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terça-feira, dezembro 09, 2014

Os ricos são pessoas mas os pobres são estatísticas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Dezembro de 2014
Crónica 54/2014


Os pobres como Garner só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue.
“Quando um homem morre é uma tragédia. Quando morrem milhares, é uma estatística”. A frase é de Estaline, que a terá dito a Churchill durante uma conversa na cimeira de Teerão, em 1943. Encerra uma enorme verdade.

O movimento de protesto que está a varrer os Estados Unidos devido a uma série de homicídios injustificados de homens negros por polícias brancos é uma das muitas provas do aforismo. Se não conhecêssemos os nomes e as histórias de Eric Garner, sufocado por um polícia que pensava que ele estava a vender cigarros avulso na rua; de Tamir Rice, um miúdo negro de 12 anos que brincava com uma pistola de plástico num jardim; de Michael Brown, um jovem de 18 anos, desarmado como todos os outros, que foi atingido com oito tiros por um polícia que o deteve no meio da rua, em Ferguson, Missouri; de Rumain Brisbon, que ia tirar do bolso um frasco de comprimidos que um polícia receou que fosse uma arma; de Akai Gurley, que ia a sair de sua casa quando um polícia o atingiu mortalmente a tiro sem que houvesse a mínima razão para tal, e de outros como eles, trataríamos o elevadíssimo número de negros mortos às mãos de brancos nos EUA (ou de polícias brancos) como uma estatística. É porque os conhecemos um pouco, porque ouvimos contar as suas histórias, que sentimos as suas mortes como tragédias. É evidente que sentimos estes casos como injustiças intoleráveis e como sintomas de uma sociedade gravemente doente porque todos os polícias brancos envolvidos na morte destes negros foram ilibados ou tratados com grande brandura pelo sistema judicial, mas a nossa revolta também não seria a mesma se, em vez das cinco ou seis pessoas que ficámos a conhecer, se tratasse de 500 que não conhecemos.

No caso de Eric Garner, o negro obeso que talvez estivesse a vender cigarros de contrabando avulso na rua, há uma poderosa razão extra para a nossa indignação: o vídeo do seu assassinato divulgado no YouTube. Vimos o vídeo e sabemos o que aconteceu. Vimos o uso desproporcionado e injustificado de força pelos polícias e ouvimo-lo repetir “I can’t breathe!” enquanto teve forças para isso, perante a contínua brutalidade dos agentes.

O vídeo reforça a nossa indignação porque nos fornece mais informação, mas não se trata apenas disso: o vídeo permite-nos sentir empatia, sentir o que Garner estava a sentir no momento em que foi interpelado pelos polícias, sentir a que ponto estava farto de uma vida de perseguição e de acusações com ou sem motivo. Como aconteceu com um outro caso célebre, o espancamento de Rodney King em 1991, filmado por uma câmara-vídeo e divulgado nas televisões, que daria origem a graves tumultos em Los Angeles quando todos os polícias envolvidos no espancamento foram absolvidos.

A grande acusação que se pode fazer ao sistema americano – não a este ou àquele polícia concreto e não apenas às forças policiais – é que todos sabemos que, se a cor da pele dos participantes estivessem trocadas, a atitude do sistema judicial seria diferente. Alguém imagina que, se cinco ou seis polícias negros tivessem atacado e matado um cidadão branco desarmado, nenhum seria acusado e que o incidente seria classificado como um acidente?

É evidente que a cor da pele não é o único factor da discriminação da polícia. Há um evidente factor de discriminação social – Garner, um negro pobre e obeso, não teve o mesmo tratamento que seria reservado para um negro da alta classe média de Manhattan – mas isso não torna o problema menos grave.

A verdadeira tragédia é que os negros pobres dos EUA, como Garner, só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue e quando alguém filma o processo que os leva lá com o seu telemóvel e o publica no YouTube. Antes disso, são não-entidades. Sem voz, sem representação política e sem visibilidade mediática. Na melhor das hipóteses, são figurantes estereotipados de histórias de polícias e de procuradores.

E isso não acontece só nos Estados Unidos.

O discurso mediático é, de forma crescente, o discurso dos poderosos e cresce o número dos sem-voz, dos marginais transformados em estatísticas.

De forma crescente, nos media, os ricos são pessoas e os pobres são estatísticas. Os poderosos são entrevistados e os pobres são tratados por grosso. Para não mencionar os casos, frequentes nas televisões, onde os “populares”, emotivos e iletrados, apenas servem de ruído de fundo às “reportagens” em “directo”, folclóricos quando não ridículos.

Este estatuto de impessoalidade que os media conferem aos pobres e necessitados justifica, insensivelmente, o tratamento como sub-humanos a que o Governo e o ministro Mota Soares os submete, perante um silêncio quase geral.

É tempo que os jornalistas recuperem o lema de “dar voz aos que não têm voz” e multipliquem aquilo que, por agora, continuam a ser histórias esporádicas de incidentes ocasionais para nos fornecer um retrato realista de toda a sociedade.


sexta-feira, junho 05, 2009

Página de Rosto - Ruth Lilly, uma musa discreta

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 5 Junho 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 10


Ruth Lilly, filantropa (Estados Unidos)


Em Portugal não sabemos bem o que seja a filantropia e a palavra é usada quase só em tom jocoso, para disfarçar a incomodidade que nos causa. Quando lemos o Retrato do poeta espanhol António Machado e ele nos diz que aprendeu o “segredo da filantropia” fingimos não reparar no verso e passamos rapidamente à frente.

Às vezes falamos de mecenato (porque tem um ar businesslike), ainda que praticamente ninguém o pratique, ou de solidariedade (porque é um conceito politicamente impreciso), mas filantropia parece-nos uma coisa do século XIX (que é, em grande medida) e fora de moda (o que em Portugal é verdade, se é que alguma esteve na moda). Ainda que os neoliberais defendam que é essencial os ricos serem muito ricos porque assim podem dar dinheiro aos pobres, em Portugal nem essa ideia pega. O capitalismo à portuguesa diz que é bom os ricos serem muito ricos porque assim ficam muito ricos.

Em Portugal consideramos generosidade um milionário morto não ter levado o dinheiro consigo para o Além e tê-lo deixado do lado de cá. O multimilionário americano Andrew Carnegie, magnate do aço que nunca foi suspeito de ser de esquerda, considerava isso uma vergonha: “O homem que morre deixando milhões que, durante a sua vida, estiveram sob a sua administração, morre sem ser chorado, morre desonrado e sem merecer elogios, sejam quais forem os usos que ele destine para a escória que não pôde levar consigo. O veredicto que o público emitirá sobre estes homens será: ‘O homem que morre assim rico morre sem honra’”. E Carnegie não está só na defesa da filantropia nos EUA. A ideia – e a prática – continua a ser defendida por muitos milionários. Bill Gates empenha-se há muitos anos em dar da melhor maneira o dinheiro que acumulou e garantia numa entrevista que “dez por cento seria suficiente para os filhos”. E o mesmo fazem muitos outros milionários, com desonrosas excepções.

A filantropia nos Estados Unidos é uma coisa séria. Há revistas de filantropia, há milhares de artigos sobre filantropia escritos todos os anos, há inúmeras instituições culturais, académicas e científicas de primeira água que vivem da filantropia – sem que se ouçam as iletradas condenações de subsidio-dependência que se ouvem por cá – e há rankings de filantropos publicados anualmente pelas publicações mais prestigiadas.

Nestes rankings, onde nomes como os de Bill Gates, Warren Buffet e George Soros ocupam sempre lugares cimeiros, com doações acumuladas ao longo da vida de milhares de milhões de dólares, há um nome, porém, que merece uma honra particular, de acordo com os preceitos de Carnegie: o de Ruth Lilly.

Ruth Lilly nasceu em 1915, em Indianápolis, Indiana, onde ainda vive, e é a herdeira do império farmacêutico Eli Lilly. E a distinção especial que lhe cabe deve-se ao facto de que esta multimilionária já tinha distribuído em doações até 2004, uma quantia que correspondia a duas vezes e meia a sua fortuna remanescente. Como termo de comparação, Bill Gates tinha doado até à mesma data uma quantia correspondente a 58 por cento da fortuna então em sua posse (doação total de 27976 milhões de dólares) e George Soros tinha doado 72 por cento (5171 milhões). A doação de Ruth Lilly até essa data era de 750 milhões, segundo dados das publicações BusinessWeek e Chronicle of Philanthropy e da organização GuideStar.

Ruth Lilly aprendeu a filantropia no berço. A sua família, desde o bisavô fundador da companhia, o coronel Eli Lilly, sempre considerou que era seu dever devolver à comunidade o muito que esta lhe dava. O seu avô, pai e restante família simplesmente seguiram a tradição, reforçada por um forte sentimento religioso e por uma crença profunda no papel emancipador da educação e da cultura. Quando se procura o nome de Ruth Lilly na Internet aparecem as habituais inúmeras páginas mas todas dizem respeito a instituições que financiou: a Ruth Lilly Medical Library, o Ruth Lilly Health Education Center, a Ruth Lilly Law Library, o Ruth Lilly Hospice… a lista é longa. Longa e demasiado curta porque há muitas doações feitas anonimamente, sem a publicidade do seu nome numa placa. Há muitos recipientes que nem sequer sabem quem os ajudou: vêem apenas um advogado que lhes comunica a doação de um benfeitor anónimo. Ruth Lilly nunca gostou de publicidade, sempre odiou ser reconhecida e não gosta de agradecimentos.

O que praticamente não se encontra na Internet são informações pessoais ou fotografias. Ruth Lilly também nunca gostou de fotografias.

A esmagadora maioria das suas doações foi feita directamente. Há uma fundação com o seu nome, a Ruth Lilly Philanthropic Foundation, a quem tenciona deixar o dinheiro que lhe sobrar quando morrer, e há duas outras fundações ligadas à família que possuem actividades independentes, financiadas por fundos generosos já estabelecidos (Lilly Endowment e Eli Lilly and Company Foundation), mas Ruth Lilly preferiu quase sempre dar o seu dinheiro directamente aos projectos ou organismos que lhe pareciam meritórios, em vez de o fazer através das fundações instituídas pela família.

A sua primeira grande doação foi a dádiva da casa de família, Oldfields, ao Indianápolis Museum of Art, que a transformou em casa-museu – assim como de um fundo que garante a sua manutenção. Mas o gesto que lhe mereceu notícias no mundo inteiro foi, em 2002, a dádiva de mais de 100 milhões de dólares (a quantia exacta é difícil de determinar, pois a doação incluía uma imensa carteira de títulos de tipos diversos, mas houve quem a estimasse em 150 milhões) a uma minúscula organização, a Modern Poetry Association de Chicago, editora da revista Poetry.

Mesmo nessa ocasião Lilly não apareceu e os media tiveram de se contentar com declarações do seu advogado, mas não faltou quem pusesse em causa o discernimento da senhora, então com 87 anos, e até quem receasse os efeitos que tal inundação de dinheiro poderia gerar na qualidade da poesia americana. Mas o gesto, se era inédito, não tinha nada de precipitado ou de insensato.

A revista Poetry, criada em 1912 por Harriet Monroe, poeta e crítica de arte do diário Chicago Tribune, era (e é) uma revista de impecável reputação que conta entre os seus louros com a publicação de Ezra Pound, T. S. Eliot e William Carlos Williams e que continua a divulgar poesia moderna de qualidade. E Ruth Lilly foi, durante toda a sua vida, uma apaixonada de poesia e uma leitora entusiasta da revista, tendo-se mesmo dedicado à escrita de poesia com alguma seriedade. Sabe-se que, nos anos 70, Ruth Lilly submeteu alguns originais à Poetry (não se sabe ao certo quantos poemas nem quantas vezes, as versões variam), onde foram recusados pelo editor, Joseph Parisi - o mesmo que, trinta anos depois, receberia os seus milhões.

E essa não foi a única vez que tentou o prelo: em 1939, sob o quase pseudónimo R. Lyly, o New York Times publicou quatro poemas seus – que não é possível ver na edição digital do jornal ainda que esta remonte a 1851. A revista Business Week cita quatro versos:

Secure in plush upholstery
I wink a torpid eye
and note above the plaudits
the needle of your sigh

(“Confiante, no estofo aveludado / pisco um olho sonolento / e noto por cima dos aplausos / a agulha do teu lamento”)

O gosto da poesia também já era visível na sua actividade filantrópica. Antes da sua doação gigante à Poetry – que permitiu transformar a Modern Poetry Association numa pujante Poetry Foundation, triplicar a circulação da revista (hoje de 30.000 exemplares), triplicar o preço pago aos autores para 6 dólares por verso (!), aumentar o staff e multiplicar as iniciativas de ensino e promoção da poesia – Ruth Lilly já apoiava a revista, financiando bolsas e um generoso prémio anual de poesia com o seu nome, no valor de 100.000 dólares, atribuído desde 1986.

A reclusão a que Ruth Lilly se remeteu durante quase toda a vida não se deve apenas a timidez. A sua saúde foi sempre descrita como frágil e Lilly passou anos hospitalizada devido a uma severa depressão crónica. As suas raras saídas de casa foram sempre acompanhadas por enfermeiras, mesmo quando ainda se conseguia deslocar sozinha. Segundo o escasso perfil publicado no citado artigo da Business Week, foi só quando Ruth Lilly já tinha passado dos 70 anos que a sua situação médica sofreu uma melhoria considerável graças ao Prozac – o mais famoso dos antidepressivos e, irónica ou afortunadamente, uma das estrelas dos laboratórios Eli Lilly.

Apesar dessa relativa recuperação e das viagens que pôde fazer depois disso, Ruth Lilly continuou a fugir aos media e a quase toda a gente, uma espécie de Howard Hughes da filantropia. Uma vez apareceu de surpresa na recepção do Ruth Lilly Health Education Center para ver como estavam a correr as coisas, mas a maior parte das visitas que fez para ver como estava a ser gasto o seu dinheiro foram feitas anonimamente.

Em 2006, a pedido da família, um tribunal do Ohio considerou-a incapaz de gerir os seus donativos e entregou essa responsabilidade a seis dos seus sobrinhos e sobrinhas. A situação não se alterou e a família não divulgou qualquer informação sobre o seu estado depois disso. Nem autorizam que sejam publicadas fotos suas – das escassíssimas que possam existir. O único fotógrafo que encontrámos que possui fotografias de Ruth Lilly (tiradas em 2005, num evento público, onde aparece surpreendentemente jovem para os seus 90 anos, com uma expressão ingénua nos olhos cinzentos e impecavelmente maquilhada e penteada como uma actriz dos anos 40) não as pode ceder porque a família não autoriza a sua publicação.

Seria normal que alguém como Ruth Lilly, que teve uma vida longa e com todo o conforto material, que teve a oportunidade de concretizar tantos dos seus desejos e que atingiu uma tal reputação, fosse conhecida de imensa gente e acabasse a sua vida rodeada e feliz. De facto, não é assim. Mas o seu objectivo filantrópico foi certamente atingido. Ruth Lilly fez o que pôde para melhorar a vidas das pessoas à sua volta (a maioria das suas doações destinaram-se a instituições no seu estado natal, o Indiana) e para que elas pudessem usufruir de cultura, educação e beleza.

A sua vida pode não ter sido tão feliz como teríamos gostado, mas uma coisa é certa: se alguém cumpriu os critérios de filantropia de Carnegie para morrer com honra, foi Ruth Lilly.

sexta-feira, maio 08, 2009

Página de Rosto - Pete Seeger, um banjo contra o ódio

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 8 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 8



Pete Seeger, músico (Estados Unidos)

Pode parecer estúpido, mas penso que o mundo tem uma grande dívida para com Pete Seeger. A mesma dívida que tem para com tantos outros dos seus artistas, é verdade, mas uma dívida, mesmo assim. E que é do mundo em geral – ou pelo menos daquele onde chegou a sua música e o impacto do movimento pelos direitos cívicos nos Estados Unidos dos anos 60, o que quer dizer uma grande parte dele.

Falo da música de Pete Seeger e da luta pelos direitos cívicos na mesma frase porque não é possível separar uma da outra. É impossível imaginar as suas canções sem essa razão e esse sentimento, é impossível imaginar aquelas vagas de mobilização, de reivindicação, de solidariedade, de coragem, de emoção, de juventude, de amor da liberdade e de sonho de um mundo melhor sem os hinos de Pete Seeger. Porque muitas das suas canções são os hinos da liberdade que uma geração inteira aprendeu a cantar – na América e no mundo. E se a América ainda merece um lugar especial no coração de tanta gente, é antes de mais por causa de momentos como esses, onde a liberdade parecia estar a ser inventada de novo do outro lado do Atlântico e onde os males do mundo pareciam estar à beira de ser resolvidos.

Pete Seeger comemorou 90 anos no domingo passado, a 3 de Maio, e participou num concerto-festa no Madison Square Garden de Nova Iorque, onde cantou e tocou todos os seus velhos êxitos com um entusiasmo e um vigor que surpreenderam os que lhe tinham perdido o rasto nos últimos anos. A sua voz já não é aquele tranquilo tenor serpenteante e sedutor dos anos 60 e 70, mas o simples facto de ainda conseguir cantar, tocar o banjo e aguentar a pressão de um grande espectáculo não pode deixar de se considerar notável. No concerto participaram muitas dezenas de amigos, entre os quais os velhos Joan Baez e Arlo Guthrie e o apenas ligeiramente mais novo Bruce Springsteen – responsável, com o seu disco We Shall Overcome: The Seeger Sessions, de Abril 2006, por uma vaga de redescoberta da música de Seeger.

Entre os menos-de-50-anos é raro quem saiba quem seja Pete Seeger. O nome soa familiar, mas a maioria não se lembra porquê. Mas as canções, essas, toda a gente continua a reconhecê-las, ainda que, nalguns casos, a versão que vem à memória seja a de outros intérpretes (“Ah, não era a Marlene Dietrich que cantava esta?”. Também era. Marlene gravou We Shall Overcome em inglês, francês e alemão). E muitos outros cantaram Where have all the flowers gone, Amazing Grace, If I Had a Hammer, This Little Light of Mine…

We Shall Overcome, que Seeger celebrizou mas não compôs (a letra é de um gospel com cem anos, baseada numa velha canção de escravos, a música é de um hino religioso com raízes no século XVIII), tornou-se o verdadeiro hino dos direitos cívicos e foi cantado em milhares de protestos e desfiles, às vezes com alterações na letra, para a adaptar às circunstâncias. Os seguidores de Martin Luther King, durante as jornadas de luta contra a segregação – onde Seeger esteve sempre activamente, desde antes do primeiro momento – juntaram-lhe os versos “we will walk together, someday, black and white together, someday".

Muitas das canções de Seeger, como esta, possuem letras de uma simplicidade desarmante, que lhes dão uma força insuspeita. Imaginam o que deve ter sido estar nos degraus do Lincoln Memorial em Agosto de 1963, durante a Marcha de Washington, e ouvir We Shall Overcome cantado por duzentos mil manifestantes? Ou ouvir a canção, com o acrescento de um verso improvisado (“We are not afraid… We are not afraid, today”) cantado por um grupo de jovens manifestantes negros arrebanhados pela polícia e obrigados a deitar-se no chão? Hoje parece simples e inócuo mas houve pessoas que morreram, no nosso tempo, para que uma pessoa negra pudesse andar de mão dada com uma branca.

O significado do gospel é um pouco diferente quando é cantado numa manifestação contra o apartheid e os cenários das canções de Pete Seeger eram quase sempre dessa índole: protestos contra a segregação racial nas escolas e no trabalho, manifestações contra a brutalidade da polícia, reivindicação de igualdade perante a lei, salário mínimo, segurança no trabalho, direito à greve… De outras vezes concertos para recolha de fundos para apoiar greves, concertos de solidariedade por esta ou aquela causa.

A mensagem política adquiria uma força inimaginável à boleia destas letras espirituais (Seeger é crente), destas frases simples e incontestáveis, de uma verdade evidente, sempre sublinhando a força da razão, a não-violência, a liberdade e a igualdade. E imaginam um protesto de estudantes, brancos e negros, cantando em conjunto o clássico folk de Woody Guthrie (amigo e mestre de Pete Seeger) “This land is your land, this land is my land/This land was made for you and me”? Haverá melhor símbolo de empowerment?

A mensagem gravada no banjo de cinco cordas e braço extralongo, que se transformou na marca registada de Seeger, diz tudo: “This machine surrounds hate and forces it to surrender” (Esta máquina cerca o ódio e força-o a render-se). A frase é uma marca da influência de Guthrie, que tinha escrito na sua viola "This machine kills fascists” (Esta máquina mata fascistas). Seeger adoçou-o ao sabor da sua música e da sua vida.

Pete Seeger nasceu em Manhattan, numa família da classe média, filho de pais músicos (ele, musicólogo; ela, violinista), ambos professores na famosa Juilliard School de Nova Iorque. Os pais proporcionaram-lhe uma formação musical sólida mas relativamente livre e tentaram que Pete se dedicasse à música clássica, mas o género não o atraía especialmente. Aos dezasseis anos, num festival de música, ouviu o banjo de cinco cordas e ficou apaixonado pelo instrumento, que nunca mais deixou – apesar do seu gosto pela guitarra de doze cordas, outra preferida, e dos muitos outros instrumentos que toca episodicamente. O seu livro How to Play the Five-String Banjo, publicado em 1948, continua a ser considerado uma referência.

Seeger conseguiu uma bolsa para Harvard (onde foi colega de John Kennedy), decidido a estudar sociologia e a tornar-se jornalista, mas os estudos não o entusiasmaram e deixou a universidade para viajar pelos Estados Unidos, desenhando pelo caminho (uma paixão de sempre) e fazendo música. Foi nessa viagem pelo país que conheceu Woody Guthrie, com quem criou em 1940 os Almanac Singers, grupo de cantores-activistas itinerantes que apoiava com a sua música os movimentos sindicalistas. Durante a Segunda Guerra Mundial cantou para entretenimento das tropas e depois de sair do exército criou o People's Songs, Inc., uma associação de músicos dedicada a apoiar movimentos sindicais e preocupada com a recolha e reabilitação da música folk. Em 1948 fundaria outro grupo, os Weavers, que conheceria uma fama comercial considerável.

Em parte por influência do pai, comunista convicto, um entusiasta que acreditava que a música devia ser posta ao serviço do povo e da transformação social, Pete Seeger aderiu com 17 anos à Liga Comunista da Juventude e seis anos depois ao Partido Comunista dos EUA. Muito mais tarde, já nos anos 90, diria que começou a afastar-se do partido nos anos 50 (o pai saiu em 1938), ao tomar conhecimento das atrocidades cometidas por Estaline, mas a fama de “estalinista” manter-se-ia colada ao seu nome por muitos anos, alimentada frequentemente por conservadores que o criticavam por defender a liberdade nos EUA e a ditadura na URSS.

Forçado a testemunhar durante o McCarthyismo perante a Comissão de Actividades Anti-Americanas, em 1955, Pete Seeger recusou-se a responder às perguntas, a acusar fosse quem fosse e a invocar a Quinta Emenda – o que daria origem a uma condenação a um ano de prisão, que seria revogada e que nunca cumpriu.

“Gosto de dizer que sou mais conservador que Goldwater”, disse numa entrevista dada ao New York Times em 1995. “Ele só quer voltar ao tempo em que não havia imposto sobre o rendimento. Eu gostava de voltar ao tempo em que as pessoas viviam em aldeias e tomavam conta umas das outras”. Sobre Estaline, na mesma entrevista, lamenta “ter seguido a linha do partido como um carneiro” e “não ter percebido que Estaline era um dirigente supremamente cruel”. Em 2007, escreveria uma canção condenando explicitamente o líder soviético, Big Joe Blues ("I'm singing about old Joe, cruel Joe”). Demasiado tarde, disseram alguns.

Se há um fio condutor na mensagem das músicas de Seeger, esse fio é a paz, a não-violência, o respeito pelos outros e pela natureza, a solidariedade entre todos os seres humanos, a recusa de todas as segregações e a defesa da justiça social, da dignidade humana. Além, claro, da fé no poder da música como forma de unir as pessoas. Não há concerto de Seeger em que não diga às pessoas para cantarem consigo. Seeger não gosta de cantar sozinho.

Hoje, Pete Seeger é uma lenda viva e um repositório de algumas das mais nobres lutas políticas do último século nos Estados Unidos: os direitos dos trabalhadores e em particular o direito à greve, os direitos cívicos e em particular o fim da segregação racial – Seeger cantou This Land Is Your Land depois da tomada de posse de Obama –, a luta contra o McCarthyismo e pela liberdade de associação, a oposição à guerra do Vietname e a todas as formas de agressão internacional e a defesa do ambiente – que nos últimos anos se tornou a sua causa de eleição. Não é mau para 90 anos.

domingo, abril 19, 2009

Página de Rosto - Craig Newmark, o anti-Cristo dos jornais

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 
19 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, pág. 14


Tímido, nerd confesso, Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web

Nesta empresa está quase tudo ao contrário do que é habitual. O dono e fundador ganha milhões de dólares mas trabalha na assistência a clientes e passa os dias sentado ao computador a responder a mails com queixas e sugestões. O CEO da empresa, considerada um dos maiores exemplos de sucesso no mundo da Internet e que tem um dos sites mais visitados do planeta, é classificado com frequência como “comunista” e “anarquista” e possui uma filosofia de vida profundamente anti-sistema e anti-capitalista. Mas o mais surpreendente é que nesta empresa, a famosa Craigslist de San Francisco, que gere o site Craigslist.org, ninguém está interessado em aumentar as receitas e muito menos em maximizar o lucro ou em conquistar uma fortuna. Não é que digam que não estão: não estão mesmo. Porque têm tido inúmeras oportunidades para o fazer e têm-nas sempre recusado em termos que não estimulam novas propostas.

A Craigslist começou por ser a “Craig’s list” – a lista do Craig. Craig é Craig Newmark, um engenheiro de software de 56 anos, nascido na costa Leste dos Estados Unidos, em New Jersey, que foi trabalhar para San Francisco. Em 1994, quando estava na empresa financeira Charles Schwab a trabalhar na área da segurança informática “e a fazer evangelização em prol da Internet”, como costuma dizer, Craig decidiu criar um serviço por mail, inicialmente destinado apenas aos amigos, com a lista dos eventos mais interessantes à volta de San Francisco. Os amigos foram passando palavra e o número de destinatários foi crescendo até que, quando chegou aos 240, a qualidade do serviço começou a degradar-se. Craig decidiu então criar a Craigslist e instalá-la num servidor. Pensou inicialmente chamar-lhe “SF Events” mas os amigos convenceram-no de que não valia a pena – se toda a gente a conhecia como “Craig’s list”, por que não manter o nome?

Durante os primeiros anos, a lista foi-se expandindo com a colaboração dos próprios utilizadores, que tinham liberdade para publicar o que quisessem e que começaram a usar “a lista” para fins diferentes das intenções originais de Craig – como publicar um anúncio para vender uma mota ou para procurar um quarto, sempre de forma totalmente gratuita. O êxito foi crescendo e a San Francisco seguiram-se outras cidades dos EUA e do mundo (a lista possui uma organização geográfica, por países e cidades).

Em 1998, quando Craig já tinha deixado a Charles Schwab e trabalhava como consultor independente – nomeadamente para o Bank of America, na área do home banking – tornou-se evidente que era preciso fazer uma escolha: a lista tinha crescido tanto em conteúdo, utilizadores e reputação que era preciso dar-lhe a atenção necessária, vendê-la ou aceitar a sua degradação. Craig decidiu deixar a sua actividade de consultor e criar uma verdadeira empresa. A bola de neve não parou. Hoje, segundo dados do site, a Craigslist cobre 570 cidades de todo o mundo, com anúncios classificados que cobrem todas as áreas imagináveis, do emprego e do imobiliário a serviços de segurança, do trabalho voluntário a encontros eróticos, de restaurantes a advogados. O site tem mais de 20.000 milhões de visualizações de páginas por mês, ocupa o número 25 de todos os sites do mundo e o sétimo lugar dos sites de língua inglesa em tráfego. Tem 50 milhões de utilizadores e publica 40 milhões de novos anúncios por mês. Destes, mais de um milhão são anúncios de emprego. Para não falar dos fóruns onde são publicados mensalmente 100 milhões de posts. Craisglist é, antes de mais, uma comunidade e os utilizadores estão profundamente envolvidos na sua gestão, nomeadamente identificando anúncios de conteúdo ilegal ou ofensivo.

Só que este êxito não é bem recebido por todos. A Craigslist transformou-se na Némesis da imprensa. Estes anúncios classificados, que são publicados gratuitamente no site, foram durante anos uma receita cativa dos jornais diários e a actual crise da imprensa deve-se, em grande parte, a esta fuga de receitas publicitárias para a Internet – o que, nos EUA, significa em grande medida para a Craigslist. Uma empresa de consultoria estimou em 2005 que a Craisglist representaria uma perda de receitas para os jornais de 50 a 65 milhões de dólares por ano, apenas no domínio dos anúncios de emprego… e apenas na área da baía de San Francisco.

Não admira por isso que, quando Stephen Colbert entrevistou Craig Newmark para o seu programa Colbert Report, há cerca de um ano e meio, o tenha felicitado entusiasticamente por “estar a matar os jornais americanos”. Esses ninhos de liberais, entenda-se.

A acusação não tem muito sentido, porém: Craigslist é o site mais visível, mas a transferência ocorreria sempre. A questão é que os anúncios classificados, que representam em média 35 por cento das receitas dos jornais, se prestam muito mais a ser publicados e consultados online que num jornal em papel. O que não impede a imprensa escrita de olhar para Craig como para o anti-Cristo.
Qual é o negócio da Craigslist? Como é que um site de anúncios classificados gratuitos faz dinheiro? É que nem todos são gratuitos: os anúncios de emprego em 18 cidades e os de casas em Nova Iorque são pagos (25 a 75 dólares). Isso é suficiente para gerar receitas no valor de… ninguém sabe ao certo quanto. Como a empresa não está cotada na bolsa, Craig não é obrigado a dizer. Mas as estimativas andam pelas muitas dezenas de milhões de dólares por ano ou talvez por uma ou duas centenas. Nada mau para uma empresa que possui apenas 28 empregados e que opera a partir de uma pequena casa vitoriana de San Francisco. Quanto vale a empresa? Se Craig e Jim Buckmaster (o CEO, também sócio, que foi contratado por Craig através de um anúncio na lista), a quisessem vender, conseguiriam sem dúvida um valor acima dos mil milhões de dólares mas… nenhum deles quer. Não gostariam de ter dinheiro suficiente para poderem humilhar toda a gente à sua volta, para usar a formulação de uma pergunta feita por Jon Stewart a Craig Newmark? Ambos dizem que não precisam de mais dinheiro do que o que tem e falam mais vezes de princípios morais, de estilo de vida, da necessidade de reforçar os laços da comunidade e das suas responsabilidades para com os seus clientes que da vida de luxo que poderiam ter se vendessem. Um dia, dizem, alguém fará melhor aquilo que a Craigslist está a fazer hoje e ela será eliminada pela concorrência. Entretanto, continuam a dar o seu máximo e a investir na qualidade do serviço.
Em 2004 a EBay comprou 28,4 por cento da Craigslist, mas fê-lo através da compra da quota de um ex-empregado a quem Craig tinha dado sociedade. A princípio pensou-se que a EBay tentaria usar este passo – que lhe deu um lugar na administração - para adquirir toda a empresa, mas Craig e Buckmaster não cederam às pressões nesse sentido. As relações entre a EBay e a Craigslist azedaram, com ataques e processos judiciais mútuos: a EBay acusando a Craigslist de desvalorizar a empresa (e a sua participação, que comprou por um valor não divulgado), e a Craigslist acusando a EBay de espionagem e concorrência desleal. Após a sua entrada na Craigslist, a EBay lançou um site de classificados, o Kijiji, que a primeira diz apenas pretender a sua destruição. Mas a verdade é que concorrer com a Craigslist não é fácil. O site define-se como “um serviço público” e tem como filosofia fazer e oferecer o que os clientes querem. Um princípio simples que muitas empresas ignoram. Os utilizadores não gostam de publicidade e de pop-ups? O site não tem publicidade nem pop-ups. Os utilizadores não gostam de inquéritos? O site não faz inquéritos.

Tímido, nerd confesso (no site da empresa diz que já deixou de andar com os óculos colados com adesivo) Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web (comunicação, promoção, organização das comunidades). E na fotografia que pôs no seu perfil do Facebook aparece ao lado de Obama. A identificação é “Customer Service Rep & Founder, Craigslist”

terça-feira, junho 13, 2006

Empanturrar o monstro

Não perca o Comentário de Jonathan Rauch na "The Atlantic" de Junho de 2006,"Stoking the Beast" (que se pode traduzir como "Empanturrando a Besta" ou "Empanturrando o Monstro").Rauch, que é colaborador do "Atlantic" mas também investigador do Brookings Institution, escreve sobre um trabalho de William A. Niskanen, presidente de outro famoso "think tank", o Cato Institute, a propósito da redução dos impostos que a direita americana tanto idolatra e que George W. Bush transformou numa das marcas da sua presidência. Essa redução de impostos, a que se dá o nome de gíria de "Starve the Beast" (The Beast é o Big Government), tem como objectivo e consequências, segundo os seus proponentes, reduzir à força o papel hipertrofiado do Estado cortando-lhe a receita fiscal, mas também libertar fundos no sector produtivo que as empresas poderão usar para investir, criar emprego, fazer crescer a economia, e outras maravilhas.

Acontece que Niskanen estudou os últimos 25 anos (1981 a 2005, cobrindo Reagan, Bush Pai, Clinton e Bush Filho) e constatou que, ao longo de todo esse período, sempre que se realizou uma descida dos impostos (Reagan, Bush Filho) os gastos do Governo aumentaram e sempre que se verificou um aumento dos impostos (Bush Pai e Clinton) os gastos do Governo diminuíram.
Niskanen afirma que não encontrou "quaisquer sinais de que a existência de défices tenha alguma vez actuado como um travão dos gastos [do Governo]". Niskanen diz que a redução dos impostos sem uma prévia redução dos gastos do Governo não faz mais do que reduzir o custo aparente da acção do Estado e, dessa forma, acaba por aumentar os gastos públicos – que são financiados através de défice.
Niskanen foi ainda mais longe e determinou a nível de taxação acima do qual há redução dos gastos do Governo e abaixo do qual há aumento: 19 por cento do Produto Interno Bruto. Esse nível nos EUA foi de 17,8 por cento em 2005.
O que é mais curioso em tudo isto é que Niskanen – defensor de um papel minimalista do Estado e conservador – gostaria de estar errado. Mas foi isso que deram as suas contas.

Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 13 de Junho 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/06/empanturrar-o-monstro.html

sexta-feira, maio 19, 2006

A Web e a política americana

"The Hope of the Web", de Bill McKibben, publicado no número de 27 de Abril de 2006 de "The New York Review of Books", é uma crítica de um livro ("Crashing the Gate: Netroots, Grassroots, and the Rise of People-Powered Politics") que tem como co-autor Markos Moulitsas Zúniga, o criador de dailykos.com, um dos sites políticos mais influentes dos EUA. Um bom artigo sobre a forma como a Web está a mudar a política americana.


Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/web-e-poltica-americana.html

Aborto nos EUA com os dias contados?

A nomeação dos juízes conservadores John G. Roberts Jr. e Samuel A. Alito Jr. para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos pode vir a pôr em causa a jurisprudência do caso "Roe versus Wade" (uma decisão do Supremo de 1973, por 7/2 votos), que impede os estados de restringir o direito ao aborto. Um artigo na "Atlantic Monthly" de Junho de 2006 avança os cenários para o que poderá ser o fim do direito ao aborto em muitos dos estados dos EUA.
Para um perfil do juiz Alito e das peripécias da sua nomeação, leia o artigo "The Strange Case of Judge Alito", de Ronald Dworkin, publicado na "New York Review of Books" de 23 de Fevereiro de 2006.

Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/aborto-nos-eua-com-os-dias-contados.html

Os ricos mais ricos

Como os ricos dos Estados Unidos se estão a tornar cada vez mais ricos: "The Rich and Everyone Else" por Andrew Hacker, no número de 25 de Maio de 2006 da "New York Review of Books".

Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/os-ricos-mais-ricos.html

terça-feira, maio 16, 2006

História e estupidez

"History and National Stupidity", de Arthur Schlesinger Jr., no número de 27 de Abril de 2006 de "The New York Review of Books". Um pequeno e luminoso artigo onde Schlesinger passeia pela noção de história, pela sua constante reescrita e defende a história como uma "necessidade moral" para um país com o poder dos EUA.
Citação: "History is the best antidote to illusions of omnipotence and omniscience. [...] A nation informed by a vivid understanding of the ironies of history is, I believe, best equipped to live with the temptations and tragedy of power. Since we are condemned as a nation to be a superpower, let a growing sense of history temper and civilize our use of that power. [...] Thirty years ago we suffered military defeat—fighting an unwinnable war against a country about which we knew nothing and in which we had no vital interests at stake. Vietnam was bad enough, but to repeat the same experiment thirty years later in Iraq is a strong argument for a case of national stupidity."

Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 16 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/histria-e-estupidez.html

terça-feira, setembro 06, 2005

Guerra ao furacão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Setembro de 2005
Crónica 24/2005

O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas?

1. Não é preciso ser um religioso fundamentalista nem sequer ver no furacão Katrina a mão de Deus para constatar que ele constituiu para os Estados Unidos uma lição de humildade.

Uma lição de humildade perante a força dos elementos, que tornam evidente que mesmo para a nação mais poderosa da terra não é sensato prescindir da ajuda internacional, mas também uma lição de humildade perante as violentas lacunas da organização social americana e perante a miséria preexistente que o desastre tornou dolorosamente visível.

Nos últimos dias, o mito nacionalista americano e o seu culto da competição, da força e da violência sofreu um banho de realidade e ouvimos multiplicar-se os apelos à entreajuda, à dádiva e à cooperação. Será sol de pouca dura, mas pode ser que as necessidades pungentes que o Katrina revelou ou originou deixem ficar algo destes apelos nos corações e nas mentes dos americanos.

2. Se as imagens que as televisões nos mostram lembram as de um país do terceiro mundo afectado por uma catástrofe natural é porque nos Estados Unidos existe um enorme país do terceiro mundo acocorado em torno das suas ilhas de sucesso.

Os EUA gostam de medir o vigor da sua sociedade pelos seus sucessos – incontestavelmente imensos. Mas se o critério incorporar alguma noção de justiça, a qualidade de uma sociedade tem de se medir pela extensão da sua pobreza e da sua violência tanto ou mais do que pelos êxitos científicos ou pela sofisticação das suas classes abastadas.

Para quem persiste em ver na América um modelo social justo e eficaz que merece ser exportado para os quatro cantos do globo, é educativo relembrar que em torno dos sonhos americanos encarnados pelos Bill Gates e Oprah Winfreys vivem milhões de pobres, excluídos e esquecidos, mantidos às portas da cidade pelas forças policiais. É verdade que também há excluídos em Portugal, mas pelo menos ninguém defende o “modelo português” para os males do mundo.

As pilhagens a que tantos se lançaram na Louisiana logo após a catástrofe mostram essa insuportável tensão entre ricos e pobres, que faz da América um barril de pólvora que qualquer pretexto pode fazer explodir. Em que país do mundo civilizado uma catástrofe dá origem a pilhagens de supermercados e armeiros?

O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas? A cadeia de solidariedade entre homens livres que é o sangue da democracia faria ouvir a sua voz ou a América tornar-se-ia de um momento para o outro uma terra de senhores da guerra, de pilhagens e motins, como vemos nos piores países do terceiro mundo?

3. O atraso na reacção de Bush, a paralisia da Federal Emergency Management Agency (FEMA), a incapacidade da Guarda Nacional, a desagregação das forças policiais, a lentidão dos socorros, a degradação dos centros de acolhimento de emergência (e a sua própria falta de segurança, com registo de homicídios e violações), a segregação racial evidente, a falta de conservação das obras públicas que podiam ter evitado o desastre são temas que irão continuar a fazer correr tinta nos próximos dias.

Mas, para além dos problemas, é importante ver a atitude que foi adoptada para os resolver: a entrega da sua resolução aos militares.

A militarização dos Estados Unidos e da sua política, a nível interno e externo, é um facto, triste e preocupante. É um sinal dessa militarização que não só a reposição da ordem nas ruas de Nova Orleães mas também a organização dos socorros e das obras de emergência tenha sido entregue não a agências civis como a FEMA mas principalmente aos militares. Os americanos têm uma dificuldade crescente em encontrar projectos comuns e heróis que não sejam do foro militar. Um tique pouco auspicioso.

terça-feira, maio 11, 2004

Abu Ghraib

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 11 de Maio de 2004
Crónica 18/2004

Retracção dos direitos cívicos, agudização da discriminação religiosa e racial, propaganda supremacista branca. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira.

A divulgação dos actos de tortura e humilhação a que foram submetidos prisioneiros das tropas americanas no Iraque deram origem, num primeiro momento, à esperada condenação unânime e, num segundo momento, à inevitável bifurcação moral. Enquanto uns consideraram a revelação como uma prova em si da superioridade moral da democracia americana e exprimiram a sua convicção de que os responsáveis seriam identificados e castigados, o que provaria de forma ainda mais cabal a dita superioridade, outros apressaram-se a comparar a actual situação no Iraque em termos de direitos humanos aos tempos do ditador Saddam.

Ainda que se deva admitir o princípio da responsabilidade dos dirigentes pelos actos dos subordinados (eventualmente sem culpa) é consensual que a responsabilidade política de Rumsfeld e Bush (porquê parar em Rumsfeld?) seria nula se se tivesse tratado de actos isolados de uns quantos soldados (um ou vinte, é irrelevante), claramente desenquadrados da prática geral, da vontade das chefias militares e das ordens expressas recebidas.

Porém, já sabemos que não é assim. Sabe-se hoje que, pelo menos na prisão em causa, Abu Ghraib, esta prática estava generalizada, que era conhecida das chefias militares e era tolerada, que tinha sido investigada e posta preto no branco num relatório militar, que tinha prosseguido após essa investigação e parece ser mesmo resultado de ordens directas dos serviços secretos. A multiplicação de provas fotográficas e videográficas é, aliás, a melhor prova da convicção de impunidade dos protagonistas desses actos.

Para os adeptos mais fervorosos da política de Bush, os episódios de tortura não são senão um pequeno desvio (lamentável) a algo que é a justa linha do partido que representa a vanguarda da História – o Partido Republicano americano.

No entanto, é sabido (por quem queira saber) que existem nas prisões americanas em geral - não é preciso chegar ao Iraque – os mais chocantes e sistemáticos abusos dos direitos humanos, bem documentados e com constantes condenações de organizações domésticas e internacionais. Mas, como “os EUA são uma democracia” e precisamente porque muitos destes abusos são denunciados, eles podem ser ignorados com um comentário desculpabilizador. Numa operação de branqueamento moral, as constantes denúncias dão origem não a uma condenação mas a uma ilibação do sistema.

Que a guerra traz ao de cima o que de pior existe nas pessoas já se sabe e não havia razão para esta ser excepção. Mas há outra razão para não haver surpresa nos casos de tortura na prisão de Abu Ghraib. É que eles inscrevem-se na lógica, que tem vindo a ser seguida nos EUA desde o 11 de Setembro, de constante atropelo dos direitos humanos em nome da segurança – na qual o caso de Guantánamo ganhou maior destaque, mas não é único. A lógica de Guantánamo – que não é da responsabilidade individual de uns quantos soldados – é a lógica das leis de excepção, do parêntesis nos direitos humanos, justificado em nome da defesa nacional. Esta deriva securitária, denunciada por inúmeras organizações americanas, traduz-se numa retracção radical dos direitos cívicos, numa agudização da discriminação religiosa e racial, num moralismo asfixiante e numa propaganda supremacista branca e cristã que se transformou de facto no coração do regime – para tristeza dos democratas que reconhecem sólidas virtudes no sistema americano. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira. Nesse sentido, os seus actos inscrevem-se na lógica do sistema – como Guantánamo, que talvez um dia Rumsfeld venha dizer que não sabia que existia…

Nesse sentido, os responsáveis políticos americanos, com Bush à cabeça, são certamente responsáveis por eles.