terça-feira, junho 12, 2012

Amizades, proximidades e promiscuidades

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Junho de 2012
Crónica 24/2012



Amigos a julgar amigos, sócios que contratam outros sócios, correligionários que promovem correligionários


1. Não conheço Raquel Alexandra senão de a ver nos telejornais da Sic, ao tempo em que era jornalista daquela estação. Também não conheço Miguel Relvas senão das suas aparições mediáticas no âmbito das suas actividades político-empresário-partidárias. Não tendo (que eu saiba) amigos no SIED, no SIS, no SIRP, no SSI ou no CSI, não tenho nenhuma informação reservada sobre os laços ou as relações entre a ex-jornalista e actual membro do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (sic) e o ainda ministro Miguel Relvas.


Posto isto, não tenho nenhuma razão para duvidar do que diz a própria Raquel Alexandra sobre as suas relações com Relvas, que a ex-jornalista admite serem de amizade. E acrescento que também não tenho nada contra o facto de alguém ser amigo de Relvas. Basta pensar que Relvas tem de passar todo o dia consigo mesmo para compreendermos que deve ter uma profunda necessidade do apoio de amigos.


Acontece, no entanto, que, enquanto membro do Conselho Regulador da Entidade Reguladora, Raquel Alexandra vai ter de votar um parecer relativo ao episódio que a ERC está a analisar e que opõe Relvas ao jornal Público. Raquel Alexandra diz, em declarações ao jornal Correio da Manhã, que não se sente "minimamente condicionada pelo facto de ser amiga do ministro", acrescenta que “todas as semanas se adoptam deliberações que afectam amigos”, que isso “é a coisa mais normal", que o assunto “está a ser tratado com todo o rigor”, que a decisão que tomarem “será objectiva e fundada em factos” e sem “qualquer elemento de subjectividade”.


Raquel Alexandra não vê qualquer razão para não participar na votação. Eu vejo. E julgo que outras pessoas verão. Assim como de quaisquer outros elementos da ERC que se considerem, também eles, amigos de Relvas. Ou amigos de Maria José Oliveira.


Raquel Alexandra diz que a decisão “será objectiva” e sem “qualquer elemento de subjectividade”. A mim, esta formulação parece-me simples de mais para uma vogal do Conselho Regulador da ERC. E certamente simples de mais para um jornalista. Posso ser mais peremptório neste caso pois conheço bem os requisitos para ser jornalista e desconheço em absoluto os necessários para ser membro da ERC.


É condição essencial para fazer um julgamento imparcial ser independente das partes em conflito. Não se pode ser juiz em causa própria ou próxima. Raquel Alexandra, que é jurista, sabe certamente que um juiz pode (e deve) pedir escusa se tiver de julgar um caso onde tenha uma relação privilegiada com uma das partes. E deve fazê-lo porque essa relação vai prejudicar o seu julgamento - pode fazê-lo nos dois sentidos - e vai prejudicar a sua imagem de imparcialidade e a reputação de honestidade da justiça. Num órgão regulador - ou em qualquer outra instância de julgamento ou avaliação - é a mesma coisa. É a isto que se chama promiscuidade e que se deve evitar: amigos a julgar amigos, sócios em júris que contratam outros sócios, correligionários em concursos que promovem correligionários.


Que isto aconteça “todas as semanas” e seja visto como a coisa mais normal do mundo é mais do que preocupante: é algo a que urge pôr fim. O comportamento que se exige a um membro do Conselho Regulador da ERC tem de ser, pelo menos, o mesmo que se exige a um jornalista. E, numa redacção, não se pediria a um jornalista amigo de Relvas que investigasse esta história. Fá-lo-ia Raquel Alexandra, se ainda estivesse na redacção da Sic?


2. Ainda a propósito do caso Relvas, tem-se discutido muito o que é pressão sobre os jornalistas e o que não é, o que é pressão ilegítima ou não, o que é ameaça ou não. Algumas das opiniões expressas neste bem-vindo (ainda que escasso) debate defendem que media honestos não têm ouvidos e, com pressão ou sem pressão, com ameaça ou sem ameaça, seguem por ali fora campantes, imunes a pressões, a caminho da verdade, que gritarão aos quatro ventos doa a quem doer e venha quem vier. Para estas pessoas, a denúncia das pressões é irrelevante, sendo a única coisa fundamental não lhes ceder. O jornalismo seria uma profissão para gente de pele dura e denunciar pressões seria uma pieguice, de quem não aguenta estar no recreio dos crescidos. Penso que esta posição peca por narcisismo. Na realidade, penso que a ausência de denúncia de pressões e de ameaças não é senão uma forma de cedência. Se não fosse assim, aliás, veríamos poderosos a cair todos os meses. E não vemos. Penso que tem antes de mais a ver com o receio de perder fontes de informação, de ficar fora do loop, de ficar fora do clube dos poderosos onde alguns jornalistas esperam entrar, de deixar de receber umas migalhas de contra-informação de vez em quando. Penso que este auto-silenciamento (porque é disso que se trata) não se deve de forma alguma a uma determinação particular em arejar a verdade mas é, apenas, mais uma variante da nossa consabida promiscuidade. (jvmalheiros@gmail.com)

2 comentários:

Anónimo disse...

"Raquel Alexandra diz que a decisão “será objectiva” e sem “qualquer elemento de subjectividade”"

Não me parece possível que alguém que interpreta o acto de decidir desta forma possa fazer um trabalho minimamente aceitável num Conselho Regulador da Entidade Reguladora, digo mais, ou esta senhora foi agraciada por uma ingenuidade divina ou toma os outros por parvos.

António Eça de Queiroz disse...

É claro que Raquel Alexandra sabe o que lá está a fazer.
E o Magno também - senão para que serviria ele ali?...
São 1004 amigos: quatro à frente e praí mil atrás...