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terça-feira, março 24, 2015

Lei antiterrorismo vai instituir o crime mental?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Março de 2015
Crónica 11/2015


O pacote antiterrorismo é uma extensão à Europa do infame USA Patriot Act de George W. Bush.
A verdade é que somos crédulos. Não é uma questão de opinião, é um facto constatado pela investigação. Somos crédulos. Não só nós, os portugueses, mas a espécie humana em geral.

Pelo menos a variante que vive nas sociedades industriais da actualidade e que passa as suas cinco horas por dia em frente da televisão. Acreditamos na propaganda que vem nos rótulos dos produtos que compramos no supermercado (“Seleccionámos as melhores laranjas para si”) e acreditamos no que nos dizem os políticos mesmo quando se trata de figurões que vemos mentir regularmente na TV, noticiário após noticiário (“Portugal tem agora um Estado social mais forte”). A verdade é que gostamos de acreditar. É mais simples, dá menos trabalho, permite-nos manter um grau de confiança na espécie humana que torna a nossa vida menos amarga e mais esperançosa e permite-nos manter uma boa imagem de nós próprios. Afinal, se a gente que manda é tudo boa gente, não é preciso fazermos nada de especial, pois não? Basta fazer o que eles dizem, mais coisa menos coisa. Não é como se estivéssemos a negligenciar o futuro dos nossos filhos ou a ser cúmplices da destruição do planeta, não é?

É isso que explica que o PSD tenha os votos que tem nas sondagens em vez dos 5% que seriam compreensíveis. Acreditamos que eles não podem ser tão desonestos como parecem e que não podem ser tão indiferentes como são. E fazemos a mesma coisa com as leis que a maioria aprova no Parlamento. Mesmo quando as leis são tão vagas que tudo pode acontecer, mesmo quando abrem caminho à arbitrariedade e à discricionariedade, preferimos acreditar que vai haver sensatez e equilíbrio na sua interpretação e na sua aplicação.

As chamadas leis antiterrorismo que estão a ser discutidas na especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, depois de terem sido aprovadas na generalidade pelos partidos do Governo e pelo PS, são um desses casos.

Tornar um crime a consulta de sites que defendem o terrorismo? Parece um bocado excessivo, principalmente quando todos nós já fizemos precisamente isso e, se não fizemos mais, foi porque o Google Translator ainda é um bocado canhestro a traduzir o árabe, mas, se a lei for aprovada, queremos acreditar que será aplicada com sensatez, conta, peso e medida.

Proibir o acesso a esses sites? Forçar os fornecedores de acesso à Internet a impedir o acesso dos utilizadores e a identificar e denunciar os que lá acedam? Enfim, pode ser um atentado à liberdade de expressão, mas certamente que não se vão fechar todos os sites mas só os que forem mesmo muito, muito terroristas.

Prender e acusar de terrorismo todos os que façam a sua apologia? Bom, vai ser difícil definir exactamente o que é a “apologia do terrorismo”, mas certamente que também aqui se vai usar da sensatez, da inteligência, da finura de análise e do cuidado em não ferir os direitos fundamentais dos cidadãos, além de que todas estas leis surgem na sequência de decisões das Nações Unidas e do Conselho da Europa, que são, como se sabe, instituições preocupadas com os direitos humanos.

Acusar e condenar as pessoas que viajem para os territórios ocupados pelo Daesh com a intenção de praticar actos terroristas? Bom, é um bocadinho mais difícil adivinhar intenções, mas com um bocadinho de imaginação...

Sejamos claros: aprovar um pacote legislativo tão vago na definição dos termos como o que este se arrisca a ser é abrir a porta a todos os excessos e a uma redução brutal das liberdades usando como pretexto o justificado horror dos cidadãos perante os excessos do Daesh e a injustificada propaganda segundo a qual esta organização terrorista consegue transformar jovens cordatos em assassinos sanguinários com uma varinha de condão agitada através da Internet.

O pacote legislativo que tem estado a ser adoptado em diferentes países da União Europeia, na sequência da resolução 2178 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, não é mais do que uma extensão à Europa do infame USA Patriot Act promulgado por George W. Bush e tem como ambição transformar-se num cenário Minority Report: criar uma divisão de pré-crime capaz de identificar no comportamento dos cidadãos sinais precursores da adesão a uma organização terrorista.

O que é particularmente preocupante na “Estratégia Nacional Antiterrorismo” em discussão é a ligeireza com que se impõe uma filosofia de inversão do ónus da prova – que o PS via com tanta preocupação (e nenhuma razão) quando se tratava de combater o enriquecimento ilícito, mas que não consegue discernir aqui. Se o diploma em discussão for aprovado, um cidadão poderá ser condenado por terrorismo se visitar sites que façam a apologia do terrorismo e se viajar para um território sob o controlo de uma organização terrorista com a intenção de aderir a ela. Não é necessário que cause o menor mal nem que haja provas disso, basta a convicção das autoridades de que, na sua mente, poderá ter havido o desejo de praticar um acto terrorista – seja o que for que o legislador entenda por tal coisa. E caber-lhe-á a ele provar a sua inocência. Sonhará o PSD prender-nos a todos um dia, pelos pensamentos que entretemos sobre os seus dirigentes?

jvmalheiros@gmail.com


terça-feira, março 17, 2015

Um apelo à justiça popular para caçar o voto

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Março de 2015
Crónica 10/2015


A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” constitui um convite ao linchamento popular.

Não existe nenhuma razão para que as autoridades judiciais portuguesas não colijam uma base de dados de pessoas condenadas por crimes sexuais contra menores. Bases de dados desse tipo podem ser muito úteis, nomeadamente em estudos de criminologia.

Foi, aliás, com surpresa que li as primeiras notícias sobre a criação desta base de dados, pois supunha que elas existissem em entidades como o Ministério Público, com dados sobre todos os indivíduos alguma vez condenados pelos tribunais portugueses e, caso existissem, fazer uma “lista de pedófilos” resumir-se-ia a fazer uma simples pesquisa.

Mas uma coisa é as autoridades judiciais possuírem um registo deste tipo e outra, radicalmente diferente, é disponibilizarem esses dados a qualquer cidadão. É verdade que o “registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores”, cuja criação foi aprovada na semana passada em Conselho de Ministros, não permite a consulta indiscriminada por qualquer um, mas a definição das entidades e pessoas que podem solicitar a sua consulta (não apenas as autoridades policiais e judiciárias, os serviços de reinserção social e as comissões de protecção de crianças e jovens mas também “pais com suspeitas”) traduz-se, na prática, num acesso quase universal.

Isto é tanto mais assim quanto a justiça portuguesa continua a demonstrar diariamente nas páginas dos jornais a sua incapacidade para manter em segredo informação sensível relativa a investigações em curso. São por isso de aceitar apostas para o tempo que irá mediar entre a criação da lista e a sua publicação na Internet – ou a publicação de excertos seleccionados, reais ou fabricados.

A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” ou de potenciais empregadores constitui, na prática, um convite ao linchamento popular. Esse linchamento pode não tomar a forma extrema de um atentado contra a vida do pedófilo condenado, mas será, no mínimo, uma condenação ao ostracismo. É duvidoso que uma pessoa identificada como fazendo parte desta lista, mesmo depois de ter cumprido a pena e mesmo que não haja qualquer suspeita sobre o seu comportamento, possa encontrar e manter um emprego ou, simplesmente, manter relações sociais de algum tipo com alguém. Do que se trata – no melhor dos casos – é de uma pena de degredo, não decretada por nenhum tribunal, que se vem somar à condenação anterior. No pior dos casos, trata-se da incitação à prática de crimes de agressão por parte de pais legitimamente preocupados mas irracionalmente exaltados.

A questão é que, sendo possível a consulta desta lista – ou a certificação, por parte das autoridades, de que alguém dela faz parte ou dela não consta –, muitos pais se sentirão impelidos a fazer a consulta em relação aos funcionários e professores da escola dos filhos, ao instrutor de natação, à fisioterapeuta, ao merceeiro simpático, ao enfermeiro solícito, apenas para não pensarem que poderão estar a negligenciar a protecção dos seus filhos.

O que se segue a estas consultas, quando se encontre de facto um ex-condenado nalgum lugar, é a criação de um clima de medo e de ódio, de acusações e de recriminações, que não pode deixar de causar profundos danos ao tecido social.

Isto para não falar dos casos de falsas identificações que sempre surgem nestes casos e, inversamente, da falsa sensação de segurança que pode ser criada ao constatar que alguém, afinal, não consta da lista.

Uma pergunta que se deve fazer é “porquê uma lista de pedófilos e não de outros criminosos?”. Será a pedofilia o crime mais frequente em Portugal? Será o mais preocupante? Por que não uma lista de infanticidas? De homicidas? De abusadores não sexuais de crianças? De pessoas que matam os cônjuges? De violadores? A resposta só pode ser uma: a lista de pedófilos surgiu porque o abuso sexual de crianças é um dos crimes mais horrendos que se pode imaginar e é por isso difícil contestar uma medida apresentada como preventiva desse crime. Trata-se de um gesto de aparente “transparência” e “empowerment dos cidadãos”, mas ele apenas visa espalhar o medo e dar livre curso aos mais baixos instintos dos cidadãos, como forma desesperada de conquistar os seus votos. E trata-se, também, de ir impondo a gradual transferência para a esfera privada, para a “comunidade”, de uma responsabilidade nuclear do Estado como é a segurança. A verdade é que a medida não previne o abuso sexual de crianças porque a esmagadora maioria destes abusos são praticados por familiares ou pessoas próximas das crianças – não pelo estranho que deambula pelas ruas.

Se a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, estivesse realmente interessada em reduzir os crimes contra as crianças, seria infinitamente mais produtivo que começasse por ouvir os especialistas que, esmagadoramente, estão contra este registo e o consideram inútil ou nocivo e que dotasse as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens de reais meios financeiros e humanos.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, dezembro 09, 2014

Os ricos são pessoas mas os pobres são estatísticas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Dezembro de 2014
Crónica 54/2014


Os pobres como Garner só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue.
“Quando um homem morre é uma tragédia. Quando morrem milhares, é uma estatística”. A frase é de Estaline, que a terá dito a Churchill durante uma conversa na cimeira de Teerão, em 1943. Encerra uma enorme verdade.

O movimento de protesto que está a varrer os Estados Unidos devido a uma série de homicídios injustificados de homens negros por polícias brancos é uma das muitas provas do aforismo. Se não conhecêssemos os nomes e as histórias de Eric Garner, sufocado por um polícia que pensava que ele estava a vender cigarros avulso na rua; de Tamir Rice, um miúdo negro de 12 anos que brincava com uma pistola de plástico num jardim; de Michael Brown, um jovem de 18 anos, desarmado como todos os outros, que foi atingido com oito tiros por um polícia que o deteve no meio da rua, em Ferguson, Missouri; de Rumain Brisbon, que ia tirar do bolso um frasco de comprimidos que um polícia receou que fosse uma arma; de Akai Gurley, que ia a sair de sua casa quando um polícia o atingiu mortalmente a tiro sem que houvesse a mínima razão para tal, e de outros como eles, trataríamos o elevadíssimo número de negros mortos às mãos de brancos nos EUA (ou de polícias brancos) como uma estatística. É porque os conhecemos um pouco, porque ouvimos contar as suas histórias, que sentimos as suas mortes como tragédias. É evidente que sentimos estes casos como injustiças intoleráveis e como sintomas de uma sociedade gravemente doente porque todos os polícias brancos envolvidos na morte destes negros foram ilibados ou tratados com grande brandura pelo sistema judicial, mas a nossa revolta também não seria a mesma se, em vez das cinco ou seis pessoas que ficámos a conhecer, se tratasse de 500 que não conhecemos.

No caso de Eric Garner, o negro obeso que talvez estivesse a vender cigarros de contrabando avulso na rua, há uma poderosa razão extra para a nossa indignação: o vídeo do seu assassinato divulgado no YouTube. Vimos o vídeo e sabemos o que aconteceu. Vimos o uso desproporcionado e injustificado de força pelos polícias e ouvimo-lo repetir “I can’t breathe!” enquanto teve forças para isso, perante a contínua brutalidade dos agentes.

O vídeo reforça a nossa indignação porque nos fornece mais informação, mas não se trata apenas disso: o vídeo permite-nos sentir empatia, sentir o que Garner estava a sentir no momento em que foi interpelado pelos polícias, sentir a que ponto estava farto de uma vida de perseguição e de acusações com ou sem motivo. Como aconteceu com um outro caso célebre, o espancamento de Rodney King em 1991, filmado por uma câmara-vídeo e divulgado nas televisões, que daria origem a graves tumultos em Los Angeles quando todos os polícias envolvidos no espancamento foram absolvidos.

A grande acusação que se pode fazer ao sistema americano – não a este ou àquele polícia concreto e não apenas às forças policiais – é que todos sabemos que, se a cor da pele dos participantes estivessem trocadas, a atitude do sistema judicial seria diferente. Alguém imagina que, se cinco ou seis polícias negros tivessem atacado e matado um cidadão branco desarmado, nenhum seria acusado e que o incidente seria classificado como um acidente?

É evidente que a cor da pele não é o único factor da discriminação da polícia. Há um evidente factor de discriminação social – Garner, um negro pobre e obeso, não teve o mesmo tratamento que seria reservado para um negro da alta classe média de Manhattan – mas isso não torna o problema menos grave.

A verdadeira tragédia é que os negros pobres dos EUA, como Garner, só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue e quando alguém filma o processo que os leva lá com o seu telemóvel e o publica no YouTube. Antes disso, são não-entidades. Sem voz, sem representação política e sem visibilidade mediática. Na melhor das hipóteses, são figurantes estereotipados de histórias de polícias e de procuradores.

E isso não acontece só nos Estados Unidos.

O discurso mediático é, de forma crescente, o discurso dos poderosos e cresce o número dos sem-voz, dos marginais transformados em estatísticas.

De forma crescente, nos media, os ricos são pessoas e os pobres são estatísticas. Os poderosos são entrevistados e os pobres são tratados por grosso. Para não mencionar os casos, frequentes nas televisões, onde os “populares”, emotivos e iletrados, apenas servem de ruído de fundo às “reportagens” em “directo”, folclóricos quando não ridículos.

Este estatuto de impessoalidade que os media conferem aos pobres e necessitados justifica, insensivelmente, o tratamento como sub-humanos a que o Governo e o ministro Mota Soares os submete, perante um silêncio quase geral.

É tempo que os jornalistas recuperem o lema de “dar voz aos que não têm voz” e multipliquem aquilo que, por agora, continuam a ser histórias esporádicas de incidentes ocasionais para nos fornecer um retrato realista de toda a sociedade.


terça-feira, agosto 12, 2014

E se, por uma vez, houvesse uma investigação a sério?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Agosto de 2014

Crónica 38/2014

Se não quer viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos e os pobres todas as culpas, exija justiça

"Erros de gestão", "imprudência", "irregularidades", "risco de crédito", "falta de activos", "imparidades", "activos tóxicos", "incumprimento", "problemas de solvabilidade", "insuficiências de capital", "infidelidade", "gestão danosa", "abuso de informação privilegiada", "abuso de confiança". Há, no simples léxico usado pelo mundo político, pelo mundo financeiro e pelo mundo mediático para descrever o caso BES, narrativas implícitas que se impõem como explicações naturais para o descalabro do império Espírito Santo. Não são precisos verbos para descrever a acção quando se usam estes substantivos. Cada um deles conta a sua história própria, insinuando diferentes níveis de responsabilidade e respeitabilidade para cada um dos intervenientes.

A mais benévola dessas narrativas, hoje em perda, descreve uma organização liderada por gestores ousados e bem relacionados no país e no estrangeiro, que alargaram excessivamente as suas operações financeiras movidos por uma enorme ambição e com o apadrinhamento da liderança política, lançando-se numa trajectória de investimentos de alto risco que acabou mal devido à crise financeira nacional e internacional. É uma história de ambição e de cegueira, de ascensão e queda, uma saga de decadência. Outra narrativa descreve uma família habituada durante gerações a mandar nos destinos do país e que, mercê de uma complexa teia de favores financeiros e políticos, que distribuiu prodigamente, alargou a sua influência até um ponto em que a sua insuficiente competência e as rivalidades internas se combinaram para desagregar o império. É uma história de vaidades e infelicidades, de pobres diabos que por acaso são arrogantes milionários. Outra ainda, descreve uma organização criminosa da alta finança, envolvida num esquema piramidal alimentado por uma reputação de poder e de influência que lhe garantiu a atracção de cada vez mais capital, capital esse cuja gestão foi descuidada e cujos investimentos produziram por isso cada vez menos rendimentos e que, também por isso, começou a ser crescentemente utilizado para comprar favores políticos que garantiram cada vez mais entradas de capital que foi descaradamente desviado para os bolsos dos líderes da organização e escondido em off-shores exóticas. É uma história de crime, de tráfico de influências e de chantagens, de ganância sem escrúpulos.

Conforme os narradores e os seus interlocutores, as narrativas cruzam-se, entretecem-se, tornam-se mais policiais e brutais ou mais palacianas e refinadas. A hesitação entre todas elas é uma prova da rede de influências que Ricardo Salgado espalhou pelo país e que ainda está por aí, em estado de vida latente, a ver para que lado caem as fichas. Ricardo Salgado poderá já não ser o "partido" com mais deputados na Assembleia da República, mas as notícias da sua morte podem estar a ser exageradas. Salgado negou ter 30 milhões de euros em Singapura, mas terá 300 milhões no Brasil? Ou mais? Até onde se estende ainda o império Espírito Santo? O caso BES vai ser o "escândalo BES" ou apenas a "crise BES"? Ricardo Salgado é um escroque ou um tolo? Cometeu erros ou cometeu crimes? O que o protegeu durante tanto tempo? Teve sorte ou teve cúmplices?

Apesar de se acumularem os sinais de "irregularidades" no BES (algumas denunciadas pela CMVM ao Ministério Público, ainda antes das suspeitas de insider trading dos últimos dias) a verdade é que a narrativa se arrisca a amornar, com a CMVM e o Banco de Portugal e o Governo a lavar as suas mãos e o contribuinte a pagar os luxos de que Ricardo Salgado fez beneficiar tantos amigos.

A prudência dos média é natural. Não se pode acusar alguém sem provas e não se pode dizer que alguém é um ladrão antes de a sentença transitar em julgado, o que pode não acontecer nunca, mesmo que o ladrão confesse o roubo e todos o tenhamos testemunhado. Mas é fundamental, em nome da sanidade da sociedade, da sanidade da justiça e da sanidade da política que haja uma investigação consolidada de todo o processo de falência do GES e do BES e não apenas investigações esparsas desta ou daquela "irregularidade", que irão concluir que um burocrata se esqueceu de carimbar um impresso.

O que o Governo tem de anunciar é o pedido dessa grande investigação ao Ministério Público, com a máxima urgência e garantindo-lhe todos os meios. E, se não o fizer, apenas poderemos concluir que receia ver-se envolvido ele próprio (leia-se PSD e CDS) nos negócios sob escrutínio. Recordam-se de Carlos Costa a garantir há um mês que nem o BES nem o GES tinham um problema de solvabilidade? E de Cavaco Silva? E de Passos Coelho? Que as responsabilidades políticas não sejam assumidas pelo governo é algo a que estamos habituados, mas temos de exigir a responsabilização criminal de quem rouba de forma tão colossal e tão descarada. E a verdade é que falta dinheiro no BES e que nos vão pedir para tapar o buraco. Não chegará isso para exigir a investigação?

O que não podemos aceitar, em nome da decência, são processos tão vergonhosos como o do BCP ou o do BPN. Não podemos aceitar que, de novo, um processo BES se salde por uma multa ridícula, pela inibição de gerir um banco durante os próximos anos, pela prescrição do crime ou pela condenação de um bode expiatório isolado.

As "irregularidades" cometidas pelo GES e pelo BES foram cometidas ao longo de muitos anos, beneficiando um pequeno grupo de ricos parasitas e de caciques políticos, envolvendo muitas pessoas e enganando muitas mais. Existem certamente inúmeros documentos e muitas testemunhas dessas "irregularidades", muitas das quais preferirão denunciar os crimes de que tenham conhecimento em troca de uma consciência aliviada e de uma atenuação da condenação. Tem de ser possível encontrar as provas necessárias e levar uma investigação séria até ao fim.

À imprensa cabe, entretanto, ir juntando as pedrinhas dos factos - como a discrepância sobre o momento em que o Banco de Portugal decidiu partir o BES em dois e o momento em que comunicou essa decisão à CMVM, como as razões da autorização do aumento de capital do BES pelo BdP e pela CMVM, como as razões dos perdões dos esquecimentos fiscais de Salgado, como a venda das acções da Rioforte aos balcões do BES, etc., etc. - de forma a tornar incontornável a exigência de uma verdadeira averiguação.
E a todos os cidadãos que recusam viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos, incluindo o direito a roubar o nosso dinheiro e a escapar impunes, cabe-nos exigir justiça.

quinta-feira, julho 31, 2014

Como roubar e sair impune: roube muito e use gravata

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2014
Crónica 36/2014


Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA como se fossem respeitáveis?

O PÚBLICO noticiou esta semana o caso de um ex-presidente da Junta de Freguesia de S. José, em Lisboa, João Miguel Mesquita, eleito pelo PSD, que foi condenado em Abril passado a quatro anos e meio de prisão por ter “gasto em benefício próprio”, entre 2005 e 2007, 12 mil euros pertencentes à autarquia.

O Ministério Público tinha-o acusado de desviar 40 mil euros e de falsificação de documentos, mas o tribunal só considerou provado o desvio dos 12 mil euros. A pena de prisão de João Miguel Mesquita ficou suspensa na condição de que o condenado pagasse à autarquia os 12.000 euros de que se tinha “apropriado”, o que significa que não existiu qualquer sanção real para o crime e que o condenado apenas será obrigado a repor o que roubou, como se se tivesse enganado nas contas com a melhor boa-fé do mundo e fosse o mais impoluto dos autarcas.

A notícia chamou-me a atenção porque me recordou um episódio passado comigo. Há uns anos, ao sair de uma carruagem depois de uma viagem de metro, senti-me mais leve do que quando tinha entrado. Ao apalpar os bolsos, percebi que alguém me tinha palmado a carteira, com documentos e uns escassos euros.

Apresentei queixa, substituí os documentos e, passados meses, recebi um telefonema da polícia anunciando-me que tinham prendido um carteirista e que, no meio do seu espólio, lá tinham encontrado os meus documentos. Fui testemunhar a tribunal, juntamente com outras vítimas, e o carteirista, que confessou os crimes, foi condenado a uns anos de cadeia. Não me recordo de o Ministério Público ter nessa altura proposta ao carteirista a devolução do dinheiro roubado em troca de uma pena suspensa e de uma libertação imediata mas penso que o arranjo lhe deveria ter agradado, já que no meu caso a “indemnização” seria de vinte euros. A razão dos dois pesos da Justiça é evidente: o meu carteirista usava uma camisa aberta aos quadrados e um blusão de má qualidade, enquanto que os presidentes das Juntas usam em geral fato e gravata. Para mais, o ex-presidente da Junta pertencia a um partido do “arco do poder” e o meu carteirista provavelmente não teria actividade política.

Todos os casos que conheço reforçam a minha convicção de que existe uma aplicação do Código Penal para quem usa gravata e outra, infinitamente menos benévola, em Portugal e em todos os outros países do mundo, para quem não usa.

Tomemos o exemplo daquele que é um dos maiores roubos da História: a manipulação da taxa Libor, ao longo de muitos anos, por um cartel de bancos que incluía instituições pretensamente tão respeitáveis como o Barclays Bank, UBS, Citigroup, The Royal Bank of Scotland, Deutsche Bank, JPMorgan, Lloyds Banking Group, Rabobank e outros. A manipulação de uma taxa interbancária de referência como a Libor, em benefício próprio, traduziu-se em perdas para muitos milhões de indivíduos e organizações em todo o mundo. Milhões de estudantes ingleses, de lojas francesas, de quintas italianas e de famílias portuguesas viram as mensalidades dos seus empréstimos aos bancos subir durante anos para que esses mesmos bancos e outros vissem os seus lucros crescer. Tratou-se, em linguagem corrente, de um roubo. Não um roubo como o do meu carteirista mas um roubo sistemático, generalizado, que defraudou milhões e que acumulou riquezas incalculáveis nos bolsos de quem já era imensamente rico.

O que aconteceu a estes bancos? Alguns pagaram multas, outros nem isso porque denunciaram os cúmplices em troca de imunidade, mas ninguém foi condenado. Houve uns corretores expulsos de uns países, detenções para interrogatórios e foi tudo. Talvez uns quantos acabem por ser presos - os próprios bancos acusados tentarão encontrar bodes expiatórios - mas nunca o castigo será proporcional ao crime. Todos usam gravata. Alguém espera que o imenso buraco do BES tenha responsáveis criminais?

O ex-presidente da Junta, apesar de tudo, foi condenado e a sua reputação saiu ferida, mas os bancos ladrões e os seus administradores e directores continuam a ser referidos na imprensa como entidades respeitáveis e os seus quadros são invejados nas revistas, bajulados pelos Governos e pagos (legalmente) a peso de ouro.

A crise moral que atravessamos traduz-se nisto: condenamos carteiristas à cadeia em nome da Justiça e tratamos com deferência e apresentamos como exemplo organizações criminosas que operam em grande escala, como os bancos. Não é uma novidade, mas o facto de não ser uma novidade e de continuarmos a tolerar a situação só a torna mais grave. Continuamos a tratar com respeito Governos que se apropriam de património público para o vender ao desbarato e que destroem monopólios do Estado para beneficiar interesses privados obscuros - como o Governo português está a fazer com a lotaria.

Por que respeitamos estes ladrões? Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA ou tantas outras como se fossem respeitáveis? Por que não exigimos que obedeçam aos padrões éticos e legais que exigimos aos outros? Apenas porque usam gravata e sabem usar talheres? Apenas porque ficaram ricos com o dinheiro que roubaram? Somos assim tão parvos?

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/como-roubar-e-sair-impune-roube-muito-e-use-gravata-1664854

terça-feira, janeiro 18, 2011

Circo e circo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 18 de Janeiro de 2011
Crónica 3/2011
 
Um assassino sem culpa, uma vítima pecaminosa, um Presidente que não responde e um candidato-trotineta

1. Depois de um assassinato brutal de uma figura mediática, com sinais de um sadismo pouco habitual, é natural que haja alguma comoção pública e manifestações colectivas de repulsa. Não é de estranhar que se verifique uma cerimónia pública de solidariedade, que haja lágrimas e exaltação, palavras de encorajamento para a família e que se guarde aí um minuto de silêncio. O que é estranho é que tudo isto aconteça para manifestar a solidariedade com o assassino confesso, entretanto detido, e não com a vítima.
Repare-se que a solidariedade que se manifesta ao presumível assassino e à sua família não se deve ao facto de a comunidade em questão acreditar firmemente na inocência de Renato Seabra.

Seria admissível que aqueles que conhecessem este jovem de 21 anos - que todos retratam como um rapaz educado, calmo, de bom trato, trabalhador, bom jogador de basquetebol, estudante responsável e amigo da sua mãe - considerassem impossível que ele tivesse cometido o crime horrível de que é acusado e se inclinassem para um gigantesco erro judiciário, uma confusão de identidade ou uma conspiração urdida pela polícia nova-iorquina. Ou que se tivessem reunido em sua defesa por o assassino confesso ter sido objecto de sevícias ou impedido de se defender, ou tivesse sido objecto de qualquer outro atentado aos seus direitos.

Mas não se trata disso. A solidariedade manifestada a Renato Seabra pelos seus conterrâneos - e por muitas centenas de cidadãos anónimos na Web - manifesta-se na convicção de que ele terá de facto cometido o crime que já confessou, mas de que, se o fez, foi porque "tinha uma razão muito forte".

Se alguém duvidava da violência do sentimento homofóbico que reina na nossa sociedade, aí tem uma prova. O jovem de 21 anos terá sido assediado-tentado-seduzido-violado (conforme os gostos) pelo velho libidinoso de 65 anos e não terá encontrado outra forma de se defender senão agredir o atacante com um computador, estrangulá-lo, apunhalá-lo durante uma hora, furar-lhe os olhos e castrá-lo. É que o homossexual, como se sabe, é muito insistente, e quando tem os seus acessos lúbricos a sua força fica multiplicada por dez. Às vezes chega a ser preciso apunhalá-los durante duas horas para que se acalmem.

Além de ser muito insistente, o homossexual também é muito traiçoeiro. Daí que o jovem tenha sido surpreendido pelos avanços de Carlos Castro quando, depois de dez dias a dormir juntos no seu quarto de Nova Iorque, este terá tentado um contacto mais íntimo. Como se vê, o assassino tinha não só razão, mas "uma razão muito forte": Carlos Castro era gay.

2. A campanha presidencial prossegue, com a curiosa novidade de incluir como os dois principais contendores o candidato da oposição de direita, Cavaco Silva, e aquele que, numa eventual segunda volta, será o candidato da oposição de esquerda. Manuel Alegre navega em torno desta contradição, como sempre fez, usando a táctica da trotineta, com um pé dentro e um pé fora do PS, garantindo que, se for eleito, defenderá o Estado social que o PS tem tentado fazer minguar e que o PSD quer destruir.

Cavaco Silva continua a jurar a sua própria honestidade (nunca ninguém lhe terá dito que a honestidade não se declara? Será verdade que Cavaco Silva estava escondido atrás de uma pedra quando Deus distribuiu o bom senso?) ao mesmo tempo que não responde às perguntas que poderiam esclarecer-nos sobre a sua honestidade, com a mais descarada das arrogâncias. Como Cavaco não brilha pela agilidade de espírito, o silêncio mata dois coelhos de uma cajadada: evita respostas entarameladas às perguntas incómodas e dá-lhe aquela aura autoritária de que gosta cerca de 50 por cento do eleitorado. (jvmalheiros@gmail.com)