Por José Vítor Malheiros
Apresentação do boletim de vacinação ou da declaração da oposição dos pais à vacina deveria ser obrigatória no acto de matrícula escolar.
21 Abr 2017 - Crónica no Jornal Económico/3
Entre 1987 e 1989 ocorreram em Portugal 12 mil casos de sarampo, 30 dos quais mortais. Em 2016, a OMS declarou a doença erradicada em Portugal.
A razão da erradicação da doença? A generalização da vacina gratuita e a sua inclusão no Programa Nacional de Vacinação.
Na passada quarta-feira, morreu uma adolescente com sarampo internada num hospital de Lisboa. E os dados da Direcção-Geral de Saúde indicam que houve, nos primeiros quatro meses de 2017, mais casos de sarampo em Portugal (23 casos confirmados) que nos dez anos anteriores. O panorama é semelhante noutros países.
A razão do regresso da doença? A ausência de vacinação causada pelo desleixo ou ignorância dos pais e por um movimento crescente de pessoas que são contra a vacinação (a do sarampo e a vacinação em geral) por considerarem que ela é perigosa ou desnecessária. Uma das principais razões da oposição destes pais à vacinação dos seus filhos é um falso artigo científico publicado em 1998 na prestigiada revista médica The Lancet por um médico britânico, Andrew Wakefield, onde este declarava que a vacina tríplice que tantos de nós tomámos na infância (contra o sarampo, papeira e rubéola) causava autismo. O artigo era comprovadamente fraudulento e foi retirado pela revista, mas continua hoje a ser citado como verdadeiro por muitos dos críticos das vacinas.
O reaparecimento do sarampo e o receio de que a mesma coisa possa acontecer com outras doenças actualmente erradicadas graças à vacinação fez reaparecer o debate sobre a necessidade e a legitimidade de tornar a vacinação obrigatória (não o é em Portugal) com oponentes da obrigatoriedade a invocar o argumento da liberdade individual e os seus defensores a invocar a defesa da saúde pública e o dever da sociedade de proteger as crianças da negligência ou ignorância dos pais.
Não tenho dúvidas sobre a legitimidade do recurso à obrigatoriedade da vacinação (ou “quase obrigatoriedade”, através da sua exigência para efeitos de frequência da escola pública e outros serviços), pelas razões referidas, que são as mesmas que nos levam a decretar outras medidas compulsivas de protecção das crianças, mesmo contra a vontade dos pais. No entanto, antes de chegar a esse ponto, penso que é razoável explorar o modelo actual de não obrigatoriedade, que se tem revelado eficaz e não levanta qualquer dúvida quanto à sua legitimidade.
É necessário no entanto que o modelo seja de facto reforçado, com mais informação disponibilizada aos pais e à população e com, por exemplo, a real obrigatoriedade de apresentação do boletim de vacinação ou da declaração da oposição dos pais à vacina no acto de matrícula escolar.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
Link para o artigo no site do Jornal Económico: http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/vacinacao-obrigar-ou-pressionar-148984
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sexta-feira, abril 21, 2017
terça-feira, junho 02, 2015
A solução fácil: matar o mensageiro
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2015
Crónica 21/2015
Os hospitais merecem melhores dirigentes e as universidades também.
Ninguém gosta de trabalhar numa organização que é acusada de ser sede de actos de corrupção, ainda que sejam “de pequena escala”. Menos ainda quando se diz que esses actos não são esporádicos, mas, pelo contrário, “permeiam toda a instituição”. É natural. Mas, quando surgem acusações desse tipo à luz do dia, seria também natural que os dirigentes da instituição em causa tentassem averiguar da sua veracidade e recolher o máximo de informação, para poder confirmar ou desmentir a acusação e resolver os problemas detectados.
Não foi essa a atitude que entendeu ter o conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, de que fazem parte os hospitais Pulido Valente e Santa Maria, quando, na semana passada, foram publicadas notícias sobre um estudo realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos que punha em causa o funcionamento do Hospital de Santa Maria e o acusava de ser palco de actos do género e de estar sob a influência de “uma teia de lealdades ideológicas associadas a partidos políticos, a lojas maçónicas e a organizações católicas”.
O conselho de administração, pela boca do seu presidente, Carlos Martins, disse aos media ter recebido estas notícias com "surpresa e indignação" e esclareceu que não descartava a hipótese de processar a Fundação Francisco Manuel dos Santos pelo teor do estudo, da autoria dos investigadores Alejandro Portes, da Universidade de Princeton, e M. Margarida Marques, da Universidade Nova de Lisboa.
Carlos Martins lamentou que “se coloque em causa, perante um país, uma instituição com 60 anos", como se a idade de uma organização a devesse de alguma forma isentar de escrutínio ou lhe concedesse qualquer tipo de privilégio, e terminou insinuando que as críticas ao hospital pelo qual é responsável se poderiam inserir numa campanha política devida ao “momento politicamente mais quente que o normal” que vivemos neste ano de eleições ou a uma campanha interna devido às eleições para a direcção da Faculdade de Medicina.
O administrador poderia ter-nos dado algumas informações relevantes. Poderia ter-nos dito quantas queixas de corrupção ou de irregularidades foram investigadas e concluídas nos últimos anos, quantas sanções foram aplicadas e a quem, que tipo de procedimentos de controlo e auditoria foram adoptados nos últimos anos para os concursos de aquisição de equipamento, de promoção ou de contratação de pessoal e com que resultados, etc. Mas, sobre a matéria substantiva, o administrador preferiu nada dizer.
A referência aos 60 anos de vida do Santa Maria poderia ter algum sentido se, ao longo desse tempo de vida, a instituição tivesse sido regularmente submetida a rigorosas avaliações por entidades idóneas, sempre com excelentes resultados ao nível do desempenho clínico, financeiro e ético e este estudo viesse agora contradizer todos os anteriores. Aí, o administrador teria razão para se declarar surpreendido. Mas essa não é a realidade. Pelo contrário, o Hospital de Santa Maria sempre tem sido referido como estando envolvido numa teia de corrupção, pequena, média ou grande, que tem resistido a diferentes tentativas para a destruir. O Hospital de Santa Maria é aquele hospital que, há alguns anos, mereceu uma menção pública do ministro da Saúde a ameaças feitas à integridade física de um administrador e da sua família devido às suas tentativas para romper com essa teia de interesses e influências.
Mais: o anterior director clínico do hospital, Miguel Oliveira e Silva, demitiu-se há meses e apresentou queixas às autoridades (ainda não investigadas) devido a irregularidades na compra de material e na realização de obras no hospital. “Não estou surpreendido com as conclusões deste estudo”, foi o seu comentário.
Mais ainda: confrontado com as declarações constantes neste estudo, o bastonário da Ordem dos Médicos declarou: “Tenho dúvidas de que nos outros hospitais [a situação] seja substancialmente diferente.”
E mais ainda: Adalberto Campos Fernandes, que foi presidente do conselho de admnistração do Santa Maria até 2009, a quem foi pedido um comentário, quis apenas declarar-se “solidário com os 95% de trabalhadores da unidade” que considerou idóneos.
Ou seja: existem razões para considerar que a situação no Hospital de Santa Maria, apesar de poder ser melhor do que há dez anos, é ainda profundamente malsã, que existem ineficiências e injustiças no seu funcionamento, corrupção, privilégios de grupos e influências indevidas de interesses privados.
E é infeliz que, perante essas razões, o seu responsável máximo pretenda matar o mensageiro.
Finalmente, é igualmente infeliz que, perante a polémica, a Universidade Nova de Lisboa tenha querido vir a público afirmar que o “estudo é da exclusiva responsabilidade dos investigadores envolvidos e não reflete a posição institucional [daquela] universidade”. Por um lado, trata-se de declarar o óbvio. Mas quando uma universidade faz questão, à cautela, de se dessolidarizar de um investigador que pode ter pisados alguns calos, isso não diz bem do seu carácter. Os hospitais merecem melhores dirigentes e as universidades também.
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 2 de Junho de 2015
Crónica 21/2015
Os hospitais merecem melhores dirigentes e as universidades também.
Ninguém gosta de trabalhar numa organização que é acusada de ser sede de actos de corrupção, ainda que sejam “de pequena escala”. Menos ainda quando se diz que esses actos não são esporádicos, mas, pelo contrário, “permeiam toda a instituição”. É natural. Mas, quando surgem acusações desse tipo à luz do dia, seria também natural que os dirigentes da instituição em causa tentassem averiguar da sua veracidade e recolher o máximo de informação, para poder confirmar ou desmentir a acusação e resolver os problemas detectados.
Não foi essa a atitude que entendeu ter o conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, de que fazem parte os hospitais Pulido Valente e Santa Maria, quando, na semana passada, foram publicadas notícias sobre um estudo realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos que punha em causa o funcionamento do Hospital de Santa Maria e o acusava de ser palco de actos do género e de estar sob a influência de “uma teia de lealdades ideológicas associadas a partidos políticos, a lojas maçónicas e a organizações católicas”.
O conselho de administração, pela boca do seu presidente, Carlos Martins, disse aos media ter recebido estas notícias com "surpresa e indignação" e esclareceu que não descartava a hipótese de processar a Fundação Francisco Manuel dos Santos pelo teor do estudo, da autoria dos investigadores Alejandro Portes, da Universidade de Princeton, e M. Margarida Marques, da Universidade Nova de Lisboa.
Carlos Martins lamentou que “se coloque em causa, perante um país, uma instituição com 60 anos", como se a idade de uma organização a devesse de alguma forma isentar de escrutínio ou lhe concedesse qualquer tipo de privilégio, e terminou insinuando que as críticas ao hospital pelo qual é responsável se poderiam inserir numa campanha política devida ao “momento politicamente mais quente que o normal” que vivemos neste ano de eleições ou a uma campanha interna devido às eleições para a direcção da Faculdade de Medicina.
O administrador poderia ter-nos dado algumas informações relevantes. Poderia ter-nos dito quantas queixas de corrupção ou de irregularidades foram investigadas e concluídas nos últimos anos, quantas sanções foram aplicadas e a quem, que tipo de procedimentos de controlo e auditoria foram adoptados nos últimos anos para os concursos de aquisição de equipamento, de promoção ou de contratação de pessoal e com que resultados, etc. Mas, sobre a matéria substantiva, o administrador preferiu nada dizer.
A referência aos 60 anos de vida do Santa Maria poderia ter algum sentido se, ao longo desse tempo de vida, a instituição tivesse sido regularmente submetida a rigorosas avaliações por entidades idóneas, sempre com excelentes resultados ao nível do desempenho clínico, financeiro e ético e este estudo viesse agora contradizer todos os anteriores. Aí, o administrador teria razão para se declarar surpreendido. Mas essa não é a realidade. Pelo contrário, o Hospital de Santa Maria sempre tem sido referido como estando envolvido numa teia de corrupção, pequena, média ou grande, que tem resistido a diferentes tentativas para a destruir. O Hospital de Santa Maria é aquele hospital que, há alguns anos, mereceu uma menção pública do ministro da Saúde a ameaças feitas à integridade física de um administrador e da sua família devido às suas tentativas para romper com essa teia de interesses e influências.
Mais: o anterior director clínico do hospital, Miguel Oliveira e Silva, demitiu-se há meses e apresentou queixas às autoridades (ainda não investigadas) devido a irregularidades na compra de material e na realização de obras no hospital. “Não estou surpreendido com as conclusões deste estudo”, foi o seu comentário.
Mais ainda: confrontado com as declarações constantes neste estudo, o bastonário da Ordem dos Médicos declarou: “Tenho dúvidas de que nos outros hospitais [a situação] seja substancialmente diferente.”
E mais ainda: Adalberto Campos Fernandes, que foi presidente do conselho de admnistração do Santa Maria até 2009, a quem foi pedido um comentário, quis apenas declarar-se “solidário com os 95% de trabalhadores da unidade” que considerou idóneos.
Ou seja: existem razões para considerar que a situação no Hospital de Santa Maria, apesar de poder ser melhor do que há dez anos, é ainda profundamente malsã, que existem ineficiências e injustiças no seu funcionamento, corrupção, privilégios de grupos e influências indevidas de interesses privados.
E é infeliz que, perante essas razões, o seu responsável máximo pretenda matar o mensageiro.
Finalmente, é igualmente infeliz que, perante a polémica, a Universidade Nova de Lisboa tenha querido vir a público afirmar que o “estudo é da exclusiva responsabilidade dos investigadores envolvidos e não reflete a posição institucional [daquela] universidade”. Por um lado, trata-se de declarar o óbvio. Mas quando uma universidade faz questão, à cautela, de se dessolidarizar de um investigador que pode ter pisados alguns calos, isso não diz bem do seu carácter. Os hospitais merecem melhores dirigentes e as universidades também.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, novembro 04, 2014
Quantas vezes vamos ter de dar para este peditório?
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Novembro de 2014
Crónica 49/2014
O peditório deste ano da Liga Portuguesa Contra o Cancro terminou ontem e teve direito, como sempre, a uma extensa e benevolente cobertura dos media, oscilando entre o encómio e a propaganda, louvando a organização e os seus voluntários e incentivando os donativos.
Qual é o problema? O que pode ser mais nobre do que contribuir para combater o cancro, fonte de tanto sofrimento de tantas pessoas?
De facto, os objectivos enunciados pela LPCC são nobres e os voluntários que dedicam horas ou dias de trabalho ao peditório são certamente abnegados e animados pelas melhores intenções. Mas vale a pena olhar para além das intenções.
As pessoas que fazem donativos fazem-nos porque esperam, como a LPCC diz, que este dinheiro vá servir para financiar programas de educação para a saúde, acções de detecção precoce do cancro, apoio à formação de técnicos de saúde e investigação em oncologia. Qual é o problema? O problema é que, cada um destes objectivos constitui um dever do Estado, que o Estado assume perante todos os cidadãos e que justifica os impostos que todos pagamos precisamente para esses fins. Não vejo nenhuma justificação para que uma organização privada faça uma recolha de fundos, junto de uma estreita camada da população (são as classes mais modestas quem mais contribui para a LPCC), para ajudar o Estado a levar a cabo tarefas que fazem parte da sua tarefa central (educação, saúde, prevenção de doença, investigação) e menos ainda me parece aceitável que essa recolha de fundos constitua uma campanha de propaganda para a necessidade de a “sociedade civil” se envolver no financiamento dessas actividades para além da sua contribuição fiscal. A “sociedade civil” já se envolve no financiamento dessas actividades (melhor: financia integralmente essas actividades) através dos impostos que paga e apenas deve exigir que o Estado recolha esses impostos de forma eficaz e justa, através de taxas progressivas, e que distribua os fundos segundo as prioridades e necessidades.
Há quem argumente que “o Estado não pode fazer tudo e precisa da ajuda dos cidadãos” e que, por isso, acções como o peditório da LPCC são essenciais. É fácil ver que isso é falso.
O peditório da LPCC, por muito bem sucedido que seja, constitui um ínfima gota de água no oceano de necessidades e de despesas realizadas pelo Estado neste domínio. Ele serve, de facto, quer isso seja ou não do agrado da LPCC, apenas um objectivo político: a crescente desresponsabilização do Estado nas tarefas essenciais da saúde.
É falso que peditórios como o da LPCC sejam essenciais para financiar aquelas actividades. O Estado possui, aqui e agora, recursos financeiros mais do que suficientes para cumprir todos os seus deveres, como prova o dinheiro que se esbanja em privatizações, PPP, swaps, BPN, BES e quejandos, onde pagamos sem pestanejar rios de dinheiro sem benefícios para o Estado apenas porque os beneficiários são banqueiros e empresários e o PSD e CDS consideram normal que os ricos fiquem cada vez mais ricos à custa do erário público.
Mais: se acontecesse que a colecta fiscal não fosse suficiente para financiar a educação e a investigação, seria fácil ao governo – que já mostrou não ter escrúpulos na matéria – aumentar impostos para esse fim.
Quer isto dizer que não há lugar para organizações como a LPCC ou que o voluntariado não é necessário porque o Estado se deve ocupar de tudo? De forma nenhuma. Há um sem-número de actividades que o Estado não só não possui meios para levar a cabo como não possui as melhores condições para levar a cabo. Associações de doentes (como a LPCC também é, ainda que não seja apenas isso) têm um papel essencial e insubstituível. A LPCC leva a cabo inúmeras actividades de apoio a doentes e famílias (aconselhamento, acompanhamento) que o Estado não poderia levar a cabo com a mesma qualidade, mesmo que dispusesse de meios humanos e financeiros para o fazer. Mas o que uma organização como a LPCC não deve fazer é contribuir para desresponsabilizar o Estado relativamente àquilo que a própria LPCC sabe que ele tem de fazer. A investigação é uma dessas áreas. A formação é outra. A detecção precoce é outra. A LPCC não deve colaborar nestes domínios? Pode e deve, mas não permitindo que o Estado fuja às suas responsabilidades. Não oferecendo-se para financiar actividades que fazem parte do dever do Estado. Dar aos cidadãos a ideia de que, “agora que o Estado não o pode fazer” temos de ser nós a dar dinheiro para a prevenção do cancro e para a investigação oncológica é errado e gravíssimo.
A LPCC deve usar a sua capacidade de mobilização e o seu voluntariado para denunciar as carências nestes domínios, para fazer pressão sobre o Estado para que este conceda ao combate do cancro todos os meios necessários e não aceitar a sua redução, dando a ideia de que, com uns peditórios, se podem colmatar as falhas da irresponsabilização governamental.
jvmalheiro@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/opiniao/noticia/quantas-vezes-vamos-ter-de-dar-para-este-peditorio-1675029?page=-1
Texto publicado no jornal Público a 4 de Novembro de 2014
Crónica 49/2014
O peditório deste ano da Liga Portuguesa Contra o Cancro terminou ontem e teve direito, como sempre, a uma extensa e benevolente cobertura dos media, oscilando entre o encómio e a propaganda, louvando a organização e os seus voluntários e incentivando os donativos.
Qual é o problema? O que pode ser mais nobre do que contribuir para combater o cancro, fonte de tanto sofrimento de tantas pessoas?
De facto, os objectivos enunciados pela LPCC são nobres e os voluntários que dedicam horas ou dias de trabalho ao peditório são certamente abnegados e animados pelas melhores intenções. Mas vale a pena olhar para além das intenções.
As pessoas que fazem donativos fazem-nos porque esperam, como a LPCC diz, que este dinheiro vá servir para financiar programas de educação para a saúde, acções de detecção precoce do cancro, apoio à formação de técnicos de saúde e investigação em oncologia. Qual é o problema? O problema é que, cada um destes objectivos constitui um dever do Estado, que o Estado assume perante todos os cidadãos e que justifica os impostos que todos pagamos precisamente para esses fins. Não vejo nenhuma justificação para que uma organização privada faça uma recolha de fundos, junto de uma estreita camada da população (são as classes mais modestas quem mais contribui para a LPCC), para ajudar o Estado a levar a cabo tarefas que fazem parte da sua tarefa central (educação, saúde, prevenção de doença, investigação) e menos ainda me parece aceitável que essa recolha de fundos constitua uma campanha de propaganda para a necessidade de a “sociedade civil” se envolver no financiamento dessas actividades para além da sua contribuição fiscal. A “sociedade civil” já se envolve no financiamento dessas actividades (melhor: financia integralmente essas actividades) através dos impostos que paga e apenas deve exigir que o Estado recolha esses impostos de forma eficaz e justa, através de taxas progressivas, e que distribua os fundos segundo as prioridades e necessidades.
Há quem argumente que “o Estado não pode fazer tudo e precisa da ajuda dos cidadãos” e que, por isso, acções como o peditório da LPCC são essenciais. É fácil ver que isso é falso.
O peditório da LPCC, por muito bem sucedido que seja, constitui um ínfima gota de água no oceano de necessidades e de despesas realizadas pelo Estado neste domínio. Ele serve, de facto, quer isso seja ou não do agrado da LPCC, apenas um objectivo político: a crescente desresponsabilização do Estado nas tarefas essenciais da saúde.
É falso que peditórios como o da LPCC sejam essenciais para financiar aquelas actividades. O Estado possui, aqui e agora, recursos financeiros mais do que suficientes para cumprir todos os seus deveres, como prova o dinheiro que se esbanja em privatizações, PPP, swaps, BPN, BES e quejandos, onde pagamos sem pestanejar rios de dinheiro sem benefícios para o Estado apenas porque os beneficiários são banqueiros e empresários e o PSD e CDS consideram normal que os ricos fiquem cada vez mais ricos à custa do erário público.
Mais: se acontecesse que a colecta fiscal não fosse suficiente para financiar a educação e a investigação, seria fácil ao governo – que já mostrou não ter escrúpulos na matéria – aumentar impostos para esse fim.
Quer isto dizer que não há lugar para organizações como a LPCC ou que o voluntariado não é necessário porque o Estado se deve ocupar de tudo? De forma nenhuma. Há um sem-número de actividades que o Estado não só não possui meios para levar a cabo como não possui as melhores condições para levar a cabo. Associações de doentes (como a LPCC também é, ainda que não seja apenas isso) têm um papel essencial e insubstituível. A LPCC leva a cabo inúmeras actividades de apoio a doentes e famílias (aconselhamento, acompanhamento) que o Estado não poderia levar a cabo com a mesma qualidade, mesmo que dispusesse de meios humanos e financeiros para o fazer. Mas o que uma organização como a LPCC não deve fazer é contribuir para desresponsabilizar o Estado relativamente àquilo que a própria LPCC sabe que ele tem de fazer. A investigação é uma dessas áreas. A formação é outra. A detecção precoce é outra. A LPCC não deve colaborar nestes domínios? Pode e deve, mas não permitindo que o Estado fuja às suas responsabilidades. Não oferecendo-se para financiar actividades que fazem parte do dever do Estado. Dar aos cidadãos a ideia de que, “agora que o Estado não o pode fazer” temos de ser nós a dar dinheiro para a prevenção do cancro e para a investigação oncológica é errado e gravíssimo.
A LPCC deve usar a sua capacidade de mobilização e o seu voluntariado para denunciar as carências nestes domínios, para fazer pressão sobre o Estado para que este conceda ao combate do cancro todos os meios necessários e não aceitar a sua redução, dando a ideia de que, com uns peditórios, se podem colmatar as falhas da irresponsabilização governamental.
jvmalheiro@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/opiniao/noticia/quantas-vezes-vamos-ter-de-dar-para-este-peditorio-1675029?page=-1
terça-feira, maio 20, 2014
A lei da rolha disfarçada de código de ética
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2014
Crónica 26/2014
O objectivo não é defender o Estado, mas garantir a opacidade dos organismos do Ministério da Saúde.
1. Chamam-lhe o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas das quais já fizeram os seus comentários.
Entre as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou colocar em causa” o interesse da organização.
Para além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.
A primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento, “oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”, mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.
Repare-se que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido, mas o resto também.
É particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação social.
À primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente, garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.
Um verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower seja a prioridade de Paulo Macedo.
Sobre este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu serviço ou instituição”.
2. O mesmo “Código de Ética” pretende obrigar os funcionários do SNS a entregar à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde todas as ofertas que recebam para que elas sejam posteriormente doadas a instituições de solidariedade social. O objectivo é meritório, ainda que o procedimento pareça excessivamente pesado e ineficaz (se não promotor de maior clandestinidade). Gastar 50 euros em procedimentos administrativos, transporte, armazenamento e arquivo digital para que um funcionário não guarde para si um brinde de um euro é um disparate. Mas o que é mais surpreendente é que seja o Governo do PSD-CDS, partidos cujos militantes são conhecidos pelo seu apreço às prendas, a tentar impor esta disciplina aos funcionários do SNS.
O intento moralizador de Paulo Macedo seria mais credível se os partidos do Governo, antes de tentarem impor esta frugalidade aos funcionários públicos, anunciassem que todos os membros do Governo e deputados das suas fileiras passarão a recusar qualquer prenda que lhes queiram dar. Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, ex-futuro ministro das Finanças de Passos Coelho e verdadeiro padrinho da troika, gabava-se de receber “pratas, vinhos raros e livros” quando era ministro e queixava-se de ter perdido prendas quando deixou de ser ministro, o que achava não só natural como muito agradável. Que tal começar a moralização por cima?
jvmalheiros@gmail.com
Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2014
Crónica 26/2014
O objectivo não é defender o Estado, mas garantir a opacidade dos organismos do Ministério da Saúde.
1. Chamam-lhe o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas das quais já fizeram os seus comentários.
Entre as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou colocar em causa” o interesse da organização.
Para além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.
A primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento, “oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”, mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.
Repare-se que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido, mas o resto também.
É particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação social.
À primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente, garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.
Um verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower seja a prioridade de Paulo Macedo.
Sobre este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu serviço ou instituição”.
2. O mesmo “Código de Ética” pretende obrigar os funcionários do SNS a entregar à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde todas as ofertas que recebam para que elas sejam posteriormente doadas a instituições de solidariedade social. O objectivo é meritório, ainda que o procedimento pareça excessivamente pesado e ineficaz (se não promotor de maior clandestinidade). Gastar 50 euros em procedimentos administrativos, transporte, armazenamento e arquivo digital para que um funcionário não guarde para si um brinde de um euro é um disparate. Mas o que é mais surpreendente é que seja o Governo do PSD-CDS, partidos cujos militantes são conhecidos pelo seu apreço às prendas, a tentar impor esta disciplina aos funcionários do SNS.
O intento moralizador de Paulo Macedo seria mais credível se os partidos do Governo, antes de tentarem impor esta frugalidade aos funcionários públicos, anunciassem que todos os membros do Governo e deputados das suas fileiras passarão a recusar qualquer prenda que lhes queiram dar. Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, ex-futuro ministro das Finanças de Passos Coelho e verdadeiro padrinho da troika, gabava-se de receber “pratas, vinhos raros e livros” quando era ministro e queixava-se de ter perdido prendas quando deixou de ser ministro, o que achava não só natural como muito agradável. Que tal começar a moralização por cima?
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, janeiro 17, 2012
Filhos e septuagenários ou a política rasca
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Janeiro de 2012
Crónica 3/2012
Das pequenezas e das misérias de dois ex-ministros das Finanças do PSD
1. Somos um país pequeno, onde todos nos conhecemos, nos cruzamos na rua e temos amigos comuns. Em Portugal não há seis graus de separação. Há só dois. Se há alguém que eu não conheço, há certamente alguém que nos conhece a ambos. Para mais, como somos um país profundamente desigual e classista, com um fosso imenso a separar uma imensa massa de pobres indiferenciados de uma pequena classe média e uma pequena casta de profissionais, estes encontros são ainda mais comuns nestes últimos grupos. Na política e nos negócios (quase a mesma coisa), nas artes e na academia, estamos sempre a cruzar-nos. Os mesmos. É por isso que vemos tantas vezes os mesmos nomes, os mesmos apelidos, relações familiares. Os negócios em Portugal estão na mão de uma só família há cem anos. Estamos todos tão próximos que é quase impossível não contratar um primo, não chocar com um tio, não dar aulas a uma sobrinha. Portugal é pequeno mas, se excluirmos os pobres, que não contam, ainda somos mais pequenos. Somos o Luxemburgo. A Islândia. O Liechtenstein.
1. Somos um país pequeno, onde todos nos conhecemos, nos cruzamos na rua e temos amigos comuns. Em Portugal não há seis graus de separação. Há só dois. Se há alguém que eu não conheço, há certamente alguém que nos conhece a ambos. Para mais, como somos um país profundamente desigual e classista, com um fosso imenso a separar uma imensa massa de pobres indiferenciados de uma pequena classe média e uma pequena casta de profissionais, estes encontros são ainda mais comuns nestes últimos grupos. Na política e nos negócios (quase a mesma coisa), nas artes e na academia, estamos sempre a cruzar-nos. Os mesmos. É por isso que vemos tantas vezes os mesmos nomes, os mesmos apelidos, relações familiares. Os negócios em Portugal estão na mão de uma só família há cem anos. Estamos todos tão próximos que é quase impossível não contratar um primo, não chocar com um tio, não dar aulas a uma sobrinha. Portugal é pequeno mas, se excluirmos os pobres, que não contam, ainda somos mais pequenos. Somos o Luxemburgo. A Islândia. O Liechtenstein.
É por isso que há tantos filhos e sobrinhos. Um exercício interessante é consultar a formação dos Governos. Ou das administrações das empresas. Os apelidos repetem-se. É normal apresentarmos pessoas como sendo “filhos de”. Para não contar as vezes em que o elemento curricular é sussurrado quando a pessoa volta costas. “É filho de...” “Ah!...” E estamos constantemente a descobrir parentescos, muitas vezes discretamente ostentados. Um dia descobrimos que a Maria Fulana é filha de Fulana de Tal mas não usa o Tal para que toda a gente saiba que não se quer valer do nome. Ou descobrimos que a Maria Fulana passou a usar o Tal porque ele não tinha sido sussurrado a uma certa pessoa, com prejuízo para a sua carreira. Os filhos e os sobrinhos estão por todo o lado. E, se se levanta alguma dúvida sobre o critério da nomeação, do convite, da promoção, logo alguém nos garante que é competentíssimo e cultíssima. Não vale a pena saber se não haverá outro, com outro apelido, também competentíssimo. É provavel, aliás, que ele seja competentíssimo, pois os filhos da oligarquia tem acesso garantido à melhor formação. Podemos apostar que não haverá nos próximos trinta anos um ministro nascido na Cova da Moura, mas a maioria das pessoas não percebe que é essa a nossa desgraça.
O nepotismo é algo tão natural, a oligarquia tão habituada a não ser posta em causa, que o competentíssimo Jorge Braga de Macedo, ex-ministro do PSD, colaborador de Passos Coelho e presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical, não se dá sequer ao trabalho de explicar por que razão o nosso instituto (que ele dirige) financiou três exposições da sua filha. E que tal definir critérios prévios para fazer as coisas? Não é difícil e até é parecido. Em vez de consultar o apelido, vê-se se a pessoa, o projecto e o processo respeitam os critérios.
3. Podia acontecer que Manuela Ferreira Leite tivesse aquele problema de ter uma língua mais rápida do que os neurónios, uma condição em que as palavras apenas são submetidas ao escrutínio da mente depois de terem sido enunciadas. Acontece. Muitos políticos parecem sofrer do mal. Nestes casos, porém, mal o cérebro escrutina o que lhe entrou pelos ouvidos, usa em geral a capacidade de corrigir a posteriori o que não teve capacidade para formatar a priori. E dizem-se coisas como “Não era bem isto que eu queria dizer”, “Deixem-me explicar melhor porque receio ter dado uma ideia errada”, “Posso responder de novo e depois vocês apagam a primeira resposta?” etc. - como fazemos todos quando falamos de uma forma irreflectida, ainda que não se sofra da patologia.
No entanto, quando a Dama de Ferro Nacional diz o que disse, em resposta a uma pergunta sobre o que pensava da possibilidade de restrição do acesso à hemodiálise aos indivíduos com mais de 70 anos (“Tem sempre direito, se pagar”) e apenas corrige o que diz depois de uma chamada de atenção do socialista António Vitorino, é provável que tenha dito da primeira vez aquilo que queria dizer. Lembre-se aliás que a pergunta (dirigida a António Barreto mas a que Ferreira Leite quis responder) já trazia suficientes sinais de alarme, porque foi colocada nestes termos: “Não acha abominável que se discuta se alguém que tem 70 anos tem direito à hemodiálise ou não?” Mas Ferreira Leite não só não achou abominável como achou muito bem, porque o SNS não dá para todos e é preciso escolher.
A resposta de Ferreira Leite foi a de uma verdadeira tecnocrata: como o SNS não pode pagar tudo e uma pessoa com mais de setenta anos possui um valor económico negativo (não produz e gasta muito), a decisão mais eficiente é deixar de pagar hemodiálise a esta pessoa - que, no entanto, se tiver meios próprios, poderá fazê-la por sua conta. A proposição, de perfil eugenista e pseudo-justificada com o habitual palavreado de gestão, vai na linha das propostas do PSD em termos de saúde, educação, segurança social e trabalho e demonstra que uma das mentiras mais descaradas da política portuguesa é a auto-definição do PSD como partido humanista.
Manuela Ferreira Leite esteve na origem da expressão “geração rasca”, cunhada numa reflexão de Vicente Jorge Silva quando, numa manifestação de estudantes, alguns decidiram mostrar o rabo à então ministra da Educação. Ferreira Leite provou mais uma vez que uma política rasca pode mostrar coisas muito mais ofensivas. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, maio 03, 2011
Ainda há coisas que se podem fazer
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Maio de 2011
Crónica 18/2011
A ideia populista de que os ricos devem ser penalizados pelo uso do SNS é o primeiro passo para a sua destruição
Não vivemos um normal tempo de crise, onde sabemos que a normalidade irá acabar por regressar, como o bom tempo depois de uma tempestade. Esta não é uma crise de onde sabemos que sairemos mais fortes, porque teremos sobrevivido e porque teremos aprendido a não repetir os últimos erros. Esta é uma crise onde não só não sabemos para onde vamos, como também não sabemos para onde poderíamos ir. Esta é uma crise da qual ninguém sabe como sairemos, nem sequer se sairemos dela. Esta não é a crise que se vai transformar na finest hour da União Europeia, como desejávamos, mas aquela onde os agiotas reunidos em Londres e em Frankfurt tentam proceder à última fase da lobotomia da civilização, apagando o Estado Social dos programas eleitorais de todos os partidos. Uma questão de realismo, dizem. “Vocês não têm dinheiro para isso”, sussuram-nos ao ouvido. “Nós faremos um melhor serviço a gerir os vossos hospitais, as vossas reformas, os vossos exércitos, as vossas prisões, os vossos partidos”.
Esta crise não é uma batalha perdida, mas uma guerra perdida, onde a única possibilidade é reagrupar as forças no exílio, organizar a resistência clandestina e prepararmo-nos para um longo combate.
Esta crise é o tempo de todos os charlatães e de todas as mentiras, porque haverá sempre algo mais a extorquir dos contribuintes. Que se deixarão espoliar voluntariamente. Porque alguém lhes disse que isso era inevitável. Porque alguém lhes disse que a política era um luxo impossível, que só a economia deve tomar decisões sobre as nossas vidas, que só a desumanidade garante a eficiência e que a desigualdade é a única justiça e a igualdade uma injustiça. Orwell ficaria boquiaberto com a sua presciência.
Mas neste momento em que não sabemos o que pensar, o que propor, há ainda coisas fundamentais que podemos fazer. Como defender o Serviço Nacional de Saúde com unhas e dentes, por exemplo, sem aceitar os argumentos das empresas (e dos seus partidos), que acham que este é um negócio tão ruinoso para o Estado... que preferem ser elas a fornecê-lo.
Numa entrevista recente ao Público, o líder social-democrata Miguel Relvas defendeu que “a filha do homem mais rico de Portugal não pode pagar nove euros por uma consulta num hospital público, pagando o mesmo que a filha de um desempregado”. “Não é justo”, dizia.
Vale a pena reflectir na proposta.
Antes de mais, o sistema é justo porque a família mais rica de Portugal já paga muito mais do que a família do desempregado para o SNS: paga através dos seus impostos (ou pagaria, se todos os partidos quisessem). Por outro lado, se uma taxa moderadora progressiva desincentivar os mais ricos a aceder ao SNS e a escolher serviços privados, o SNS transformar-se-á no “serviço dos pobres”, abrindo a porta a todos os ataques à sua manutenção e melhoria (menos utilizadores, menor pressão social para a sua melhoria, utilizadores mais facilmente silenciados, etc.). De facto, se se pretende um serviço de saúde de qualidade, é fundamental que ele sirva todos em condições de igualdade, ricos e pobres, sem distinção. Só desta forma toda a sociedade se empenhará, colectivamente, na sua defesa.
A ideia populista (aparentemente socialista, mas de facto profundamente reaccionária) de que os ricos devem ser penalizados pelo seu uso dos serviços públicos é o primeiro passo para a destruição desses serviços públicos e para reforçar uma saúde (uma educação, uma...) a duas velocidades: uma privada, de qualidade; uma pública, de subsistência. Os ricos devem ser tratados exactamente como os pobres - nem pior nem melhor - e só assim a defesa do serviço público será uma preocupação de todos. Ao contrário do que pretendem alguns, só a igualdade no acesso promove a qualidade. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, março 03, 2009
Saúde retira exigência que excluía empresas portuguesas
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Março de 2009
Secção Portugal
ACSS diz que "nunca pretendeu dificultar o acesso de potenciais interessados, designadamente de empresas portuguesas", a este concurso
A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) decidiu eliminar a exigência da certificação ISO/IEC 20.000 às empresas que queiram concorrer ao concurso 2/2009. Não há nenhuma empresa portuguesa que possua esta certificação, o que na prática as impedia não só de serem contratadas directamente pela ACSS mas também de virem a ser subcontratadas por qualquer empresa estrangeira que ganhasse o concurso.
O concurso 2/2009, de âmbito internacional, diz respeito à manutenção de aplicações que integram o Sistema Integrado de Informação Hospitalar - Sonho, instalado na maioria dos hospitais portugueses.
A exigência daquela certificação tinha sido objecto de reacções críticas por parte de várias empresas fornecedoras do Ministério da Saúde.
Na breve nota de onze linhas enviada ao PÚBLICO onde é anunciada a sua mudança de posição, a ACSS garante que a exigência da certificação ISO/IEC 20.000 neste concurso "nunca pretendeu dificultar o acesso de potenciais interessados, designadamente de empresas portuguesas, ao mercado dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde". No entanto, prossegue, como "a posterior avaliação do mercado levou à conclusão de que se trata de uma certificação complexa, não susceptível de ser cumprida pela generalidade das empresas (...) a ACSS elaborou um aviso rectificativo que elimina a sua exigência". A nota refere que o "aviso vai ser publicado em breve".
Antes ainda da difusão desta nota, o CDS-PP tinha anunciado, através da deputada Teresa Caeiro, que tencionava pedir explicações à ACSS sobre as razões por que se faz neste concurso público aquela exigência. Teresa Caeiro quer saber se essa certificação é "essencial para o concurso lançado" e a razão por que não há nenhuma empresa em Portugal que a possua. A deputada considerou que, se essa certificação é de facto importante, é necessário saber por que não houve apoio do Estado para a sua obtenção por empresas portuguesas. "São os estados que ajudam as empresas a obter as certificações, para lhes dar competitividade", disse Teresa Caeiro, citada no site do CDS-PP.
A ACSS é o organismo do Ministério da Saúde responsável pela administração dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde.
O concurso foi publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia a 11 e 12 de Fevereiro e possui um valor de referência de 1,2 milhões de euros.
Texto publicado no jornal Público a 3 de Março de 2009
Secção Portugal
ACSS diz que "nunca pretendeu dificultar o acesso de potenciais interessados, designadamente de empresas portuguesas", a este concurso
A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) decidiu eliminar a exigência da certificação ISO/IEC 20.000 às empresas que queiram concorrer ao concurso 2/2009. Não há nenhuma empresa portuguesa que possua esta certificação, o que na prática as impedia não só de serem contratadas directamente pela ACSS mas também de virem a ser subcontratadas por qualquer empresa estrangeira que ganhasse o concurso.
O concurso 2/2009, de âmbito internacional, diz respeito à manutenção de aplicações que integram o Sistema Integrado de Informação Hospitalar - Sonho, instalado na maioria dos hospitais portugueses.
A exigência daquela certificação tinha sido objecto de reacções críticas por parte de várias empresas fornecedoras do Ministério da Saúde.
Na breve nota de onze linhas enviada ao PÚBLICO onde é anunciada a sua mudança de posição, a ACSS garante que a exigência da certificação ISO/IEC 20.000 neste concurso "nunca pretendeu dificultar o acesso de potenciais interessados, designadamente de empresas portuguesas, ao mercado dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde". No entanto, prossegue, como "a posterior avaliação do mercado levou à conclusão de que se trata de uma certificação complexa, não susceptível de ser cumprida pela generalidade das empresas (...) a ACSS elaborou um aviso rectificativo que elimina a sua exigência". A nota refere que o "aviso vai ser publicado em breve".
Antes ainda da difusão desta nota, o CDS-PP tinha anunciado, através da deputada Teresa Caeiro, que tencionava pedir explicações à ACSS sobre as razões por que se faz neste concurso público aquela exigência. Teresa Caeiro quer saber se essa certificação é "essencial para o concurso lançado" e a razão por que não há nenhuma empresa em Portugal que a possua. A deputada considerou que, se essa certificação é de facto importante, é necessário saber por que não houve apoio do Estado para a sua obtenção por empresas portuguesas. "São os estados que ajudam as empresas a obter as certificações, para lhes dar competitividade", disse Teresa Caeiro, citada no site do CDS-PP.
A ACSS é o organismo do Ministério da Saúde responsável pela administração dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde.
O concurso foi publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia a 11 e 12 de Fevereiro e possui um valor de referência de 1,2 milhões de euros.
segunda-feira, março 02, 2009
Ministério da Saúde lançou concurso público que exclui empresas portuguesas
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Março de 2009
Destaque
Administração Central do Sistema de Saúde admite permitir "a participação das empresas nacionais de maior relevo". Empresários mostram-se espantados e dizem que é inaceitável
A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) abriu um concurso público que apenas permite a participação de empresas que possuam uma certificação que nenhuma empresa portuguesa possui.
O Anexo Técnico do Caderno de Encargos do concurso 2/2009, para fornecimento de serviços de manutenção de aplicações informáticas, não só exige expressamente que as empresas concorrentes possuam a certificação ISO/IEC 20.000, como faz a mesma exigência aos "seus subcontratados". Esta restrição não permite sequer, portanto, que uma empresa estrangeira vencedora venha a subcontratar uma empresa nacional para realizar parte dos serviços contratados.
A ACSS, contactada pelo PÚBLICO, admitiu vir a adoptar uma solução que permitisse "a participação das empresas nacionais de maior relevo" sem especificar qual poderia ser o seu formato. A ACSS é a herdeira do antigo IGIF, o Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde, e tem entre as suas missões a administração dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde.
O concurso 2/2009, de âmbito internacional, diz respeito à manutenção de aplicações que integram o Sistema Integrado de Informação Hospitalar - Sonho, instalado na maioria dos hospitais portugueses. O anúncio foi publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia, nos dias 11 e 12 de Fevereiro, respectivamente, e indica um valor máximo de referência de 1,2 milhões de euros para o contrato, que cobre um período de manutenção de 18 meses.
A exigência da certificação suscitou reacções negativas em várias empresas habitualmente concorrentes a estes fornecimentos.
Espanto
A Novabase, cujo Gabinete de Comunicação nos enviou uma posição formal por escrito, diz ter constatado o facto "com incredulidade": "Não acreditamos que o Ministério da Saúde de Portugal efectue um concurso público a que as empresas portuguesas não possam concorrer, nem para o mesmo ser subcontratadas por outras, e que apenas algumas das suas concorrentes estrangeiras mais directas o possam fazer", diz a empresa. "Sendo assim, a Novabase irá colocar, no prazo destinado à colocação de pedidos de esclarecimento sobre este concurso, perguntas no sentido de esclarecer se este requisito é ou não 'mandatório' para responder ao referido concurso (...)".
Para Lúcia Costa, gestora responsável pela área de Saúde na Link Consulting, do grupo Aitec, a condição constante do concurso 2/2009 "é de todo inaceitável e compromete a livre concorrência". "Tratando-se de um concurso lançado por entidades portuguesas, seria de esperar que as empresas portuguesas pudessem concorrer", diz Lúcia Costa. "Não consigo encontrar qualquer razão para esta exigência, completamente inesperada".
A empresa de consultoria Accenture, por seu lado, disse considerar "prematuro um parecer [seu] sobre a questão da exigência da certificação na norma ISO/IEC 20.000" neste concurso e informou ter já submetido à ACSS um pedido de esclarecimentos, ao abrigo do Código de Contratação Pública. "Pensamos ser essa a via mais adequada para que qualquer interessado obtenha a clarificação desse aspecto concreto", diz a empresa também numa declaração escrita.
Em todos os contactos feitos pelo PÚBLICO o comedimento foi a atitude habitual. Algo compreensível num mercado em recessão e com a diminuta dimensão do português, num sector tão competitivo como a informática e perante um cliente com o peso do Estado. Houve empresas contactadas pelo PÚBLICO que não nos fizeram chegar qualquer reacção.
Ao abrigo da lei que regula a contratação pública, as respostas a pedidos de esclarecimento em concursos deste tipo podem alterar as condições definidas no anúncio original. Essa é, aparentemente, a esperança das empresas reclamantes - e, eventualmente, de outras que nem sequer se deram ao trabalho de preparar uma candidatura ou de pedir esclarecimentos, mas que poderão vir a concorrer, caso as regras de admissão sejam alteradas.
"Não tem sentido"
Não existe entre as empresas que contactámos qualquer oposição de princípio à exigência da norma 20.000 - que certifica a qualidade da manutenção dos serviços ou produtos de Tecnologias de Informação. O que acontece é que este tipo de certificação é moroso, caro e a sua generalização pressuporia algum tipo de apoio oficial. "Seria admissível que se definisse um objectivo nacional de adopção desta certificação num horizonte de alguns anos, mas não se pode impô-la como condição de surpresa, de um dia para o outro", diz-nos um técnico de uma das empresas que contactámos. "Por outro lado, não tem sentido ter esta exigência quando o mesmo cliente nos obriga a instalar sistemas em condições de operação que não obedecem a patamares mínimos de qualidade".
Existem actualmente no mundo 344 entidades com a certificação ISO/IEC 20.000. O país com maior número de entidades certificadas é o Reino Unido (50) seguido do Japão (48), Índia (40), Coreia do Sul (35) e China (34). Tanto a Espanha como França, por exemplo, têm três entidades certificadas, e a Finlândia apenas uma.
Texto publicado no jornal Público a 2 de Março de 2009
Destaque
Administração Central do Sistema de Saúde admite permitir "a participação das empresas nacionais de maior relevo". Empresários mostram-se espantados e dizem que é inaceitável
A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) abriu um concurso público que apenas permite a participação de empresas que possuam uma certificação que nenhuma empresa portuguesa possui.
O Anexo Técnico do Caderno de Encargos do concurso 2/2009, para fornecimento de serviços de manutenção de aplicações informáticas, não só exige expressamente que as empresas concorrentes possuam a certificação ISO/IEC 20.000, como faz a mesma exigência aos "seus subcontratados". Esta restrição não permite sequer, portanto, que uma empresa estrangeira vencedora venha a subcontratar uma empresa nacional para realizar parte dos serviços contratados.
A ACSS, contactada pelo PÚBLICO, admitiu vir a adoptar uma solução que permitisse "a participação das empresas nacionais de maior relevo" sem especificar qual poderia ser o seu formato. A ACSS é a herdeira do antigo IGIF, o Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde, e tem entre as suas missões a administração dos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde.
O concurso 2/2009, de âmbito internacional, diz respeito à manutenção de aplicações que integram o Sistema Integrado de Informação Hospitalar - Sonho, instalado na maioria dos hospitais portugueses. O anúncio foi publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia, nos dias 11 e 12 de Fevereiro, respectivamente, e indica um valor máximo de referência de 1,2 milhões de euros para o contrato, que cobre um período de manutenção de 18 meses.
A exigência da certificação suscitou reacções negativas em várias empresas habitualmente concorrentes a estes fornecimentos.
Espanto
A Novabase, cujo Gabinete de Comunicação nos enviou uma posição formal por escrito, diz ter constatado o facto "com incredulidade": "Não acreditamos que o Ministério da Saúde de Portugal efectue um concurso público a que as empresas portuguesas não possam concorrer, nem para o mesmo ser subcontratadas por outras, e que apenas algumas das suas concorrentes estrangeiras mais directas o possam fazer", diz a empresa. "Sendo assim, a Novabase irá colocar, no prazo destinado à colocação de pedidos de esclarecimento sobre este concurso, perguntas no sentido de esclarecer se este requisito é ou não 'mandatório' para responder ao referido concurso (...)".
Para Lúcia Costa, gestora responsável pela área de Saúde na Link Consulting, do grupo Aitec, a condição constante do concurso 2/2009 "é de todo inaceitável e compromete a livre concorrência". "Tratando-se de um concurso lançado por entidades portuguesas, seria de esperar que as empresas portuguesas pudessem concorrer", diz Lúcia Costa. "Não consigo encontrar qualquer razão para esta exigência, completamente inesperada".
A empresa de consultoria Accenture, por seu lado, disse considerar "prematuro um parecer [seu] sobre a questão da exigência da certificação na norma ISO/IEC 20.000" neste concurso e informou ter já submetido à ACSS um pedido de esclarecimentos, ao abrigo do Código de Contratação Pública. "Pensamos ser essa a via mais adequada para que qualquer interessado obtenha a clarificação desse aspecto concreto", diz a empresa também numa declaração escrita.
Em todos os contactos feitos pelo PÚBLICO o comedimento foi a atitude habitual. Algo compreensível num mercado em recessão e com a diminuta dimensão do português, num sector tão competitivo como a informática e perante um cliente com o peso do Estado. Houve empresas contactadas pelo PÚBLICO que não nos fizeram chegar qualquer reacção.
Ao abrigo da lei que regula a contratação pública, as respostas a pedidos de esclarecimento em concursos deste tipo podem alterar as condições definidas no anúncio original. Essa é, aparentemente, a esperança das empresas reclamantes - e, eventualmente, de outras que nem sequer se deram ao trabalho de preparar uma candidatura ou de pedir esclarecimentos, mas que poderão vir a concorrer, caso as regras de admissão sejam alteradas.
"Não tem sentido"
Não existe entre as empresas que contactámos qualquer oposição de princípio à exigência da norma 20.000 - que certifica a qualidade da manutenção dos serviços ou produtos de Tecnologias de Informação. O que acontece é que este tipo de certificação é moroso, caro e a sua generalização pressuporia algum tipo de apoio oficial. "Seria admissível que se definisse um objectivo nacional de adopção desta certificação num horizonte de alguns anos, mas não se pode impô-la como condição de surpresa, de um dia para o outro", diz-nos um técnico de uma das empresas que contactámos. "Por outro lado, não tem sentido ter esta exigência quando o mesmo cliente nos obriga a instalar sistemas em condições de operação que não obedecem a patamares mínimos de qualidade".
Existem actualmente no mundo 344 entidades com a certificação ISO/IEC 20.000. O país com maior número de entidades certificadas é o Reino Unido (50) seguido do Japão (48), Índia (40), Coreia do Sul (35) e China (34). Tanto a Espanha como França, por exemplo, têm três entidades certificadas, e a Finlândia apenas uma.
domingo, março 01, 2009
Página de Rosto - Jack Sim, paladino do WC para todos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 1 Março 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 16
“Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por uma questão de status”
Jack Sim, fundador da World Toilet Organisation (Singapura)
Jack Sim costuma aparecer nas fotos dos jornais como aparece nesta página: a fazer palhaçadas numa casa de banho, sentado na sanita, enrolado em papel higiénico. Tem 52 anos, nasceu e vive em Singapura, é convidado permanente do Fórum Económico Mundial de Davos, foi escolhido pela revista Time como um dos “Heróis do Ambiente” de 2008 e tornou-se conhecido mundialmente como… Toiletman. Um nome que não o envergonha de todo (nem à sua família, garante) porque todos sabem que está a ser posto ao serviço de uma causa particularmente nobre.
Sim é um militante do direito a ter uma casa de banho e fundou em 2001 a World Toilet Organization (a sigla, WTO, é a mesma da Organização Mundial do Comércio), hoje com 171 organizações associadas em 56 países e com inúmeras actividades: reuniões mundiais anuais, projectos de saneamento e de formação realizados em parceria com outras organizações, etc..
Porquê esta causa? Porque a dada altura da sua vida, aos 40, quando a sua actividade de construtor e promotor imobiliário lhe permitiu atingir um nível de conforto suficiente, achou que devia dedicar a segunda metade da sua vida a ajudar os outros. E, com 2600 milhões de pessoas no mundo sem acesso a uma casa de banho decente e com dezenas de doenças mortais causadas pela contaminação de fontes e poços por matéria fecal, Sim achou que havia aqui uma batalha importante a travar. E, o que era mais importante, uma batalha que ninguém queria travar – devido ao tabu que envolve tudo o que diz respeito aos excrementos humanos e à defecação, que torna difícil falar da questão, quanto mais dar-lhe visibilidade.
Sim considera que hoje, oito anos depois da criação da World Toilet Organization, a primeira aposta está ganha.
“O primeiro passo era quebrar o tabu e acho que conseguimos fazer isso. Pusemos os media do mundo inteiro a falar de casas de banho [Sim diz sempre “toilets”], da falta de casas de banho, de como a sua falta afecta o dia-a-dia e a saúde das pessoas”, explicou-me, numa longa conversa telefónica com oito fusos horários de diferença. “E com a visibilidade nos media a questão ganhou importância social e legitimidade. Há pessoas que ainda começam por rir quando se fala de como é importante todas as pessoas poderem ir à retrete com conforto e higiene – mas até é bom rirem, porque isso é o primeiro passo para quebrar o tabu – mas agora sabem que o assunto é sério, que tem de ser discutido e que precisamos de resolver o problema”.
O humor é importante na abordagem de Sim, mas apenas porque ele lhe permite dessensibilizar o interlocutor ou as audiências e passar ao passo seguinte, que é falar cruamente do que quer falar, com as expressões directas que melhor servem o fim. Para convencer uma assembleia da necessidade de investir em latrinas ecológicas Sim enuncia não só os riscos de contaminação e doenças como explica claramente que, sem retretes adequadas, o que acontece é que as pessoas “andam a comer a merda uns dos outros”. É literalmente verdade. A quantidade involuntariamente ingerida chega a 10 gramas por dia – com a sua carga de microrganismos patogénicos.
Outro dos ovos de Colombo de Jack Sim é a sua estratégia de financiamento, as suas ideias sobre como arranjar dinheiro para proporcionar aos 2600 milhões de pessoas sem WC as condições sanitárias a que têm direito.
A sua ideia é… deixar o mercado funcionar.
Se pertence – como eu – ao grupo dos que não deposita grandes esperanças na capacidade do mercado como meio de reduzir as desigualdades sociais, vale a pena ouvir a argumentação de Sim antes de a pôr de lado.
“Antes de mais, temos de perceber que não se pode resolver este problema com base na generosidade dos mais ricos, com donativos”, explica Sim com a segurança de quem explorou o terreno e conhece os obstáculos mas pensa ter encontrado a solução. “As campanhas de angariação de fundos para construir WC para as pessoas mais pobres conseguem sempre resultados mínimos”. Quanto é que a WTO já conseguiu através das suas acções de recolha de donativos e da página “Donate” do seu site? Tão pouco que prefere nem dizer um número. “É praticamente negligenciável”.
Só que, na sua opinião, isso não se deve sequer a uma falta de solidariedade, mas sim ao facto de que, para os mais ricos, as retretes dos pobres não parecem ser uma necessidade de primeira ordem, quando se comparam com a fome ou a falta de água, por exemplo, e não suscitam o mesmo sentimento de urgência em termos de solidariedade. E o mesmo acontece com os grandes programas de ajuda internacional. “A água e o saneamento básico aparecem sempre como uma única rubrica e o que acontece é que o fornecimento de água limpa acaba por absorver todos os recursos”, diz Sim. “A água é vista como indispensável, as sanitas como opcionais. Não sobra quase nada para as casas de banho, apesar de a diarreia causada pela falta de retretes matar mais de dois milhões de pessoas por ano. Se formos a estas regiões onde não há saneamento vemos sempre famílias com muitos filhos. Porquê? Porque muitos vão morrer e os pais tentam ter muitos filhos de forma que fiquem alguns para os ajudar na velhice. E uma das coisas que os está a matar é a falta de WC”.
Qual é a solução então? Como se põe o mercado a resolver o problema destas pessoas que às vezes nem têm dinheiro para comer?
A voz sobe de tom: “É que os pobres não são todos iguais. Nestes 2600 milhões há pessoas miseráveis, que morrem de fome, mas também há pessoas que trabalham e que têm um rendimento mínimo mas têm alguma coisa. Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por um questão de status, que tem sido reforçado pelas campanhas das empresas de telecomunicações. Depois de terem vendido o segundo telemóvel às pessoas com mais dinheiro, elas voltaram-se para os mais pobres e encontraram um mercado aí. Há um enorme potencial de mercado porque há muita gente no fundo da pirâmide”.
Sim defende a realização de programas de saneamento e de formação a nível nacional e internacional, com sinergias entre vários tipos de actores, a nível global – e está pessoalmente envolvido em muitos desses projectos -, mas acha que nada disso poderá funcionar sem fazer as casas de banho subirem na lista de prioridades dos pobres, transformando-as em símbolos de status social. E, com latrinas ecologica e sanitariamente adequadas com preços a partir dos dez dólares, Sim não vê razão para não conseguir atingir o objectivo.
Sim sabe do que fala quando menciona as ambições dos pobres. Nasceu numa família muito pobre (“Na altura toda a gente era muito pobre em Singapura”), o mais novo de três irmãos e depois da tropa obrigatória não foi para a Universidade porque não era muito bom nos estudos. Mas a vida profissional correu-lhe bem. Hoje, casado e com quatro filhos - duas raparigas (Faith e Earth) e dois rapazes (Truth e Worth), cujos nomes insiste em me dizer - regressou à Universidade para estudar Administração Pública.
Texto publicado a 1 Março 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 16
“Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por uma questão de status”
Jack Sim, fundador da World Toilet Organisation (Singapura)
Jack Sim costuma aparecer nas fotos dos jornais como aparece nesta página: a fazer palhaçadas numa casa de banho, sentado na sanita, enrolado em papel higiénico. Tem 52 anos, nasceu e vive em Singapura, é convidado permanente do Fórum Económico Mundial de Davos, foi escolhido pela revista Time como um dos “Heróis do Ambiente” de 2008 e tornou-se conhecido mundialmente como… Toiletman. Um nome que não o envergonha de todo (nem à sua família, garante) porque todos sabem que está a ser posto ao serviço de uma causa particularmente nobre.
Sim é um militante do direito a ter uma casa de banho e fundou em 2001 a World Toilet Organization (a sigla, WTO, é a mesma da Organização Mundial do Comércio), hoje com 171 organizações associadas em 56 países e com inúmeras actividades: reuniões mundiais anuais, projectos de saneamento e de formação realizados em parceria com outras organizações, etc..
Porquê esta causa? Porque a dada altura da sua vida, aos 40, quando a sua actividade de construtor e promotor imobiliário lhe permitiu atingir um nível de conforto suficiente, achou que devia dedicar a segunda metade da sua vida a ajudar os outros. E, com 2600 milhões de pessoas no mundo sem acesso a uma casa de banho decente e com dezenas de doenças mortais causadas pela contaminação de fontes e poços por matéria fecal, Sim achou que havia aqui uma batalha importante a travar. E, o que era mais importante, uma batalha que ninguém queria travar – devido ao tabu que envolve tudo o que diz respeito aos excrementos humanos e à defecação, que torna difícil falar da questão, quanto mais dar-lhe visibilidade.
Sim considera que hoje, oito anos depois da criação da World Toilet Organization, a primeira aposta está ganha.
“O primeiro passo era quebrar o tabu e acho que conseguimos fazer isso. Pusemos os media do mundo inteiro a falar de casas de banho [Sim diz sempre “toilets”], da falta de casas de banho, de como a sua falta afecta o dia-a-dia e a saúde das pessoas”, explicou-me, numa longa conversa telefónica com oito fusos horários de diferença. “E com a visibilidade nos media a questão ganhou importância social e legitimidade. Há pessoas que ainda começam por rir quando se fala de como é importante todas as pessoas poderem ir à retrete com conforto e higiene – mas até é bom rirem, porque isso é o primeiro passo para quebrar o tabu – mas agora sabem que o assunto é sério, que tem de ser discutido e que precisamos de resolver o problema”.
O humor é importante na abordagem de Sim, mas apenas porque ele lhe permite dessensibilizar o interlocutor ou as audiências e passar ao passo seguinte, que é falar cruamente do que quer falar, com as expressões directas que melhor servem o fim. Para convencer uma assembleia da necessidade de investir em latrinas ecológicas Sim enuncia não só os riscos de contaminação e doenças como explica claramente que, sem retretes adequadas, o que acontece é que as pessoas “andam a comer a merda uns dos outros”. É literalmente verdade. A quantidade involuntariamente ingerida chega a 10 gramas por dia – com a sua carga de microrganismos patogénicos.
Outro dos ovos de Colombo de Jack Sim é a sua estratégia de financiamento, as suas ideias sobre como arranjar dinheiro para proporcionar aos 2600 milhões de pessoas sem WC as condições sanitárias a que têm direito.
A sua ideia é… deixar o mercado funcionar.
Se pertence – como eu – ao grupo dos que não deposita grandes esperanças na capacidade do mercado como meio de reduzir as desigualdades sociais, vale a pena ouvir a argumentação de Sim antes de a pôr de lado.
“Antes de mais, temos de perceber que não se pode resolver este problema com base na generosidade dos mais ricos, com donativos”, explica Sim com a segurança de quem explorou o terreno e conhece os obstáculos mas pensa ter encontrado a solução. “As campanhas de angariação de fundos para construir WC para as pessoas mais pobres conseguem sempre resultados mínimos”. Quanto é que a WTO já conseguiu através das suas acções de recolha de donativos e da página “Donate” do seu site? Tão pouco que prefere nem dizer um número. “É praticamente negligenciável”.
Só que, na sua opinião, isso não se deve sequer a uma falta de solidariedade, mas sim ao facto de que, para os mais ricos, as retretes dos pobres não parecem ser uma necessidade de primeira ordem, quando se comparam com a fome ou a falta de água, por exemplo, e não suscitam o mesmo sentimento de urgência em termos de solidariedade. E o mesmo acontece com os grandes programas de ajuda internacional. “A água e o saneamento básico aparecem sempre como uma única rubrica e o que acontece é que o fornecimento de água limpa acaba por absorver todos os recursos”, diz Sim. “A água é vista como indispensável, as sanitas como opcionais. Não sobra quase nada para as casas de banho, apesar de a diarreia causada pela falta de retretes matar mais de dois milhões de pessoas por ano. Se formos a estas regiões onde não há saneamento vemos sempre famílias com muitos filhos. Porquê? Porque muitos vão morrer e os pais tentam ter muitos filhos de forma que fiquem alguns para os ajudar na velhice. E uma das coisas que os está a matar é a falta de WC”.
Qual é a solução então? Como se põe o mercado a resolver o problema destas pessoas que às vezes nem têm dinheiro para comer?
A voz sobe de tom: “É que os pobres não são todos iguais. Nestes 2600 milhões há pessoas miseráveis, que morrem de fome, mas também há pessoas que trabalham e que têm um rendimento mínimo mas têm alguma coisa. Há muitos tipos de pobres. Muitos têm televisão. Ou um telemóvel. Porque é que preferem uma TV ou um telemóvel a uma retrete, que seria mais barata? Por um questão de status, que tem sido reforçado pelas campanhas das empresas de telecomunicações. Depois de terem vendido o segundo telemóvel às pessoas com mais dinheiro, elas voltaram-se para os mais pobres e encontraram um mercado aí. Há um enorme potencial de mercado porque há muita gente no fundo da pirâmide”.
Sim defende a realização de programas de saneamento e de formação a nível nacional e internacional, com sinergias entre vários tipos de actores, a nível global – e está pessoalmente envolvido em muitos desses projectos -, mas acha que nada disso poderá funcionar sem fazer as casas de banho subirem na lista de prioridades dos pobres, transformando-as em símbolos de status social. E, com latrinas ecologica e sanitariamente adequadas com preços a partir dos dez dólares, Sim não vê razão para não conseguir atingir o objectivo.
Sim sabe do que fala quando menciona as ambições dos pobres. Nasceu numa família muito pobre (“Na altura toda a gente era muito pobre em Singapura”), o mais novo de três irmãos e depois da tropa obrigatória não foi para a Universidade porque não era muito bom nos estudos. Mas a vida profissional correu-lhe bem. Hoje, casado e com quatro filhos - duas raparigas (Faith e Earth) e dois rapazes (Truth e Worth), cujos nomes insiste em me dizer - regressou à Universidade para estudar Administração Pública.
terça-feira, maio 09, 2006
Nascer em Barcelos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Maio de 2006
Crónica 17/2006
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões.
O anúncio feito pelo ministério da Saúde do encerramento de algumas maternidades que realizam um número de partos inferiores a 1500 por ano desencadeou, nos últimos dias, uma vaga de protestos nas localidades afectadas. No fim-de-semana passado, na mais visível das manifestações, frente à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa, manifestaram-se milhares de barcelenses, descidos a capital em 120 autocarros fretados pela câmara municipal e unidos em defesa do "direito de nascer em Barcelos". Noutras cidades aconteceram manifestações semelhantes, de menor dimensão.
Antes de mais, deve dizer-se que se compreende a reacção de repúdio das populações pelo encerramento das maternidades. A verdade é que os Governos e os políticos não dão em geral razões aos cidadãos para que estes acreditem nas suas promessas e, sendo assim, é natural que a garantia dada por Correia de Campos (de que os cuidados de saúde perinatais e a segurança dos partos irão aumentar) não mereça, à partida, grande crédito. O que os habitantes destas localidades sabem é que vão perder algo imediatamente, em troca de um benefício eventual e longínquo, que não está no seu horizonte (o proverbial pássaro na mão que o Governo quer trocar por dois pássaros a voar).
Posto isto, deve dizer-se que os argumentos apresentados pelo Governo parecem razoáveis. Isto – e note-se bem a ressalva – a verificar-se as premissas de maior qualidade nos estabelecimentos de saúde centrais (que seria bom provar) e a existência de um bom sistema de transportes (que seria bom garantir) e só nesses casos. É verdade que a boa qualidade dos cuidados de saúde exige não apenas equipamentos caros mas equipas dispendiosas e bem treinadas, que não é possível em certos casos manter em unidades de pequena dimensão. A garantia dada pelo ministro é de que as actuais medidas não nascem de um desejo de poupança a todo o custo, mas sim do facto de que elas permitirão poupar 200 vidas por ano. O argumento é de peso.
O que é espantoso, no meio de tudo isto, é que o Governo (e o ministério da Saúde, em particular), que tinham um tal benefício a oferecer às populações locais, não tenha sequer tentado explicar-lhes a sua decisão e tenha decidido anunciá-la com a ligeireza com que o fez. A reacção, assim, não é apenas compreensível: era inevitável.
Mais: a medida agora anunciada não consta do programa do Governo, nem das Grandes Opções do Plano, escudados como sempre atrás da língua de trapos do politiquês vazio ("Reinstituir o planeamento dos recursos hospitalares"), que tem horror à clareza e onde é difícil encontrar seja o que for de substantivo.
A cultura de arrogância do Governo é tal (não apenas deste Governo, mas também deste Governo) que nem é sequer possível encontrar no site do ministério da Saúde os dados e os argumentos que nos poderiam explicar as opções do Governo nesta matéria – já para não falar de um fórum onde outros tivessem podido expor os seus argumentos. Não teria sido isso politicamente conveniente? Não seria um gesto de promoção da cidadania? Não seria eticamente imperativo? Não seria simplesmente inteligente?
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões: é deprimente ouvir manifestantes lamentar que o encerramento da sua maternidade vá fazer dos futuros filhos da terra bracarenses em vez de barcelenses.
É triste verificar que, se no Governo socialista temos ministros tecnicamente capazes que tratam os cidadãos como se eles não existissem, por outro lado as populações se empenham em mostrar que o regionalismo oco é a única força capaz de as fazer percorrer 350 quilómetros para se manifestar.
Texto publicado no jornal Público a 9 de Maio de 2006
Crónica 17/2006
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões.
O anúncio feito pelo ministério da Saúde do encerramento de algumas maternidades que realizam um número de partos inferiores a 1500 por ano desencadeou, nos últimos dias, uma vaga de protestos nas localidades afectadas. No fim-de-semana passado, na mais visível das manifestações, frente à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa, manifestaram-se milhares de barcelenses, descidos a capital em 120 autocarros fretados pela câmara municipal e unidos em defesa do "direito de nascer em Barcelos". Noutras cidades aconteceram manifestações semelhantes, de menor dimensão.
Antes de mais, deve dizer-se que se compreende a reacção de repúdio das populações pelo encerramento das maternidades. A verdade é que os Governos e os políticos não dão em geral razões aos cidadãos para que estes acreditem nas suas promessas e, sendo assim, é natural que a garantia dada por Correia de Campos (de que os cuidados de saúde perinatais e a segurança dos partos irão aumentar) não mereça, à partida, grande crédito. O que os habitantes destas localidades sabem é que vão perder algo imediatamente, em troca de um benefício eventual e longínquo, que não está no seu horizonte (o proverbial pássaro na mão que o Governo quer trocar por dois pássaros a voar).
Posto isto, deve dizer-se que os argumentos apresentados pelo Governo parecem razoáveis. Isto – e note-se bem a ressalva – a verificar-se as premissas de maior qualidade nos estabelecimentos de saúde centrais (que seria bom provar) e a existência de um bom sistema de transportes (que seria bom garantir) e só nesses casos. É verdade que a boa qualidade dos cuidados de saúde exige não apenas equipamentos caros mas equipas dispendiosas e bem treinadas, que não é possível em certos casos manter em unidades de pequena dimensão. A garantia dada pelo ministro é de que as actuais medidas não nascem de um desejo de poupança a todo o custo, mas sim do facto de que elas permitirão poupar 200 vidas por ano. O argumento é de peso.
O que é espantoso, no meio de tudo isto, é que o Governo (e o ministério da Saúde, em particular), que tinham um tal benefício a oferecer às populações locais, não tenha sequer tentado explicar-lhes a sua decisão e tenha decidido anunciá-la com a ligeireza com que o fez. A reacção, assim, não é apenas compreensível: era inevitável.
Mais: a medida agora anunciada não consta do programa do Governo, nem das Grandes Opções do Plano, escudados como sempre atrás da língua de trapos do politiquês vazio ("Reinstituir o planeamento dos recursos hospitalares"), que tem horror à clareza e onde é difícil encontrar seja o que for de substantivo.
A cultura de arrogância do Governo é tal (não apenas deste Governo, mas também deste Governo) que nem é sequer possível encontrar no site do ministério da Saúde os dados e os argumentos que nos poderiam explicar as opções do Governo nesta matéria – já para não falar de um fórum onde outros tivessem podido expor os seus argumentos. Não teria sido isso politicamente conveniente? Não seria um gesto de promoção da cidadania? Não seria eticamente imperativo? Não seria simplesmente inteligente?
Se a reacção das populações é compreensível e até inevitável, isso não significa que ela se mova apenas pelas boas razões: é deprimente ouvir manifestantes lamentar que o encerramento da sua maternidade vá fazer dos futuros filhos da terra bracarenses em vez de barcelenses.
É triste verificar que, se no Governo socialista temos ministros tecnicamente capazes que tratam os cidadãos como se eles não existissem, por outro lado as populações se empenham em mostrar que o regionalismo oco é a única força capaz de as fazer percorrer 350 quilómetros para se manifestar.
terça-feira, julho 26, 2005
Não tem nada que enganar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Julho de 2005
Crónica 23/2005
Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Empurro o carrinho de bebé pelo passeio, em direcção à entrada do Hospital de D. Estefânia, o hospital pediátrico central, em Lisboa.
Frente ao portão do hospital o passeio interrompe-se para dar lugar à entrada de carros. Procuro uma entrada de peões, onde o carrinho possa passar em segurança. Não a vejo e pergunto a um dos seguranças onde é a entrada dos peões. “É aqui!”, responde-me com o ar enfastiado de quem declara o óbvio. Desço do passeio para a faixa de rodagem mas há um carro que vem a sair. O carro estaca à frente do carrinho e a condutora faz-me um gesto para que eu passe à frente. Prefiro recuar para a segurança do passeio e deixá-la passar. Já não há carros, posso entrar com o carrinho de bebé, asfalto fora, como qualquer veículo motorizado que se preze. À minha frente, o edifício central do hospital, tem uma faixa a toda a largura: “Hospital com acreditação Internacional (Health Quality Service)”.
À frente do edifício há uma placa onde se lê “Hospital Pediátrico” e uma lista de departamentos. Também lá está o que eu procuro: ORL. A entrada está vazia. Não há quaisquer orientações para os utentes. À esquerda uma sala com um dístico minúsculo na porta: “Gabinete de Comunicação”. Uma senhora sentada a uma secretária diz-me onde devo ir: “O senhor sai, vira à esquerda, depois segue sempre em frente, passa uns edifícios mas segue sempre em frente, até mesmo ao fundo da rua. É o edifício mesmo lá ao fundo.” Não tenho a certeza de perceber tudo.
“Bom, depois deve estar indicado, não é?” A senhora abre os olhos: “Não sei... Mas não tem nada que enganar.”
À guisa de despedida pergunto porque é que não põem um mapa com essas informações. A senhora sorri e volta a encolher os ombros. Suspeito que a acreditação internacional não se preocupou com ninharias como a informação dos utentes. De qualquer forma, não tem nada que enganar. Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Sigo as indicações. Passo por uma seta que aponta a “Cozinha Geral” e outra que indica a “Central de Impressão” (certamente os dois destinos mais procurados pelos visitantes do hospital) mas nenhuma que indique as consultas de ORL (ou quaisquer outras, aliás). Ao fundo, entre as árvores, o edifício da consulta de ORL.
Entro, apresento os papéis na recepção. “A consulta é no primeiro andar.” “Onde é o elevador?” “Elevador? Não há. Por acaso até instalaram um há uns tempos mas não funciona.” A funcionária aponta para a escada com uma plataforma elevadora, das que funcionam ao longo de um carril.
Mas o edifício, de dois andares, não tem elevador? Não. Afinal é só um hospital pediátrico, é fácil levar as crianças ao colo. Não é tão grave como se se tivesse de pegar em adultos ao colo, não vale a pena dramatizar. Agarro no carrinho com bebé a bordo e subo as escadas.
Tento consolar-me: se este hospital tem uma acreditação internacional da área da saúde isso deve querer dizer que a qualidade dos seus cuidados de saúde compensa os pequenos desconfortos. Mas não posso deixar de pensar que, se estes desconfortos existem é porque ninguém esteve para se chatear, desde o arquitecto que desenhou o edifício pediátrico sem elevador aos que o construíram, dos que o encomendaram e lhe pagaram, até aos médicos, aos funcionários e aos utentes que o usam. Não tem nada que enganar.
Texto publicado no jornal Público a 26 de Julho de 2005
Crónica 23/2005
Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Empurro o carrinho de bebé pelo passeio, em direcção à entrada do Hospital de D. Estefânia, o hospital pediátrico central, em Lisboa.
Frente ao portão do hospital o passeio interrompe-se para dar lugar à entrada de carros. Procuro uma entrada de peões, onde o carrinho possa passar em segurança. Não a vejo e pergunto a um dos seguranças onde é a entrada dos peões. “É aqui!”, responde-me com o ar enfastiado de quem declara o óbvio. Desço do passeio para a faixa de rodagem mas há um carro que vem a sair. O carro estaca à frente do carrinho e a condutora faz-me um gesto para que eu passe à frente. Prefiro recuar para a segurança do passeio e deixá-la passar. Já não há carros, posso entrar com o carrinho de bebé, asfalto fora, como qualquer veículo motorizado que se preze. À minha frente, o edifício central do hospital, tem uma faixa a toda a largura: “Hospital com acreditação Internacional (Health Quality Service)”.
À frente do edifício há uma placa onde se lê “Hospital Pediátrico” e uma lista de departamentos. Também lá está o que eu procuro: ORL. A entrada está vazia. Não há quaisquer orientações para os utentes. À esquerda uma sala com um dístico minúsculo na porta: “Gabinete de Comunicação”. Uma senhora sentada a uma secretária diz-me onde devo ir: “O senhor sai, vira à esquerda, depois segue sempre em frente, passa uns edifícios mas segue sempre em frente, até mesmo ao fundo da rua. É o edifício mesmo lá ao fundo.” Não tenho a certeza de perceber tudo.
“Bom, depois deve estar indicado, não é?” A senhora abre os olhos: “Não sei... Mas não tem nada que enganar.”
À guisa de despedida pergunto porque é que não põem um mapa com essas informações. A senhora sorri e volta a encolher os ombros. Suspeito que a acreditação internacional não se preocupou com ninharias como a informação dos utentes. De qualquer forma, não tem nada que enganar. Acho que é essa a razão por que as estradas não têm indicações, nem as ruas, nem os hospitais. Em Portugal, não tem nada que enganar.
Sigo as indicações. Passo por uma seta que aponta a “Cozinha Geral” e outra que indica a “Central de Impressão” (certamente os dois destinos mais procurados pelos visitantes do hospital) mas nenhuma que indique as consultas de ORL (ou quaisquer outras, aliás). Ao fundo, entre as árvores, o edifício da consulta de ORL.
Entro, apresento os papéis na recepção. “A consulta é no primeiro andar.” “Onde é o elevador?” “Elevador? Não há. Por acaso até instalaram um há uns tempos mas não funciona.” A funcionária aponta para a escada com uma plataforma elevadora, das que funcionam ao longo de um carril.
Mas o edifício, de dois andares, não tem elevador? Não. Afinal é só um hospital pediátrico, é fácil levar as crianças ao colo. Não é tão grave como se se tivesse de pegar em adultos ao colo, não vale a pena dramatizar. Agarro no carrinho com bebé a bordo e subo as escadas.
Tento consolar-me: se este hospital tem uma acreditação internacional da área da saúde isso deve querer dizer que a qualidade dos seus cuidados de saúde compensa os pequenos desconfortos. Mas não posso deixar de pensar que, se estes desconfortos existem é porque ninguém esteve para se chatear, desde o arquitecto que desenhou o edifício pediátrico sem elevador aos que o construíram, dos que o encomendaram e lhe pagaram, até aos médicos, aos funcionários e aos utentes que o usam. Não tem nada que enganar.
sábado, março 06, 1999
A centenária aspirina
José Vítor Malheiros
A 6 de Março de 1899, faz hoje 100 anos, a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha. Conta a história que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer, chamado Felix Hoffman, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai. Hoje, as cefaleias que infernizam a vida de cada um, vergam-se ao conhecido comprimido branco. E passado um século, é a vez da super-aspirina, mais amiga do estômago, subir ao palco.
Se fosse uma divindade, Aspirina seria a deusa da Saúde e o seu nome grego seria Panaceia. Uma divindade doméstica, com um sorriso pacificador, umas mãos frescas e mornas como as mãos das mães e para a qual todos os homens se voltariam num momento ou noutro.
A história oficial diz que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer no dia 10 de Agosto de 1897, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai.
O nome do homem era Felix Hoffmann (não confundir com o Albert Hofmann que em 1943 sintetizou o LSD) e a foto que o imortalizou mostra-o empertigado e olhando a câmara a três quartos, como era da praxe, de chapéu de coco, exibindo um sorriso satisfeito consigo mesmo, um brilhozinho nos olhos e uma barba de evocação pasteuriana.
A descoberta do ácido acetilsalicílico não foi feita por acaso, nem foi o resultado de uma intuição genial, nem sequer era surpreendente - como seria adequado para aquela que pode reivindicar sem grande contestação o título de "droga do século". A substância fabricada por Hoffmann, que o químico tinha conseguido estabilizar de forma a poder ser usada como medicamento, era apenas uma variação de outra, o ácido salicílico, que já era usado desde 1875 para aliviar a febre e cujo uso tinha raízes na Antiguidade. De facto, Hipócrates (em 200 a.C.) descreve e receita extractos de casca e folhas de um tipo de salgueiro (Salix alba), que são ricas em salicina - uma substância natural rica em ácido salicílico - para aliviar dores e febre.
A Bayer de início não deu grande importância à descoberta mas Hoffmann continuou a trabalhar na sua droga e, em 1899 a empresa estava suficientemente convencida da validade do medicamento para iniciar a sua comercialização em grande escala. A 6 de Março deste ano a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha.
Os médicos que começam a usar o pó nos seus doentes relatam melhorias espantosas e a droga torna-se famosa de um dia para o outro.No fim do século, em 1900, a droga encarna a invasão da vida quotidiana pela indústria farmacêutica: o pó branco passa a ser vendido sob a forma de comprimidos solúveis em água, acondicionados em práticos tubinhos de vidro. É a primeira droga de uso geral a ser vendida sob a forma de comprimidos e o público adere entusiasticamente. Até aí, a preparação de cada receita exigia uma visita ao boticário - frequentemente duas: uma para deixar a receita e outra, horas depois, para ir buscar o medicamento, preparado na oficina das traseiras da loja - mas a aspirina permite a popularização do uso de medicamentos.
O pré-acondicionamento da droga em comprimidos (o pó branco é "comprimido" em pequenas pastilhas) reduz para metade o custo do medicamento, o que ajuda à sua vulgarização.
O novo século começa com a promessa do fim das dores e a esperança da vitória sobre a doença. Em 1915 a aspirina entra com os dois pés no domínio público e passa a ser um produto de venda livre, impondo as farmácias domésticas como presença obrigatória em todas as casas de banho - "aspirina" passa a ser sinónimo de "comprimido", como "Kodak" é de "máquina fotográfica".
A imagem da aspirina, cuidadosamente desenhada, ajuda à invasão: o comprimido branco, com o seu sabor amargo q.b. e com o nome da Bayer formando uma cruz de cada lado, lembra o escudo de um cruzado em campanha contra a doença.
A generalização e a eficácia da aspirina, aliada aos seus raros efeitos secundários, é reforçada pelo aparecimento dos antibióticos no pós-guerra. A doença, em meados do século, começa a ser vista apenas como um desequilíbrio químico, para cuja cura basta encontrar o comprimido certo, a bala mágica que matará o dragão, a solução química que devolverá a saúde.
A procura de balas mágicas nem sempre é bem sucedida - Richard Nixon, quando quer imitar a promessa de Kennedy de 1961 de pôr um homem na Lua antes do fim da década, promete no início dos anos 70 uma cura do cancro antes do fim da década, com os resultados que se conhece - mas a aspirina continua a acumular sucessos ao longo do século.
Em 1948, descobre-se que a aspirina protege contra ataques cardíacos - ironicamente, nos anos 20 receou-se que a aspirina atacasse o coração e a publicidade empenhava-se em desfazer essa ideia. O uso do medicamento pelos cardíacos demora bastante anos mas acaba por se generalizar. Hoje, dos cinquenta mil milhões de aspirinas vendidas, mais de um terço (37 por cento) é usado na prevenção de ataques cardíacos - as dores de cabeça só aparecem em terceiro lugar (14 por cento), antecedidas da artrite (23 por cento) e seguidos das dores em geral (12 por cento).
A aspirina combate a dor, mas também a inflamação, a febre e melhora a circulação sanguínea - uma vantagem cujo reverso é a razão da principal contra-indicação da droga: o risco de hemorragias. O rol de indicações da aspirina não pára de crescer e ainda continua: da artrite às tromboses, da diabetes à doença de Alzheimer, a aspirina contribui para o tratamento de dezenas e dezenas de doenças.
O seu uso regular poderia salvar ainda 100.000 pessoas por ano, que têm ataques cardíacos mortais mas evitáveis, dizem os estudos, mas a aspirina é vítima do seu próprio êxito: tornou-se demasiado vulgar, é demasiado barata e tem uma imagem demasiado modesta para ser levada a sério por muitos utilizadores. Apesar da história do século XX ser a história da sua conquista do mundo.
A 6 de Março de 1899, faz hoje 100 anos, a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha. Conta a história que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer, chamado Felix Hoffman, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai. Hoje, as cefaleias que infernizam a vida de cada um, vergam-se ao conhecido comprimido branco. E passado um século, é a vez da super-aspirina, mais amiga do estômago, subir ao palco.
Se fosse uma divindade, Aspirina seria a deusa da Saúde e o seu nome grego seria Panaceia. Uma divindade doméstica, com um sorriso pacificador, umas mãos frescas e mornas como as mãos das mães e para a qual todos os homens se voltariam num momento ou noutro.
A história oficial diz que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer no dia 10 de Agosto de 1897, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai.
O nome do homem era Felix Hoffmann (não confundir com o Albert Hofmann que em 1943 sintetizou o LSD) e a foto que o imortalizou mostra-o empertigado e olhando a câmara a três quartos, como era da praxe, de chapéu de coco, exibindo um sorriso satisfeito consigo mesmo, um brilhozinho nos olhos e uma barba de evocação pasteuriana.
A descoberta do ácido acetilsalicílico não foi feita por acaso, nem foi o resultado de uma intuição genial, nem sequer era surpreendente - como seria adequado para aquela que pode reivindicar sem grande contestação o título de "droga do século". A substância fabricada por Hoffmann, que o químico tinha conseguido estabilizar de forma a poder ser usada como medicamento, era apenas uma variação de outra, o ácido salicílico, que já era usado desde 1875 para aliviar a febre e cujo uso tinha raízes na Antiguidade. De facto, Hipócrates (em 200 a.C.) descreve e receita extractos de casca e folhas de um tipo de salgueiro (Salix alba), que são ricas em salicina - uma substância natural rica em ácido salicílico - para aliviar dores e febre.
A Bayer de início não deu grande importância à descoberta mas Hoffmann continuou a trabalhar na sua droga e, em 1899 a empresa estava suficientemente convencida da validade do medicamento para iniciar a sua comercialização em grande escala. A 6 de Março deste ano a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha.
Os médicos que começam a usar o pó nos seus doentes relatam melhorias espantosas e a droga torna-se famosa de um dia para o outro.No fim do século, em 1900, a droga encarna a invasão da vida quotidiana pela indústria farmacêutica: o pó branco passa a ser vendido sob a forma de comprimidos solúveis em água, acondicionados em práticos tubinhos de vidro. É a primeira droga de uso geral a ser vendida sob a forma de comprimidos e o público adere entusiasticamente. Até aí, a preparação de cada receita exigia uma visita ao boticário - frequentemente duas: uma para deixar a receita e outra, horas depois, para ir buscar o medicamento, preparado na oficina das traseiras da loja - mas a aspirina permite a popularização do uso de medicamentos.
O pré-acondicionamento da droga em comprimidos (o pó branco é "comprimido" em pequenas pastilhas) reduz para metade o custo do medicamento, o que ajuda à sua vulgarização.
O novo século começa com a promessa do fim das dores e a esperança da vitória sobre a doença. Em 1915 a aspirina entra com os dois pés no domínio público e passa a ser um produto de venda livre, impondo as farmácias domésticas como presença obrigatória em todas as casas de banho - "aspirina" passa a ser sinónimo de "comprimido", como "Kodak" é de "máquina fotográfica".
A imagem da aspirina, cuidadosamente desenhada, ajuda à invasão: o comprimido branco, com o seu sabor amargo q.b. e com o nome da Bayer formando uma cruz de cada lado, lembra o escudo de um cruzado em campanha contra a doença.
A generalização e a eficácia da aspirina, aliada aos seus raros efeitos secundários, é reforçada pelo aparecimento dos antibióticos no pós-guerra. A doença, em meados do século, começa a ser vista apenas como um desequilíbrio químico, para cuja cura basta encontrar o comprimido certo, a bala mágica que matará o dragão, a solução química que devolverá a saúde.
A procura de balas mágicas nem sempre é bem sucedida - Richard Nixon, quando quer imitar a promessa de Kennedy de 1961 de pôr um homem na Lua antes do fim da década, promete no início dos anos 70 uma cura do cancro antes do fim da década, com os resultados que se conhece - mas a aspirina continua a acumular sucessos ao longo do século.
Em 1948, descobre-se que a aspirina protege contra ataques cardíacos - ironicamente, nos anos 20 receou-se que a aspirina atacasse o coração e a publicidade empenhava-se em desfazer essa ideia. O uso do medicamento pelos cardíacos demora bastante anos mas acaba por se generalizar. Hoje, dos cinquenta mil milhões de aspirinas vendidas, mais de um terço (37 por cento) é usado na prevenção de ataques cardíacos - as dores de cabeça só aparecem em terceiro lugar (14 por cento), antecedidas da artrite (23 por cento) e seguidos das dores em geral (12 por cento).
A aspirina combate a dor, mas também a inflamação, a febre e melhora a circulação sanguínea - uma vantagem cujo reverso é a razão da principal contra-indicação da droga: o risco de hemorragias. O rol de indicações da aspirina não pára de crescer e ainda continua: da artrite às tromboses, da diabetes à doença de Alzheimer, a aspirina contribui para o tratamento de dezenas e dezenas de doenças.
O seu uso regular poderia salvar ainda 100.000 pessoas por ano, que têm ataques cardíacos mortais mas evitáveis, dizem os estudos, mas a aspirina é vítima do seu próprio êxito: tornou-se demasiado vulgar, é demasiado barata e tem uma imagem demasiado modesta para ser levada a sério por muitos utilizadores. Apesar da história do século XX ser a história da sua conquista do mundo.
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