terça-feira, junho 26, 2012

Defesa pessoal e belas gravatas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Junho de 2012
Crónica 25/2012

A ERC recomenda: antes de falar com uma fonte governamental, os jornalistas devem ligar o gravador
1. O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos decidiu organizar cursos de defesa pessoal (incluindo treino com armas de fogo) para os seus sócios. A decisão vem na sequência daquilo que o sindicato diz ser uma vaga de agressões e ameaças, por vezes com armas de fogo, aos funcionários da administração fiscal, em geral na sequência de cobranças coercivas e penhoras. Na realidade, uma leitura mais atenta das notícias refere a existência de seis agressões este ano, mais duas que no ano passado. Longe de uma vaga, ainda que nada aconselhe a ignorar o problema.

Não sei se a iniciativa do STI tem a benção da administração tributária, mas não vi nenhuma posição desta defendendo outra abordagem do problema que não o confronto físico. Podemos portanto concluir que, perante a natural agressividade de um contribuinte penhorado, sindicato (e talvez a própria Administração Pública) propõem uma resposta em géneros: um golpe de Krav Maga ou, não funcionando este, um tirinho numa perna para desincentivar. Há duas explicações possíveis que me vêem à ideia: ou está tudo doido ou um dirigente do PSD abriu uma academia de artes marciais que precisa de uma ajudinha e um ajuste directo para a formação de cobradores da administração fiscal vinha a calhar.

2. Há várias lições a retirar da deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre o caso das pressões do ministro Miguel Relvas sobre o jornal Público: sempre que houver duas versões de um facto, a ERC (a exemplo de outras instâncias) decidirá sempre em benefício do poder. Mesmo que a lógica e a verosimilhança apontem noutro sentido. Não é uma novidade, nem uma raridade. É apenas mais do mesmo. A ERC poderá não o fazer se existirem provas físicas esmagadoras de comportamento ilícitos por parte dos poderosos. Mas testemunhos? Provas circunstanciais? Servem para condenar os pobres, os hipotecados, os empregados, os que não têm belas gravatas, os que não fazem tráfico de influências a favor das empresas dos amigos, os que não são ministros nem andaram nas jotas. Sem as provas físicas, sem o ADN do ministro na arma do crime, sem uma confissão em vídeo certificada pelo notário, de nada servem testemunhos, sejam eles das pessoas mais credíveis, façam eles sentido ou não. A ERC irá ignorá-los, como fez agora. É que foi isso que a ERC fez: apesar do tom pretensamente salomónico da deliberação, a ERC apenas considerou provado aquilo que o ministro disse e não considerou provado nada do que ele não disse. A vergonha de que apenas os elementos da ERC que estão no bolso do poder tenham votado a favor da deliberação não os afecta. Seria de esperar que um organismo de regulação tivesse um mínimo de vergonha? De decência? De profissionalismo? De rigor intelectual? De ética? Sim. Mas não.

O que a ERC diz aos jornalistas com esta sua deliberação é que, para evitarem ser apanhados nas engrenagens dos Relvas deste mundo - porque há um Relvas debaixo de cada pedra - devem munir-se das necessárias provas físicas. Ou seja: doravante, antes de falar com um ministro ou similar, liguem o gravador. Gravem as chamadas. Filmem as entrevistas. As trocas de impressões. Nos gabinetes e nos cafés. Nos escritórios ou na rua. Gravem. Filmem. Mesmo assim, não há garantias absolutas de conseguir justiça caso um crime seja cometido, uma pressão exercida, uma ameaça feita ou um assédio ensaiado, mas pelo menos tenta-se. E podemos sempre aumentar as visualizações nas nossas páginas do Facebook.
É ilegal? Mas porque seria ilegal se as nossas chamadas para qualquer call centre são gravadas, “para garantir a qualidade do acolhimento e para podermos melhorar os nossos serviços”? Porque seria ilegal, se todas as nossas transações em todos os bancos são filmadas “para garantir a segurança das nossas instalações e para podermos proporcionar um serviço de qualidade aos nossos clientes”? Porque seria ilegal, se somos filmados quando entramos num autocarro, quando nos sentamos e quando abrimos um livro “para garantir a nossa segurança”? Porque seria ilegal se milhares de trabalhadores são filmados todos os dias durante o seu tempo de trabalho? Será que só os donos dos bancos e dos call centers podem gravar e filmar o que querem e que os cidadãos comuns estão impedidos de o fazer? Será que só os Relvas deste mundo podem fazer impunemente o que querem? Estará escrito assim na lei? Talvez ainda não.

Mas atenção: é conveniente munirem-se de dois ou mais aparelhos, porque o Ricardo dos gravadores fez escola. Por isso, não esqueçam: um gravador na mão, outro no bolso, com o microfone disfarçado no alfinete de gravata. Não tem um alfinete de gravata? Compre um. Com microfone incorporado. Aproveite para comprar uma bela gravata. Laranja. Se as suas botas precisarem de uma limpeza, passe na ERC. Poupa uma ida ao engraxador. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, junho 12, 2012

Amizades, proximidades e promiscuidades

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Junho de 2012
Crónica 24/2012



Amigos a julgar amigos, sócios que contratam outros sócios, correligionários que promovem correligionários


1. Não conheço Raquel Alexandra senão de a ver nos telejornais da Sic, ao tempo em que era jornalista daquela estação. Também não conheço Miguel Relvas senão das suas aparições mediáticas no âmbito das suas actividades político-empresário-partidárias. Não tendo (que eu saiba) amigos no SIED, no SIS, no SIRP, no SSI ou no CSI, não tenho nenhuma informação reservada sobre os laços ou as relações entre a ex-jornalista e actual membro do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (sic) e o ainda ministro Miguel Relvas.


Posto isto, não tenho nenhuma razão para duvidar do que diz a própria Raquel Alexandra sobre as suas relações com Relvas, que a ex-jornalista admite serem de amizade. E acrescento que também não tenho nada contra o facto de alguém ser amigo de Relvas. Basta pensar que Relvas tem de passar todo o dia consigo mesmo para compreendermos que deve ter uma profunda necessidade do apoio de amigos.


Acontece, no entanto, que, enquanto membro do Conselho Regulador da Entidade Reguladora, Raquel Alexandra vai ter de votar um parecer relativo ao episódio que a ERC está a analisar e que opõe Relvas ao jornal Público. Raquel Alexandra diz, em declarações ao jornal Correio da Manhã, que não se sente "minimamente condicionada pelo facto de ser amiga do ministro", acrescenta que “todas as semanas se adoptam deliberações que afectam amigos”, que isso “é a coisa mais normal", que o assunto “está a ser tratado com todo o rigor”, que a decisão que tomarem “será objectiva e fundada em factos” e sem “qualquer elemento de subjectividade”.


Raquel Alexandra não vê qualquer razão para não participar na votação. Eu vejo. E julgo que outras pessoas verão. Assim como de quaisquer outros elementos da ERC que se considerem, também eles, amigos de Relvas. Ou amigos de Maria José Oliveira.


Raquel Alexandra diz que a decisão “será objectiva” e sem “qualquer elemento de subjectividade”. A mim, esta formulação parece-me simples de mais para uma vogal do Conselho Regulador da ERC. E certamente simples de mais para um jornalista. Posso ser mais peremptório neste caso pois conheço bem os requisitos para ser jornalista e desconheço em absoluto os necessários para ser membro da ERC.


É condição essencial para fazer um julgamento imparcial ser independente das partes em conflito. Não se pode ser juiz em causa própria ou próxima. Raquel Alexandra, que é jurista, sabe certamente que um juiz pode (e deve) pedir escusa se tiver de julgar um caso onde tenha uma relação privilegiada com uma das partes. E deve fazê-lo porque essa relação vai prejudicar o seu julgamento - pode fazê-lo nos dois sentidos - e vai prejudicar a sua imagem de imparcialidade e a reputação de honestidade da justiça. Num órgão regulador - ou em qualquer outra instância de julgamento ou avaliação - é a mesma coisa. É a isto que se chama promiscuidade e que se deve evitar: amigos a julgar amigos, sócios em júris que contratam outros sócios, correligionários em concursos que promovem correligionários.


Que isto aconteça “todas as semanas” e seja visto como a coisa mais normal do mundo é mais do que preocupante: é algo a que urge pôr fim. O comportamento que se exige a um membro do Conselho Regulador da ERC tem de ser, pelo menos, o mesmo que se exige a um jornalista. E, numa redacção, não se pediria a um jornalista amigo de Relvas que investigasse esta história. Fá-lo-ia Raquel Alexandra, se ainda estivesse na redacção da Sic?


2. Ainda a propósito do caso Relvas, tem-se discutido muito o que é pressão sobre os jornalistas e o que não é, o que é pressão ilegítima ou não, o que é ameaça ou não. Algumas das opiniões expressas neste bem-vindo (ainda que escasso) debate defendem que media honestos não têm ouvidos e, com pressão ou sem pressão, com ameaça ou sem ameaça, seguem por ali fora campantes, imunes a pressões, a caminho da verdade, que gritarão aos quatro ventos doa a quem doer e venha quem vier. Para estas pessoas, a denúncia das pressões é irrelevante, sendo a única coisa fundamental não lhes ceder. O jornalismo seria uma profissão para gente de pele dura e denunciar pressões seria uma pieguice, de quem não aguenta estar no recreio dos crescidos. Penso que esta posição peca por narcisismo. Na realidade, penso que a ausência de denúncia de pressões e de ameaças não é senão uma forma de cedência. Se não fosse assim, aliás, veríamos poderosos a cair todos os meses. E não vemos. Penso que tem antes de mais a ver com o receio de perder fontes de informação, de ficar fora do loop, de ficar fora do clube dos poderosos onde alguns jornalistas esperam entrar, de deixar de receber umas migalhas de contra-informação de vez em quando. Penso que este auto-silenciamento (porque é disso que se trata) não se deve de forma alguma a uma determinação particular em arejar a verdade mas é, apenas, mais uma variante da nossa consabida promiscuidade. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, junho 05, 2012

As PPP ou o reino da desvergonha

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2012
Crónica 23/2012


O que é mais assustador é que já se sabia tudo o que o Tribunal de Contas anunciou sobre as Parcerias Público-Privadas


A história das Parcerias Público-Privadas tem um elemento suplementar de terror, para além do facto de irem custar aos contribuintes um olho da cara.
É que não foi só agora, com a divulgação da auditoria do Tribunal de Contas às PPP da área rodoviária, que ficámos a saber que a instituição e a renegociação das PPP se fez em detrimento do erário público, em detrimento do bem público, em detrimento da justiça, da decência e até em detrimento do mercado.
Também não foi agora que ficámos a saber que a instituição e a renegociação destas PPP se fez apenas para beneficiar as empresas privadas envolvidas, de forma a garantir-lhes rendas sem risco durante décadas e a transferir todos os riscos para si e para mim, caro leitor (e também para os nossos filhos, que vão ter de pagar a maior parte da factura, onde se inclui as férias de luxo dos administradores das empresas de construção envolvidas, as suas casinhas de campo, os seus pés-de-meia e os seus pequenos lazeres).
Também não foi agora que ficámos a saber que o Governo (neste particular, o Governo anterior, mas todos os Governos o têm feito) esconde dados fundamentais do escrutínio do Tribunal de Contas, mentindo com mais ou menos descaro e mais ou menos habilidade.
Também não foi agora que ficámos a saber que o partido que em cada momento controla o Estado encomenda a empresas amigas obras vistosas e inúteis que não pode pagar para conseguir simultaneamente a) mostrar obra de pedra e cal aos papalvos que votam neles, b) meter uns dinheiros no bolso das empresas amigas, tudo bons rapazes, c) garantir o financiamento do partido, porque uma mão lava a outra e d) assegurar os futuros empregos dos dirigentes partidários, porque as duas mãos lavam a cara.
Também não foi agora que ficámos a saber que, nas negociações e renegociações das PPP, as empresas e bancos privados sempre conseguiram fazer vingar as suas posições e interesses e do lado do Estado sempre houve dificuldade em fazer vingar argumentos que defendessem a coisa pública - fosse por falta de vontade, por falta de competência ou por os representantes do Estado serem uns “anjinhos”, para usar a expressão de um especialista na área.
E não, também não foi agora que ficámos a saber que os Governos em geral têm como preocupação central ser reeleitos e que não hesitam em hipotecar o nosso futuro, desperdiçando recursos escassos, comprando caro e mal e adiando pagamentos incomportáveis para daqui a dez anos, desde que consigam disfarçar nos tempos mais próximos o buraco em que nos meteram. O duplo objectivo é claro: não só fornecer um ilusório conforto e desenvolvimento aos eleitores durante a sua legislatura e ter ao mesmo tempo razões de crítica do Governo seguinte pelo despilfarro nos gastos e derrocada das contas.
De facto, o que suscita o maior terror não é que um Governo tenha feito tudo isto, nem que uma série de empresas de construção e seguradoras e bancos tenham feito tudo isto, nem sequer que uma quantidade de funcionários da nossa Administração Pública tenha feito tudo isto, porque sempre houve e sempre haverá gente sem escrúpulos a fazer patifarias.
O que é assustador acima de tudo é que nós já sabíamos tudo isto. O que é assustador é que tudo isto demorou o tempo que demorou a tornar-se oficialmente conhecido - e ainda temos de ver como se vai processar a investigação judicial - quando já todos tínhamos ouvido contar estas histórias, quando a oposição e até um juiz do Tribunal de Contas já tinham denunciado publicamente o facto de estas PPP atentarem contra o interesse do Estado.
Para além do apuramento das responsabilidades criminais que existam nas PPP, rodoviárias e outras, e da clarificação das responsabilidades políticas, há outra coisa que deveríamos ser capazes de alterar: a facilidade com que um Governo, com uma maioria no Parlamento, pode hipotecar impunemente e sem limite o Estado durante décadas.
Esta prática contraria tudo o que as normas políticas vigentes determinam, pois permite que o poder de um partido se exerça muito para além do perído de uma legislatura e restrinja de uma forma ilegítima o raio de acção de Governos subsequentes. Esta prática transforma numa palhaçada aquilo que deveria ser um momento central na definição das nossas escolhas políticas: a discussão e aprovação do Orçamento.
Seria natural que qualquer compromisso que obrigasse o Estado para além da legislatura corrente obrigasse a uma aprovação parlamentar que exigisse maioria qualificada e obrigasse ainda a um escrutínio particularmente apertado do Tribunal de Contas - declarando à partida como juridicamente nulo qualquer contrato ou acordo que não respeitasse esses trâmites.
Um tal acordo, porém, parece improvável num sistema partidário tão profundamente doente como o nosso. (jvmalheiros@gmail.com)