por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Abril de 2014
Crónica 21/2014
Não há nenhuma razão para não subir um salário mínimo que não permite escapar à pobreza.
1. Portugal é um dos países da União Europeia onde é mais elevada a proporção de trabalhadores pobres. Pessoas com emprego, que se levantam todos os dias de manhã para ir trabalhar, que recebem salário, mas cujo rendimento não é suficiente para os arrancar e às suas famílias da pobreza. São meio milhão de pessoas.
E, além destes, há ainda mais um milhão e meio de pobres. Isto levando já em conta as pensões de reforma e sobrevivência, os subsídios de doença, de desemprego e outros apoios do Estado. Depois de todos receberem tudo aquilo a que têm direito segundo a lei, há, mesmo assim, quase dois milhões de pobres.
Os artigos que lemos nos jornais falam sempre de percentagens da população em “risco de pobreza” mas trata-se de um eufemismo. É um eufemismo que a terminologia oficial impôs, que as estatísticas usam e que os próprios investigadores aceitaram, mas é um vergonhoso eufemismo. Estes dois milhões de portugueses que não conseguem pagar transportes para ir trabalhar, que não conseguem dar refeições decentes aos seus filhos, que não têm dinheiro para comprar manuais escolares, que não têm dinheiro para pagar uma consulta num hospital público, que não conseguem aquecer a casa no Inverno, que se escondem à hora de almoço porque nem sequer podem levar para o local de trabalho uma marmita com sopa, não correm “risco de pobreza”. São mesmo pobres. Porquê então o “risco”? Porque é do interesse dos poderes suavizar a expressão para se desresponsabilizarem da situação, para poderem negar a sua extensão e para reduzir o impacto social das estatísticas.
A existência de dois milhões de pobres no nosso país é uma afronta à nossa dignidade, uma vergonha para todos. Mas dois milhões de pessoas “em risco” de pobreza são uma estatística. Não significa nada. Afinal, não vivemos a vida inteira em risco de alguma coisa? De ser atropelados por um autocarro, de ter cancro, de que nos caia um tijolo na cabeça, de ser picados por uma abelha? E não conseguimos atravessar a maior parte destes riscos incólumes? Estamos habituados a falar de “risco” como de algo cuja probabilidade de acontecer é mínima e é por isso que os governos gostam de falar de “risco de pobreza”. Minimiza o problema.
É verdade que há uma razão “técnica” para se falar de “risco de pobreza” em vez de “pobreza”. É que não se pode garantir que quem tem um rendimento muito baixo seja de facto pobre. É possível defender, em teoria, que uma pessoa pode ter um rendimento baixíssimo ou mesmo nulo e não ser pobre. Pode viver de uma imensa fortuna escondida no colchão, por exemplo. Mas nada disso apaga a tragédia destes dois milhões de seres humanos, destes milhares e milhares de crianças com fome, destas filas intermináveis de velhos doentes a quem a pobreza maltrata com especial crueldade.
Há quem pense (principalmente à direita) que a pobreza é inevitável e mesmo culpa dos próprios pobres e que não podemos fazer nada a não ser remediar os seus efeitos mais terríveis. Mas há também quem pense (principalmente à esquerda) que a erradicação da pobreza é um dever de decência, que ninguém pode ser livre enquanto não formos todos livres e que a pobreza é apenas outra forma de escravidão, inaceitável como todas as explorações.
O debate sobre o salário mínimo traz à tona estes dois pontos de vista e coloca-os em confronto. Não existe nenhuma razão para não subir um salário mínimo que não permite sequer escapar à pobreza. Os próprios patrões aceitaram há três anos a actualização do salário mínimo e apenas a vontade do Governo, fanaticamente empenhado no seu projecto de empobrecimento dos trabalhadores e na sua transformação numa massa sem capacidade reivindicativa, travou esse acordo. É verdade que a agenda neoliberal diz que a manutenção de salários baixos permite combater o desemprego, mas não só essa doutrina está longe de estar provada como o objectivo pretendido pela política salarial não pode ser (para uma pessoa decente) o aumento do número de trabalhadores abaixo do limiar de pobreza. O que pretendemos não é trabalho escravo para todos, mas trabalho com dignidade para todos. É espantoso como 40 anos depois do 25 de Abril, um século depois da semana de 40 horas, volta a ser necessário declarar estas verdades evidentes.
A discussão sobre o aumento do salário mínimo não é uma discussão económica – ainda que ele seja benéfico para a economia. É uma questão de decência. E o aumento decente seria não para os 500 euros mas aquele que permitisse repor o poder de compra ao nível do que o primeiro salário mínimo instituiu.
2. Numa entrevista a Maria Flor Pedroso, na Antena 1, Diogo Freitas do Amaral considerou que seria benéfico se houvesse uma alternância de Governo entre um pólo à direita PSD-CDS e um pólo à esquerda PS-PCP, pela verdadeira alternância política que proporcionaria. Quantos militantes de esquerda foram ultrapassados pela esquerda pelo histórico da direita?
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/actualizacao-do-salario-minimo-e-uma-questao-de-decencia-1632248
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