por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Abril de 2014
Crónica 19/2014
A não identificação das fontes deve servir para proteger os mais fracos, não os mais fortes.
“Pois, pois, eu sei, os jornalistas nunca revelam as suas fontes…” A frase é em geral dita ao jornalista com um sorriso sabido e acompanhada de uma piscadela de olho em sinal de cumplicidade. Na verdade, a frase é um disparate absoluto.
A regra e o dever do jornalista é, pelo contrário, identificar as fontes, como se escreve no Código Deontológico do Jornalista. Porquê? Porque o compromisso dos jornalistas é, antes de mais e acima de tudo, com os seus leitores (e não com as suas fontes, e não com o Governo, e não com os seus patrões) e os cidadãos têm tanto direito a conhecer a informação como a conhecer a sua fonte. Porquê? Para poderem avaliar eles próprios da credibilidade da informação e porque os cidadãos devem ter a possibilidade de responsabilizar a fonte, se se verificar que a informação prestada é afinal falsa ou malévola.
Há ainda outra razão para a identificação das fontes quando se trata de actos de agentes políticos ou de responsáveis da administração pública: o facto de o jornalista ter o dever de promover a responsabilização dos poderes.
Há casos em que o jornalista deve proteger a identidade da sua fonte? Há, mas a não identificação é uma excepção e apenas deve ser usada para proteger a fonte de eventuais represálias. É o caso de um funcionário de uma organização que denuncie ilegalidades praticadas por essa organização e que não deve ser penalizado por cumprir um dever de cidadania. O anonimato deve servir para proteger os mais fracos, não os mais fortes.
Há outros casos onde o jornalista deve garantir o anonimato a uma fonte mesmo que esta não corra perigo? Há, mas são excepções que deveriam ser ainda mais raras: quando a informação oferecida ao jornalista em troca da garantia de anonimato é muito relevante para o público e quando não é possível obter essa informação sem esse compromisso. Trata-se de uma cedência feita pelo jornalista em nome do superior interesse dos leitores.
Se o anonimato das fontes dos jornalistas deve ser uma excepção porque é que vemos tantos filmes com jornalistas que juram proteger a identidade das suas fontes anónimas? Porque os filmes contam histórias com situações excepcionais.
Mas então os jornalistas que foram ao briefing do secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, fizeram bem ou mal em não o identificar? Pode-se pensar que fizeram bem, porque se tinham comprometido a não o identificar e as pessoas honestas cumprem os seus compromissos. Só que o próprio Código Deontológico abre uma excepção para os casos em que o jornalista garante o anonimato da fonte: quando a fonte mente. Nesse caso, o jornalista deixa de estar preso ao seu compromisso e pode identificá-la. Ora, segundo Passos Coelho, terá sido isso o que Leite Martins fez. Ao desmentir o secretário de Estado, Passos Coelho desvinculou os jornalistas de qualquer promessa de confidencialidade que tivessem feito.
Só que isto está longe de ser o cerne da questão.
O cerne da questão é que um grupo de jornalistas aceitou um convite de um membro do Governo para uma reunião onde lhes seriam dadas informações sobre as quais poderiam escrever e onde até poderiam fazer citações da fonte desde que não a identificassem (não é a isso que se chama off the record, mas isso é outra história). Não poderiam dizer que se tratava do secretário de Estado da Administração Pública José Leite Martins, mas poderiam citar as suas palavras atribuindo-as a uma “fonte oficial”. E os jornalistas aceitaram, antes mesmo de saber o que lhes iriam contar.
Ao aceitar esta restrição ao seu dever de informar, os jornalistas (e os seus órgãos de comunicação) cometeram uma falha grave. Ao prometer o anonimato, os jornalistas tornaram-se cúmplices do encobrimento de um membro do Governo que tem a obrigação moral e legal de assumir responsabilidades pelo que faz e pelo que diz. E colocaram-se numa posição a partir da qual será difícil exigir futuramente transparência e assunção de responsabilidades aos membros do Governo.
Havia uma razão para os jornalistas aceitarem o anonimato? O membro do Governo correria algum risco? Não. Queria apenas evitar responder à oposição e poder negar tudo o que dissera se as reacções fossem muito negativas (como foram), fiando-se na promessa dos jornalistas de que não o identificariam. Tratou-se apenas de uma operação de balão de ensaio comhigh deniability que é duvidoso que não fosse do conhecimento da ministra das Finanças e do PM.
Só que os jornalistas não existem para ser cúmplices destas manobras. Não era difícil fazer a coisa certa. A regra é simples: os jornalistas não são megafones nem testas-de-ferro do Governo. Se um membro do Governo quiser dizer alguma coisa, que diga e que assuma o que diz. É isso que os cidadãos lhe exigem. E, se por alguma razão inconfessável, não quer assumir o que diz, que se cale em vez de mandar uns jornalistas fazer o seu trabalho. E os jornalistas, quando um membro do Governo lhes manda escrever alguma coisa e ainda lhes diz como o devem escrever, devem simplesmente dizer não. (jvmalheiros@gmail.com)
Artigo no Público: http://www.publico.pt/portugal/noticia/os-jornalistas-nao-podem-ser-cumplices-de-encobrimento-1630495
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