de países em guerra trabalham juntos, unidos por uma ética de trabalho científico que recusa ódios pessoais ou nacionais e que acredita na ciência como um conhecimento partilhado que deve pertencer a todos e que visa beneficiar todos. Penso que é através de exemplos como estes (pessoas de diferentes origens a trabalhar juntas) que se constrói a paz.
Não consigo citar "um caso de insucesso" porque a diplomacia cientifica existe de forma quase sempre não planeada, tem uma existência marginal e nunca se depositam grandes esperanças nestas iniciativas. Quando funciona é excelente porque se conseguem resultados absolutamente inesperados e que excedem largamente a "job description" dos cientistas.


Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?


JVM - Existe em geral na política portuguesa (particularmente à direita do espectro político) uma visão da ciência que é extremamente limitada e que vê toda a investigação cientìfica que não possa ter uma utilidade industrial imediatamente geradora de receitas como um inútil sorvedouro de dinheiros públicos. Esta visão não reconhece nenhum papel cultural à ciência (a não ser como um “elogio do desperdício” e da “inutilidade”) e abomina qualquer utilização política da ciência - ainda que seja em prol dos mais nobres objectivos. Esta visão considera a ciência exclusivamente como mais um factor de produção económica, que se deve inserir na lógica da produção industrial.
A visão da ciência como protagonista do diálogo entre os povos, como geradora de uma linguagem comum que se sobrepõe às diferenças locias, como exemplo de um entendimento superior ao paroquialismo é rara.
Diria que em Portugal, actualmente, ninguém exerce diplomacia científica como tal, mas essa visão existiu e esteve na base, nomeadamente, da adesão de Portugal às grandes organizações científicas internacionais (CERN, ESO, ESA, EMBL, etc.). Essa adesão pretendeu promover uma modernização acelerada do sistema científico e tecnológico nacional, através da multiplicação de contactos, da formação de cientistas, do desenvolvimento de tecnologias, da internalização de procedimentos exigentes, etc., mas teve também como objectivo um reconhecimento internacional de Portugal e uma inserção de Portugal no “concerto das nações” através destes fóruns. Penso que esse objectivo, diplomático por excelência, foi conseguido em larga medida.
Hoje em dia, devido a considerações financeiras sem visão política, esta perspectiva perdeu peso e penso que está excluída do panorama das relações externas portuguesas, tanto no domínio diplomático em sentido restrito como por parte das próprias organizações científicas.


Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?


JVM - A diplomacia científica deveria integrar a estratégia de relações externas do Estado português e deveria ser posta em prática pelo Governo e pelo sistema científico e técnológico. Não cabe (não deve caber) a este ou àquele actor especificamente mas a todos os actores com algum papel nas relações externas. Deve ser uma orientação dos Negócios Estrangeiros e um critério a seguir em todos os contactos exteriores das instituições científicas.
O Estado deveria deixar claro que considera que a Ciência é um instrumento particularmente eficaz no melhoramento das relações internacionais (de Portugal com outros estados e entre quaisquer partes) e na promoção da paz. A actividade cientifica deveria, assim, ser explorada como um domínio onde é possível construir pontes entre diferentes culturas e povos.
As relações científicas internacionais deveriam ser exploradas numa dupla vertente: a estritamente científica e a da promoção da cooperação internacional.
A ciência deve estar atenta à paz. Um dos graves problemas da nossa civilização é o facto de que existe uma florescente e rentável ciência de guerra e não há uma correspondente ciência da paz.
A “producao de paz” e a melhoria do entendimento internacional deve ser um critério de avaliação das políticas e dos programas científicos de cooperação internacional - e o mesmo deveria acontecer em relação à “redução da desigualdade” (nacional ou internacional) ou à sustentabilidade do planeta.
Devemos exigir da Ciência que produza paz e entendimento como produz vacinas e cereais. Uma ciência que não se preocupa com a paz é uma ciência desumana e desumanizadora que acabará por estar do lado da guerra, da ditadura e da opressão.


Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?


A nível pessoal trata-se de uma questão de cultura e de atitude mais que de competências. O que significa que existe aqui um problema de formação - mas não falo especificamente nem sequer principalmente de formação académica. O ethos do investigador não é inculcado na escola mas na prática científica. Há por isso que definir critérios nas organizações que orientem a acção, os programas científicos e a avaliação dos projectos, programas e organizações.
É necessário inculcar em currículos académicos e nas práticas científicas a ideia da responsabilidade social da ciência e dos cientistas. Uma responsabilidade que excede “fazer honestamente o seu trabalho”. É indispensável que cientistas e organizações percebam que têm a obrigação ética de conhecer o contexto social, económico e político do seu trabalho e o contexto da utilização do fruto do seu trabalho.
A ciência não existe fora do contexto e não se pode analisar fora do contexto político. Não é indiferente quem vai usar um dado conhecimento nem o impacto social dessa utilização. Em Portugal está tudo por fazer no domínio da responsabilidade social do cientistas. A ética está cada vez mais afastada nas preocupações dos cientistas graças a um modelo tecnocrático de producão do conhecimento sempre ao serviço dos poderosos e do dinheiro. Não é admissível que uma organização científica ou que o sistema científico de um pais não se pergunte o si mesmo o que está a fazer pela paz, pelo planeta ou pela justiça e de que forma pode ajudar outros a fazer a diferença.
Não falo de uma actividade militante pela paz, paralela ao seu trabalho: digo que, na escolha e na orientação do trabalho científico, na escolha e na orientação das relações internacionais, estes critérios têm de estar presentes. A diplomacia começa em casa.


Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?


Alguma. Como colunista e como professor de comunicação de ciência, a perspectiva que tento transmitir a leitores e alunos é a da necessidade de uma profunda responsabilidade social da ciência e dos cientistas, que vai muito além do rigor na descrição dos fenómenos observados. Esta actividade, de reflexão e de divulgação, de alimetação do debate no espaço público, é central numa actividade de diplomacia científica.

FIM

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