terça-feira, abril 29, 2014

O papão do escrutínio público

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Abril de 2014
Crónica 23/2014


A transparência dos actos de gestão da coisa pública não dói nada e só reforça a democracia.

Depois de três anos de esforços persistentes, o PÚBLICO e o seu jornalista José António Cerejo conseguiram finalmente que o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, tornasse públicos relatórios internos da autarquia que descreviam práticas irregulares de serviços da câmara no domínio da adjudicação de obras.

O PÚBLICO começou por solicitar directamente os documentos à Câmara Municipal de Lisboa (CML), em 2011, que nem sequer respondeu. Seguidamente, o jornal interpôs um pedido junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que determinou que a CML os deveria entregar. Armado desse parecer, o PÚBLICO voltou a pedir os documentos à CML, e de novo não teve resposta. O jornal decidiu então recorrer ao Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que lhe deu de novo razão. A CML, em resposta, recorreu para o Tribunal Central Administrativo, que decidiu contra a autarquia e confirmou a decisão da CADA. A câmara decidiu então recorrer para o Tribunal Constitucional, que rejeitou o recurso. Fim da história? Ainda não. A CML fez um recurso para a Conferência de Juízes do Tribunal Constitucional, que, de novo, e de forma definitiva, se recusou a apreciar o recurso, considerando que ele não tinha cabimento. A CML, três anos depois, e esgotadas as possibilidades de recurso, entregou finalmente, há dias, os documentos ao PÚBLICO.

O primeiro facto digno de nota nesta história é a perseverança do jornal, recorrendo à CADA e aos tribunais durante três anos, escrevendo recursos e gastando horas e meios consideráveis para conquistar o acesso aos documentos, em nome do interesse público. Numa época em que nos queixamos tanto e com tanta razão da superficialidade do jornalismo instantâneo e da falta de follow-up nas notícias, o facto merece relevo.

O segundo facto digno de nota é o esforço a que a CML se deu, com um absurdo dispêndio de dinheiros e recursos públicos (seus e dos tribunais que envolveu), para evitar entregar documentos relativos ao mau funcionamento dos seus serviços que o público tinha todo o direito a conhecer e a CML nenhum direito a esconder.

Diga-se que os documentos agora publicados não fazem grandes revelações - nem isso se esperava. As irregularidades a que estes documentos se referem já eram conhecidas nas suas linhas gerais através de uma recomendação da Comissão para Promoção das Boas Práticas da CML tornada pública em 2011. Foi aliás para melhor compreender o contexto desta recomendação que o PÚBLICO os solicitou.

Diga-se também que a recusa em tornar estes documentos públicos não parece dever-se a uma tentativa da CML para esconder ou ignorar as irregularidades detectadas, já que o próprio PÚBLICO considera que elas foram atempadamente corrigidas por António Costa na sequência da referida recomendação.

Qual foi então a razão para a tentativa de sonegação desta informação aos munícipes de Lisboa e aos cidadãos em geral?

A razão aparece plasmada no recurso feito para o Tribunal Central Administrativo: segundo António Costa, revelar estes documentos “abre caminho a que todas as decisões políticas [...] fiquem sujeitas ao escrutínio público [...], o que irá conduzir à diminuição/perda da autonomia que deve caracterizar o exercício do poder político”.

Há nesta argumentação um artifício legal: como a lei determina o livre acesso dos cidadãos aos “documentos administrativos” mas não aos “documentos políticos”, a CML tenta fazer valer o princípio de que, neste caso, se trata de “documentos políticos”, seja isso o que for.

Mas há aqui uma questão de fundo que não pode deixar de ser levantada. Ao defender que “as decisões políticas” não podem ser sujeitas “ao escrutínio público” porque isso conduz “à perda de autonomia do poder político”, António Costa adopta uma argumentação antidemocrática e moralmente inaceitável.

Em democracia, todas as decisões políticas têm de ser sujeitas ao escrutínio público e não há qualquer princípio de autonomia do poder político que exclua esse escrutínio.

A transparência que se exige da administração pública pretende garantir esse escrutínio não só sobre os “processos administrativos” mas também sobre as “decisões políticas”. E é por esse escrutínio ser o coração da democracia que se dá tal importância à transparência e que se define que esta deve ser a regra e o segredo a excepção. Há casos em que deve haver segredo, mas esse segredo deve ser justificado com base em necessidades provadas e não pode ser eterno – como infelizmente acontece hoje.

Como este caso prova, a transparência dos actos de gestão da coisa pública não dói nada e só reforça a democracia.

António Costa tem um currículo e qualidades políticas que o podem levar um dia a chefiar um governo. Seria bom se compreendesse que estes tiques autoritários não o servem, não servem a cidade, não servem os portugueses, não servem a política e não servem a democracia.

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/portugal/noticia/o-papao-do-escrutinio-publico-1633895 

terça-feira, abril 22, 2014

O jogo da banca e o jogo da bancada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Abril de 2014
Crónica 22/2014

Houve uma altura em que a actividade bancária se podia descrever de forma honesta.

1. Já sabíamos, mas ficámos a saber em pormenor, através de um trabalho publicado nestas páginas há dias, que a banca tem andado a arredondar o seu fim do mês através de taxas cobradas aos seus clientes sobre todas as operações possíveis e imaginárias. Só no ano passado, o valor das comissões cobradas pelos cinco maiores bancos a operar em Portugal (CGD, BES, BCP, BPI e Santander Totta) ascendeu a 2661 milhões de euros, num total de receitas de 7265 milhões. No ano anterior tinham sido 2534 milhões de euros.

O facto é escandaloso a vários títulos. Em primeiro lugar, porque a esmagadora maioria destas comissões é cobrada nas costas dos clientes, sem que a estes seja facultada informação prévia e uma real possibilidade de escolha e são mesmo alteradas sem pré-aviso e muito menos com possibilidade de opting out. Em segundo lugar, porque as taxas são, como os números provam, claramente excessivas. Em terceiro lugar, porque estas taxas dizem respeito a operações que são hoje em dia indispensáveis na vida de qualquer cidadão, o que equivale a dizer que correspondem a necessidades básicas da vida em sociedade. Em quarto lugar, porque não existe um verdadeiro mercado bancário a que os clientes possam recorrer (trocando de banco sempre que considerem as taxas de um deles excessivas, por exemplo), já que todos os clientes bancários se encontram aprisionados aos seus bancos por regras leoninas de fidelidade que impedem uma verdadeira concorrência. Em quinto lugar, porque as taxas são tanto maiores quanto mais frágeis são os clientes, ou seja: são cobradas aos pequenos clientes que ganham a vida com o seu trabalho e que possuem saldos médios baixos, mas não aos clientes que movimentam grandes quantias.

Houve uma altura em que a actividade bancária se podia descrever de forma honesta: os depositantes depositavam o seu dinheiro, que o banco emprestava a outras pessoas ou investia em negócios, dividindo depois os lucros entre si e os depositantes. Hoje em dia, os bancos funcionam de uma forma que não possui nenhuma espécie de justificação moral e que oscila entre o jogo de casino e a actividade predatória contra os trabalhadores, protegidos por políticos sem escrúpulos. Verdadeiros atentados à liberdade que ninguém esperava ter de suportar 40 anos depois do 25 de Abril.

2. Pertenço ao grupo dos milhares de portugueses que ontem não puderam adormecer à hora habitual devido aos festejos esfuziantes dos adeptos do Benfica, noite fora, que encheram as ruas com as suas cornetas, buzinadelas, gritos e petardos. Não guardo pelo facto nenhum azedume, apesar do incómodo. Gosto de festas ruidosas, gosto de ver pessoas na rua, tenho a felicidade de um sono fácil, tenho janelas com vidros duplos e não tenho nenhuma antipatia particular pelo Benfica. Mas confesso a minha dificuldade para entender estas euforias com as vitórias alheias, ainda que perceba o entusiasmo que o futebol transmite. Percebo o gosto, mas não consigo compreender a febre. De Gaulle dizia que patriotismo era amar o seu país e que nacionalismo era odiar o país dos outros. O que me espanta no fervor futebolístico é haver tanto “nacionalismo” e tão escasso “patriotismo” ou, dito de outra forma, que o “nacionalismo” que consiste no ódio aos outros clubes seja a forma predominante de viver o “patriotismo” que é o amor ao seu clube. Tanto ou mais do que a vitória do seu clube, o que arrebata os adeptos é a derrota e a humilhação dos adversários (basta ouvir os gritos na rua e ler os blogues), e isso é algo que tenho dificuldade em aceitar, tanto mais que as grandes conquistas vão sempre muito para além da derrota dos rivais.

Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.

Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriaguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?

jvmalheiros@gmail.com

segunda-feira, abril 21, 2014

Sobre a crónica "Um erro e uma vergonha" de Vasco Pulido Valente

Post publicado no Facebook a 21 de Abril de 2014

Vasco Pulido Valente sempre me lembrou o Jaimito das anedotas da minha infância, o miúdo malcriado sempre ansioso por arranjar uma maneira de dizer um palavrão e de ser inconveniente na aula. O Jaimito que, quando a professora lhe pede para dizer uma palavra começada por A, e não se lembra de um palavrão que satisfaça a condição, responde raivosamente: "Anão. Mas a fazer um grande cagalhão!"

Vasco Pulido Valente faz o mesmo, ainda que sem nunca ultrapassar a fronteira da conveniência de classe. O seu cinismo às vezes tem graça. A sua amargura às vezes é compreensivelmente amarga. Até a sua nostalgia de um mundo sem os sobressaltos da modernidade se compreendem. Muitas vezes concordo com o que diz. Na maior parte das vezes não. Desta vez, concordo cem por cento com o título da sua crónica: Um erro e uma vergonha. A sua crónica de dia 19 é um erro e uma vergonha 8
http://www.publico.pt/ciencia/noticia/um-erro-e-uma-vergonha-1632765). Uma defesa vergonhosa do obscurantismo e um ataque tão disparatado à universidade que não vale a pena gastar mais uma linha com o seu conteúdo.

terça-feira, abril 15, 2014

Actualização do salário mínimo é uma questão de decência

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Abril de 2014
Crónica 21/2014


Não há nenhuma razão para não subir um salário mínimo que não permite escapar à pobreza.


1. Portugal é um dos países da União Europeia onde é mais elevada a proporção de trabalhadores pobres. Pessoas com emprego, que se levantam todos os dias de manhã para ir trabalhar, que recebem salário, mas cujo rendimento não é suficiente para os arrancar e às suas famílias da pobreza. São meio milhão de pessoas.

E, além destes, há ainda mais um milhão e meio de pobres. Isto levando já em conta as pensões de reforma e sobrevivência, os subsídios de doença, de desemprego e outros apoios do Estado. Depois de todos receberem tudo aquilo a que têm direito segundo a lei, há, mesmo assim, quase dois milhões de pobres.

Os artigos que lemos nos jornais falam sempre de percentagens da população em “risco de pobreza” mas trata-se de um eufemismo. É um eufemismo que a terminologia oficial impôs, que as estatísticas usam e que os próprios investigadores aceitaram, mas é um vergonhoso eufemismo. Estes dois milhões de portugueses que não conseguem pagar transportes para ir trabalhar, que não conseguem dar refeições decentes aos seus filhos, que não têm dinheiro para comprar manuais escolares, que não têm dinheiro para pagar uma consulta num hospital público, que não conseguem aquecer a casa no Inverno, que se escondem à hora de almoço porque nem sequer podem levar para o local de trabalho uma marmita com sopa, não correm “risco de pobreza”. São mesmo pobres. Porquê então o “risco”? Porque é do interesse dos poderes suavizar a expressão para se desresponsabilizarem da situação, para poderem negar a sua extensão e para reduzir o impacto social das estatísticas.

A existência de dois milhões de pobres no nosso país é uma afronta à nossa dignidade, uma vergonha para todos. Mas dois milhões de pessoas “em risco” de pobreza são uma estatística. Não significa nada. Afinal, não vivemos a vida inteira em risco de alguma coisa? De ser atropelados por um autocarro, de ter cancro, de que nos caia um tijolo na cabeça, de ser picados por uma abelha? E não conseguimos atravessar a maior parte destes riscos incólumes? Estamos habituados a falar de “risco” como de algo cuja probabilidade de acontecer é mínima e é por isso que os governos gostam de falar de “risco de pobreza”. Minimiza o problema.

É verdade que há uma razão “técnica” para se falar de “risco de pobreza” em vez de “pobreza”. É que não se pode garantir que quem tem um rendimento muito baixo seja de facto pobre. É possível defender, em teoria, que uma pessoa pode ter um rendimento baixíssimo ou mesmo nulo e não ser pobre. Pode viver de uma imensa fortuna escondida no colchão, por exemplo. Mas nada disso apaga a tragédia destes dois milhões de seres humanos, destes milhares e milhares de crianças com fome, destas filas intermináveis de velhos doentes a quem a pobreza maltrata com especial crueldade.

Há quem pense (principalmente à direita) que a pobreza é inevitável e mesmo culpa dos próprios pobres e que não podemos fazer nada a não ser remediar os seus efeitos mais terríveis. Mas há também quem pense (principalmente à esquerda) que a erradicação da pobreza é um dever de decência, que ninguém pode ser livre enquanto não formos todos livres e que a pobreza é apenas outra forma de escravidão, inaceitável como todas as explorações.

O debate sobre o salário mínimo traz à tona estes dois pontos de vista e coloca-os em confronto. Não existe nenhuma razão para não subir um salário mínimo que não permite sequer escapar à pobreza. Os próprios patrões aceitaram há três anos a actualização do salário mínimo e apenas a vontade do Governo, fanaticamente empenhado no seu projecto de empobrecimento dos trabalhadores e na sua transformação numa massa sem capacidade reivindicativa, travou esse acordo. É verdade que a agenda neoliberal diz que a manutenção de salários baixos permite combater o desemprego, mas não só essa doutrina está longe de estar provada como o objectivo pretendido pela política salarial não pode ser (para uma pessoa decente) o aumento do número de trabalhadores abaixo do limiar de pobreza. O que pretendemos não é trabalho escravo para todos, mas trabalho com dignidade para todos. É espantoso como 40 anos depois do 25 de Abril, um século depois da semana de 40 horas, volta a ser necessário declarar estas verdades evidentes.

A discussão sobre o aumento do salário mínimo não é uma discussão económica – ainda que ele seja benéfico para a economia. É uma questão de decência. E o aumento decente seria não para os 500 euros mas aquele que permitisse repor o poder de compra ao nível do que o primeiro salário mínimo instituiu.

2. Numa entrevista a Maria Flor Pedroso, na Antena 1, Diogo Freitas do Amaral considerou que seria benéfico se houvesse uma alternância de Governo entre um pólo à direita PSD-CDS e um pólo à esquerda PS-PCP, pela verdadeira alternância política que proporcionaria. Quantos militantes de esquerda foram ultrapassados pela esquerda pelo histórico da direita?


jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/actualizacao-do-salario-minimo-e-uma-questao-de-decencia-1632248

terça-feira, abril 08, 2014

Depois da economia informal, a política informal

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Abril de 2014
Crónica 20/2014


Em Portugal, no meio político, a regra é a informalidade, e isso é apresentado como um sinal dos nossos brandos costumes.


Durão Barroso diz que, quando era primeiro-ministro, chamou três vezes o governador do Banco de Portugal a São Bento, “para saber se aquilo que se dizia do BPN era verdade”. Não sabemos o que era então “aquilo”, mas sabemos que Vítor Constâncio, em resposta ao actual candidato a candidato à Presidência da República, disse duas coisas: que “nunca recebeu qualquer informação sobre possíveis irregularidades concretas no BPN” da parte de Durão Barroso e que não recordava “qualquer convocação exclusivamente sobre o BPN" feita pelo então primeiro-ministro.

É estranho o “exclusivamente”. Somos obrigados a pensar que Constâncio se lembra perfeitamente de três convocações do primeiro-ministro onde o BPN constava na agenda como tema a tratar só que... não era o ponto único da reunião. Assim, a declaração de Constâncio não desmente frontalmente o ex-primeiro-ministro. De facto, por muito importante que fosse a girândola de fraudes do BPN, seria natural que o governador do banco central e o primeiro-ministro tivessem tido pelo menos duas coisas para discutir numa reunião, e a expressão de Constâncio faz-nos pensar que foi precisamente isso que aconteceu. Mas o facto de Durão Barroso ter sido propositadamente vago também nos sugere que o PM não deverá ter dito nem perguntado a Constâncio nada de substantivo e até sugere que a conversa que terá mantido com o governador do Banco de Portugal terá sido num registo casual. “Ó Constâncio, o que me diz daquilo que se diz praí do BPN?” “Estamos atentos, senhor primeiro-ministro. Tomaremos as diligências que nos parecerem adequadas.” “Ah, bom. Assim, fico descansado.”

Não há, nem no aparte de Durão nem na resposta de Constâncio, nada que se pareça nem de longe nem de perto com o que seria a actuação responsável de um primeiro-ministro genuinamente preocupado com a eventualidade de uma fraude financeira de alto nível. Não ficamos com a impressão de que o primeiro-ministro estivesse suficientemente preocupado com “aquilo” que se dizia do BPN para tentar transformar em informação fiável o que seriam então simples rumores, solicitando, por exemplo ao Ministério das Finanças, que procedesse às diligências necessárias para tal, e muito menos para transmitir ao Ministério Público as suas suspeitas “daquilo”. Nem sequer a conversa com Vítor Constâncio parece ter tido como objectivo instar o Banco de Portugal a lançar-se sem demora no esclarecimento cabal das actividades do BPN. Se fosse assim, como Durão Barroso pretende insinuar, a expressão que usou teria sido mais clara. Imaginemos por um momento que Durão chama Constâncio a São Bento uma primeira vez e que lhe diz: “Tenho ouvido rumores de irregularidades no BPN. Quero saber se há alguma razão para preocupação. Pode averiguar?” Não tendo qualquer resposta do BdP, Durão chama novamente Constâncio a São Bento e declara, uma segunda vez, exactamente nos mesmos termos, a sua preocupação e repete o seu pedido. Imaginemos, como parece de facto ter acontecido, que Constâncio não faz nada. O que faz Durão? Chama novamente Constâncio a São Bento e repete pela terceira vez a sua preocupação e a seu pedido? A história é pouco verosímil, mas possível. Só que, se for verdadeira, ela representa da parte do ex-primeiro-ministro uma incúria pelo menos idêntica a do ex-governador e nunca inferior. (Uma mente maldosa poderia até imaginar que as convocações de Constâncio por parte de Durão se poderiam destinar mais a avaliar o grau de conhecimento que o BdP tinha das fraudes do BPN e os planos do banco central do que a instar o BdP a lançar-se às canelas dos prevaricadores.)

Há, em toda esta história, outra coisa que não se percebe. Como é possível que Durão e Constâncio possam contar estas histórias de forma tão imprecisa, baseando-se na sua memória? A Presidência do Conselho de Ministros não guarda registos? O Banco de Portugal não guarda registos? As reuniões não dão origem a actas? Nos Estados Unidos, uma história destas teria trinta memos escritos a sustentá-la, sete actas de reuniões, as agendas de todos os participantes, entradas nos diários dos intervenientes, dias e horas das reuniões e respectivas ordens de trabalhos, registos do que se disse e do que foi pedido e do que foi garantido e por quem.

Mas em Portugal, no meio político, a regra é a informalidade e isso é apresentado como um sinal dos nossos brandos costumes. O problema é que a informalidade é a arma de eleição dos corruptos e dos aldrabões. Os políticos não têm agendas, as reuniões não tem actas, as declarações não têm testemunhas. E, nos raros casos em que esses documentos existem, os protagonistas levam-nos para casa no fim da legislatura como se fossem propriedade sua e não património público e um elemento essencial da responsabilização dos agentes políticos.

Não são só as reuniões entre Durão e Barroso que são “informais” mesmo quando são reuniões oficiais entre o primeiro-ministro e o governador do Banco de Portugal. As reuniões entre o Governo e a troika também são “informais” mesmo quando delas saem decisões que o Governo quer sobrepor à Constituição. Ou as reuniões de “Salvação Nacional” entre o PS e o PSD. O objectivo é sempre o mesmo: apagar o melhor possível o rasto. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, abril 02, 2014

Cavalos na Alameda da Universidade



Post publicado no Facebook a 2 de Abril de 2014
O passeio lateral da Alameda da Universidade, frente à Faculdade de Direito de Lisboa, exibe um enorme rasto de bostas de cavalo, sobre a calçada portuguesa, ao longo de uns vinte metros de comprimento. O rasto é bem visível, o passeio largo e a maioria dos transeuntes afasta-se prudentemente. As bostas vão ornamentar o passeio durante dias, dependendo da quantidade de chuva que cair e do número de incautos que ajudar a espalhar o excremento pelo empedrado. Mas, quando estas bostas desaparecerem, outro rasto virá substitui-las, mais à direita ou mais à esquerda. E às vezes o zelo cavalar é tanto que a segunda pista surge ao lado da primeira, quando o tempo e a intempérie ainda não conseguiram apagar a mais antiga.
O paradoxo é que quem anda a excrementar os passeios com tal generosidade são as forças da ordem da GNR, que garbosamente patrulham a cavalo o campus universitário, para dissuadir atropelos à lei. Nunca presenciei nenhuma tentativa por parte dos agentes para multar o proprietário de um cão que, por acaso, tivesse defecado na via pública, mas a contribuição do cão não poderia deixar de parecer insignificante perante a abundância proporcionada pelas montadas da GNR e a presumível argumentação do dono do cão seria certamente convincente. É provável que, nestes casos, os militares façam vista grossa e finjam observar o horizonte em busca de meliantes mas, mesmo noutras circunstâncias onde o paralelo não seja tão evidente, receio que a autoridade moral para uma admoestação ou para a aplicação de uma multa (sim, é preciso autoridade moral para isso) possa ser posta em causa.
A patrulha a cavalo tem o seu encanto. O problema é que a calçada portuguesa não tem a mesma eficácia a degradar bosta de cavalo que uma campina ribatejana, onde a digestão de uma manada pode passar completamente despercebida. Na calçada branca, não passa.
Há um mistério no facto de os cavalos escolherem o passeio em frente da Faculdade de Direito para se aliviarem, mas pode ser que não se trate de uma preferência. Talvez defequem por todo o lado, constantemente, sem olhar a quando nem a onde, e aqui o facto ressalte mais.
Há uma sugestão que se pode fazer: não sendo justo condenar os cavalos à obstipação química, nem acantoná-los em permanência nas cavalariças, parece razoável mudar-lhes a ronda para paragens mais campestres, onde servem mais e melhor e, nos passeios da Cidade Universitária e nos jardins do Campo Grande, passar a usar bicicletas, cujo controlo de esfíncteres é mais sofisticado.

terça-feira, abril 01, 2014

Os jornalistas não podem ser cúmplices de encobrimento

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Abril de 2014
Crónica 19/2014


A não identificação das fontes deve servir para proteger os mais fracos, não os mais fortes.

“Pois, pois, eu sei, os jornalistas nunca revelam as suas fontes…” A frase é em geral dita ao jornalista com um sorriso sabido e acompanhada de uma piscadela de olho em sinal de cumplicidade. Na verdade, a frase é um disparate absoluto.

A regra e o dever do jornalista é, pelo contrário, identificar as fontes, como se escreve no Código Deontológico do Jornalista. Porquê? Porque o compromisso dos jornalistas é, antes de mais e acima de tudo, com os seus leitores (e não com as suas fontes, e não com o Governo, e não com os seus patrões) e os cidadãos têm tanto direito a conhecer a informação como a conhecer a sua fonte. Porquê? Para poderem avaliar eles próprios da credibilidade da informação e porque os cidadãos devem ter a possibilidade de responsabilizar a fonte, se se verificar que a informação prestada é afinal falsa ou malévola.

Há ainda outra razão para a identificação das fontes quando se trata de actos de agentes políticos ou de responsáveis da administração pública: o facto de o jornalista ter o dever de promover a responsabilização dos poderes.

Há casos em que o jornalista deve proteger a identidade da sua fonte? Há, mas a não identificação é uma excepção e apenas deve ser usada para proteger a fonte de eventuais represálias. É o caso de um funcionário de uma organização que denuncie ilegalidades praticadas por essa organização e que não deve ser penalizado por cumprir um dever de cidadania. O anonimato deve servir para proteger os mais fracos, não os mais fortes.

Há outros casos onde o jornalista deve garantir o anonimato a uma fonte mesmo que esta não corra perigo? Há, mas são excepções que deveriam ser ainda mais raras: quando a informação oferecida ao jornalista em troca da garantia de anonimato é muito relevante para o público e quando não é possível obter essa informação sem esse compromisso. Trata-se de uma cedência feita pelo jornalista em nome do superior interesse dos leitores.

Se o anonimato das fontes dos jornalistas deve ser uma excepção porque é que vemos tantos filmes com jornalistas que juram proteger a identidade das suas fontes anónimas? Porque os filmes contam histórias com situações excepcionais.

Mas então os jornalistas que foram ao briefing do secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, fizeram bem ou mal em não o identificar? Pode-se pensar que fizeram bem, porque se tinham comprometido a não o identificar e as pessoas honestas cumprem os seus compromissos. Só que o próprio Código Deontológico abre uma excepção para os casos em que o jornalista garante o anonimato da fonte: quando a fonte mente. Nesse caso, o jornalista deixa de estar preso ao seu compromisso e pode identificá-la. Ora, segundo Passos Coelho, terá sido isso o que Leite Martins fez. Ao desmentir o secretário de Estado, Passos Coelho desvinculou os jornalistas de qualquer promessa de confidencialidade que tivessem feito.

Só que isto está longe de ser o cerne da questão.

O cerne da questão é que um grupo de jornalistas aceitou um convite de um membro do Governo para uma reunião onde lhes seriam dadas informações sobre as quais poderiam escrever e onde até poderiam fazer citações da fonte desde que não a identificassem (não é a isso que se chama off the record, mas isso é outra história). Não poderiam dizer que se tratava do secretário de Estado da Administração Pública José Leite Martins, mas poderiam citar as suas palavras atribuindo-as a uma “fonte oficial”. E os jornalistas aceitaram, antes mesmo de saber o que lhes iriam contar.

Ao aceitar esta restrição ao seu dever de informar, os jornalistas (e os seus órgãos de comunicação) cometeram uma falha grave. Ao prometer o anonimato, os jornalistas tornaram-se cúmplices do encobrimento de um membro do Governo que tem a obrigação moral e legal de assumir responsabilidades pelo que faz e pelo que diz. E colocaram-se numa posição a partir da qual será difícil exigir futuramente transparência e assunção de responsabilidades aos membros do Governo.

Havia uma razão para os jornalistas aceitarem o anonimato? O membro do Governo correria algum risco? Não. Queria apenas evitar responder à oposição e poder negar tudo o que dissera se as reacções fossem muito negativas (como foram), fiando-se na promessa dos jornalistas de que não o identificariam. Tratou-se apenas de uma operação de balão de ensaio comhigh deniability que é duvidoso que não fosse do conhecimento da ministra das Finanças e do PM.

Só que os jornalistas não existem para ser cúmplices destas manobras. Não era difícil fazer a coisa certa. A regra é simples: os jornalistas não são megafones nem testas-de-ferro do Governo. Se um membro do Governo quiser dizer alguma coisa, que diga e que assuma o que diz. É isso que os cidadãos lhe exigem. E, se por alguma razão inconfessável, não quer assumir o que diz, que se cale em vez de mandar uns jornalistas fazer o seu trabalho. E os jornalistas, quando um membro do Governo lhes manda escrever alguma coisa e ainda lhes diz como o devem escrever, devem simplesmente dizer não. (jvmalheiros@gmail.com)


Artigo no Público: http://www.publico.pt/portugal/noticia/os-jornalistas-nao-podem-ser-cumplices-de-encobrimento-1630495