por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Março de 2004
Crónica 12/2004
A função de um adjunto de um ministro quando fala com a imprensa é representar a instituição a que pertence e não outra.
A propósito do trabalho do PÚBLICO sobre a fome em Portugal, foi publicada neste jornal uma "Carta ao Director" de Jacinta Oliveira, adjunta do Ministro da Segurança Social e Trabalho, que suscita algumas reflexões sobre o papel dos assessores dos governantes e a sua relação com os media. Queixa-se Jacinta Oliveira de que uma declaração sua citada naquele trabalho foi não só retirada do contexto como citada como representando a posição do seu Ministério, quando ela teria sido proferida numa "conversa informal" (o adjectivo aparece duas vezes) com uma jornalista do PÚBLICO. A adjunta diz que nunca prestou declarações como "porta-voz" ou "fonte oficial" e rebela-se contra o facto de as suas declarações terem sido consideradas como tendo "carácter oficial".
Tentemos tecer algumas considerações de ordem geral a partir daqui e ser claros: quando um jornalista fala a um adjunto de um ministro é porque pretende ou recolher dados de uma fonte oficial ou recolher um depoimento dessa fonte oficial — que, quase sempre, apenas têm valor por virem dessa fonte oficial.
Se um jornalista se apresenta como tal num contacto com um elemento de um gabinete ministerial ou com um responsável de uma instituição, é evidente que as informações ou declarações que recolhe se destinam a publicação, com indicação da fonte onde foram colhidas.
Esta é a regra e ela é boa. Ela visa a transparência da vida pública e a responsabilização dos cidadãos e das instituições. Há excepções a esta regra? Há casos em que uma fonte pode pedir para não citarem o seu nome, pode dizer que apenas falará com o jornalista se lhe for garantido o anonimato? Claro que sim, mas são excepções. E devem ter uma justificação óbvia (receio de represálias, por exemplo). E as excepções devem ser negociadas expressa e previamente com o jornalista. Nunca se deve pressupor (nem o jornalista deve permitir que essa convicção se instale) que uma conversa com um jornalista é em princípio confidencial. (No caso vertente, que fique claro, não houve qualquer pedido de anonimato, mas apenas o entendimento unilateral, por parte da adjunta de Bagão Félix, de que as suas declarações eram feitas a título "informal").
O pedido de anonimato e as declarações em "off", apesar de frequentes (em particular no meio político), são difíceis de aceitar por parte de um elemento de um gabinete ministerial que está ao serviço de um Governo eleito pelo povo, a quem deve prestar contas e perante quem tem um dever de transparência. Dito de outra forma: a função de um adjunto de um ministro quando fala com a imprensa é representar a instituição a que pertence e não outra. E tudo o que diz (tenha ou não a função oficial de "porta-voz") é em nome dessa mesma instituição. Não em nome pessoal. Não anonimamente. É para isso que é pago (por nós). Para assumir o que faz e o que diz.
Um assessor pode eventualmente pedir para o seu nome não ser referido e para ser identificado como fonte oficial do gabinete X (o que não significa que não assuma publicamente o que disse) precisamente porque as suas declarações são oficiais (e não pessoais) e obrigam o gabinete, o ministro e o Governo. Mas não pode pedir para ser identificado como uma "fonte anónima do gabinete". Os cidadãos em geral e os jornalistas em particular não podem permitir que os gabinetes ministeriais e o Parlamento sejam ocupados por "fontes anónimas".
Quando um assessor ganha o hábito de prestar declarações em "off" está apenas a defender a sua impunidade e a do seu Governo — pode assim dizer as barbaridades que entender, cometer os erros e as indiscrições que quiser, espalhar boatos, mentir e difamar. Isso é tanto mais inaceitável quanto essa impunidade é em geral obtida através do tráfico de informações: quem não aceita o segredo fica fora do círculo e a fonte oficial seca. O contrato não escrito é leonino e, a ser aceite por todos os jornalistas, acabaria no limite por impor o controle político dos media.
terça-feira, março 30, 2004
terça-feira, março 23, 2004
Negociar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Março de 2004
Crónica 11/2004
A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
Mário Soares provocou um pequeno terramoto político com a sua declaração de que é aceitável e mesmo necessário negociar com os terroristas, fazendo à sua volta um unânime vazio indignado, mas vale a pena debruçarmo-nos sobre o seu conteúdo em termos políticos.
Quando se diz que "não se negoceia com a Al Qaeda" isso significa que não se pode ceder à chantagem do terror — e aqui todos estamos de acordo. Um Estado não pode deixar de tomar uma medida que julga justa e necessária (ou tomar uma outra) por recear represálias da Al Qaeda.
Mas será que este princípio da não cedência em termos de substância deve ser um princípio absoluto e sem matizes?
Antes de mais, existe o pormenor não despiciendo de que a Al Qaeda (ao contrário do IRA ou da ETA) não tem um objectivo político definido. O seu terrorismo não é uma continuação por outros meios de um confronto político, de objectivos passíveis de discussão. O seu terrorismo é a tradução de um desejo de aniquilar uma forma de viver que considera suja e indigna: a sociedade democrática, liberal e igualitária. Não é a política externa dessas sociedades que a Al Qaeda põe em causa, mas a sua própria existência, a sua história e mesmo o seu direito à vida. A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
É difícil, nestes termos, conceber uma negociação. Não se pode negociar quando uma das partes tem como único objectivo (que julga sagrado) a liquidação da outra. A negociação é impossível devido aos termos em que a Al Qaeda define o seu papel e o seu inimigo.
Pode negociar-se com inimigos ("Com quem é preciso fazer a paz senão com os nossos inimigos?", perguntava Rabin) mas é difícil negociar com quem se coloca do lado de fora da Humanidade.
Se "não se negoceia com a Al Qaeda" em termos globais e em princípio — porque não há nenhum bem negociável em disputa — é bem ter presente que, em qualquer conflito, se negoceia sempre de uma forma limitada. E isso é não só positivo como mesmo inevitável.
Há situações onde se deve tentar negociar (e seria criminoso não o tentar), como são as situações onde haja reféns — ainda que haja fronteiras que um estado livre não possa cruzar.
De uma forma geral, deve-se (e seria criminoso não o tentar) negociar não com "a Al Qaeda" mas com todas as estruturas e grupos no seu interior onde haja a possibilidade de explorar dissensões, rivalidades e dúvidas.
Deve-se da mesma forma negociar (e muitos grupos terroristas foram desmantelados desta forma) com elementos que tenham a potencialidade de se transformar em "arrependidos".
Como se deve negociar e tentar aproximações, a outro nível, com grupos e sectores radicais que, não sendo "a Al Qaeda", fornecem a zona de penumbra onde a Al Qaeda se move, se financia, recruta e reproduz a sua matriz cultural e religiosa.
Em termos práticos — e cínicos — até se negoceia porque isso pode permitir ficar a conhecer a forma como funciona a organização do lado de lá da mesa, quem são e como pensam os seus dirigentes ou simplesmente porque isso permite ganhar tempo — tudo objectivos preciosos num conflito.
Alguém pensará com seriedade que, se por hipótese o futuro Senhor Terrorismo da União Europeia recebesse um telefonema de Bin Laden, lhe deveria desligar o telefone na cara?
A expressão de Mário Soares foi infeliz porque confere credibilidade política à Al Qaeda — ainda que seja compreensível num político que conhece as virtudes da negociação e que sabe que só se cede o que se quer. Foi infeliz porque parece uma cedência — ainda que seja uma posição de princípio. Foi infeliz porque pareceu amoral — ainda que seja uma posição de realismo político. Mas foi principalmente infeliz porque foi dita em público — quando apenas seria adequada para o Conselho de Estado.
Por outro lado, é fundamental que Soares reafirme o combate ao terrorismo como uma acção política — e não apenas policial ou militar — de onde nenhuma vertente deve ser excluída.
Texto publicado no jornal Público a 23 de Março de 2004
Crónica 11/2004
A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
Mário Soares provocou um pequeno terramoto político com a sua declaração de que é aceitável e mesmo necessário negociar com os terroristas, fazendo à sua volta um unânime vazio indignado, mas vale a pena debruçarmo-nos sobre o seu conteúdo em termos políticos.
Quando se diz que "não se negoceia com a Al Qaeda" isso significa que não se pode ceder à chantagem do terror — e aqui todos estamos de acordo. Um Estado não pode deixar de tomar uma medida que julga justa e necessária (ou tomar uma outra) por recear represálias da Al Qaeda.
Mas será que este princípio da não cedência em termos de substância deve ser um princípio absoluto e sem matizes?
Antes de mais, existe o pormenor não despiciendo de que a Al Qaeda (ao contrário do IRA ou da ETA) não tem um objectivo político definido. O seu terrorismo não é uma continuação por outros meios de um confronto político, de objectivos passíveis de discussão. O seu terrorismo é a tradução de um desejo de aniquilar uma forma de viver que considera suja e indigna: a sociedade democrática, liberal e igualitária. Não é a política externa dessas sociedades que a Al Qaeda põe em causa, mas a sua própria existência, a sua história e mesmo o seu direito à vida. A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
É difícil, nestes termos, conceber uma negociação. Não se pode negociar quando uma das partes tem como único objectivo (que julga sagrado) a liquidação da outra. A negociação é impossível devido aos termos em que a Al Qaeda define o seu papel e o seu inimigo.
Pode negociar-se com inimigos ("Com quem é preciso fazer a paz senão com os nossos inimigos?", perguntava Rabin) mas é difícil negociar com quem se coloca do lado de fora da Humanidade.
Se "não se negoceia com a Al Qaeda" em termos globais e em princípio — porque não há nenhum bem negociável em disputa — é bem ter presente que, em qualquer conflito, se negoceia sempre de uma forma limitada. E isso é não só positivo como mesmo inevitável.
Há situações onde se deve tentar negociar (e seria criminoso não o tentar), como são as situações onde haja reféns — ainda que haja fronteiras que um estado livre não possa cruzar.
De uma forma geral, deve-se (e seria criminoso não o tentar) negociar não com "a Al Qaeda" mas com todas as estruturas e grupos no seu interior onde haja a possibilidade de explorar dissensões, rivalidades e dúvidas.
Deve-se da mesma forma negociar (e muitos grupos terroristas foram desmantelados desta forma) com elementos que tenham a potencialidade de se transformar em "arrependidos".
Como se deve negociar e tentar aproximações, a outro nível, com grupos e sectores radicais que, não sendo "a Al Qaeda", fornecem a zona de penumbra onde a Al Qaeda se move, se financia, recruta e reproduz a sua matriz cultural e religiosa.
Em termos práticos — e cínicos — até se negoceia porque isso pode permitir ficar a conhecer a forma como funciona a organização do lado de lá da mesa, quem são e como pensam os seus dirigentes ou simplesmente porque isso permite ganhar tempo — tudo objectivos preciosos num conflito.
Alguém pensará com seriedade que, se por hipótese o futuro Senhor Terrorismo da União Europeia recebesse um telefonema de Bin Laden, lhe deveria desligar o telefone na cara?
A expressão de Mário Soares foi infeliz porque confere credibilidade política à Al Qaeda — ainda que seja compreensível num político que conhece as virtudes da negociação e que sabe que só se cede o que se quer. Foi infeliz porque parece uma cedência — ainda que seja uma posição de princípio. Foi infeliz porque pareceu amoral — ainda que seja uma posição de realismo político. Mas foi principalmente infeliz porque foi dita em público — quando apenas seria adequada para o Conselho de Estado.
Por outro lado, é fundamental que Soares reafirme o combate ao terrorismo como uma acção política — e não apenas policial ou militar — de onde nenhuma vertente deve ser excluída.
terça-feira, março 16, 2004
Contra o medo
por José Vítor Malheiros
A Europa em geral vive a partir de agora sob uma ameaça credível de atentado terrorista que não tem paralelo na história recente. Não há, neste capítulo, nenhuma isenção para Portugal, como tantas vezes aconteceu no passado, devido à sua posição marginal em termos geográficos, económicos, políticos e de fluxos. A intenção dos terroristas é espalhar o terror, da forma mais mortífera possível, e nenhum país se pode imaginar a salvo desta sanha, como já tem sido dito. Se a pequenez de Portugal define uma probabilidade mais baixa de ser um alvo, é também verdade, em contraponto, que a nossa inclusão na União Europeia torna esse argumento hoje menos válido e que a nossa relativa fragilidade em termos de segurança aumenta por sua vez aquela probabilidade. Devemos, para todos os efeitos práticos, considerar-nos tão ameaçados como os nossos vizinhos.
Perante este estado de coisas a primeira tentação é a securitária: tentar garantir a ilusão de segurança através da multiplicação de controlos, de restrições às liberdades cívicas, da coacção de todos os suspeitos, por leve que seja a suspeita (ou ainda que ela se chame apenas medo).
É evidente que a segurança é uma dimensão que terá de ser reforçada, nomeadamente através da vertente dos serviços de informação — nenhuma outra opção seria razoável perante uma ameaça credível, próxima e grave. Mas é também evidente que os cidadãos devem manter-se atentos perante eventuais atentados às liberdades. Se a defesa da sociedade aberta se traduzir na destruição dos seus valores, não haverá nada que valha a pena preservar. Não há receitas para encontrar o ponto de equilíbrio entre segurança e liberdade. Mas esse debate deverá ser um dos que devemos manter mais vivos nos próximos tempos. A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades. A abertura das sociedades democráticas europeias pode ser uma fragilidade perante o terrorismo, mas o seu fechamento seria a sua morte.
A vigilância cidadã não pode porém ficar por aqui. A forma mais eficaz de aumentar a segurança é a vigilância quotidiana de todos. Como aprenderam a seu tempo os britânicos, os espanhóis, os italianos. Não a paranóia, mas uma vigilância colectiva e partilhada, feita por todos em nome de todos. Há um valor precioso que aqui abandonamos, tristemente: a despreocupação em que até hoje, com altos e baixos, apesar de tudo pudemos viver nas nossas cidades.
A acção vigilante e democrática dos cidadãos europeus tem de se estender a uma terceira vertente: o diálogo com os outros povos, os migrantes, os muçulmanos, os indivíduos de outras cores, outras crenças e culturas, que muitos tentarão demonizar. Um risco mortal seria considerar que, se a Europa está sob ameaça, os não-europeus são o inimigo, ou outro paralogismo semelhante.
No respeito pelo outro floresceram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade sobre que construímos as nossas sociedades. É essa a nossa alma, a nossa razão de ser, e não podemos permitir que ela seja substituída pelo terror e pelo ódio.
O terrorismo não é apenas — com alguns pretendem — um problema de polícia. É um problema político maior, que exige empenhamento político, a todos os níveis, de todos nós. Que não se negoceia com terroristas é um facto aceite. Mas não se pode confundir essa fronteira com a necessidade de destruir, pela argumentação, pela acção política, pela acção solidária, social e cultural as razões que fazem com que seja possível recrutar jovens para matar os nossos filhos.
Texto publicado no jornal Público a 16 de Março de 2004
Crónica 10/2004
A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades.
No momento em que o espectro do terrorismo se materializa sobre a Europa — não em alguns pontos do continente, reflectindo conflitos localizados, mas ameaçando globalmente a Europa democrática — e passados os primeiros dias de luto solidário e na tentativa de racionalizar o horror dos atentados de Madrid, é chegada a hora de encarar algumas novas realidades.
No momento em que o espectro do terrorismo se materializa sobre a Europa — não em alguns pontos do continente, reflectindo conflitos localizados, mas ameaçando globalmente a Europa democrática — e passados os primeiros dias de luto solidário e na tentativa de racionalizar o horror dos atentados de Madrid, é chegada a hora de encarar algumas novas realidades.
A Europa em geral vive a partir de agora sob uma ameaça credível de atentado terrorista que não tem paralelo na história recente. Não há, neste capítulo, nenhuma isenção para Portugal, como tantas vezes aconteceu no passado, devido à sua posição marginal em termos geográficos, económicos, políticos e de fluxos. A intenção dos terroristas é espalhar o terror, da forma mais mortífera possível, e nenhum país se pode imaginar a salvo desta sanha, como já tem sido dito. Se a pequenez de Portugal define uma probabilidade mais baixa de ser um alvo, é também verdade, em contraponto, que a nossa inclusão na União Europeia torna esse argumento hoje menos válido e que a nossa relativa fragilidade em termos de segurança aumenta por sua vez aquela probabilidade. Devemos, para todos os efeitos práticos, considerar-nos tão ameaçados como os nossos vizinhos.
Perante este estado de coisas a primeira tentação é a securitária: tentar garantir a ilusão de segurança através da multiplicação de controlos, de restrições às liberdades cívicas, da coacção de todos os suspeitos, por leve que seja a suspeita (ou ainda que ela se chame apenas medo).
É evidente que a segurança é uma dimensão que terá de ser reforçada, nomeadamente através da vertente dos serviços de informação — nenhuma outra opção seria razoável perante uma ameaça credível, próxima e grave. Mas é também evidente que os cidadãos devem manter-se atentos perante eventuais atentados às liberdades. Se a defesa da sociedade aberta se traduzir na destruição dos seus valores, não haverá nada que valha a pena preservar. Não há receitas para encontrar o ponto de equilíbrio entre segurança e liberdade. Mas esse debate deverá ser um dos que devemos manter mais vivos nos próximos tempos. A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades. A abertura das sociedades democráticas europeias pode ser uma fragilidade perante o terrorismo, mas o seu fechamento seria a sua morte.
A vigilância cidadã não pode porém ficar por aqui. A forma mais eficaz de aumentar a segurança é a vigilância quotidiana de todos. Como aprenderam a seu tempo os britânicos, os espanhóis, os italianos. Não a paranóia, mas uma vigilância colectiva e partilhada, feita por todos em nome de todos. Há um valor precioso que aqui abandonamos, tristemente: a despreocupação em que até hoje, com altos e baixos, apesar de tudo pudemos viver nas nossas cidades.
A acção vigilante e democrática dos cidadãos europeus tem de se estender a uma terceira vertente: o diálogo com os outros povos, os migrantes, os muçulmanos, os indivíduos de outras cores, outras crenças e culturas, que muitos tentarão demonizar. Um risco mortal seria considerar que, se a Europa está sob ameaça, os não-europeus são o inimigo, ou outro paralogismo semelhante.
No respeito pelo outro floresceram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade sobre que construímos as nossas sociedades. É essa a nossa alma, a nossa razão de ser, e não podemos permitir que ela seja substituída pelo terror e pelo ódio.
O terrorismo não é apenas — com alguns pretendem — um problema de polícia. É um problema político maior, que exige empenhamento político, a todos os níveis, de todos nós. Que não se negoceia com terroristas é um facto aceite. Mas não se pode confundir essa fronteira com a necessidade de destruir, pela argumentação, pela acção política, pela acção solidária, social e cultural as razões que fazem com que seja possível recrutar jovens para matar os nossos filhos.
terça-feira, março 09, 2004
Lista negra
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Março de 2004
Crónica 9/2004
Esta lista negra é, na melhor das hipóteses, um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores.
Existe uma hierarquia na nossa convicção pessoal da culpa que tem um paralelo nas diferentes figuras do processo de acusação judicial. Pode ser-se investigado, suspeito, arguido, acusado, pronunciado, julgado e condenado. Apesar de todos os cuidados da lei e da moral, que estabelecem a presunção de inocência como princípio básico até ao fim destes trâmites, é evidente que ninguém continua a ver como absolutamente inocente alguém que foi acusado de um crime. Um acusado vive já num limbo, entre a inocência e a culpa, onde talvez não seja ainda culpado mas onde já não é certamente inocente.
Podemos não condenar um acusado, mas relativamente a ele estabelece-se pelo menos uma suspensão da confiança. É preciso alguma disciplina profissional (como a que se exige de polícias, juristas e jornalistas) para tratar acusados de acordo com o princípio da presunção de inocência.
A lista dos estádios de confiança e culpa foi recentemente acrescentada com uma nova categoria: a de "presumível suspeito", que é algo paralelo à noção política de "candidato a candidato". A nova categoria representa alguém que talvez seja já suspeito mas que ainda não fez prova dessa condição ou que ainda não é suspeito mas... pode vir a sê-lo. Os "presumíveis suspeitos" mais famosos são os que fazem parte da lista de 127 fotografias que têm sido usadas para identificação no processo Casa Pia.
Penso que podem existir três maneiras de construir as colecções de fotos usadas para identificação de suspeitos: 1) juntar a foto de um suspeito a outras obtidas de forma aleatória, 2) misturar a imagem de um suspeito com as de indivíduos de características físicas semelhantes (quando elas tenham sido previamente referidas num depoimento) ou 3) reunir aleatoriamente uma colecção de fotos de indivíduos pertencentes a um dado grupo (malabaristas, por exemplo) quando uma vítima afirma ter sido abusada por alguém que pode reconhecer e de quem sabe apenas ser malabarista de profissão.
Não parece provável que a famosa lista de fotos tenha sido organizada de nenhuma destas formas.
Há uma quarta hipótese que é a de que a polícia tenha feito uma colecção de fotos com toda a gente que já foi objecto de rumores relacionados com a pedofilia (que é natural que apenas toque pessoas famosas), mas é menos surpreendente o contrário: que seja devido à sua presença na lista de fotos que certas pessoas são objecto de rumores.
O que nos devolve à pergunta que nos intriga a todos: por que raio é que as fotos mostradas foram estas e não outras? É que se estas não foram obtidas aleatoriamente, foram escolhidas e os cidadãos têm o direito de saber os critérios da escolha. Até porque, com intenção ou sem ela, a utilização destas fotos lança suspeitas sobre os incluídos, que o Ministério Público não pode ignorar. A lista coloca os fotografados numa antecâmara da acusação, num estado de "presumível suspeição" que afecta de forma inaceitável a sua imagem pública.
Tal como está, a colecção de fotos de notáveis é um Índex, uma lista negra: na melhor das hipóteses é um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores. Como ninguém quer dar a impressão de que resiste a ser investigado ou quer pressionar a justiça, ninguém reage à sua inclusão. E os que estão fora não querem dar a impressão de que receiam passar à categoria de "presumíveis suspeitos" e também não atacam o método. Não é por isso de estranhar que a generalidade dos políticos — como notou Mário Mesquita — se mostre refém deste instrumento e reaja com tibieza à notícia da sua inclusão. Mas o que exigimos dos eleitos é algo diferente: que combatam a difamação que a lista constitui, o medo que a lista (e a sua difusão) pretende espalhar e a descredibilização da investigação que ela é.
Texto publicado no jornal Público a 9 de Março de 2004
Crónica 9/2004
Esta lista negra é, na melhor das hipóteses, um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores.
Existe uma hierarquia na nossa convicção pessoal da culpa que tem um paralelo nas diferentes figuras do processo de acusação judicial. Pode ser-se investigado, suspeito, arguido, acusado, pronunciado, julgado e condenado. Apesar de todos os cuidados da lei e da moral, que estabelecem a presunção de inocência como princípio básico até ao fim destes trâmites, é evidente que ninguém continua a ver como absolutamente inocente alguém que foi acusado de um crime. Um acusado vive já num limbo, entre a inocência e a culpa, onde talvez não seja ainda culpado mas onde já não é certamente inocente.
Podemos não condenar um acusado, mas relativamente a ele estabelece-se pelo menos uma suspensão da confiança. É preciso alguma disciplina profissional (como a que se exige de polícias, juristas e jornalistas) para tratar acusados de acordo com o princípio da presunção de inocência.
A lista dos estádios de confiança e culpa foi recentemente acrescentada com uma nova categoria: a de "presumível suspeito", que é algo paralelo à noção política de "candidato a candidato". A nova categoria representa alguém que talvez seja já suspeito mas que ainda não fez prova dessa condição ou que ainda não é suspeito mas... pode vir a sê-lo. Os "presumíveis suspeitos" mais famosos são os que fazem parte da lista de 127 fotografias que têm sido usadas para identificação no processo Casa Pia.
Penso que podem existir três maneiras de construir as colecções de fotos usadas para identificação de suspeitos: 1) juntar a foto de um suspeito a outras obtidas de forma aleatória, 2) misturar a imagem de um suspeito com as de indivíduos de características físicas semelhantes (quando elas tenham sido previamente referidas num depoimento) ou 3) reunir aleatoriamente uma colecção de fotos de indivíduos pertencentes a um dado grupo (malabaristas, por exemplo) quando uma vítima afirma ter sido abusada por alguém que pode reconhecer e de quem sabe apenas ser malabarista de profissão.
Não parece provável que a famosa lista de fotos tenha sido organizada de nenhuma destas formas.
Há uma quarta hipótese que é a de que a polícia tenha feito uma colecção de fotos com toda a gente que já foi objecto de rumores relacionados com a pedofilia (que é natural que apenas toque pessoas famosas), mas é menos surpreendente o contrário: que seja devido à sua presença na lista de fotos que certas pessoas são objecto de rumores.
O que nos devolve à pergunta que nos intriga a todos: por que raio é que as fotos mostradas foram estas e não outras? É que se estas não foram obtidas aleatoriamente, foram escolhidas e os cidadãos têm o direito de saber os critérios da escolha. Até porque, com intenção ou sem ela, a utilização destas fotos lança suspeitas sobre os incluídos, que o Ministério Público não pode ignorar. A lista coloca os fotografados numa antecâmara da acusação, num estado de "presumível suspeição" que afecta de forma inaceitável a sua imagem pública.
Tal como está, a colecção de fotos de notáveis é um Índex, uma lista negra: na melhor das hipóteses é um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores. Como ninguém quer dar a impressão de que resiste a ser investigado ou quer pressionar a justiça, ninguém reage à sua inclusão. E os que estão fora não querem dar a impressão de que receiam passar à categoria de "presumíveis suspeitos" e também não atacam o método. Não é por isso de estranhar que a generalidade dos políticos — como notou Mário Mesquita — se mostre refém deste instrumento e reaja com tibieza à notícia da sua inclusão. Mas o que exigimos dos eleitos é algo diferente: que combatam a difamação que a lista constitui, o medo que a lista (e a sua difusão) pretende espalhar e a descredibilização da investigação que ela é.
terça-feira, março 02, 2004
Cinco segundos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Março de 2004
Crónica 8/2004
A liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for.
A cerimónia de entrega dos Óscares, que centenas de milhões de pessoas puderam ver na passada noite de domingo para segunda, foi transmitida pela cadeia de televisão americana ABC não em directo mas com um atraso de cinco segundos, como se sabe. Essa "décalage" de cinco segundos entre a captação e a difusão das imagens foi usada pela ABC para visualizar as cenas captadas pelas suas câmaras, de forma a garantir que nenhuma imagem "imprópria" seria transmitida para casa das famílias americanas que seguiam o espectáculo.
A ABC garantiu que a diferença de cinco segundos não tinha quaisquer intuitos políticos e que não se destinava a censurar qualquer conteúdo mais político em eventuais discursos de galardoados, mas sim a evitar uma nova explosão de imoralidade — como a exibição de um seio por Janet Jackson durante a transmissão da Superbowl.
A decisão da ABC reveste-se da coincidência de ser tomada um ano após o discurso "Shame on you, Mr. Bush" de Michael Moore, ao receber o Óscar pelo seu documentário "Bowling for Columbine", e não pode, por isso, deixar de ser vista a essa luz. Tanto mais que, na altura, não faltou quem criticasse o facto de se permitir que uma cerimónia que devia ser uma festa "apolítica" do cinema se prestasse à transmissão de uma mensagem política — de esquerda, para mais.
Em França, no passado sábado, os organizadores dos prémios Victoires de la Musique decidiram fazer a transmissão televisiva da cerimónia de entrega dos seus galardões com dez minutos de desfasamento, invocando "razões técnicas". A inabitual decisão foi considerada por muitos como uma forma de desencorajar os artistas franceses, em pé de guerra contra o Governo, a fazer intervenções críticas sobre a política cultural francesa.
Pode parecer que estas decisões são irrelevantes, já que os espectadores puderam, em ambos os casos, ver aquilo que se passava na cerimónia sem contratempos e dir-se-á que cinco segundos ou dez minutos de atraso não são importantes. A questão, porém, não é essa.
A questão é que a liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for. Este tipo de atitudes, seja qual for a sua intenção e os seus critérios, dão pelo nome de censura — ou, para usar a expressão adocicada inventada pelo marcelismo, que aqui parece estranhamente adequada, "exame prévio".
A liberdade de expressão — e o correlativo direito à informação — é a liberdade de falarmos sem receio de sermos calados, a certeza de que podemos dizer a nossa opinião sem precisar de passar o crivo de outrem, sem correr o risco de um eventual silenciamento, sem submissão. Isso não significa que não haja responsabilização pelo que se diz — pelo contrário. Quer dizer precisamente que a responsabilidade pelo que é dito (ou feito) é sempre assumida por quem disse (ou fez). Depois de ter podido dizê-lo. Responsabilidade em vez de menoridade.
A aceitação do princípio do exame prévio e da aprovação prévia do discurso, seja pelos órgãos de comunicação social, pelo Estado ou por qualquer polícia do pensamento é inaceitável numa sociedade democrática (seja em nome da moralidade fundamentalista ou de outra coisa qualquer) e fere algo que é essencial: a liberdade de opinião e de expressão do pensamento.
A liberdade tem riscos e há alguns que a sociedade pode decidir não correr em certos momentos, limitando o seu âmbito — mas a possibilidade de ver um seio nu (ou qualquer outra coisa que possa acontecer num palco dos Óscares) não constitui certamente um risco tão elevado que justifique liquidar algo de tão essencial como a liberdade de falar sem entraves.
Texto publicado no jornal Público a 2 de Março de 2004
Crónica 8/2004
A liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for.
A cerimónia de entrega dos Óscares, que centenas de milhões de pessoas puderam ver na passada noite de domingo para segunda, foi transmitida pela cadeia de televisão americana ABC não em directo mas com um atraso de cinco segundos, como se sabe. Essa "décalage" de cinco segundos entre a captação e a difusão das imagens foi usada pela ABC para visualizar as cenas captadas pelas suas câmaras, de forma a garantir que nenhuma imagem "imprópria" seria transmitida para casa das famílias americanas que seguiam o espectáculo.
A ABC garantiu que a diferença de cinco segundos não tinha quaisquer intuitos políticos e que não se destinava a censurar qualquer conteúdo mais político em eventuais discursos de galardoados, mas sim a evitar uma nova explosão de imoralidade — como a exibição de um seio por Janet Jackson durante a transmissão da Superbowl.
A decisão da ABC reveste-se da coincidência de ser tomada um ano após o discurso "Shame on you, Mr. Bush" de Michael Moore, ao receber o Óscar pelo seu documentário "Bowling for Columbine", e não pode, por isso, deixar de ser vista a essa luz. Tanto mais que, na altura, não faltou quem criticasse o facto de se permitir que uma cerimónia que devia ser uma festa "apolítica" do cinema se prestasse à transmissão de uma mensagem política — de esquerda, para mais.
Em França, no passado sábado, os organizadores dos prémios Victoires de la Musique decidiram fazer a transmissão televisiva da cerimónia de entrega dos seus galardões com dez minutos de desfasamento, invocando "razões técnicas". A inabitual decisão foi considerada por muitos como uma forma de desencorajar os artistas franceses, em pé de guerra contra o Governo, a fazer intervenções críticas sobre a política cultural francesa.
Pode parecer que estas decisões são irrelevantes, já que os espectadores puderam, em ambos os casos, ver aquilo que se passava na cerimónia sem contratempos e dir-se-á que cinco segundos ou dez minutos de atraso não são importantes. A questão, porém, não é essa.
A questão é que a liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for. Este tipo de atitudes, seja qual for a sua intenção e os seus critérios, dão pelo nome de censura — ou, para usar a expressão adocicada inventada pelo marcelismo, que aqui parece estranhamente adequada, "exame prévio".
A liberdade de expressão — e o correlativo direito à informação — é a liberdade de falarmos sem receio de sermos calados, a certeza de que podemos dizer a nossa opinião sem precisar de passar o crivo de outrem, sem correr o risco de um eventual silenciamento, sem submissão. Isso não significa que não haja responsabilização pelo que se diz — pelo contrário. Quer dizer precisamente que a responsabilidade pelo que é dito (ou feito) é sempre assumida por quem disse (ou fez). Depois de ter podido dizê-lo. Responsabilidade em vez de menoridade.
A aceitação do princípio do exame prévio e da aprovação prévia do discurso, seja pelos órgãos de comunicação social, pelo Estado ou por qualquer polícia do pensamento é inaceitável numa sociedade democrática (seja em nome da moralidade fundamentalista ou de outra coisa qualquer) e fere algo que é essencial: a liberdade de opinião e de expressão do pensamento.
A liberdade tem riscos e há alguns que a sociedade pode decidir não correr em certos momentos, limitando o seu âmbito — mas a possibilidade de ver um seio nu (ou qualquer outra coisa que possa acontecer num palco dos Óscares) não constitui certamente um risco tão elevado que justifique liquidar algo de tão essencial como a liberdade de falar sem entraves.
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