Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2014
Crónica 26/2014
O objectivo não é defender o Estado, mas garantir a opacidade dos organismos do Ministério da Saúde.
1. Chamam-lhe o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas das quais já fizeram os seus comentários.
Entre as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou colocar em causa” o interesse da organização.
Para além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.
A primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento, “oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”, mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.
Repare-se que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido, mas o resto também.
É particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação social.
À primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente, garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.
Um verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower seja a prioridade de Paulo Macedo.
Sobre este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu serviço ou instituição”.
2. O mesmo “Código de Ética” pretende obrigar os funcionários do SNS a entregar à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde todas as ofertas que recebam para que elas sejam posteriormente doadas a instituições de solidariedade social. O objectivo é meritório, ainda que o procedimento pareça excessivamente pesado e ineficaz (se não promotor de maior clandestinidade). Gastar 50 euros em procedimentos administrativos, transporte, armazenamento e arquivo digital para que um funcionário não guarde para si um brinde de um euro é um disparate. Mas o que é mais surpreendente é que seja o Governo do PSD-CDS, partidos cujos militantes são conhecidos pelo seu apreço às prendas, a tentar impor esta disciplina aos funcionários do SNS.
O intento moralizador de Paulo Macedo seria mais credível se os partidos do Governo, antes de tentarem impor esta frugalidade aos funcionários públicos, anunciassem que todos os membros do Governo e deputados das suas fileiras passarão a recusar qualquer prenda que lhes queiram dar. Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, ex-futuro ministro das Finanças de Passos Coelho e verdadeiro padrinho da troika, gabava-se de receber “pratas, vinhos raros e livros” quando era ministro e queixava-se de ter perdido prendas quando deixou de ser ministro, o que achava não só natural como muito agradável. Que tal começar a moralização por cima?
jvmalheiros@gmail.com
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