Texto publicado no jornal Público a 9 de Dezembro de 2014
Crónica 54/2014
Os pobres como Garner só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue.
“Quando um homem morre é uma tragédia. Quando morrem milhares, é uma estatística”. A frase é de Estaline, que a terá dito a Churchill durante uma conversa na cimeira de Teerão, em 1943. Encerra uma enorme verdade.
O movimento de protesto que está a varrer os Estados Unidos devido a uma série de homicídios injustificados de homens negros por polícias brancos é uma das muitas provas do aforismo. Se não conhecêssemos os nomes e as histórias de Eric Garner, sufocado por um polícia que pensava que ele estava a vender cigarros avulso na rua; de Tamir Rice, um miúdo negro de 12 anos que brincava com uma pistola de plástico num jardim; de Michael Brown, um jovem de 18 anos, desarmado como todos os outros, que foi atingido com oito tiros por um polícia que o deteve no meio da rua, em Ferguson, Missouri; de Rumain Brisbon, que ia tirar do bolso um frasco de comprimidos que um polícia receou que fosse uma arma; de Akai Gurley, que ia a sair de sua casa quando um polícia o atingiu mortalmente a tiro sem que houvesse a mínima razão para tal, e de outros como eles, trataríamos o elevadíssimo número de negros mortos às mãos de brancos nos EUA (ou de polícias brancos) como uma estatística. É porque os conhecemos um pouco, porque ouvimos contar as suas histórias, que sentimos as suas mortes como tragédias. É evidente que sentimos estes casos como injustiças intoleráveis e como sintomas de uma sociedade gravemente doente porque todos os polícias brancos envolvidos na morte destes negros foram ilibados ou tratados com grande brandura pelo sistema judicial, mas a nossa revolta também não seria a mesma se, em vez das cinco ou seis pessoas que ficámos a conhecer, se tratasse de 500 que não conhecemos.
No caso de Eric Garner, o negro obeso que talvez estivesse a vender cigarros de contrabando avulso na rua, há uma poderosa razão extra para a nossa indignação: o vídeo do seu assassinato divulgado no YouTube. Vimos o vídeo e sabemos o que aconteceu. Vimos o uso desproporcionado e injustificado de força pelos polícias e ouvimo-lo repetir “I can’t breathe!” enquanto teve forças para isso, perante a contínua brutalidade dos agentes.
O vídeo reforça a nossa indignação porque nos fornece mais informação, mas não se trata apenas disso: o vídeo permite-nos sentir empatia, sentir o que Garner estava a sentir no momento em que foi interpelado pelos polícias, sentir a que ponto estava farto de uma vida de perseguição e de acusações com ou sem motivo. Como aconteceu com um outro caso célebre, o espancamento de Rodney King em 1991, filmado por uma câmara-vídeo e divulgado nas televisões, que daria origem a graves tumultos em Los Angeles quando todos os polícias envolvidos no espancamento foram absolvidos.
A grande acusação que se pode fazer ao sistema americano – não a este ou àquele polícia concreto e não apenas às forças policiais – é que todos sabemos que, se a cor da pele dos participantes estivessem trocadas, a atitude do sistema judicial seria diferente. Alguém imagina que, se cinco ou seis polícias negros tivessem atacado e matado um cidadão branco desarmado, nenhum seria acusado e que o incidente seria classificado como um acidente?
É evidente que a cor da pele não é o único factor da discriminação da polícia. Há um evidente factor de discriminação social – Garner, um negro pobre e obeso, não teve o mesmo tratamento que seria reservado para um negro da alta classe média de Manhattan – mas isso não torna o problema menos grave.
A verdadeira tragédia é que os negros pobres dos EUA, como Garner, só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue e quando alguém filma o processo que os leva lá com o seu telemóvel e o publica no YouTube. Antes disso, são não-entidades. Sem voz, sem representação política e sem visibilidade mediática. Na melhor das hipóteses, são figurantes estereotipados de histórias de polícias e de procuradores.
E isso não acontece só nos Estados Unidos.
O discurso mediático é, de forma crescente, o discurso dos poderosos e cresce o número dos sem-voz, dos marginais transformados em estatísticas.
De forma crescente, nos media, os ricos são pessoas e os pobres são estatísticas. Os poderosos são entrevistados e os pobres são tratados por grosso. Para não mencionar os casos, frequentes nas televisões, onde os “populares”, emotivos e iletrados, apenas servem de ruído de fundo às “reportagens” em “directo”, folclóricos quando não ridículos.
Este estatuto de impessoalidade que os media conferem aos pobres e necessitados justifica, insensivelmente, o tratamento como sub-humanos a que o Governo e o ministro Mota Soares os submete, perante um silêncio quase geral.
É tempo que os jornalistas recuperem o lema de “dar voz aos que não têm voz” e multipliquem aquilo que, por agora, continuam a ser histórias esporádicas de incidentes ocasionais para nos fornecer um retrato realista de toda a sociedade.
Crónica no Público: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/os-ricos-sao-pessoas-mas-os-pobres-sao-estatisticas-1678776?page=-1
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