por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2012
Crónica 23/2012O que é mais assustador é que já se sabia tudo o que o Tribunal de Contas anunciou sobre as Parcerias Público-Privadas
A história das Parcerias Público-Privadas tem um elemento suplementar de terror, para além do facto de irem custar aos contribuintes um olho da cara.
É que não foi só agora, com a divulgação da auditoria do Tribunal de Contas às PPP da área rodoviária, que ficámos a saber que a instituição e a renegociação das PPP se fez em detrimento do erário público, em detrimento do bem público, em detrimento da justiça, da decência e até em detrimento do mercado.
Também não foi agora que ficámos a saber que a instituição e a renegociação destas PPP se fez apenas para beneficiar as empresas privadas envolvidas, de forma a garantir-lhes rendas sem risco durante décadas e a transferir todos os riscos para si e para mim, caro leitor (e também para os nossos filhos, que vão ter de pagar a maior parte da factura, onde se inclui as férias de luxo dos administradores das empresas de construção envolvidas, as suas casinhas de campo, os seus pés-de-meia e os seus pequenos lazeres).
Também não foi agora que ficámos a saber que o Governo (neste particular, o Governo anterior, mas todos os Governos o têm feito) esconde dados fundamentais do escrutínio do Tribunal de Contas, mentindo com mais ou menos descaro e mais ou menos habilidade.
Também não foi agora que ficámos a saber que o partido que em cada momento controla o Estado encomenda a empresas amigas obras vistosas e inúteis que não pode pagar para conseguir simultaneamente a) mostrar obra de pedra e cal aos papalvos que votam neles, b) meter uns dinheiros no bolso das empresas amigas, tudo bons rapazes, c) garantir o financiamento do partido, porque uma mão lava a outra e d) assegurar os futuros empregos dos dirigentes partidários, porque as duas mãos lavam a cara.
Também não foi agora que ficámos a saber que, nas negociações e renegociações das PPP, as empresas e bancos privados sempre conseguiram fazer vingar as suas posições e interesses e do lado do Estado sempre houve dificuldade em fazer vingar argumentos que defendessem a coisa pública - fosse por falta de vontade, por falta de competência ou por os representantes do Estado serem uns “anjinhos”, para usar a expressão de um especialista na área.
E não, também não foi agora que ficámos a saber que os Governos em geral têm como preocupação central ser reeleitos e que não hesitam em hipotecar o nosso futuro, desperdiçando recursos escassos, comprando caro e mal e adiando pagamentos incomportáveis para daqui a dez anos, desde que consigam disfarçar nos tempos mais próximos o buraco em que nos meteram. O duplo objectivo é claro: não só fornecer um ilusório conforto e desenvolvimento aos eleitores durante a sua legislatura e ter ao mesmo tempo razões de crítica do Governo seguinte pelo despilfarro nos gastos e derrocada das contas.
De facto, o que suscita o maior terror não é que um Governo tenha feito tudo isto, nem que uma série de empresas de construção e seguradoras e bancos tenham feito tudo isto, nem sequer que uma quantidade de funcionários da nossa Administração Pública tenha feito tudo isto, porque sempre houve e sempre haverá gente sem escrúpulos a fazer patifarias.
O que é assustador acima de tudo é que nós já sabíamos tudo isto. O que é assustador é que tudo isto demorou o tempo que demorou a tornar-se oficialmente conhecido - e ainda temos de ver como se vai processar a investigação judicial - quando já todos tínhamos ouvido contar estas histórias, quando a oposição e até um juiz do Tribunal de Contas já tinham denunciado publicamente o facto de estas PPP atentarem contra o interesse do Estado.
Para além do apuramento das responsabilidades criminais que existam nas PPP, rodoviárias e outras, e da clarificação das responsabilidades políticas, há outra coisa que deveríamos ser capazes de alterar: a facilidade com que um Governo, com uma maioria no Parlamento, pode hipotecar impunemente e sem limite o Estado durante décadas.
Esta prática contraria tudo o que as normas políticas vigentes determinam, pois permite que o poder de um partido se exerça muito para além do perído de uma legislatura e restrinja de uma forma ilegítima o raio de acção de Governos subsequentes. Esta prática transforma numa palhaçada aquilo que deveria ser um momento central na definição das nossas escolhas políticas: a discussão e aprovação do Orçamento.
Seria natural que qualquer compromisso que obrigasse o Estado para além da legislatura corrente obrigasse a uma aprovação parlamentar que exigisse maioria qualificada e obrigasse ainda a um escrutínio particularmente apertado do Tribunal de Contas - declarando à partida como juridicamente nulo qualquer contrato ou acordo que não respeitasse esses trâmites.
Um tal acordo, porém, parece improvável num sistema partidário tão profundamente doente como o nosso. (jvmalheiros@gmail.com)
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