por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Dezembro de 2014
Crónica 55/2014
A presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas.
Tenho a certeza de que uma maioria significativa dos portugueses deseja que, das próximas eleições legislativas, saia um novo governo que ponha em prática uma política que recuse o modelo austeritário, que defenda os interesses de Portugal na União Europeia e não os interesses dos nossos credores, que seja capaz de encontrar aliados na UE para combater as políticas europeias que põem em causa a democracia, a independência e o desenvolvimento nacional (a começar pelo Tratado Orçamental e pela TTIP-Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), que combata de forma vigorosa as desigualdades e a pobreza, que promova uma educação e uma saúde de acesso universal, que defenda a ciência e a cultura, que combata os poderes ilegítimos e a corrupção, que promova o emprego e a dignidade do trabalho, que garanta um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, que permita enfim a todos os cidadãos uma vida decente numa sociedade democrática.
Ou seja, uma política que seja diametralmente oposta à política lesa-pátria do actual Governo, de favorecimento do capital financeiro, de submissão generalizada aos poderes estrangeiros, de submissão à vontade dos credores, de empobrecimento generalizado da população, de apropriação e delapidação do património do Estado, de destruição dos serviços públicos, de desprezo pela independência nacional, pela democracia e pelas suas próprias promessas eleitorais.
A política que penso que a maioria do povo português deseja é uma política de esquerda, feita em nome de todos os portugueses para servir todos os portugueses e não uma política desenhada para servir grupos de oligarcas, na esperança de vir um dia a integrar as suas fileiras, como aquela que hoje, para nossa tristeza e sua vergonha, os nossos governantes levam a cabo.
Quando se faz um retrato deste tipo, daquilo que seria uma política desejável, é frequente que apareça alguém que nos diz: “Mas isso não é característico de uma política de esquerda. Eu sou de direita e também quero tudo isso!” E, de facto, não é importante o que lhe chamemos. No entanto, o facto é que uma política de combate activo às desigualdades, de erradicação da pobreza, de universalidade de acesso à Saúde e à Educação sem entraves de classe social ou económica, de defesa dos serviços públicos, de combate aos privilégios, de defesa do trabalho e de combate ao poder ilegítimo do capital financeiro é uma política que possui as características de uma política de esquerda.
A grande questão é: com quem se pode contar para pôr em prática essa política?
Em Portugal, os movimentos que têm surgido tendo como ideia central a convergência da esquerda para a construção de um governo de esquerda – em contraponto a uma esquerda instalada no protesto – têm sido acusados de pretender “aproximar-se” do PS apenas para conseguir aceder ao poder. A acusação é por vezes apenas difamatória, outras vezes será uma crítica política séria. A questão é que o PS, a posição do PS, as políticas que o PS irá defender e as que quererá pôr em prática se chegar ao governo são uma questão central para todos nós e, em particular, para todos os que têm urgência de ver uma governação à esquerda. É evidente, e sabemo-lo todos, que a presença do PS no governo está longe de ser uma condição suficiente para uma política de esquerda. Ainda que tenha tomado posições importantes na defesa do Estado social, o PS tem governado à direita e, por vezes, escandalosamente à direita. Mas a presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas. Não para fazer do governo um governo de esquerda, mas para fazer da esquerda uma esquerda no governo.
Não se trata de aderir ao PS para o “mudar por dentro”, como tantos no passado anunciaram querer fazer sem êxito (curiosamente, em geral para saírem pela direita do PS), mas de criar um lastro à sua esquerda que produza não só políticas de esquerda viáveis, mas passíveis de recolher o apoio parlamentar necessário. Como partido ideologicamente híbrido que é, o PS vive ele próprio sob a assombração das maldições da direita: a inevitabilidade da austeridade, a imutabilidade das políticas europeias, a invencibilidade do capital financeiro, a impossibilidade de reformar de forma radical a sociedade e a política. E uma das razões que apresenta para o seu “there is (almost) no alternative” é o seu receio de que não exista apoio social e político suficiente para ser algo diferente. É essa dúvida que, quer no plano do apoio social, quer no plano da construção programática, é preciso afastar. É possível uma política de esquerda viável, realista, justa e com amplo apoio social. É este o desafio ao qual a esquerda à esquerda do PS tem de responder e o desafio que tem de lançar ao PS. Se o PS quiser escolher a direita para parceiro de governo ou compère parlamentar que o faça, mas que não diga que foi por falta de comparência que não foi possível governar à esquerda.
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/a-esquerda-nao-pode-perder-por-falta-de-comparencia-1679506
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