terça-feira, junho 23, 2009

Crónica de viagem

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Junho de 2009

Crónica xxx/2009

Veste um vestidinho de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, tem uma boca dura e infeliz


"Foda-se! Foda-se! Foda-se!" O "f" é arrastado como o bufar de um gato assanhado e a língua fica encostada aos dentes antes de explodir no "da" que acaba num "ssss" prolongado, uma explosão de consoantes. "Ffffoodddddda-sss!"

No autocarro apinhado os olhares convergem para a origem do praguejar. Não é um desabafo abafado, um discreto "dasss". É um grito de raiva e é para ser ouvido por toda a gente do autocarro e do mundo. A voz é de uma rapariga, nova, loura, magra, lá ao pé da porta de trás e que está furiosa, a explodir de raiva. "Tás-me a ver esta merda? Tás-me a ver esta ganda merda?" Olha em volta para ver se alguém partilha a sua raiva, a sua fúria, a sua frustração, talvez para ver se pode descarregar em alguém a zanga que ninguém percebe de onde vem nem ao que vai, mas os olhares que convergiram sobre ela desviam-se os centímetros necessários para evitar o contacto directo e adoptam um ar abstracto de circunstância. Será louca? É melhor não a olhar nos olhos. Ela bamboleia a cabeça, agressiva e desesperada, como uma fera encurralada, sem nada ali à mão para descarregar a sua fúria. Veste um vestidinho leve de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, muito nova, tem uma boca dura e infeliz, podia ser graciosa se a sua vida tivesse sido toda diferente e se esta viagem de autocarro fosse diferente, e é evidente que não sabe o que fazer à vida nem ao engarrafamento que não deixa o autocarro avançar. "Vamos perder a merda do autocarro." 

Então é isso. Há outro autocarro, lá à frente, a uns cem metros, que se aproxima da paragem, e ela vai perder a ligação. "Vais-me fazer perder a merda do 56!" Afinal não está louca. Está a gritar com o filho que está de pé ao seu lado, uns dois anos de idade, grande chucha na boca, cabelo penteado com risco ao lado, o olhar cravado num lugar indefinido como se não fosse nada com ele, com uma expressão neutra que deve ter aprendido que é a que mais lhe convém. De outra maneira, por que é que não olharia para a mãe, ali aos gritos ao seu lado? 

Lá à frente, o 56 aproxima-se da paragem. "Ó menos podia abrir a puta da porta!" O grito quase desesperado devia ser para o motorista, mas não é bem, ela sabe que, mesmo que o motorista abrisse a porta, nunca conseguiria correr aqueles cem metros com os sacos e a criança e chegar a tempo... O 56 pára lá à frente, parte. "Se eu fosse a pé tinha-o apanhado. Vais mazé passar a andar a pé, tás a ouvir? Que eu tamém ando a pé!" Os gritos agora dirigem-se directamente ao rapazinho, sempre com o olhar pregado num ponto à sua frente. Não se percebe como é que a rapariga iria apanhar o 56 se andasse a pé, mas o resto percebe-se bem.

Ela está lá ao fundo, apetece dizer para deixar de gritar com a criança, para gritar com o motorista, para partir um vidro, qualquer coisa, mas o autocarro avança, pára, ela desce com a criança com a chucha com o ódio ao mundo com o desespero. Tento segui-la com o olhar mas perco-a logo.

Cinco minutos antes a conversa tinha sido na parte da frente, um homem de uns setenta anos critica o mundo num vozeirão vibrante de barítono. A conversa começou por causa do autocarro e acaba nos males do país. "... E a Ferreira Leite, essa ladra, anda prà aí a dar casas aos estrangeiros, mas aos de cá não dá nada. Nada! Na Amadora há 20 mil a 30 mil pessoas que não pagam os impostos! São os da câmara que dizem! Mas a mim que trabalhei 52 anos, se me atraso um dia pago a multa, porque não sou lá dos deles, bandalhos. Há um que eu conheço que tem um prédio e recebe 3000 contos por mês de rendas. Tudo sem recibo! Bando de ladrões! Esse não paga impostos, mas o cidadão trabalhador se se atrasa está lixado." A voz tem vibratos de pregador e há um coro de murmúrios de assentimento que percorre o autocarro a cada frase, como améns numa igreja baptista. Os homens das sondagens não andam de autocarro. Foi por isso que se enganaram. Só olharam para os números. As pessoas estão furiosas. Infelizes e furiosas. Acho que foi por isso que, depois, ninguém disse à rapariga para não ralhar com a criança, todos percebiam a sua raiva. Onde estará a criança com a chucha? Jornalista (jvm@publico.pt)

terça-feira, junho 16, 2009

Os eleitores sempre servem para alguma coisa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Junho de 2009
Crónica xx/2009

O texto abaixo pode ser um choque para cientistas especializados em sondagens. Para ser lido com supervisão

Éclaro que percebo a inquietação dos especialistas e das empresas de sondagens tentando explicar o desvio entre as suas previsões e o resultado das eleições europeias. É verdade que os desvios não foram enormes em termos numéricos, só que prever que o PS ganha e o PSD fica em segundo é exactamente o contrário de prever que o PSD ganha e o PS fica em segundo - é cem por cento de erro. Um erro que não é coberto por nenhuma margem. E o que acontece é que as perguntas que se quer ver respondidas quando se fazem sondagens são perguntas deste género - e não saber se o PSD vai ter 32 ou 34 por cento, o que é, de facto, irrelevante.

É como quando olhamos para o relógio. Nunca é para saber a hora. O que queremos é saber se ainda podemos dormir mais um bocado, se os miúdos vão chegar a horas à escola, se devemos começar a preparar o jantar.

Mas, apesar de perceber os sondadores, devo dizer que foi com alguma alegria que constatei os erros das sondagens na noite das eleições - e suspeito que deve ter havido milhares de portugueses com o mesmo sentimento. Afinal, nós, os eleitores, sempre servimos para alguma coisa. É que reparem: se as previsões fossem cada vez mais precisas, isso forneceria um excelente argumento para pôr fim às eleições e substituí-las por uma bela sondagem.

De facto, para que é que havíamos de fazer eleições, se já soubéssemos que o PSD iria ter 34,37 por cento e o PS 27,87? As sondagens, para mais, oferecem bónus de informação que as eleições não permitem. Alguma eleição nos iria dizer que as mulheres urbanas dos 25 aos 34 anos que se vestem de preto votam maioritariamente (37,22 por cento) no Bloco de Esquerda na Região de Lisboa, mas que já votam maioritariamente no PS no vale do Mondego? Que eleições nos poderiam dar esta riqueza de pormenor sem usar câmaras de videovigilância instaladas (para nossa protecção) nas cabines de voto? As sondagens fazem maravilhas destas sem qualquer problema.

E se acham que ninguém defende a substituição de eleições por sondagens, é só porque elas ainda não estão au point. Quando estiverem, haverá alguém que vai lembrar o dinheiro que se gasta nas eleições, o tempo perdido por milhões de eleitores - e daí a concluir que as eleições prejudicam a produtividade nacional será um passo.

Os especialistas de sondagens, como cientistas que são, não estão habituados a ver a realidade tentar enganá-los, mas é exactamente isso que se passa nas sondagens. (SPOILER) Isto pode ser duro, mas a verdade é que as sondagens não acertam sempre porque... há pessoas que... como dizer... mentem! É verdade. Eu faço isso nas sondagens. As sondagens são uma espécie de eleições artificiais - no sentido de "inteligência artificial" - e eu, por enquanto, ainda prefiro votar, por isso faço o que posso, na modesta medida das minhas possibilidades, para que as eleições artificiais continuem a apresentar falhas. Há ainda outra razão: há pessoas que gostam de pensar que são indivíduos irrepetíveis e criadores, imprevisíveis e voláteis, humanos e livres. E a ideia de que o seu livre-arbítrio já esteja limitado pelo livro do destino dos resultados das sondagens perturba-os. Como é que eles se atrevem a pensar que já sabem como é que eu vou votar se eu não sei? Vai daí, mentimos.

Eu sei que isto vai ser um choque para os cientistas das sondagens, mas é como as eleições: é mesmo assim. As sondagens, por enquanto, não são. Ainda bem. Jornalista (jvm@publico.pt)


sexta-feira, junho 12, 2009

Página de Rosto - Ezra Nawi, um canalizador pela paz

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 12 Junho 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 7


Ezra Nawi – activista dos direitos humanos e canalizador (Israel)




Ezra Nawi
Ezra Nawi vai provavelmente ser condenado a uma pena de prisão no próximo dia 1 de Julho. A sentença só vai ser lida nesse dia, mas o julgamento teve lugar em 19 de Março passado e Ezra Nawi já foi condenado.

"O réu foi julgado culpado de ter participado em distúrbios e de ter agredido um agente da polícia". É essa a conclusão do processo, que consistiu basicamente no confronto das declarações de agentes da polícia e de Nawi. Nawi diz que não agrediu o polícia. O polícia diz que ele lhe deu um murro na cara. Os factos tiveram lugar às 15h00 do dia 14 de Fevereiro de 2007, próximo do colonato de Carmel, no sul dos montes Hebron, nos territórios palestinianos da margem ocidental do Jordão, ocupados por Israel desde 1967.
Apesar do tempo que já passou e de não terem testemunhado os acontecimentos, há milhares de pessoas por todo o mundo que estão convencidas da inocência de Nawi e, nos últimos dias, têm assinado petições e enviado cartas a embaixadas e às autoridades israelitas a pedir que Nawi seja ilibado.

Uma das razões por que há tanta gente convencida da sua inocência é porque Ezra Nawi é um experiente activista dos direitos humanos israelita, conhecido pela sua defesa dos palestinianos dos montes Hebron e por uma rigorosa prática de não-violência, que tem o sangue-frio necessário para nunca responder a provocações.

Por outro lado, no processo há coisas estranhas, como o facto de a agressão não ter sido referida pelo polícia supostamente agredido nas primeiras declarações que prestou para o processo e de só posteriormente terem aparecido.

Depois, há a conveniência política da condenação de Ezra Nawi. Nawi, que é judeu, é um espinho cravado na política de colonatos israelita, odiado pelos colonos da região e pela cada vez mais poderosa extrema-direita israelita, e tem feito tudo o que pode para impedir as demolições de casas de palestinianos - destinadas à expansão de "zonas de segurança" ou do perímetro de colonatos - e para os ajudar a manter-se nas suas terras e a sobreviver.

Finalmente, outra razão para que muita gente não se convença da culpa de Nawi é que há um vídeo dos acontecimentos, que se pode ver no YouTube e que, se não mostra tudo, mostra o suficiente.
No vídeo vê-se um grupo de pessoas, entre as quais Nawi, que se tentam opor à demolição de um conjunto de barracas de tecto de chapa ondulada. São casas de beduínos palestinianos, em Hebron. Há polícias e soldados que tentam afastar os manifestantes, eles desviam-se, regressam, entram na barraca que a escavadora espera para demolir. Os soldados derrubam uma parede e empurram os manifestantes para o exterior. Eles saem e tentam interpor-se entre a escavadora e as casas. Nawi e outros deitam-se no chão, os soldados pegam neles em peso e desviam-nos. Uma típica manifestação não-violenta. Há sacudidelas e empurrões mas não há violência dos manifestantes nem brutalidade dos soldados. Toda a cena é filmada sem interferência visível dos soldados. Há quem tire fotografias. O processo judicial dirá que a casa é "ilegal", como sempre nestes casos. Os soldados tentam agarrar Nawi, que lhes sacode as mãos e se vai furtando a ser agarrado, como num jogo de apanhada. A escavadora consegue finalmente investir contra a casa mas Nawi escapa-se por trás dos soldados e entra nas ruínas da casa, semi-destruída, telhado entornado, a pá da escavadora ameaçadora no ar. Entram dois soldados atrás dele e saem a agarrá-lo por um braço. Terá sido dentro da casa que a agressão terá tido lugar. Nem a agressividade dos soldados parece ter aumentado nem Nawi parece alterado quando saem. Nawi acaba por ser levado para um camião e é algemado. Fica sentado a assistir, calmo. Os soldados à volta estão descontraídos, a demolição pode prosseguir, as mulheres palestinianas choram e amaldiçoam os soldados, uma embala um bebé. Nawi comenta em voz baixa: "A única coisa que vai restar aqui é ódio". A certa altura interpela um soldado que ri. "Tem graça, soldado? Tem graça que as crianças esta noite tenham de dormir ao relento?" O soldado responde que ele irá dormir em casa. O filme acaba.

Ezra Nawi é militante da organização Ta'ayush - Co-existência Árabe-Judia, mas é um activista especial. Para começar, é canalizador, e, além de ser um defensor dos direitos dos palestinianos e um opositor dos colonatos, Nawi é gay e a sua militância estende-se aos direitos dos homossexuais numa região do mundo onde isso nem sempre é fácil - apesar da liberalidade das franjas progressistas da sociedade israelita. Em Hebron, Nawi já se habituou a ver somar-se às acusações de "traidor do seu povo" os comuns insultos homofóbicos por parte dos colonos, que encara com absoluta indiferença. Como as ameaças de morte que lhe são dirigidas.

Nawi nasceu em 1952 numa família pobre de ascendência iraquiana e viveu toda a vida em Jerusalém. Fala tão fluentemente o hebreu como o árabe e, por esse facto, funciona frequentemente como contacto entre activistas palestinianos e israelitas na Cisjordânia - o que torna a sua futura prisão particularmente útil num contexto de radicalização da política de ocupação.

O trabalho de Nawi, desde que, há cerca de dez anos, conheceu as comunidades beduínas de Hebron, que vivem tradicionalmente em cavernas (que também são destruídas), consiste em tentar ajudá-los a levar uma vida normal. Tentar ajudar os agricultores a arar e semear as suas terras, a colher as azeitonas das suas oliveiras, a pastar os seus rebanhos, ajudar as crianças a ir à escola. A vida comum que nenhum consegue levar devido aos constantes ataques dos colonos que querem expulsá-los da vista e apoderar-se das suas terras, à expropriação das suas terras pelo Estado israelita (por alegadas razões de segurança ou puramente expansionistas) e às investidas do exército que leva a cabo essas operações.

"Nos últimos seis meses", conta o diário israelita Haaretz num artigo de 2005 sobre a actividade de Nawi, "os colonos - grupos radicais que ocuparam ilegalmente os postos avançados da área - intensificaram consideravelmente os seus ataques e as provocações aos palestinianos. Num desses incidentes, há três semanas, várias medas de feno feitas pelos agricultores palestinianos foram incendiadas. Uma horas antes, quatro jovens colonos serraram os ramos de muitas oliveiras. Na mesma semana, pastores judeus puseram um rebanho de cabras e carneiros a pastar num campo que tinha acabado de ser semeado com lentilhas, em frente à aldeia de Gawish, nos montes Hebron. Em Beit Imra, cerca de 200 oliveiras com quinze anos de idade foram cortadas. Não muito longe daí, os colonos passaram um arado por um campo cultivado e destruíram-no. Há duas semanas, um grupo de uns vinte colonos armados com paus e pedras atacou um grupo de pastores. Um rapaz de dez anos sofreu vários ferimentos (...). Nos últimos meses, houve vários ataques levados a cabo por homens mascarados contra crianças palestinianas que iam para a escola acompanhadas por voluntários. Vários voluntários tiveram de ser hospitalizados". 

A relação com os colonos continua hoje a ser de grande violência e a actuação das autoridades administrativas da região e do exército varia conforme o clima político. Os relatos de incidentes mostram por vezes administradores sensatos, que tentam controlar os colonos e minimizar os sofrimentos dos palestinianos, mas os colonos sentem que podem contar com a cobertura da direita e da extrema-direita fanática israelita hoje no poder - que define Israel como um "Estado judeu", como faz o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Mesmo quando os soldados executam ordens para expulsar colonos de uma dada área, o resultado costuma ser uma vaga de violência anti-palestiniana.

Nawi transporta pessoas, organiza os voluntários israelitas e estrangeiros que acompanham as crianças palestinianas à escola e os rebanhos aos pastos, organiza protestos, ajuda os palestinianos nas suas tarefas diárias, ajuda-os a reparar as casas, a instalar postos médicos, a abrir poços, a reparar canalizações, a apresentar queixa na polícia contra os colonos, arranja advogados para os defender, traz jornalistas para lhes mostrar a situação no terreno, distribui câmaras para que os camponeses possam filmar os ataques dos colonos e as acções da polícia e do exército, distribui cobertores no inverno, pede dinheiro aos seus clientes-amigos, organiza passeios e aulas de dança para os miúdos, a sua actividade não tem fim. E todos referem a sua calma perante situações de perigo, a sua capacidade para apaziguar os ânimos exaltados, a sua paciência, a sua voz suave, a sua humanidade. E o facto de não exagerar nos preços das reparações.
Em 2007 Ezra Nawi tornou-se o protagonista de um documentário de 80 minutos, Citizen Nawi, que conta a sua história e relata a sua relação com o jovem palestiniano Fuad Mussa, que lhe permitiu conhecer o lado de lá da repressão israelita. "Antes de conhecer Ezra Nawi eu pensava que tinha uma vida interessante", conta Nissim Mossek, o realizador, no site do filme. "Desde que comecei a fazer o filme já fui preso duas vezes, já fui espancado por colonos e o meu equipamento de filmagem já foi várias vezes destruído. Isto permitiu-me ter uma ideia de como é a vida de Ezra e de qual é o preço que ele paga pelo seu activismo".
Ezra Nawi tem muitos amigos e é fácil encontrar relatos de pessoas que passaram uns dias com ele, às vezes a vigiar um campo palestiniano acabado de semear para o proteger de ataques, outras vezes em protestos no centro de Jerusalém tentando despertar a consciência dos seus concidadãos, e não é frequente encontrar apreciações tão cálidas. "Ezra Nawi é um dos israelitas mais decentes que eu já conheci", diz o rabino David Forman, activista pela paz e fundador dos Rabinos pelos Direitos Humanos.

Num belo texto sobre Nawi, o escritor David Shulman escreve: "Às vezes, quando sou assaltado pela dúvida e por aquela pungente sensação de futilidade da vida, digo para mim que talvez um dia alguém se lembre de mim não pelos livros que escrevi, nem pelas línguas que aprendi, nem sequer pelas amizades que cultivei, mas pelo facto de eu ter estado ao lado de Ezra Nawi em Twaneh e Susya e em mais uns quantos lugares, quando os colonos atacaram".

Será difícil perceber que, se há esperança para a alma de Israel, ela existe por causa da actividade de Ezra Nawi e de muitos outros pela paz e pelo respeito mútuo entre israelitas e palestinianos?

terça-feira, junho 09, 2009

Os votos do nosso descontentamento

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009


Uma enorme quantidade de portugueses politicamente conscientes quis mandar as eleições e os partidos à fava

Se há alguma coisa que se pode concluir das eleições deste domingo é a extensão e a profundidade do descontentamento dos portugueses - para ficarmos apenas pelas eleições em Portugal. Descontentamento com o Governo, com o partido do Governo, com os partidos em geral, com as eleições e, provavelmente, até com a vida.


O descontentamento com o Governo e o partido no Governo é o dado que mais salta à vista e não precisa de justificação. Há uma nítida vontade de castigar o Governo e/ou o PS e/ou José Sócrates e as razões vão desde a crise financeira e o desemprego aos desastres da Justiça ou da Educação e às dúvidas sobre a lisura do comportamento de Sócrates e aos seus tiques autoritários. O mau resultado do PS não se pode ler como uma derrota pessoal do próprio Vital Moreira. Mesmo que o cabeça de lista do PS tivesse sido o/a candidato/a ideal, seria pouco provável que a empatia que pudesse despertar se sobrepusesse à antipatia que o Governo/PS/Sócrates desperta actualmente num sector maioritário dos cidadãos.

O PSD ganhou, mas, apesar de a sua vitória ser inegável, os números também não reflectem o entusiasmo que poderiam revelar - basta verificar que, em 1999, o PSD sofreu uma clamorosa derrota, apesar de ter obtido exactamente a mesma percentagem de votos que no domingo passado.

O Bloco de Esquerda mais do que duplicou os seus votos, triplicou a sua representação parlamentar e passou a ser a terceira força partidária, o que representa uma estrondosa vitória - mas seria ilusório considerar que a votação no BE destas eleições é um resultado consolidado. Há certamente aqui votos de eleitores que querem mudar e dar mais poder ao BE, mas é provável que haja aqui muito voto socialista de protesto, que quer apenas mostrar o seu descontentamento, puxar a governação europeia (e nacional) para a esquerda e que regressará ao PS na primeira oportunidade de voto útil.

O PCP (PCP-PEV para os puristas) viu a sua votação dar um salto de 70.000 votos, também numa expressiva vitória - e é provável que este crescimento se revele mais estável do que o do BE. E este é, por excelência, um voto de descontentamento com o statu quo.

O mesmo se passa com o CDS-PP, que subiu, resistindo à ameaça da força gravítica do PSD - o que diz alguma coisa do débil entusiasmo que o voto social-democrata foi capaz de suscitar fora da sua área natural.

Os pequenos partidos - apesar do entusiasmo do Movimento Esperança Portugal - revelaram-se, no conjunto, uma desilusão, sem conseguirem entusiasmar senão um número insignificante de eleitores.

Os votos em branco e nulos, por seu lado, representam um dos dados mais significativos desta eleição: nunca foram tantos (com a excepção de 1975). Houve 236.000 pessoas que se deram ao trabalho de ir votar, mas votaram em branco (164.877) ou nulo (71.151). Mesmo descontando os enganos, é ineludível que uma enorme quantidade de portugueses politicamente conscientes quis mandar as eleições e os partidos à fava. Não se pode estar muito mais descontente do que isto.

Finalmente, a abstenção recorde (a segunda mais alta desde a adesão à EU) representa se não uma recusa activa de participação política, pelo menos indiferença relativamente às escolhas ou ignorância quanto à sua utilidade - e nenhum destes cenários sugere um particular optimismo. Para além das leituras parcelares (partido a partido) que se podem fazer destas eleições, uma coisa parece evidente: os portugueses não estão contentes com o país que têm e não vêem grandes soluções para isso. Jornalista (jvm@publico.pt)

sexta-feira, junho 05, 2009

Página de Rosto - Ruth Lilly, uma musa discreta

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 5 Junho 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 10


Ruth Lilly, filantropa (Estados Unidos)


Em Portugal não sabemos bem o que seja a filantropia e a palavra é usada quase só em tom jocoso, para disfarçar a incomodidade que nos causa. Quando lemos o Retrato do poeta espanhol António Machado e ele nos diz que aprendeu o “segredo da filantropia” fingimos não reparar no verso e passamos rapidamente à frente.

Às vezes falamos de mecenato (porque tem um ar businesslike), ainda que praticamente ninguém o pratique, ou de solidariedade (porque é um conceito politicamente impreciso), mas filantropia parece-nos uma coisa do século XIX (que é, em grande medida) e fora de moda (o que em Portugal é verdade, se é que alguma esteve na moda). Ainda que os neoliberais defendam que é essencial os ricos serem muito ricos porque assim podem dar dinheiro aos pobres, em Portugal nem essa ideia pega. O capitalismo à portuguesa diz que é bom os ricos serem muito ricos porque assim ficam muito ricos.

Em Portugal consideramos generosidade um milionário morto não ter levado o dinheiro consigo para o Além e tê-lo deixado do lado de cá. O multimilionário americano Andrew Carnegie, magnate do aço que nunca foi suspeito de ser de esquerda, considerava isso uma vergonha: “O homem que morre deixando milhões que, durante a sua vida, estiveram sob a sua administração, morre sem ser chorado, morre desonrado e sem merecer elogios, sejam quais forem os usos que ele destine para a escória que não pôde levar consigo. O veredicto que o público emitirá sobre estes homens será: ‘O homem que morre assim rico morre sem honra’”. E Carnegie não está só na defesa da filantropia nos EUA. A ideia – e a prática – continua a ser defendida por muitos milionários. Bill Gates empenha-se há muitos anos em dar da melhor maneira o dinheiro que acumulou e garantia numa entrevista que “dez por cento seria suficiente para os filhos”. E o mesmo fazem muitos outros milionários, com desonrosas excepções.

A filantropia nos Estados Unidos é uma coisa séria. Há revistas de filantropia, há milhares de artigos sobre filantropia escritos todos os anos, há inúmeras instituições culturais, académicas e científicas de primeira água que vivem da filantropia – sem que se ouçam as iletradas condenações de subsidio-dependência que se ouvem por cá – e há rankings de filantropos publicados anualmente pelas publicações mais prestigiadas.

Nestes rankings, onde nomes como os de Bill Gates, Warren Buffet e George Soros ocupam sempre lugares cimeiros, com doações acumuladas ao longo da vida de milhares de milhões de dólares, há um nome, porém, que merece uma honra particular, de acordo com os preceitos de Carnegie: o de Ruth Lilly.

Ruth Lilly nasceu em 1915, em Indianápolis, Indiana, onde ainda vive, e é a herdeira do império farmacêutico Eli Lilly. E a distinção especial que lhe cabe deve-se ao facto de que esta multimilionária já tinha distribuído em doações até 2004, uma quantia que correspondia a duas vezes e meia a sua fortuna remanescente. Como termo de comparação, Bill Gates tinha doado até à mesma data uma quantia correspondente a 58 por cento da fortuna então em sua posse (doação total de 27976 milhões de dólares) e George Soros tinha doado 72 por cento (5171 milhões). A doação de Ruth Lilly até essa data era de 750 milhões, segundo dados das publicações BusinessWeek e Chronicle of Philanthropy e da organização GuideStar.

Ruth Lilly aprendeu a filantropia no berço. A sua família, desde o bisavô fundador da companhia, o coronel Eli Lilly, sempre considerou que era seu dever devolver à comunidade o muito que esta lhe dava. O seu avô, pai e restante família simplesmente seguiram a tradição, reforçada por um forte sentimento religioso e por uma crença profunda no papel emancipador da educação e da cultura. Quando se procura o nome de Ruth Lilly na Internet aparecem as habituais inúmeras páginas mas todas dizem respeito a instituições que financiou: a Ruth Lilly Medical Library, o Ruth Lilly Health Education Center, a Ruth Lilly Law Library, o Ruth Lilly Hospice… a lista é longa. Longa e demasiado curta porque há muitas doações feitas anonimamente, sem a publicidade do seu nome numa placa. Há muitos recipientes que nem sequer sabem quem os ajudou: vêem apenas um advogado que lhes comunica a doação de um benfeitor anónimo. Ruth Lilly nunca gostou de publicidade, sempre odiou ser reconhecida e não gosta de agradecimentos.

O que praticamente não se encontra na Internet são informações pessoais ou fotografias. Ruth Lilly também nunca gostou de fotografias.

A esmagadora maioria das suas doações foi feita directamente. Há uma fundação com o seu nome, a Ruth Lilly Philanthropic Foundation, a quem tenciona deixar o dinheiro que lhe sobrar quando morrer, e há duas outras fundações ligadas à família que possuem actividades independentes, financiadas por fundos generosos já estabelecidos (Lilly Endowment e Eli Lilly and Company Foundation), mas Ruth Lilly preferiu quase sempre dar o seu dinheiro directamente aos projectos ou organismos que lhe pareciam meritórios, em vez de o fazer através das fundações instituídas pela família.

A sua primeira grande doação foi a dádiva da casa de família, Oldfields, ao Indianápolis Museum of Art, que a transformou em casa-museu – assim como de um fundo que garante a sua manutenção. Mas o gesto que lhe mereceu notícias no mundo inteiro foi, em 2002, a dádiva de mais de 100 milhões de dólares (a quantia exacta é difícil de determinar, pois a doação incluía uma imensa carteira de títulos de tipos diversos, mas houve quem a estimasse em 150 milhões) a uma minúscula organização, a Modern Poetry Association de Chicago, editora da revista Poetry.

Mesmo nessa ocasião Lilly não apareceu e os media tiveram de se contentar com declarações do seu advogado, mas não faltou quem pusesse em causa o discernimento da senhora, então com 87 anos, e até quem receasse os efeitos que tal inundação de dinheiro poderia gerar na qualidade da poesia americana. Mas o gesto, se era inédito, não tinha nada de precipitado ou de insensato.

A revista Poetry, criada em 1912 por Harriet Monroe, poeta e crítica de arte do diário Chicago Tribune, era (e é) uma revista de impecável reputação que conta entre os seus louros com a publicação de Ezra Pound, T. S. Eliot e William Carlos Williams e que continua a divulgar poesia moderna de qualidade. E Ruth Lilly foi, durante toda a sua vida, uma apaixonada de poesia e uma leitora entusiasta da revista, tendo-se mesmo dedicado à escrita de poesia com alguma seriedade. Sabe-se que, nos anos 70, Ruth Lilly submeteu alguns originais à Poetry (não se sabe ao certo quantos poemas nem quantas vezes, as versões variam), onde foram recusados pelo editor, Joseph Parisi - o mesmo que, trinta anos depois, receberia os seus milhões.

E essa não foi a única vez que tentou o prelo: em 1939, sob o quase pseudónimo R. Lyly, o New York Times publicou quatro poemas seus – que não é possível ver na edição digital do jornal ainda que esta remonte a 1851. A revista Business Week cita quatro versos:

Secure in plush upholstery
I wink a torpid eye
and note above the plaudits
the needle of your sigh

(“Confiante, no estofo aveludado / pisco um olho sonolento / e noto por cima dos aplausos / a agulha do teu lamento”)

O gosto da poesia também já era visível na sua actividade filantrópica. Antes da sua doação gigante à Poetry – que permitiu transformar a Modern Poetry Association numa pujante Poetry Foundation, triplicar a circulação da revista (hoje de 30.000 exemplares), triplicar o preço pago aos autores para 6 dólares por verso (!), aumentar o staff e multiplicar as iniciativas de ensino e promoção da poesia – Ruth Lilly já apoiava a revista, financiando bolsas e um generoso prémio anual de poesia com o seu nome, no valor de 100.000 dólares, atribuído desde 1986.

A reclusão a que Ruth Lilly se remeteu durante quase toda a vida não se deve apenas a timidez. A sua saúde foi sempre descrita como frágil e Lilly passou anos hospitalizada devido a uma severa depressão crónica. As suas raras saídas de casa foram sempre acompanhadas por enfermeiras, mesmo quando ainda se conseguia deslocar sozinha. Segundo o escasso perfil publicado no citado artigo da Business Week, foi só quando Ruth Lilly já tinha passado dos 70 anos que a sua situação médica sofreu uma melhoria considerável graças ao Prozac – o mais famoso dos antidepressivos e, irónica ou afortunadamente, uma das estrelas dos laboratórios Eli Lilly.

Apesar dessa relativa recuperação e das viagens que pôde fazer depois disso, Ruth Lilly continuou a fugir aos media e a quase toda a gente, uma espécie de Howard Hughes da filantropia. Uma vez apareceu de surpresa na recepção do Ruth Lilly Health Education Center para ver como estavam a correr as coisas, mas a maior parte das visitas que fez para ver como estava a ser gasto o seu dinheiro foram feitas anonimamente.

Em 2006, a pedido da família, um tribunal do Ohio considerou-a incapaz de gerir os seus donativos e entregou essa responsabilidade a seis dos seus sobrinhos e sobrinhas. A situação não se alterou e a família não divulgou qualquer informação sobre o seu estado depois disso. Nem autorizam que sejam publicadas fotos suas – das escassíssimas que possam existir. O único fotógrafo que encontrámos que possui fotografias de Ruth Lilly (tiradas em 2005, num evento público, onde aparece surpreendentemente jovem para os seus 90 anos, com uma expressão ingénua nos olhos cinzentos e impecavelmente maquilhada e penteada como uma actriz dos anos 40) não as pode ceder porque a família não autoriza a sua publicação.

Seria normal que alguém como Ruth Lilly, que teve uma vida longa e com todo o conforto material, que teve a oportunidade de concretizar tantos dos seus desejos e que atingiu uma tal reputação, fosse conhecida de imensa gente e acabasse a sua vida rodeada e feliz. De facto, não é assim. Mas o seu objectivo filantrópico foi certamente atingido. Ruth Lilly fez o que pôde para melhorar a vidas das pessoas à sua volta (a maioria das suas doações destinaram-se a instituições no seu estado natal, o Indiana) e para que elas pudessem usufruir de cultura, educação e beleza.

A sua vida pode não ter sido tão feliz como teríamos gostado, mas uma coisa é certa: se alguém cumpriu os critérios de filantropia de Carnegie para morrer com honra, foi Ruth Lilly.

terça-feira, junho 02, 2009

Alexandra T. e as maçãs podres

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009


Como é possível que este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres?

Não é preciso ser perito em fruticultura para saber o que é uma maçã podre. Quando damos uma dentada numa maçã podre, mesmo que um grupo de doutores em ciências agrárias nos tente provar que aquela maçã está sã como um pêro, nós sabemos que não está.


Os peritos em fruticultura não sabem melhor do que nós o que é uma maçã podre. A grande diferença é que eles sabem (ou esperamos que saibam) como é que se faz para produzir maçãs de primeira classe.

Da mesma forma, não é preciso ser um especialista em Direito ou um profundo conhecedor do funcionamento do sistema judicial para saber o que é a justiça. É como com as maçãs: podemos não saber como se cultivam aquelas maçãs rijas e aromáticas, mas quando vemos uma maçã podre... sabemos de ciência certa que está podre. Não vale a pena tentar disfarçar.

O problema com a chamada Justiça (a maiúscula é para sublinhar a diferença com a comum justiça) em Portugal é que produz demasiadas maçãs podres. Há quem continue a dizer que o nosso sistema judicial "atravessa uma crise" mas que "a Justiça funciona". Nenhuma das frases é correcta. Se a Justiça estivesse a atravessar uma crise, isso seria uma excelente notícia. O problema é que está parada no meio da crise e já criou raízes.
Os exemplos são inúmeros, dos grandes casos aos pequenos. Nos grandes, as coisas arrastam-se e vão-se complicando à medida que os processos se arrastam - em vez de se esclarecerem, como parece que deveria ser a função do sistema -, tornando qualquer perspectiva impossivelmente obscura. Nos pequenos casos, percebemos melhor que não percebemos nada. Um velho advogado dizia-me há anos que, em Portugal, era impossível prever o desfecho de um processo: já tinha visto imensas pessoas limpidamente inocentes ser condenadas e grandes e óbvios gabirus inocentados. Mas acrescentava (para me descansar, suponho) que não era tudo exactamente ao contrário do que devia ser, que às vezes o sistema funcionava: era mais como deitar uma moeda ao ar.

O que é curioso é que muitos dos responsáveis pela administração da justiça em Portugal partilham esta visão catastrófica em privado - ainda que não a admitam em público. Uma hipocrisia que não é de molde a descansar ninguém.

O último episódio desta farsa em contínuo foi a retirada da menina de Barcelos, Alexandra T., da tutela do casal que a cuidava desde os 17 meses e a sua entrega à mãe biológica que a levou para a Rússia. O juiz da Relação de Guimarães já concedeu que pode não ter feito a escolha mais acertada, mas escudou-se com "os factos constantes do processo", que não permitiriam outra interpretação. E isso é que é espantoso, porque "os factos constantes do processo", se dizem alguma coisa, por trás do português canhestro que se usa nos tribunais e dos visíveis preconceitos de quem o escreve, é que esta criança foi abandonada pela mãe, que a descuidou grave e sistematicamente, e que o casal que a acolheu a tratou bem e que a criança os amava como pai e mãe. Como é possível que um especialista da lei não saiba ler esta história que, se fosse um conto, qualquer criança de seis anos perceberia? Como é possível que, em vez de justiça, este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres e a condenar crianças a cumprir as penas que apenas os juízes deveriam cumprir? Jornalista (jvm@publico.pt)