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terça-feira, dezembro 09, 2014

Os ricos são pessoas mas os pobres são estatísticas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Dezembro de 2014
Crónica 54/2014


Os pobres como Garner só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue.
“Quando um homem morre é uma tragédia. Quando morrem milhares, é uma estatística”. A frase é de Estaline, que a terá dito a Churchill durante uma conversa na cimeira de Teerão, em 1943. Encerra uma enorme verdade.

O movimento de protesto que está a varrer os Estados Unidos devido a uma série de homicídios injustificados de homens negros por polícias brancos é uma das muitas provas do aforismo. Se não conhecêssemos os nomes e as histórias de Eric Garner, sufocado por um polícia que pensava que ele estava a vender cigarros avulso na rua; de Tamir Rice, um miúdo negro de 12 anos que brincava com uma pistola de plástico num jardim; de Michael Brown, um jovem de 18 anos, desarmado como todos os outros, que foi atingido com oito tiros por um polícia que o deteve no meio da rua, em Ferguson, Missouri; de Rumain Brisbon, que ia tirar do bolso um frasco de comprimidos que um polícia receou que fosse uma arma; de Akai Gurley, que ia a sair de sua casa quando um polícia o atingiu mortalmente a tiro sem que houvesse a mínima razão para tal, e de outros como eles, trataríamos o elevadíssimo número de negros mortos às mãos de brancos nos EUA (ou de polícias brancos) como uma estatística. É porque os conhecemos um pouco, porque ouvimos contar as suas histórias, que sentimos as suas mortes como tragédias. É evidente que sentimos estes casos como injustiças intoleráveis e como sintomas de uma sociedade gravemente doente porque todos os polícias brancos envolvidos na morte destes negros foram ilibados ou tratados com grande brandura pelo sistema judicial, mas a nossa revolta também não seria a mesma se, em vez das cinco ou seis pessoas que ficámos a conhecer, se tratasse de 500 que não conhecemos.

No caso de Eric Garner, o negro obeso que talvez estivesse a vender cigarros de contrabando avulso na rua, há uma poderosa razão extra para a nossa indignação: o vídeo do seu assassinato divulgado no YouTube. Vimos o vídeo e sabemos o que aconteceu. Vimos o uso desproporcionado e injustificado de força pelos polícias e ouvimo-lo repetir “I can’t breathe!” enquanto teve forças para isso, perante a contínua brutalidade dos agentes.

O vídeo reforça a nossa indignação porque nos fornece mais informação, mas não se trata apenas disso: o vídeo permite-nos sentir empatia, sentir o que Garner estava a sentir no momento em que foi interpelado pelos polícias, sentir a que ponto estava farto de uma vida de perseguição e de acusações com ou sem motivo. Como aconteceu com um outro caso célebre, o espancamento de Rodney King em 1991, filmado por uma câmara-vídeo e divulgado nas televisões, que daria origem a graves tumultos em Los Angeles quando todos os polícias envolvidos no espancamento foram absolvidos.

A grande acusação que se pode fazer ao sistema americano – não a este ou àquele polícia concreto e não apenas às forças policiais – é que todos sabemos que, se a cor da pele dos participantes estivessem trocadas, a atitude do sistema judicial seria diferente. Alguém imagina que, se cinco ou seis polícias negros tivessem atacado e matado um cidadão branco desarmado, nenhum seria acusado e que o incidente seria classificado como um acidente?

É evidente que a cor da pele não é o único factor da discriminação da polícia. Há um evidente factor de discriminação social – Garner, um negro pobre e obeso, não teve o mesmo tratamento que seria reservado para um negro da alta classe média de Manhattan – mas isso não torna o problema menos grave.

A verdadeira tragédia é que os negros pobres dos EUA, como Garner, só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue e quando alguém filma o processo que os leva lá com o seu telemóvel e o publica no YouTube. Antes disso, são não-entidades. Sem voz, sem representação política e sem visibilidade mediática. Na melhor das hipóteses, são figurantes estereotipados de histórias de polícias e de procuradores.

E isso não acontece só nos Estados Unidos.

O discurso mediático é, de forma crescente, o discurso dos poderosos e cresce o número dos sem-voz, dos marginais transformados em estatísticas.

De forma crescente, nos media, os ricos são pessoas e os pobres são estatísticas. Os poderosos são entrevistados e os pobres são tratados por grosso. Para não mencionar os casos, frequentes nas televisões, onde os “populares”, emotivos e iletrados, apenas servem de ruído de fundo às “reportagens” em “directo”, folclóricos quando não ridículos.

Este estatuto de impessoalidade que os media conferem aos pobres e necessitados justifica, insensivelmente, o tratamento como sub-humanos a que o Governo e o ministro Mota Soares os submete, perante um silêncio quase geral.

É tempo que os jornalistas recuperem o lema de “dar voz aos que não têm voz” e multipliquem aquilo que, por agora, continuam a ser histórias esporádicas de incidentes ocasionais para nos fornecer um retrato realista de toda a sociedade.


terça-feira, novembro 15, 2005

Discriminação sem rasto

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 15 de Novembro de 2005
Crónica 34/2005

A inexistência destes dados permite-nos desconhecer oficialmente a discriminação racial na contratação de trabalhadores.


Em Portugal não é possível conhecer os dados sobre emprego das minorias étnicas que vivem no território nacional, como não é possível conhecer as facilidades ou dificuldades na obtenção de emprego por parte dos portugueses negros ou detectar alguma discriminação dos empregadores relativamente aos candidatos muçulmanos.

Nada disto é possível porque as nossas estatísticas de emprego, do Instituto Nacional de Estatística ou do Instituto do Emprego e Formação Profissional, não possuem dados sobre a cor da pele, a pertença étnica ou a religião dos indivíduos. A única instância em que se pergunta a um cidadão a sua religião é por ocasião dos censos nacionais e trata-se de uma pergunta de resposta voluntária que não é cruzada com as estatísticas de emprego.

É claro que podemos deduzir através de factos isolados qual a situação possa ser aqui ou ali e existem estudos que nos permitem obter retratos sectoriais. Mas dados estatísticos nacionais não existem – ao contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde dados sobre cor, etnia e religião são comummente perguntados e respondidos em candidaturas a universidades ou entrevistas de emprego.

As razões para a proibição de colheita de dados raciais ou religiosos entre nós são as mais nobres: a teoria diz que a igualdade dos cidadãos perante a lei e perante as oportunidades oferecidas pela sociedade civil tornam estes dados inúteis e que a sua recolecção poderia dar origem a discriminações. Se não vier na sua ficha que o candidato a um emprego é negro, será menos provável que ele seja objecto de discriminação racial? É evidente que não, mas é essa a razão da proibição.

O que acontece na prática é que a inexistência destes dados nos permite desconhecer oficialmente a discriminação racial na contratação de trabalhadores, nas políticas de educação e formação, nos critérios de promoção das empresas, a desigualdade de tratamento por parte dos sistemas de segurança social e de saúde, etc.

Ninguém pode dizer que os empregadores em Portugal são racistas porque ninguém sabe se, perante candidatos com o mesmo nível de formação e experiência profissional, existe ou não um tratamento de desfavor em relação aos que têm a pele mais morena.

Esta mancha de ignorância voluntária que afecta a sociedade portuguesa permite que mantenhamos a nossa boa consciência e façamos um ar de estranheza quando nos fazem notar a misteriosa uniformidade racial do Parlamento, das direcções e administrações das nossas empresas ou de qualquer grupo dirigente de qualquer instituição – que seria estranha em qualquer país com “a história de relação com África” de que Portugal diz orgulhar-se.

Recentemente, segundo a mesma linha de pseudo-anti-discriminação racial, a Comissão Nacional de Protecção de Dados deu parecer negativo à inclusão da cor da pele nos dossiers das crianças disponíveis para adopção, apesar de se saber que esse é um dado crítico para os candidatos a adoptantes. Esta decisão é tanto mais inaceitável quanto a cor da pele é um dos critérios que é perguntado aos candidatos a adoptantes. Ou seja: os futuros adoptantes têm direito a discriminar, mas as crianças não têm direito a ser o que são. Penso que é legítimo que os futuros pais possam usar esse critério, mas pelo menos em nome da eficácia do processo de adopção, seria razoável que as crianças fossem devidamente identificadas – já que se trata neste caso, para mais, de características públicas e notórias.

Que as normas existem por razões de protecção da igualdade não há dúvida. Mas do que existe legítima dúvida é que estas razões se traduzam na prática nalguma vantagem para aqueles que se pretende proteger. O que acontece é que, pelo contrário, esta pseudo-protecção constitui a melhor forma de encobrir o crime.

terça-feira, outubro 04, 2005

Só para brancos?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 4 de Outubro de 2005
Crónica 28/2005

Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter.

Em declarações ao Público, no âmbito de um trabalho do jornalista Ricardo Dias Felner, publicado a propósito do vigésimo aniversário do Centro Comercial das Amoreiras, a sua directora de marketing, Maria Galvão Sousa, refere-se à descida do número de frequentadores do centro para explicar que não o considera preocupante e acrescenta que ele teve mesmo um lado positivo: traduziu-se no desaparecimento dos frequentadores “de cor”.

Diz Maria Galvão Sousa: "Nós tínhamos pessoas de cor - é chato dizer isto, e eu não tenho nada contra as pessoas de cor - e deixámos de ter. Portanto, esta quebra de três por cento até foi bem vinda".

Se se desse o caso de haver frequentadores “de cor” que provocassem desacatos e se Maria Galvão Sousa escolhesse referir a sua cor – isso seria criticável e inaceitável por si. Mas, neste caso, não há referência a quaisquer problemas que tenham existido com algum tipo de frequentadores, mas apenas à cor de alguns. É isso que incomoda Maria Galvão Sousa.

Porque é que seria racista referir a cor da pele do autor de um desacato (se fosse esse o caso)? Porque referir a cor de forma selectiva, como acontece com frequência nos “faits divers”, alimenta a ideia de que apenas as pessoas de pele escura cometem desacatos ou de que os cometem com mais frequência que os outros. As notícias nunca dizem “Branco assalta bomba de gasolina” ou “Português ataca idosa no metro”, mas sim, criando e alimentando o estereótipo racista, “Negro assalta loja” ou “Ucraniano agride colega”.

Na sequência das declarações de Maria Galvão Sousa, levantou-se um coro de protestos em blogs e fóruns da Internet e em círculos privados. O coro foi demasiado discreto para a enormidade que lhe deu origem, mas Portugal é o país dos brandos protestos. Não houve manifestações ou piquetes à frente das Amoreiras (como seria normal que tivesse havido), nem petições e queixas às autoridades (como deveria ter havido), nem uma onda de recolha de depoimentos indignados pela televisão (como teria acontecido se as declarações dissessem respeito a gente do Porto ou apoiantes de um clube de futebol).

Apesar disso, a Mundicenter, empresa proprietária do Amoreiras (assim como dos centros comerciais Odivelas Parque, Oeiras Parque, Braga Parque e Olivais Shopping Center), entendeu que as declarações de Maria Galvão Sousa eram deploráveis e fez publicar um comunicado onde garantem que elas vão contra “a gestão, cultura e missão da Mundicenter”, onde pede desculpa por elas e onde garante ir tomar medidas para que tais situações não se repitam. Para mais, segundo a agência de comunicação da Mundicenter, Maria Galvão Sousa foi “afastada das suas funções anteriores” e “não possui neste momento quaisquer novas funções” na empresa.

O incidente parece sanado mas, antes que ele se deva considerar encerrado, não podemos deixar de fazer algumas perguntas:

- Como se compreende que alguém que pensa (e fala) como Maria Galvão Sousa chegue a um lugar de direcção– para mais quando as suas convicções humanas vão frontalmente contra “a gestão, cultura e missão” do seu empregador?

- Como se compreende que esta mulher seja uma especialista de marketing - aquela área onde se aprende a fazer tudo para dar uma boa imagem e para proporcionar satisfação aos clientes?

- Que medidas terá tomado Maria Galvão Sousa para atingir a brancura das Amoreiras, que sabemos hoje que era um dos seus desejos?

Para sabermos se podemos voltar a ir às Amoreiras sem mergulhar numa operação de limpeza racial, resta esperar a atitude final da Mundicenter. É que Maria Galvão Sousa está afastada das suas funções de responsável de marketing, mas há pessoas que são afastadas para fora, outras para baixo, outras para o lado e outras até para cima. Por outro lado, se não for possível despedir alguém com justa causa por defender os preconceitos mais geradores de ódio do mundo, há certamente algo a alterar nas leis laborais.