Post publicado no Facebook a 18 de Maio de 2014
Os balouços estão todos ocupados. Há cinco, mas um está estragado há meses e tem as correntes embrulhadas num nó e por isso só há quatro.
Há uma criança que espera a sua vez, encostada a um dos postes dos balouços. Passado um bocadinho há duas. As crianças nos balouços balouçam-se alegremente, tentam tocar nos pés umas das outras e gritam excitadas, indiferentes ao desespero das que esperam. É evidente que tencionam ficar ali horas. Uma das crianças que espera impacienta-se, sem desamparar o poste. "Ó mãããe! Eu quero andar!..." A mãe responde de longe, sentada num banco, num tom de voz estudadamente civilizado, num volume um tudo-nada mais elevado do que seria necessário para a criança ouvir. "Tem de esperar a sua vez. Os outros meninos estão a andar..." A menina sabe perfeitamente que os outros meninos estão a andar. É mesmo esse o problema. Os outros meninos estão a andar e nunca mais param de andar. Ela quer que a mamã TIRE os outros meninos do balouço para ela poder andar e ficar ela ali a balouçar-se e a tentar tocar nos pés dos outros meninos, indiferente ao desespero das crianças que esperam.
Uma terceira criança junta-se às outras duas que esperam e encosta-se timidamente a um terceiro poste. A mãe da criança que falou levanta-se e vai lentamente juntar-se à filha, ao pé do poste.
É uma jogada táctica clássica, que David Attenborough já explicou num documentário sobre as alterações no comportamento das leoas com crias quando a savana aperta. O objectivo é garantir o lugar da filha na fila de espera tácita, que corre o risco de se desordenar com o aumento da procura, e aumentar a pressão sobre os ocupantes do balouço.
Mandam as regras não escritas das relações no interior de parques infantis que nenhum pai diga a uma criança que não é sua filha que já está há tempo suficiente a andar de balouço, porque isso a) poderia ser interpretado como um acto de agressão pelo pai da criança interpelada, levando a uma escalada armamentista e b) porque isso abriria a caixa de Pandora, permitindo que qualquer pai decidisse pôr fim arbitrariamente ao tempo do balouço dos filhos alheios. No entanto, é permitido pressionar os incumbentes através da presença silenciosa e aplicar um olhar persistente às crianças que continuam a balouçar. Passado um minuto, há um pai ou uma mãe ao pé de cada uma das três crianças que esperam o balouço, todos com uma careta de impaciência e braços cruzados sobre o peito, o sinal internacional de que estamos preparados para esperar, mas não muito.
É o momento em que a mãe de um dos balouçantes finalmente se levanta, se aproxima do balouço e sugere ao filho que podia ir agora brincar na outra coisa lá ao fundo. Ele vai e os outros todos também, numa debandada tão rápida que apanha todos os esperantes de surpresa. É por pouco que uma das crianças na fila não é ultrapassada por uma arrivista mais expedita, mas a mãe vigilante não permite o golpe.
Durante uns minutos, a calma rereina no sector dos balouços.
A razão por que não há mais balouços nos parques infantis é um dos grandes mistérios da natureza, que não espanta que perdure para além da descoberta do bosão de Higgs.
Nos parques infantis há balouços, escorregas, estruturas para escalar e outras coisas, mas só há bichas e guerra fria nos balouços. Ja experimentaram sugerir a um guarda do parque que diga aos seus chefes que ponham mais balouços? A resposta é, invariavelmente, "Só há bichas nos balouços porque todos os miúdos preferem os balouços". Se tentarmos um "Mas precisamente! É por isso mesmo que devia haver mais balouços" a resposta é um olhar de profunda piedade pela nossa estupidez. No entanto, a ideia não é completamente estúpida. É apenas radicalmente revolucionária. Mas um dia, quem sabe...
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domingo, maio 18, 2014
terça-feira, agosto 21, 2012
Verão
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Agosto de 2012
Crónica 33/2012Os raros momentos de felicidade das crianças durante o Verão são quando imaginam o que vão fazer nas férias quando forem crescidos
1. Os veraneantes andam como pinguins. Bamboleiam-se de um lado para o outro, deixando cair o peso do corpo ora numa perna ora na outra, lentamente, indolentemente, por baixo do chapéu de palha. Deve ser do calor. Deambulam mais do que andam. Mesmo quando vão, andam como se passeassem. Avançam em ziguezagues para a esquerda e para a direita mesmo quando querem ir em frente, como se navegassem à bolina. Talvez não queiram seguir em frente. Pode ser uma declaração de princípios, uma maneira de dizer que, durante estes quinze dias, durante esta semana, aqui à beira-mar, são livres de andar por onde lhes apetece e que, se seguem em frente, bem podiam virar à esquerda ou à direita, parar ou até, suprema rebeldia, voltar para trás. Era só quererem. Claro que não é bem assim, porque a rotina das férias é tão férrea como a dos dias de trabalho na cidade, mas gostam de sonhar que podem fazer deste dia o que quiserem e que, hoje, são donos dos seus destinos. Daí o passo gingão, despreocupado. Mas também pode ser daquela combinação de suor, sal, sol, areia e o roçar do nylon dos calções de banho, que provoca aquelas assaduras no interior das pernas que obriga a sábias combinações de creme solar Nivea e de Halibut. Quem sabe?
2. George Carlin, famoso, genial e falecido humorista americano, dizia que, quando vamos na estrada, todos os que conduzem mais devagar do que nós sāo idiotas e todos os que conduzem mais depressa que nós são loucos. Não é só na estrada. Também é difícil cruzarmo-nos com gente que nos pareça cordata na praia. Só se estiver longe, sozinho e se só interromper a leitura do seu livro para fazer uma sesta. Estendal de toalhas, cadeiras e chapéus de sol, bolas de futebol, de voleibol, raquetas e frisbees, cães e filhos, discussões familiares, tudo se conjuga para nos convencer de que estamos ali a mais. Há quem se ache no direito natural a ocupar toda a praia e espalhe imperialmente os seus pertences pelo areal e nos olhe de forma sobranceira enquanto exibe as etiquetas dos seus óculos de sol e polos e bermudas e sacos e toalhas, numa profusão de heráldica de centro comercial. Mas também há os que se aproximam levados pelo sentimento comunitarista que diz que, se estamos todos na mesma praia, devemos tratar-nos como vizinhos ou parentes e nos pedem para vigiar o bebé ou a carteira enquanto vão ao banho só um bocadinho. Que a extensão democratizada dos areais não permita colocar suficiente areia entre nós e os loucos e os idiotas é uma das tristezas do Verão.
3. A razão por que há mais birras, caprichos e amuos por parte das crianças e adolescentes durante as férias que durante o resto do ano devia ser objecto de estudo por parte dos pedopsicólogos e similares. Talvez já tenha sido e eu não tenha dado por isso. É impossível encontrar uma família em férias onde as crianças estejam satisfeitas com a escolha da praia, do sítio onde se planta o chapéu de sol, do fato de banho, do boné, do lugar onde se toma banho, do que se vai comer, do que se vai fazer a seguir, de onde se vai passear à noite ou do que quer que seja. Penso que é da amplitude do leque da escolha. Depois de um ano de rotinas, de horários para levantar e comer e estudar e de ementas repetidas semanalmente, também as crianças sonham com um Verão de liberdade e de vontades satisfeitas, sem compromissos nem negociações, com pais benevolentes e sorridentes quando não ridentes e, como os adultos bem sabem, isso não existe senão nalguns anúncios da televisão.
A verdade é que a liberdade é sempre uma decepção e as crianças ainda não o sabem. É este choque entre as expectativas ilimitadas e a realidade sempre aquém do desejo que gera a frustração estival típica das crianças. É diferente, mas é um bocado como conhecer aquele escritor que sempre admirámos e constatar que cheira mal da boca.
Por que razão não se hão-de comer gelados de todos os sabores em vez de escolher só um e ficar na praia até ser noite escura? Porque é que a água está fria e tem algas e a bandeira está vermelha e a senhora romena já não tem bolas de Berlim com creme e porque é que eu não posso jantar só batatas fritas? Porquê? E porque é que este ano ainda não alugámos uma casa com piscina? E porque é que estamos sempre a comer peixe? E porque é que, depois destes dias de praia, em vez de voltarmos para casa, não vamos fazer um cruzeiro? E porque é que não podemos pelo menos jantar fora todos os dias, como toda a gente faz? Porque é que eu não posso comprar absolutamente tudo aquilo que me apetece? E porque é que eu não posso ir passear à vila sozinha com as minhas amigas e porque é que não me deixas comprar aquele biquini com lantejoulas?
Os raros momentos de felicidade absoluta das crianças durante o Verão são quando imaginam tudo o que vão fazer nas férias quando forem crescidos, quando a sua liberdade for total e absoluta e quando os pais já não mandarem neles. Nem desconfiam que vão ter de aturar os filhos deles.
A infelicidade do Verão não tem fim. O Verão, felizmente, sim. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, março 06, 2012
Os pequenos ópios do povo
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Março de 2012
Crónica 10/2012A venda de cromos é uma espécie de rifa, onde o cliente não sabe o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio
1. A grande moda dos últimos tempos entre os miúdos das escolas primárias portuguesas (e espanholas e italianas) é um álbum de cromos de uns superheróis quiméricos mutantes com uma agressividade patológica chamados Invizimals. “Invizimals” começou por ser um jogo da consola PlayStation, mas depois deu origem ao inevitável merchandising, dos quais os cromos são as estrelas. Mas os Invizimals são também um triunfo estrondoso do marketing, que continua a transformar ar em dinheiro graças a uma barragem de publicidade despudorada dirigida às crianças de mais tenra idade - que inclui oferecer a caderneta de cromos à porta das escolas. As crianças, devidamente acossados pela pressão dos pares, azucrinam depois a cabeça dos pais até estes lhes comprarem os ditos cromos. A adesão é viral: basta que uma criança compre para que o efeito de contágio seja imparável, a epidemia assegurada. E, uma vez começada a epopeia, o cliente fica cativo durante meses: os miúdos querem “acabar a colecção”.
A infecção tem a originalidade de ser cara, porque os cromos vêm em envelopes que se compram segundo o método duplamente cego: quem vende não sabe o que vem lá dentro, quem compra não sabe o que compra. Como os miúdos se divertem depois a trocar os cromos repetidos, a brincadeira pode não chegar a custar tanto como a prestação da hipoteca. Cada caderneta fica mais cara do que o livro mais caro lá de casa, mas quase que não se dá por isso porque tudo acontece aos poucos e os miúdos gostam.
É uma exploração abusiva da ingenuidade e da inumeracia de muitos compradores que a caderneta não contenha claramente escarrapachado o custo mínimo do seu preenchimento. Claro que tudo depende do número de cromos repetidos que aparecem nos envelopes, mas esse é um factor que os clientes não têm nenhuma forma de controlar e que a editora (a famosa Panini, com uma facturação de centenas de milhões de euros por ano) pode manipular livremente. Mas, mesmo sem poder prever o custo exacto para cada comprador, há pelo menos um custo mínimo, que é o custo da aquisição da totalidade dos cromos se nunca aparecesse nenhum repetido - uma impossibilidade estatística. Mesmo este custo, porém, é avultadíssimo (50 euros, 80 euros), e constituiria uma surpresa para muitos compradores. A informação deveria ser de afixação obrigatória nas cadernetas e nos envelopes, para evitar a exploração dos incautos que o negócio dos cromos se tornou.
Por outro lado, sendo a editora livre de incluir nos seus envelopes os cromos que quiser, nada a impede de adiar estrategicamente a inclusão de certos cromos, de forma a forçar a compra de envelopes para além do que seria a simples consequência da lei das probabilidades.
A venda de envelopes de cromos é, de facto, uma espécie de rifa, onde o cliente paga sem saber o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio. Não existe nenhum diferença de fundo entre isto e um jogo de azar - a não ser o facto de estes serem regulados e fiscalizados e de a Panini poder agir sem quaisquer entraves.
2. Os Invizimals são uns monstros agressivos (como é que os brinquedos e os desenhos animados se tornaram quase todos monstros histéricos japoneses?) com poderes especiais “de ataque” e “de defesa” e com nomes entre o mitológico e o techno. É claro que os miúdos (sim, é uma coisa de rapazes) competem com os colegas para ver quem tem mais, quem tem quais, discutem com os amigos as qualidades de cada um, consultam os sites especializados (sim, há sites especializados) e acabam por saber tudo o que há para saber sobre a morfologia, as técnicas de combate e os costumes tribais de toda esta tropa fandanga. É aterrador que tantos milhões de crianças pelo mundo aprendam tanto sobre coisas tão absolutamente inúteis e tão cuidadosamente desligadas de qualquer tipo de realidade. Não se trata de ficção, nem de fantasia. Aqui não há história, não há narrativa, não há descrição e muito menos discurso ou reflexão. Não há sequer emoção. Não há sequer verdadeiramente personagens. Não há consciência que permita empatia. Há apenas ruído e efeitos de luz que se repetem num ciclo hipnótico. Nenhuma criatividade, apenas marketing. Confesso que coleccionei muitos cromos com gosto durante a minha infância. Não sendo apreciador de “bonecos da bola”, tive cadernetas de “raças de cães” (acho que fui aí que aprendi tudo o que sei sobre o tema), sobre “povos do mundo”, sobre as “maravilhas e mistérios do mundo animal”. Sei que existem no mundo real inúmeros temas fascinantes, capazes de captar a atenção e a imaginação das crianças, da vida animal às paisagens, da ciência ao espaço, das tradições às máquinas, da arte às profissões, a própria ficção, com a literatura e o cinema. E pergunto-me como é que deixámos que a alienação das crianças se transformasse numa indústria tão poderosa. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, junho 23, 2009
Crónica de viagem
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009
Veste um vestidinho de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, tem uma boca dura e infeliz
No autocarro apinhado os olhares convergem para a origem do praguejar. Não é um desabafo abafado, um discreto "dasss". É um grito de raiva e é para ser ouvido por toda a gente do autocarro e do mundo. A voz é de uma rapariga, nova, loura, magra, lá ao pé da porta de trás e que está furiosa, a explodir de raiva. "Tás-me a ver esta merda? Tás-me a ver esta ganda merda?" Olha em volta para ver se alguém partilha a sua raiva, a sua fúria, a sua frustração, talvez para ver se pode descarregar em alguém a zanga que ninguém percebe de onde vem nem ao que vai, mas os olhares que convergiram sobre ela desviam-se os centímetros necessários para evitar o contacto directo e adoptam um ar abstracto de circunstância. Será louca? É melhor não a olhar nos olhos. Ela bamboleia a cabeça, agressiva e desesperada, como uma fera encurralada, sem nada ali à mão para descarregar a sua fúria. Veste um vestidinho leve de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, muito nova, tem uma boca dura e infeliz, podia ser graciosa se a sua vida tivesse sido toda diferente e se esta viagem de autocarro fosse diferente, e é evidente que não sabe o que fazer à vida nem ao engarrafamento que não deixa o autocarro avançar. "Vamos perder a merda do autocarro."
Ela está lá ao fundo, apetece dizer para deixar de gritar com a criança, para gritar com o motorista, para partir um vidro, qualquer coisa, mas o autocarro avança, pára, ela desce com a criança com a chucha com o ódio ao mundo com o desespero. Tento segui-la com o olhar mas perco-a logo.
Cinco minutos antes a conversa tinha sido na parte da frente, um homem de uns setenta anos critica o mundo num vozeirão vibrante de barítono. A conversa começou por causa do autocarro e acaba nos males do país. "... E a Ferreira Leite, essa ladra, anda prà aí a dar casas aos estrangeiros, mas aos de cá não dá nada. Nada! Na Amadora há 20 mil a 30 mil pessoas que não pagam os impostos! São os da câmara que dizem! Mas a mim que trabalhei 52 anos, se me atraso um dia pago a multa, porque não sou lá dos deles, bandalhos. Há um que eu conheço que tem um prédio e recebe 3000 contos por mês de rendas. Tudo sem recibo! Bando de ladrões! Esse não paga impostos, mas o cidadão trabalhador se se atrasa está lixado." A voz tem vibratos de pregador e há um coro de murmúrios de assentimento que percorre o autocarro a cada frase, como améns numa igreja baptista. Os homens das sondagens não andam de autocarro. Foi por isso que se enganaram. Só olharam para os números. As pessoas estão furiosas. Infelizes e furiosas. Acho que foi por isso que, depois, ninguém disse à rapariga para não ralhar com a criança, todos percebiam a sua raiva. Onde estará a criança com a chucha? Jornalista (jvm@publico.pt)
Texto publicado no jornal Público a 23 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009
Veste um vestidinho de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, tem uma boca dura e infeliz
"Foda-se! Foda-se! Foda-se!" O "f" é
arrastado como o bufar de um gato assanhado e a língua fica encostada aos
dentes antes de explodir no "da" que acaba num "ssss"
prolongado, uma explosão de consoantes. "Ffffoodddddda-sss!"
No autocarro apinhado os olhares convergem para a origem do praguejar. Não é um desabafo abafado, um discreto "dasss". É um grito de raiva e é para ser ouvido por toda a gente do autocarro e do mundo. A voz é de uma rapariga, nova, loura, magra, lá ao pé da porta de trás e que está furiosa, a explodir de raiva. "Tás-me a ver esta merda? Tás-me a ver esta ganda merda?" Olha em volta para ver se alguém partilha a sua raiva, a sua fúria, a sua frustração, talvez para ver se pode descarregar em alguém a zanga que ninguém percebe de onde vem nem ao que vai, mas os olhares que convergiram sobre ela desviam-se os centímetros necessários para evitar o contacto directo e adoptam um ar abstracto de circunstância. Será louca? É melhor não a olhar nos olhos. Ela bamboleia a cabeça, agressiva e desesperada, como uma fera encurralada, sem nada ali à mão para descarregar a sua fúria. Veste um vestidinho leve de manga curta, tem sacos na mão, está cansada e transpirada, é nova, muito nova, tem uma boca dura e infeliz, podia ser graciosa se a sua vida tivesse sido toda diferente e se esta viagem de autocarro fosse diferente, e é evidente que não sabe o que fazer à vida nem ao engarrafamento que não deixa o autocarro avançar. "Vamos perder a merda do autocarro."
Então é isso. Há outro
autocarro, lá à frente, a uns cem metros, que se aproxima da paragem, e ela vai
perder a ligação. "Vais-me fazer perder a merda do 56!" Afinal não
está louca. Está a gritar com o filho que está de pé ao seu lado, uns dois anos
de idade, grande chucha na boca, cabelo penteado com risco ao lado, o olhar
cravado num lugar indefinido como se não fosse nada com ele, com uma expressão
neutra que deve ter aprendido que é a que mais lhe convém. De outra maneira,
por que é que não olharia para a mãe, ali aos gritos ao seu lado?
Lá à frente,
o 56 aproxima-se da paragem. "Ó menos podia abrir a puta da porta!" O
grito quase desesperado devia ser para o motorista, mas não é bem, ela sabe
que, mesmo que o motorista abrisse a porta, nunca conseguiria correr aqueles
cem metros com os sacos e a criança e chegar a tempo... O 56 pára lá à frente,
parte. "Se eu fosse a pé tinha-o apanhado. Vais mazé passar a andar a pé,
tás a ouvir? Que eu tamém ando a pé!" Os gritos agora dirigem-se
directamente ao rapazinho, sempre com o olhar pregado num ponto à sua frente.
Não se percebe como é que a rapariga iria apanhar o 56 se andasse a pé, mas o
resto percebe-se bem.
Ela está lá ao fundo, apetece dizer para deixar de gritar com a criança, para gritar com o motorista, para partir um vidro, qualquer coisa, mas o autocarro avança, pára, ela desce com a criança com a chucha com o ódio ao mundo com o desespero. Tento segui-la com o olhar mas perco-a logo.
Cinco minutos antes a conversa tinha sido na parte da frente, um homem de uns setenta anos critica o mundo num vozeirão vibrante de barítono. A conversa começou por causa do autocarro e acaba nos males do país. "... E a Ferreira Leite, essa ladra, anda prà aí a dar casas aos estrangeiros, mas aos de cá não dá nada. Nada! Na Amadora há 20 mil a 30 mil pessoas que não pagam os impostos! São os da câmara que dizem! Mas a mim que trabalhei 52 anos, se me atraso um dia pago a multa, porque não sou lá dos deles, bandalhos. Há um que eu conheço que tem um prédio e recebe 3000 contos por mês de rendas. Tudo sem recibo! Bando de ladrões! Esse não paga impostos, mas o cidadão trabalhador se se atrasa está lixado." A voz tem vibratos de pregador e há um coro de murmúrios de assentimento que percorre o autocarro a cada frase, como améns numa igreja baptista. Os homens das sondagens não andam de autocarro. Foi por isso que se enganaram. Só olharam para os números. As pessoas estão furiosas. Infelizes e furiosas. Acho que foi por isso que, depois, ninguém disse à rapariga para não ralhar com a criança, todos percebiam a sua raiva. Onde estará a criança com a chucha? Jornalista (jvm@publico.pt)
terça-feira, junho 02, 2009
Alexandra T. e as maçãs podres
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009
Como é possível que este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres?
Não é preciso ser perito em fruticultura para saber o que é uma maçã podre. Quando damos uma dentada numa maçã podre, mesmo que um grupo de doutores em ciências agrárias nos tente provar que aquela maçã está sã como um pêro, nós sabemos que não está.
Os peritos em fruticultura não sabem melhor do que nós o que é uma maçã podre. A grande diferença é que eles sabem (ou esperamos que saibam) como é que se faz para produzir maçãs de primeira classe.
Da mesma forma, não é preciso ser um especialista em Direito ou um profundo conhecedor do funcionamento do sistema judicial para saber o que é a justiça. É como com as maçãs: podemos não saber como se cultivam aquelas maçãs rijas e aromáticas, mas quando vemos uma maçã podre... sabemos de ciência certa que está podre. Não vale a pena tentar disfarçar.
O problema com a chamada Justiça (a maiúscula é para sublinhar a diferença com a comum justiça) em Portugal é que produz demasiadas maçãs podres. Há quem continue a dizer que o nosso sistema judicial "atravessa uma crise" mas que "a Justiça funciona". Nenhuma das frases é correcta. Se a Justiça estivesse a atravessar uma crise, isso seria uma excelente notícia. O problema é que está parada no meio da crise e já criou raízes.
Os exemplos são inúmeros, dos grandes casos aos pequenos. Nos grandes, as coisas arrastam-se e vão-se complicando à medida que os processos se arrastam - em vez de se esclarecerem, como parece que deveria ser a função do sistema -, tornando qualquer perspectiva impossivelmente obscura. Nos pequenos casos, percebemos melhor que não percebemos nada. Um velho advogado dizia-me há anos que, em Portugal, era impossível prever o desfecho de um processo: já tinha visto imensas pessoas limpidamente inocentes ser condenadas e grandes e óbvios gabirus inocentados. Mas acrescentava (para me descansar, suponho) que não era tudo exactamente ao contrário do que devia ser, que às vezes o sistema funcionava: era mais como deitar uma moeda ao ar.
O que é curioso é que muitos dos responsáveis pela administração da justiça em Portugal partilham esta visão catastrófica em privado - ainda que não a admitam em público. Uma hipocrisia que não é de molde a descansar ninguém.
O último episódio desta farsa em contínuo foi a retirada da menina de Barcelos, Alexandra T., da tutela do casal que a cuidava desde os 17 meses e a sua entrega à mãe biológica que a levou para a Rússia. O juiz da Relação de Guimarães já concedeu que pode não ter feito a escolha mais acertada, mas escudou-se com "os factos constantes do processo", que não permitiriam outra interpretação. E isso é que é espantoso, porque "os factos constantes do processo", se dizem alguma coisa, por trás do português canhestro que se usa nos tribunais e dos visíveis preconceitos de quem o escreve, é que esta criança foi abandonada pela mãe, que a descuidou grave e sistematicamente, e que o casal que a acolheu a tratou bem e que a criança os amava como pai e mãe. Como é possível que um especialista da lei não saiba ler esta história que, se fosse um conto, qualquer criança de seis anos perceberia? Como é possível que, em vez de justiça, este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres e a condenar crianças a cumprir as penas que apenas os juízes deveriam cumprir? Jornalista (jvm@publico.pt)
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2009
Crónica xxx/2009
Como é possível que este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres?
Não é preciso ser perito em fruticultura para saber o que é uma maçã podre. Quando damos uma dentada numa maçã podre, mesmo que um grupo de doutores em ciências agrárias nos tente provar que aquela maçã está sã como um pêro, nós sabemos que não está.
Os peritos em fruticultura não sabem melhor do que nós o que é uma maçã podre. A grande diferença é que eles sabem (ou esperamos que saibam) como é que se faz para produzir maçãs de primeira classe.
Da mesma forma, não é preciso ser um especialista em Direito ou um profundo conhecedor do funcionamento do sistema judicial para saber o que é a justiça. É como com as maçãs: podemos não saber como se cultivam aquelas maçãs rijas e aromáticas, mas quando vemos uma maçã podre... sabemos de ciência certa que está podre. Não vale a pena tentar disfarçar.
O problema com a chamada Justiça (a maiúscula é para sublinhar a diferença com a comum justiça) em Portugal é que produz demasiadas maçãs podres. Há quem continue a dizer que o nosso sistema judicial "atravessa uma crise" mas que "a Justiça funciona". Nenhuma das frases é correcta. Se a Justiça estivesse a atravessar uma crise, isso seria uma excelente notícia. O problema é que está parada no meio da crise e já criou raízes.
Os exemplos são inúmeros, dos grandes casos aos pequenos. Nos grandes, as coisas arrastam-se e vão-se complicando à medida que os processos se arrastam - em vez de se esclarecerem, como parece que deveria ser a função do sistema -, tornando qualquer perspectiva impossivelmente obscura. Nos pequenos casos, percebemos melhor que não percebemos nada. Um velho advogado dizia-me há anos que, em Portugal, era impossível prever o desfecho de um processo: já tinha visto imensas pessoas limpidamente inocentes ser condenadas e grandes e óbvios gabirus inocentados. Mas acrescentava (para me descansar, suponho) que não era tudo exactamente ao contrário do que devia ser, que às vezes o sistema funcionava: era mais como deitar uma moeda ao ar.
O que é curioso é que muitos dos responsáveis pela administração da justiça em Portugal partilham esta visão catastrófica em privado - ainda que não a admitam em público. Uma hipocrisia que não é de molde a descansar ninguém.
O último episódio desta farsa em contínuo foi a retirada da menina de Barcelos, Alexandra T., da tutela do casal que a cuidava desde os 17 meses e a sua entrega à mãe biológica que a levou para a Rússia. O juiz da Relação de Guimarães já concedeu que pode não ter feito a escolha mais acertada, mas escudou-se com "os factos constantes do processo", que não permitiriam outra interpretação. E isso é que é espantoso, porque "os factos constantes do processo", se dizem alguma coisa, por trás do português canhestro que se usa nos tribunais e dos visíveis preconceitos de quem o escreve, é que esta criança foi abandonada pela mãe, que a descuidou grave e sistematicamente, e que o casal que a acolheu a tratou bem e que a criança os amava como pai e mãe. Como é possível que um especialista da lei não saiba ler esta história que, se fosse um conto, qualquer criança de seis anos perceberia? Como é possível que, em vez de justiça, este arrogante e ignorante sistema de "Justiça" continue a produzir tantas maçãs podres e a condenar crianças a cumprir as penas que apenas os juízes deveriam cumprir? Jornalista (jvm@publico.pt)
terça-feira, dezembro 12, 2006
Poder às mulheres
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
terça-feira, setembro 27, 2005
Crianças à espera
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Setembro de 2005
Crónica 27/2005
Na adopção em Portugal está tudo na mesma. As crianças continuam à espera.
Os números foram publicados na semana passada, em comemoração do segundo aniversário da nova Lei da Adopção, mas vale a pena repeti-los.
Em Portugal há 15.455 menores a viver em instituições. Não se trata de uma criança sem família, mas de muitos milhares de pequenas vidas que se interrogam por que razão não têm pais que lhes peguem ao colo, em cujos braços possam adormecer, pais que lhes possam oferecer segurança e a certeza da ternura, como elas sabem que acontece com outros meninos.
Dos 15.455, nem todos são crianças, mas todos esperam (ou desistiram de esperar) um dia ter uma família sua, conhecer o seu cuidado e o seu carinho. A sociedade tem para com estes menores a maior das dívidas. Deve-lhes a vida cheia e feliz que se comprometeu a tentar proporcionar-lhes quando as colocou numa instituição.
Mais impressionante do que o número em si é o facto de, depois de casos dramáticos que chamaram a atenção para o descuido a que está entregue a infância em Portugal, depois de se ter accionado todos os alarmes e de se ter colocado a adopção na lista das prioridades nacionais, a situação não ter melhorado.
A nova Lei da Adopção alterou questões administrativas mas, como quase sempre acontece em Portugal, não mudou nada de substantivo. Em 2003, foram colocadas em famílias adoptantes 372 crianças; em 2004, foram 382 crianças; no primeiro semestre de 2005 foram 165.
Os processos de adopção não estão a andar mais depressa, a nova lei não tornou as adopções mais céleres. Está tudo na mesma e as crianças continuam à espera.
A selecção de candidatos, que a nova lei deveria ter agilizado, continua a arrastar os pés: a lei diz que esta fase só pode levar seis meses. Mas há casais que fizeram o seu pedido em 2002 e que continuam sem saber se os aceitaram como candidatos a adoptantes. O facto é tanto mais inaceitável quanto se sabe que o processo de selecção envolve algumas entrevistas e recolha de dados que não levam mais do que alguns dias.
Uma dos trunfos da nova lei era o facto de a adopção deixar de ter uma base regional para ser nacional. Até então, na prática, cada região funcionava em circuito fechado – o que significava que uma criança da Guarda podia não ser adoptada por falta de candidatos, apesar de eles existirem nos Açores. Para tornar nacional o âmbito da adopção é necessário criar uma base de dados nacional. Hoje, dois anos depois da lei, a base de dados continua sem existir e as desculpas para a sua não existência são tão esfarrapadas que fazem dó.
Uma delas é o facto de a Comissão Nacional de Protecção de Dados não permitir a inclusão de dados sobre a etnia da criança, que os técnicos (e muitos candidatos a pais) consideram essencial. É evidente que a base de dados pode avançar e que essa questão (e outras) pode ser dirimida “a posteriori”.
Finalmente, continua sem se abordar um dos problemas centrais da adopção – que está na raiz do número reduzido de crianças adoptáveis entre as 15.455 que vivem nas instituições – e que a nova Lei não resolve: o facto de muitos juízes continuarem a despachar a tutela de crianças com base nas suas convicções religiosas ou ideológicas e a ordenar a sua reinserção na família biológica (ou definindo prazos de espera até que essa reinserção seja possível) mesmo quando todos os técnicos envolvidos na questão, que conhecem a criança e a família, aconselham o contrário. Também esta situação é intolerável.
Resolver os atrasos na adopção é possível. Há certamente sobre esta questão algum consenso social. Resolver o problema da actuação de certos juízes também o é – se não através do próprio poder judicial, avesso a controlos de qualidade, pelo menos através do legislativo. É possível definir critérios legais que tornam definitiva a perda de direitos dos pais biológicos em certas circunstâncias (a tentativa de infanticídio não será uma boa razão?).
Será que, por uma vez, podemos tentar resolver de facto um problema? Se isto não é importante e urgente, o que será?
Texto publicado no jornal Público a 27 de Setembro de 2005
Crónica 27/2005
Na adopção em Portugal está tudo na mesma. As crianças continuam à espera.
Os números foram publicados na semana passada, em comemoração do segundo aniversário da nova Lei da Adopção, mas vale a pena repeti-los.
Em Portugal há 15.455 menores a viver em instituições. Não se trata de uma criança sem família, mas de muitos milhares de pequenas vidas que se interrogam por que razão não têm pais que lhes peguem ao colo, em cujos braços possam adormecer, pais que lhes possam oferecer segurança e a certeza da ternura, como elas sabem que acontece com outros meninos.
Dos 15.455, nem todos são crianças, mas todos esperam (ou desistiram de esperar) um dia ter uma família sua, conhecer o seu cuidado e o seu carinho. A sociedade tem para com estes menores a maior das dívidas. Deve-lhes a vida cheia e feliz que se comprometeu a tentar proporcionar-lhes quando as colocou numa instituição.
Mais impressionante do que o número em si é o facto de, depois de casos dramáticos que chamaram a atenção para o descuido a que está entregue a infância em Portugal, depois de se ter accionado todos os alarmes e de se ter colocado a adopção na lista das prioridades nacionais, a situação não ter melhorado.
A nova Lei da Adopção alterou questões administrativas mas, como quase sempre acontece em Portugal, não mudou nada de substantivo. Em 2003, foram colocadas em famílias adoptantes 372 crianças; em 2004, foram 382 crianças; no primeiro semestre de 2005 foram 165.
Os processos de adopção não estão a andar mais depressa, a nova lei não tornou as adopções mais céleres. Está tudo na mesma e as crianças continuam à espera.
A selecção de candidatos, que a nova lei deveria ter agilizado, continua a arrastar os pés: a lei diz que esta fase só pode levar seis meses. Mas há casais que fizeram o seu pedido em 2002 e que continuam sem saber se os aceitaram como candidatos a adoptantes. O facto é tanto mais inaceitável quanto se sabe que o processo de selecção envolve algumas entrevistas e recolha de dados que não levam mais do que alguns dias.
Uma dos trunfos da nova lei era o facto de a adopção deixar de ter uma base regional para ser nacional. Até então, na prática, cada região funcionava em circuito fechado – o que significava que uma criança da Guarda podia não ser adoptada por falta de candidatos, apesar de eles existirem nos Açores. Para tornar nacional o âmbito da adopção é necessário criar uma base de dados nacional. Hoje, dois anos depois da lei, a base de dados continua sem existir e as desculpas para a sua não existência são tão esfarrapadas que fazem dó.
Uma delas é o facto de a Comissão Nacional de Protecção de Dados não permitir a inclusão de dados sobre a etnia da criança, que os técnicos (e muitos candidatos a pais) consideram essencial. É evidente que a base de dados pode avançar e que essa questão (e outras) pode ser dirimida “a posteriori”.
Finalmente, continua sem se abordar um dos problemas centrais da adopção – que está na raiz do número reduzido de crianças adoptáveis entre as 15.455 que vivem nas instituições – e que a nova Lei não resolve: o facto de muitos juízes continuarem a despachar a tutela de crianças com base nas suas convicções religiosas ou ideológicas e a ordenar a sua reinserção na família biológica (ou definindo prazos de espera até que essa reinserção seja possível) mesmo quando todos os técnicos envolvidos na questão, que conhecem a criança e a família, aconselham o contrário. Também esta situação é intolerável.
Resolver os atrasos na adopção é possível. Há certamente sobre esta questão algum consenso social. Resolver o problema da actuação de certos juízes também o é – se não através do próprio poder judicial, avesso a controlos de qualidade, pelo menos através do legislativo. É possível definir critérios legais que tornam definitiva a perda de direitos dos pais biológicos em certas circunstâncias (a tentativa de infanticídio não será uma boa razão?).
Será que, por uma vez, podemos tentar resolver de facto um problema? Se isto não é importante e urgente, o que será?
terça-feira, julho 26, 2005
Não tem nada que enganar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Julho de 2005
Crónica 23/2005
Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Empurro o carrinho de bebé pelo passeio, em direcção à entrada do Hospital de D. Estefânia, o hospital pediátrico central, em Lisboa.
Frente ao portão do hospital o passeio interrompe-se para dar lugar à entrada de carros. Procuro uma entrada de peões, onde o carrinho possa passar em segurança. Não a vejo e pergunto a um dos seguranças onde é a entrada dos peões. “É aqui!”, responde-me com o ar enfastiado de quem declara o óbvio. Desço do passeio para a faixa de rodagem mas há um carro que vem a sair. O carro estaca à frente do carrinho e a condutora faz-me um gesto para que eu passe à frente. Prefiro recuar para a segurança do passeio e deixá-la passar. Já não há carros, posso entrar com o carrinho de bebé, asfalto fora, como qualquer veículo motorizado que se preze. À minha frente, o edifício central do hospital, tem uma faixa a toda a largura: “Hospital com acreditação Internacional (Health Quality Service)”.
À frente do edifício há uma placa onde se lê “Hospital Pediátrico” e uma lista de departamentos. Também lá está o que eu procuro: ORL. A entrada está vazia. Não há quaisquer orientações para os utentes. À esquerda uma sala com um dístico minúsculo na porta: “Gabinete de Comunicação”. Uma senhora sentada a uma secretária diz-me onde devo ir: “O senhor sai, vira à esquerda, depois segue sempre em frente, passa uns edifícios mas segue sempre em frente, até mesmo ao fundo da rua. É o edifício mesmo lá ao fundo.” Não tenho a certeza de perceber tudo.
“Bom, depois deve estar indicado, não é?” A senhora abre os olhos: “Não sei... Mas não tem nada que enganar.”
À guisa de despedida pergunto porque é que não põem um mapa com essas informações. A senhora sorri e volta a encolher os ombros. Suspeito que a acreditação internacional não se preocupou com ninharias como a informação dos utentes. De qualquer forma, não tem nada que enganar. Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Sigo as indicações. Passo por uma seta que aponta a “Cozinha Geral” e outra que indica a “Central de Impressão” (certamente os dois destinos mais procurados pelos visitantes do hospital) mas nenhuma que indique as consultas de ORL (ou quaisquer outras, aliás). Ao fundo, entre as árvores, o edifício da consulta de ORL.
Entro, apresento os papéis na recepção. “A consulta é no primeiro andar.” “Onde é o elevador?” “Elevador? Não há. Por acaso até instalaram um há uns tempos mas não funciona.” A funcionária aponta para a escada com uma plataforma elevadora, das que funcionam ao longo de um carril.
Mas o edifício, de dois andares, não tem elevador? Não. Afinal é só um hospital pediátrico, é fácil levar as crianças ao colo. Não é tão grave como se se tivesse de pegar em adultos ao colo, não vale a pena dramatizar. Agarro no carrinho com bebé a bordo e subo as escadas.
Tento consolar-me: se este hospital tem uma acreditação internacional da área da saúde isso deve querer dizer que a qualidade dos seus cuidados de saúde compensa os pequenos desconfortos. Mas não posso deixar de pensar que, se estes desconfortos existem é porque ninguém esteve para se chatear, desde o arquitecto que desenhou o edifício pediátrico sem elevador aos que o construíram, dos que o encomendaram e lhe pagaram, até aos médicos, aos funcionários e aos utentes que o usam. Não tem nada que enganar.
Texto publicado no jornal Público a 26 de Julho de 2005
Crónica 23/2005
Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Empurro o carrinho de bebé pelo passeio, em direcção à entrada do Hospital de D. Estefânia, o hospital pediátrico central, em Lisboa.
Frente ao portão do hospital o passeio interrompe-se para dar lugar à entrada de carros. Procuro uma entrada de peões, onde o carrinho possa passar em segurança. Não a vejo e pergunto a um dos seguranças onde é a entrada dos peões. “É aqui!”, responde-me com o ar enfastiado de quem declara o óbvio. Desço do passeio para a faixa de rodagem mas há um carro que vem a sair. O carro estaca à frente do carrinho e a condutora faz-me um gesto para que eu passe à frente. Prefiro recuar para a segurança do passeio e deixá-la passar. Já não há carros, posso entrar com o carrinho de bebé, asfalto fora, como qualquer veículo motorizado que se preze. À minha frente, o edifício central do hospital, tem uma faixa a toda a largura: “Hospital com acreditação Internacional (Health Quality Service)”.
À frente do edifício há uma placa onde se lê “Hospital Pediátrico” e uma lista de departamentos. Também lá está o que eu procuro: ORL. A entrada está vazia. Não há quaisquer orientações para os utentes. À esquerda uma sala com um dístico minúsculo na porta: “Gabinete de Comunicação”. Uma senhora sentada a uma secretária diz-me onde devo ir: “O senhor sai, vira à esquerda, depois segue sempre em frente, passa uns edifícios mas segue sempre em frente, até mesmo ao fundo da rua. É o edifício mesmo lá ao fundo.” Não tenho a certeza de perceber tudo.
“Bom, depois deve estar indicado, não é?” A senhora abre os olhos: “Não sei... Mas não tem nada que enganar.”
À guisa de despedida pergunto porque é que não põem um mapa com essas informações. A senhora sorri e volta a encolher os ombros. Suspeito que a acreditação internacional não se preocupou com ninharias como a informação dos utentes. De qualquer forma, não tem nada que enganar. Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Sigo as indicações. Passo por uma seta que aponta a “Cozinha Geral” e outra que indica a “Central de Impressão” (certamente os dois destinos mais procurados pelos visitantes do hospital) mas nenhuma que indique as consultas de ORL (ou quaisquer outras, aliás). Ao fundo, entre as árvores, o edifício da consulta de ORL.
Entro, apresento os papéis na recepção. “A consulta é no primeiro andar.” “Onde é o elevador?” “Elevador? Não há. Por acaso até instalaram um há uns tempos mas não funciona.” A funcionária aponta para a escada com uma plataforma elevadora, das que funcionam ao longo de um carril.
Mas o edifício, de dois andares, não tem elevador? Não. Afinal é só um hospital pediátrico, é fácil levar as crianças ao colo. Não é tão grave como se se tivesse de pegar em adultos ao colo, não vale a pena dramatizar. Agarro no carrinho com bebé a bordo e subo as escadas.
Tento consolar-me: se este hospital tem uma acreditação internacional da área da saúde isso deve querer dizer que a qualidade dos seus cuidados de saúde compensa os pequenos desconfortos. Mas não posso deixar de pensar que, se estes desconfortos existem é porque ninguém esteve para se chatear, desde o arquitecto que desenhou o edifício pediátrico sem elevador aos que o construíram, dos que o encomendaram e lhe pagaram, até aos médicos, aos funcionários e aos utentes que o usam. Não tem nada que enganar.
terça-feira, maio 10, 2005
Vanessa
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Maio de 2005
Crónica 15/2005
As instituições, os técnicos e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente.
No momento em que a pequena Vanessa, de cinco anos, estava a ser objecto dos maus-tratos que passados três dias iriam provocar a sua morte, o Instituto de Reinserção Social do Ministério da Justiça produzia um relatório onde se propunha a entrega da criança aos cuidados da sua avó paterna.
Contada assim, a história parece um caso de um atraso trágico, de uma intervenção que podia ter salvo uma criança em perigo mas que chegou tarde de mais. O puro terror emerge quando se sabe que a avó a quem as autoridades se preparavam para entregar a Vanessa terá sido, juntamente com o pai da criança, a autora dos maus-tratos que a vitimaram.
Perante este horror indizível é impossível evitar uma reacção visceral de raiva e tristeza e revolta. Mas quando se constata que este caso é apenas mais um, depois do da Joana, do da Catarina, do de tantas outras crianças, maltratadas e mortas pelo pai, pela mãe, pela madrasta ou pelo padrasto, é evidente que temos de perguntar o que se passa. O que se passa com as famílias mas também com as instituições que têm por dever proteger estas crianças e que falham de forma tão flagrante.
Os responsáveis das Comissões de Protecção das Crianças e Jovens em Risco dizem que compreendem a consternação do público mas que as instituições não podem servir de bode expiatório, que fazem tudo o que devem, se não mesmo tudo o que podem. Mas não é assim.
As instituições que deviam proteger as crianças falham miseravelmente. Os técnicos falham miseravelmente e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente. Como é possível que estejam a fazer o que devem se isso não é suficiente?
Não se trata de encontrar bodes expiatórios, trata-se de identificar erros, de evitar que estes crimes se repitam. E a verdade é que esses erros (muitos, pelo menos) são evidentes a posteriori.
O que não é tolerável é que a história se repita e mais uma criança, hoje, amanhã, passe pelo horror e pela morte, quando uma intervenção a pode salvar. Porque estas não são histórias onde pessoas agridem crianças sem que nada o pudesse prever, na sequência de um ataque de loucura. São casos de agressões permanentes, em ambientes onde se manifestam todos os sinais de alarme possíveis.
O caso da Vanessa esteve três anos nos tribunais. Mas a decisão final sobre o seu destino ia ser tomada sem que o mesmo tribunal soubesse sequer com quem a criança tinha vivido durante cinco anos. Como é isto possível? Como é que é tomada uma decisão sobre uma criança de quase seis anos sem saber de quem ela gosta, sem lhe perguntar com quem quereria viver, sem saber que a criança estava pronta a morrer só para dizer que gostava mais da “mãe Rosa”? Como é possível que o tribunal tenha andado três anos à procura dos pais da Vanessa e tenha achado isso mais importante do que a própria Vanessa? Não era o seu próprio desaparecimento sinal de abandono da criança?
Há uma resposta que é evidente, neste caso e em muitos outros: os tribunais, que deveriam preocupar-se com a protecção das crianças, privilegiam de forma irracional e imoral a família biológica.
A verdade é que a lei determina o primado do direito da criança mas os nossos juízes continuam a procurar pais fugitivos durante anos e, quando os encontram, a tentar convencê-los por todas as formas possíveis a receber as crianças que abandonaram, que espancaram, que violaram, para poder dizer no altar de alguma ambígua divindade que reuniram uma família. E isto tantas vezes contra a opinião dos assistentes sociais, dos psicólogos, dos médicos e professores que conhecem as crianças e o seu meio.
Quanto sangue tem de correr antes que os juízes compreendam que o sangue não dá garantias? Não lêem as estatísticas? Não sabem que os abusos, os maus-tratos de crianças, as violações, os assassinatos acontecem mais na família que fora dela? Durante quanto tempo vamos continuar a sacrificar o interesse e a vida de crianças a estas caricaturas de famílias?
Durante quanto tempo vamos continuar a proteger os pais biológicos das crianças, mesmo depois de estes terem provado a sua falta de condições humanas para se ocuparem de uma criança, mesmo depois de estes terem provado o seu desinteresse quando não a sua crueldade?
Durante quanto tempo vão os tribunais manter crianças a viver em instituições (há mais de dez mil crianças a viver assim em Portugal) em vez de as entregar às famílias que as querem adoptar e as esperam do lado de fora? Durante quanto tempo vamos andar a consumir a felicidade das crianças em cartas registadas a endereços que já não existem, à procura de familiares que não querem saber para tentar localizar um pai ou uma mãe que quer saber ainda menos?
Enquanto o fizermos, os olhos da Vanessa, da Catarina, da Joana, vão continuar a encarar-nos com esse misto de surpresa e alegria triste com que nos olham das fotografias, mas nós sabemos que o seu olhar é de acusação.
Texto publicado no jornal Público a 10 de Maio de 2005
Crónica 15/2005
As instituições, os técnicos e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente.
No momento em que a pequena Vanessa, de cinco anos, estava a ser objecto dos maus-tratos que passados três dias iriam provocar a sua morte, o Instituto de Reinserção Social do Ministério da Justiça produzia um relatório onde se propunha a entrega da criança aos cuidados da sua avó paterna.
Contada assim, a história parece um caso de um atraso trágico, de uma intervenção que podia ter salvo uma criança em perigo mas que chegou tarde de mais. O puro terror emerge quando se sabe que a avó a quem as autoridades se preparavam para entregar a Vanessa terá sido, juntamente com o pai da criança, a autora dos maus-tratos que a vitimaram.
Perante este horror indizível é impossível evitar uma reacção visceral de raiva e tristeza e revolta. Mas quando se constata que este caso é apenas mais um, depois do da Joana, do da Catarina, do de tantas outras crianças, maltratadas e mortas pelo pai, pela mãe, pela madrasta ou pelo padrasto, é evidente que temos de perguntar o que se passa. O que se passa com as famílias mas também com as instituições que têm por dever proteger estas crianças e que falham de forma tão flagrante.
Os responsáveis das Comissões de Protecção das Crianças e Jovens em Risco dizem que compreendem a consternação do público mas que as instituições não podem servir de bode expiatório, que fazem tudo o que devem, se não mesmo tudo o que podem. Mas não é assim.
As instituições que deviam proteger as crianças falham miseravelmente. Os técnicos falham miseravelmente e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente. Como é possível que estejam a fazer o que devem se isso não é suficiente?
Não se trata de encontrar bodes expiatórios, trata-se de identificar erros, de evitar que estes crimes se repitam. E a verdade é que esses erros (muitos, pelo menos) são evidentes a posteriori.
O que não é tolerável é que a história se repita e mais uma criança, hoje, amanhã, passe pelo horror e pela morte, quando uma intervenção a pode salvar. Porque estas não são histórias onde pessoas agridem crianças sem que nada o pudesse prever, na sequência de um ataque de loucura. São casos de agressões permanentes, em ambientes onde se manifestam todos os sinais de alarme possíveis.
O caso da Vanessa esteve três anos nos tribunais. Mas a decisão final sobre o seu destino ia ser tomada sem que o mesmo tribunal soubesse sequer com quem a criança tinha vivido durante cinco anos. Como é isto possível? Como é que é tomada uma decisão sobre uma criança de quase seis anos sem saber de quem ela gosta, sem lhe perguntar com quem quereria viver, sem saber que a criança estava pronta a morrer só para dizer que gostava mais da “mãe Rosa”? Como é possível que o tribunal tenha andado três anos à procura dos pais da Vanessa e tenha achado isso mais importante do que a própria Vanessa? Não era o seu próprio desaparecimento sinal de abandono da criança?
Há uma resposta que é evidente, neste caso e em muitos outros: os tribunais, que deveriam preocupar-se com a protecção das crianças, privilegiam de forma irracional e imoral a família biológica.
A verdade é que a lei determina o primado do direito da criança mas os nossos juízes continuam a procurar pais fugitivos durante anos e, quando os encontram, a tentar convencê-los por todas as formas possíveis a receber as crianças que abandonaram, que espancaram, que violaram, para poder dizer no altar de alguma ambígua divindade que reuniram uma família. E isto tantas vezes contra a opinião dos assistentes sociais, dos psicólogos, dos médicos e professores que conhecem as crianças e o seu meio.
Quanto sangue tem de correr antes que os juízes compreendam que o sangue não dá garantias? Não lêem as estatísticas? Não sabem que os abusos, os maus-tratos de crianças, as violações, os assassinatos acontecem mais na família que fora dela? Durante quanto tempo vamos continuar a sacrificar o interesse e a vida de crianças a estas caricaturas de famílias?
Durante quanto tempo vamos continuar a proteger os pais biológicos das crianças, mesmo depois de estes terem provado a sua falta de condições humanas para se ocuparem de uma criança, mesmo depois de estes terem provado o seu desinteresse quando não a sua crueldade?
Durante quanto tempo vão os tribunais manter crianças a viver em instituições (há mais de dez mil crianças a viver assim em Portugal) em vez de as entregar às famílias que as querem adoptar e as esperam do lado de fora? Durante quanto tempo vamos andar a consumir a felicidade das crianças em cartas registadas a endereços que já não existem, à procura de familiares que não querem saber para tentar localizar um pai ou uma mãe que quer saber ainda menos?
Enquanto o fizermos, os olhos da Vanessa, da Catarina, da Joana, vão continuar a encarar-nos com esse misto de surpresa e alegria triste com que nos olham das fotografias, mas nós sabemos que o seu olhar é de acusação.
terça-feira, janeiro 06, 2004
Dar e receber
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2004
Crónica 1/2004
É preciso alterar os hábitos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra.
O Natal voltou mais uma vez a trazer, apesar de todas as crises, a habitual avalanche de brinquedos, bonecos, jogos e passatempos, que lançámos diligentemente sobre as nossas crianças e que ajudámos a lançar sobre as crianças dos outros.
A prova disso não vem só da experiência limitada que podemos ter das árvores de Natal e dos quartos de brinquedos da nossa família e amigos (ainda que ela, só por si, possa ser suficientemente convincente) mas do ambiente dos centros comercias e hipermercados e das intensas campanhas de publicidade destinadas às crianças que por esta época invadem as televisões.
Que um excesso de brinquedos — ou de qualquer outra coisa — não traz quaisquer benefícios às crianças já se sabe. E parece até provável que tenha alguns inconvenientes — porque a quantidade acaba por desvalorizar o objecto e acaba por gerar desinteresse e desperdício, porque esse desperdício se torna um hábito, porque as crianças não dedicam o tempo suficiente a cada jogo para o descobrir e se envolver com ele. Para mais, a ênfase no brinquedo industrial e a adesão às campanhas de acumulação ou da sua eterna substituição pelos modelos mais recentes ou mais evoluídos e pelos últimos acessórios acaba por dar origem a relações superficiais com os brinquedos que não têm nem riqueza emocional, nem conteúdo pedagógico, nem fornecem o estímulo do imaginário com que desculpamos a nossa prodigalidade. Claro que há brinquedos e brinquedos e que ter vinte livros não é a mesma coisa que ter vinte Barbies, mas o facto é que com frequência enterramos as nossas crianças num mundo de superabundância que sabemos que não pode promover nada de bom.
Pode dizer-se que este panorama descreve na realidade o mundo dos ricos e que existem inúmeras crianças para quem nada disto é assim — e isso é verdade. Mas é também verdade que, devido à necessidade de alargamento do mercado infantil e à redução dos custos industriais, o número de crianças para quem isto é assim é cada vez maior, pelo menos no mundo industrializado (sendo que, para maior ironia, isso às vezes acontece graças ao trabalho infantil de outra zona do mundo).
Como gerir este excesso? A primeira resposta é que é necessário alterar alguns hábitos quase obscenos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra — e que transcendem qualquer ideal religioso.
Outra ordem de resposta, de índole mais prática, é que é possível aprender a transformar o influxo de presentes num programa de verdadeira troca — ensinando as crianças a oferecer os brinquedos com que já não brincam a crianças que deles precisam. Se é verdade que existem em Lisboa instituições de solidariedade social que recebem tantos brinquedos de doadores que são obrigados a recusar alguns, é verdade que há instituições menos afortunadas, na província e noutras regiões do mundo.
Se conseguirmos transformar o Natal num momento do ano em que oferecemos aos nossos filhos o prazer de dar (dar verdadeiramente, algo que é seu) a alguém a quem a prenda pode proporcionar alguma felicidade, ter-lhes-emos dado o melhor que é possível oferecer.
Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2004
Crónica 1/2004
É preciso alterar os hábitos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra.
O Natal voltou mais uma vez a trazer, apesar de todas as crises, a habitual avalanche de brinquedos, bonecos, jogos e passatempos, que lançámos diligentemente sobre as nossas crianças e que ajudámos a lançar sobre as crianças dos outros.
A prova disso não vem só da experiência limitada que podemos ter das árvores de Natal e dos quartos de brinquedos da nossa família e amigos (ainda que ela, só por si, possa ser suficientemente convincente) mas do ambiente dos centros comercias e hipermercados e das intensas campanhas de publicidade destinadas às crianças que por esta época invadem as televisões.
Que um excesso de brinquedos — ou de qualquer outra coisa — não traz quaisquer benefícios às crianças já se sabe. E parece até provável que tenha alguns inconvenientes — porque a quantidade acaba por desvalorizar o objecto e acaba por gerar desinteresse e desperdício, porque esse desperdício se torna um hábito, porque as crianças não dedicam o tempo suficiente a cada jogo para o descobrir e se envolver com ele. Para mais, a ênfase no brinquedo industrial e a adesão às campanhas de acumulação ou da sua eterna substituição pelos modelos mais recentes ou mais evoluídos e pelos últimos acessórios acaba por dar origem a relações superficiais com os brinquedos que não têm nem riqueza emocional, nem conteúdo pedagógico, nem fornecem o estímulo do imaginário com que desculpamos a nossa prodigalidade. Claro que há brinquedos e brinquedos e que ter vinte livros não é a mesma coisa que ter vinte Barbies, mas o facto é que com frequência enterramos as nossas crianças num mundo de superabundância que sabemos que não pode promover nada de bom.
Pode dizer-se que este panorama descreve na realidade o mundo dos ricos e que existem inúmeras crianças para quem nada disto é assim — e isso é verdade. Mas é também verdade que, devido à necessidade de alargamento do mercado infantil e à redução dos custos industriais, o número de crianças para quem isto é assim é cada vez maior, pelo menos no mundo industrializado (sendo que, para maior ironia, isso às vezes acontece graças ao trabalho infantil de outra zona do mundo).
Como gerir este excesso? A primeira resposta é que é necessário alterar alguns hábitos quase obscenos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra — e que transcendem qualquer ideal religioso.
Outra ordem de resposta, de índole mais prática, é que é possível aprender a transformar o influxo de presentes num programa de verdadeira troca — ensinando as crianças a oferecer os brinquedos com que já não brincam a crianças que deles precisam. Se é verdade que existem em Lisboa instituições de solidariedade social que recebem tantos brinquedos de doadores que são obrigados a recusar alguns, é verdade que há instituições menos afortunadas, na província e noutras regiões do mundo.
Se conseguirmos transformar o Natal num momento do ano em que oferecemos aos nossos filhos o prazer de dar (dar verdadeiramente, algo que é seu) a alguém a quem a prenda pode proporcionar alguma felicidade, ter-lhes-emos dado o melhor que é possível oferecer.
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