terça-feira, agosto 26, 2014

Num mundo desigual, a liberdade é um privilégio de alguns e não um bem universal

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Agosto de 2014

Crónica 40/2014

É estranho ver alguém defender denodadamente a ideia de liberdade e denegrir em seguida a ideia de igualdade (ou contestar a sua possibilidade), como se a segunda não fosse condição da primeira.


A crise económica e social que temos vivido nos últimos anos, à qual se somou uma crise de segurança internacional, tem uma única virtude: prova-nos que nada está adquirido para sempre em termos civilizacionais e obriga-nos a revisitar questões que supúnhamos definitivamente consensuais e a reflectir sobre problemas que, apesar de os sabermos fundamentais, negligenciámos como sociedade durante muito tempo, esperando que o tempo os fizesse desaparecer ou os varresse pelo menos para longe da nossa vista.

Uma dessas questões é a questão da igualdade, um valor que desde a Revolução Francesa separa águas entre esquerda e direita e que reapareceu com uma agudeza acrescida com a consciência das desigualdades crescentes das nossas sociedades, depois de décadas em que o ideal democrático, o primado da lei e o desenvolvimento tecnológico pareciam prometer-nos a distribuição justa de uma riqueza crescente com bem-estar para todos.

Para a extrema-direita económica que governa o mundo ocidental, que designamos ironicamente como neoliberal (ironicamente porque é de facto velha e porque abomina toda a liberdade que não seja a dos privilegiados), a desigualdade é simultaneamente inevitável e extremamente positiva. "Inevitável" porque, sendo os homens naturalmente diferentes, qualquer hipotético estado de igualdade inicial depressa daria origem a desigualdades, pela diferente forma como cada um reage ao meio e explora as oportunidades que se lhe oferecem. "Positiva" porque, dizem, essa desigualdade é o verdadeiro motor do progresso, incitando cada um a melhorar a sua sorte e a fazer o possível por atingir um nível de bem-estar superior ao do seu vizinho. A direita neoliberal oscial entre os dois argumentos, refugiando-se no argumento da "inevitabilidade"quando é confrontada com a injustiça evidente de certas situações de desigualdade e a sua falta de vontade em as reduzir e argumentando com a "desigualdade-factor de progresso" sempre que a audiência é receptiva. Para a direita neoliberal, decorre destes argumentos que a desigualdade na sociedade é justa, porque corresponde, para os privilegiados, a uma recompensa dos seus talentos naturais e do seu esforço e, para os excluídos, de um castigo pela sua falta de talentos e de esforço.

A argumentação é tão frouxa que não valeria a pena rebatê-la, se não se desse o caso de ela colher um considerável apoio popular, graças a uma barragem de propaganda que não tem limites orçamentais e que conseguiu vender a ideia do sonho americano "from rags to riches" ao universo de indigentes acorrentados à televisão que veio substituir o que já se chamou proletariado. Basta considerar o carácter hereditário da riqueza e da pobreza e a sua acumulação crescente nos dois extremos do espectro social ao longo dos séculos para destruir qualquer ideia de "mérito" dos privilegiados ou "demérito" dos deserdados. Aliás, se algum destes neoliberais levasse a sério a sua teoria do mérito e a sua defesa do liberalismo económico, deveria ser um feroz adversário de todas as rendas e das heranças e um opositor da captura do Estado pelas empresas. Na realidade, dedicam as suas vidas a tentar reforçar os seus privilégios, obtidos por nascimento, por tráfico de influências ou ambos.

É estranho ver alguém defender denodadamente a ideia de liberdade e denegrir em seguida a ideia de igualdade (ou contestar a sua possibilidade), como se a segunda não fosse condição da primeira. A realidade é que, num mundo desigual, a liberdade não existe como valor universal, igualmente acessível a todos, igualmente devida a todos, igualmente propriedade de todos. Num mundo desigual, a liberdade é um privilégio de alguns, distribuído de acordo com os princípios que regem a distribuição desigual - quer se trate de bens materiais ou morais. Só se defende a liberdade como valor quando se defende a igualdade no seu acesso. De outra forma, apenas se defende a liberdade de alguns, e sempre em detrimento de outros. Trata-se não de uma defesa da liberdade mas de uma visão plutocrática da liberdade, anti-liberal por excelência porque anti-igualitária. Da mesma forma, apenas se defende a saúde quando se defende a "saúde para todos" e apenas se defende a educação quando se defende a "educação para todos".

É evidente para quem o queira ver que a desigualdade entre um desempregado sem subsídios e um trabalhador com um emprego estável e uma remuneração decente definem graus de liberdade para cada uma destas pessoas que se encontram a anos-luz de distância e o mesmo acontece, noutro grau, quando as diferenças são menos extremas.

Admitir as desigualdades não significa admitir apenas a pobreza, a carência extrema e o sofrimento gratuito lado a lado com a opulência, a fome ao lado do desperdício. Significa admitir uma modulação da liberdade, de acordo com a riqueza de cada cidadão. Significa admitir um "mercado" onde a liberdade se compra e se vende como uma mercadoria e não é um valor universal.

Arvorar em valor a liberdade mas defendê-la sobre o pano de fundo de uma inevitável desigualdade é, na realidade, o extremo oposto da liberdade. É a liberdade dos fortes e a submissão dos fracos. Como dizia no século XIX o dominicano Henri Lacordaire, "Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta".

terça-feira, agosto 19, 2014

Governo quer dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Agosto de 2014
Crónica 39/2014

O decreto agora aprovado é um gesto anti-patriótico, um gesto contra a segurança social e um gesto contra os pobres

Uma lei ou um decreto não entram em vigor quando são aprovados pelo Governo ou pelo Parlamento, nem sequer quando são promulgados pelo Presidente da República, mas apenas quando são publicados. Numa democracia, é o facto de dar a conhecer as leis aos cidadãos e de as expor ao julgamento público (porque, mesmo depois de entrar em vigor, uma lei pode sempre ser revogada ou alterada se for julgada injusta ou ineficaz) que as torna de facto leis da República. A publicação é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para conferir a uma lei a sua dignidade e a sua validade porque a publicação, o conhecimento pelo povo, é a condição primeira da participação e da escolha democrática.

Mas este está longe de ser o único caso em que a publicação, a transparência, a exposição ao julgamento público é considerada essencial à validade de um processo político ou jurídico. Todos conhecemos o caso dos casamentos, contratos públicos, onde é obrigatória a publicação prévia de banhos e a sua celebração de porta aberta, ou o caso dos julgamentos, cerimónias públicas por excelência, onde apenas circunstâncias excepcionais, relacionadas com a protecção de valores superiores e devidamente justificadas (protecção de menores, por exemplo) podem permitir a sua realização de porta fechada.

Mesmo no caso das leis, a publicação não é um procedimento apenas devido após a conclusão do processo. Numa democracia, todo o processo de produção das leis tem de ser absolutamente transparente e estar sempre exposto ao escrutínio público. O povo tem o direito a saber quem propôs uma lei, quem escreveu a proposta, quem foi ouvido para a sua preparação, que discussão teve lugar, quem defendeu que posição e com que argumentos, que alterações lhe foram introduzidas durante a discussão, quem a aprovou, quem votou contra e quem se absteve e com que argumentos, etc.

E esta transparência não se pode restringir à discussão nos plenários do Parlamento, que é a parte mais espectacular mas a mais superficial da produção legislativa. Ela tem de incluir todos os trâmites processuais, incluindo as posições das inúmeras entidades cuja consulta os deputados considerem necessária e que deveriam ser sempre disponibilizadas para consulta dos cidadãos, no dossier de documentos preparatórios que deveria estar disponível nos sites do Parlamento e do Governo para consulta pública, ao lado de cada diploma em discussão ou aprovado.

Qualquer sonegação de informação, qualquer encobrimento habilidoso fere de morte o processo legislativo e descredibiliza os políticos e, por arrasto, a própria democracia. É por isso que é sempre particularmente grave ver o mês de Agosto ou o período do Natal serem aproveitados para "enfiar" à sucapa algumas leis controversas ou uns concursos destinados apenas a alguns amigos avisados, enquanto o povo está distraído, em férias e festas. É esse o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que abre e fecha em Agosto um concurso para bolsas de gestão de ciência e tecnologia ou, o que é muito mais grave, o caso do decreto da Assembleia da República de 25 de Julho que "autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online".

Na prática, como já foi denunciado nomeadamente por José Ribeiro e Castro (único deputado da maioria a votar contra, honra lhe seja feita) este decreto, contestado por toda a oposição, abre a porta à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o Euromilhões, com a desculpa aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa pela sua liberalização. É falso, mas o lobby do jogo, que possui muitos milhões para influenciar vontades, não tem olhado a meios nem a despesas para enfiar esta cunha através da qual espera conseguir finalmente destruir o monopólio da Misericórdia de Lisboa e apoderar-se dos seus enormes lucros, que actualmente alimentam a Segurança Social.

A iniciativa legislativa que pretende dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa é do secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, e a ideia é simples. O que se pretende é abrir uma excepção no domínio dos jogos de azar, permitindo a entrada de entidades privadas, de forma a destruir aquela que tem sido a argumentação do estado português na União Europeia em defesa do monopólio do jogo por parte da Misericórdia - o seu objectivo social, a necessidade de não promover o vício do jogo, etc..

A actual situação portuguesa é perfeitamente compatível com as regras da UE (ao contrário do que dizem as vozes seduzidas pelo lobby) mas deixará de o ser se o próprio Estado abrir uma excepção. O decreto agora aprovado é por isso um gesto anti-patriótico, que mina uma posição de defesa nacional; um gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo, que assim conquistam mais uma ferramenta de alienação e de exploração dos trabalhadores. Uma das portas que o novo decreto abre é, sintomática e tristemente, a publicidade ao jogo, numa era onde se tenta restringir cada vez mais a publicidade ao tabaco e ao álcool por razões de saúde pública.

O jovem Adolfo Mesquita Nunes está orgulhoso porque sabe que, com esta fulgurante medida, a sua carreira política e o seu futuro estão garantidos. O Governo, por seu lado, exulta, com mais uma medida que nos vai roubar a todos mais umas centenas de milhões de euros por ano e enfiá-los no bolso de grandes senhores da finança.

terça-feira, agosto 12, 2014

E se, por uma vez, houvesse uma investigação a sério?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Agosto de 2014

Crónica 38/2014

Se não quer viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos e os pobres todas as culpas, exija justiça

"Erros de gestão", "imprudência", "irregularidades", "risco de crédito", "falta de activos", "imparidades", "activos tóxicos", "incumprimento", "problemas de solvabilidade", "insuficiências de capital", "infidelidade", "gestão danosa", "abuso de informação privilegiada", "abuso de confiança". Há, no simples léxico usado pelo mundo político, pelo mundo financeiro e pelo mundo mediático para descrever o caso BES, narrativas implícitas que se impõem como explicações naturais para o descalabro do império Espírito Santo. Não são precisos verbos para descrever a acção quando se usam estes substantivos. Cada um deles conta a sua história própria, insinuando diferentes níveis de responsabilidade e respeitabilidade para cada um dos intervenientes.

A mais benévola dessas narrativas, hoje em perda, descreve uma organização liderada por gestores ousados e bem relacionados no país e no estrangeiro, que alargaram excessivamente as suas operações financeiras movidos por uma enorme ambição e com o apadrinhamento da liderança política, lançando-se numa trajectória de investimentos de alto risco que acabou mal devido à crise financeira nacional e internacional. É uma história de ambição e de cegueira, de ascensão e queda, uma saga de decadência. Outra narrativa descreve uma família habituada durante gerações a mandar nos destinos do país e que, mercê de uma complexa teia de favores financeiros e políticos, que distribuiu prodigamente, alargou a sua influência até um ponto em que a sua insuficiente competência e as rivalidades internas se combinaram para desagregar o império. É uma história de vaidades e infelicidades, de pobres diabos que por acaso são arrogantes milionários. Outra ainda, descreve uma organização criminosa da alta finança, envolvida num esquema piramidal alimentado por uma reputação de poder e de influência que lhe garantiu a atracção de cada vez mais capital, capital esse cuja gestão foi descuidada e cujos investimentos produziram por isso cada vez menos rendimentos e que, também por isso, começou a ser crescentemente utilizado para comprar favores políticos que garantiram cada vez mais entradas de capital que foi descaradamente desviado para os bolsos dos líderes da organização e escondido em off-shores exóticas. É uma história de crime, de tráfico de influências e de chantagens, de ganância sem escrúpulos.

Conforme os narradores e os seus interlocutores, as narrativas cruzam-se, entretecem-se, tornam-se mais policiais e brutais ou mais palacianas e refinadas. A hesitação entre todas elas é uma prova da rede de influências que Ricardo Salgado espalhou pelo país e que ainda está por aí, em estado de vida latente, a ver para que lado caem as fichas. Ricardo Salgado poderá já não ser o "partido" com mais deputados na Assembleia da República, mas as notícias da sua morte podem estar a ser exageradas. Salgado negou ter 30 milhões de euros em Singapura, mas terá 300 milhões no Brasil? Ou mais? Até onde se estende ainda o império Espírito Santo? O caso BES vai ser o "escândalo BES" ou apenas a "crise BES"? Ricardo Salgado é um escroque ou um tolo? Cometeu erros ou cometeu crimes? O que o protegeu durante tanto tempo? Teve sorte ou teve cúmplices?

Apesar de se acumularem os sinais de "irregularidades" no BES (algumas denunciadas pela CMVM ao Ministério Público, ainda antes das suspeitas de insider trading dos últimos dias) a verdade é que a narrativa se arrisca a amornar, com a CMVM e o Banco de Portugal e o Governo a lavar as suas mãos e o contribuinte a pagar os luxos de que Ricardo Salgado fez beneficiar tantos amigos.

A prudência dos média é natural. Não se pode acusar alguém sem provas e não se pode dizer que alguém é um ladrão antes de a sentença transitar em julgado, o que pode não acontecer nunca, mesmo que o ladrão confesse o roubo e todos o tenhamos testemunhado. Mas é fundamental, em nome da sanidade da sociedade, da sanidade da justiça e da sanidade da política que haja uma investigação consolidada de todo o processo de falência do GES e do BES e não apenas investigações esparsas desta ou daquela "irregularidade", que irão concluir que um burocrata se esqueceu de carimbar um impresso.

O que o Governo tem de anunciar é o pedido dessa grande investigação ao Ministério Público, com a máxima urgência e garantindo-lhe todos os meios. E, se não o fizer, apenas poderemos concluir que receia ver-se envolvido ele próprio (leia-se PSD e CDS) nos negócios sob escrutínio. Recordam-se de Carlos Costa a garantir há um mês que nem o BES nem o GES tinham um problema de solvabilidade? E de Cavaco Silva? E de Passos Coelho? Que as responsabilidades políticas não sejam assumidas pelo governo é algo a que estamos habituados, mas temos de exigir a responsabilização criminal de quem rouba de forma tão colossal e tão descarada. E a verdade é que falta dinheiro no BES e que nos vão pedir para tapar o buraco. Não chegará isso para exigir a investigação?

O que não podemos aceitar, em nome da decência, são processos tão vergonhosos como o do BCP ou o do BPN. Não podemos aceitar que, de novo, um processo BES se salde por uma multa ridícula, pela inibição de gerir um banco durante os próximos anos, pela prescrição do crime ou pela condenação de um bode expiatório isolado.

As "irregularidades" cometidas pelo GES e pelo BES foram cometidas ao longo de muitos anos, beneficiando um pequeno grupo de ricos parasitas e de caciques políticos, envolvendo muitas pessoas e enganando muitas mais. Existem certamente inúmeros documentos e muitas testemunhas dessas "irregularidades", muitas das quais preferirão denunciar os crimes de que tenham conhecimento em troca de uma consciência aliviada e de uma atenuação da condenação. Tem de ser possível encontrar as provas necessárias e levar uma investigação séria até ao fim.

À imprensa cabe, entretanto, ir juntando as pedrinhas dos factos - como a discrepância sobre o momento em que o Banco de Portugal decidiu partir o BES em dois e o momento em que comunicou essa decisão à CMVM, como as razões da autorização do aumento de capital do BES pelo BdP e pela CMVM, como as razões dos perdões dos esquecimentos fiscais de Salgado, como a venda das acções da Rioforte aos balcões do BES, etc., etc. - de forma a tornar incontornável a exigência de uma verdadeira averiguação.
E a todos os cidadãos que recusam viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos, incluindo o direito a roubar o nosso dinheiro e a escapar impunes, cabe-nos exigir justiça.

terça-feira, agosto 05, 2014

Novo Banco, Velho Banco: mais uma viagem, mais uma corrida

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Agosto de 2014
Crónica 37/2014

Teríamos gostado de ver o Banco de Portugal garantir que nunca mais algo semelhante se voltaria a passar nas suas barbas. Mas não vemos

O Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, lá acabou por admitir que nos tem andado a enganar. Não o disse por estas palavras nem com esta clareza, claro, mas lá o disse, no cuidado fraseado que a banca e as "entidades reguladoras" usam, recheado de jargão técnico e de eufemismos elegantes. Afinal era mentira que os problemas do Grupo Espírito Santo fossem totalmente independentes do BES, era mentira que tudo estivesse bem no BES, era mentira que o BES tivesse uma almofada financeira suficiente para colmatar os buracos do crédito mal parado e das imparidades, era mentira que houvesse algumas coisas que andavam mal no GES mas que não punham em causa a credibilidade da banca portuguesa e do sistema financeiro (vide evolução das taxas de juro), era mentira que o Estado não precisaria de resgatar o BES, era mentira que os testes de stress tivessem provado a solidez do BES, era mentira que não houvesse razão para afastar rapidamente Ricardo Salgado da gestão corrente do banco e mesmo do seu Conselho Estratégico, etc.


Note-se que não há a mínima razão para pensar que Carlos Costa terá mentido intencionalmente e, se por acaso o fez com intenção, não há a mínima razão para pensar que a sua intenção não fosse boa. Mas aconteceu que as suas declarações descreveram ao longo dos últimos meses (anos?) uma realidade diversa da realidade real, muito mais optimista que aquilo que nos parece hoje ajustado e onde não havia quaisquer razões para suspeitar de actividades ilícitas. Acontece. Mais: se houve um optimismo exagerado e aqui e ali alguma informação sonegada ao público, é provável que Carlos Costa tenha considerado que fazia o seu dever, já que a confiança é o principal capital do sistema financeiro. Pode pensar-se que Carlos Costa e todos os funcionários do Banco de Portugal que lidaram com a questão BES foram enganados pelo banco e pelos seus dirigentes (o que não diria muito bem das suas capacidades de fiscalização e regulação, já para não falar da sua competência, argúcia ou bom senso) ou que perceberam num ápice o que se passava mas não quiseram tornar pública a verdadeira dimensão do problema para não causar maiores estragos. É possível. O que seria bom que o Banco de Portugal e Carlos Costa percebessem é que esta estratégia possui custos elevados ao nível da credibilidade da instituição e das pessoas que a integram. Ou seja: se tudo tivesse acabado em bem, o Banco de Portugal teria podido manter a sua ficção até ao fim. Mas, como não acabou, a ficção acabou por se revelar uma fraude. Seja por que o Banco de Portugal não percebeu o que se passava no BES, seja por que percebeu e não quis agir de forma determinada para não "alarmar os mercados", esperando que o Espírito Santo (o da Santíssima Trindade) resolvesse as coisas, a credibilidade da instituição, do seu governador e dos seus funcionários, justa ou injustamente, saiu ferida de morte.


O que quer isto dizer? Que não existe nenhuma razão hoje (se é que existiu alguma vez no passado) para acreditar no que diz o Banco de Portugal sobre o BES, o GES, o Novo Banco, o Tóxico Banco, ou Qualquer Outro Banco. A atitude do Banco de Portugal no passado parece ter sido pautada pela defesa da imagem e do poder de Ricardo Salgado - até que essa defesa se tornou impossível. É possível que isso se tenha devido a uma preocupação de defesa do BES, que além de ser o banco do regime possuía uma dimensão que o tornava, aos olhos do BdP, too big to fail e, por consequência, que tornava Ricado Salgado too big to jail. Mas não há absolutamente nada que nos garanta que o Banco de Portugal, perante um caso em tudo semelhante (ou pior) que venha a suceder, não adopte exactamente as mesmas atitudes e não tome as mesmas medidas, sempre com a preocupação de não alarmar os mercados e de não desestabilizar o sistema financeiro.
Perante um caso como o do BES, teríamos gostado de ver o Banco de Portugal, hoje, reconhecer responsabilidades, fazer uma investigação aprofundada do que correu mal, admitir culpas, corrigir procedimentos, garantir que nunca mais algo semelhante se poderia voltar a passar nas suas barbas. Admitir, em suma, que se vai preocupar mais com a honestidade que com a amizade dos banqueiros. Mas não vemos nada disso e esse facto é mais preocupante que o caso BES, porque nos diz que, depois deste BES, haverá outro, e outro, e outro. Casos onde os clientes de um banco serão aliciados (ou pressionados) a comprar acções desse banco ou do banco de um primo para depois verem o seu dinheiro ser engolido por um buraco que, no fundo, tem um funil que acaba no bolso de uma das famílias donas de Portugal ou no bolso de um dos caciques do "arco do poder". Casos onde uma parte considerável do dinheiro movimentado escapará a todo o controlo legal e a todos os deveres fiscais graças ao uso de off-shores e a um carrocel de transferências. Casos onde um contabilista distraído se vai esquecer de incluir uns milhões de dívidas nas contas e terá como sanção umas férias no Brasil. Casos onde todos os esquecimentos fiscais dos poderosos e as gorgetas de milhões não declaradas continuarão a ser perdoados com bonomia.


Para descansar os contribuintes, o BdP garante que o Velho Banco não vai receber um tostão e que deverão ser os seus accionistas a arcar com o prejuízo e que o Novo Banco não vai recorrer a dinheiro dos contribuintes. Mas o que são os 4400 milhões "da troika" senão dinheiro dos contribuintes, sobre o qual temos andado a pagar juros? Será que o Novo Banco nos vai ressarcir de todos os custos que tivemos com este dinheiro, que pedimos emprestado (especialmente para o BES?), somando-lhe um belo juro? E o que é o buraco nas empresas do GES e do Velho Banco senão dinheiro roubado aos portugueses, que desapareceu das poupanças, do investimento, da economia e da receita fiscal?
Será que o BdP nos garante que nada de semelhante vai voltar a acontecer, como já nos disse quando do caso BPN? Talvez garanta. Mas não há razões para acreditar.

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/novo-banco-velho-banco-mais-uma-viagem-mais-uma-corrida-1665351