por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Maio de 2008
Crónica x/2008
Texto publicado no jornal Público a 13 de Maio de 2008
Crónica x/2008
A "General History of Labyrinths", de Silas Haslam, é um livro com belíssimas ilustrações feitas pela mulher do autor
Uma coisa que têm de fascinante a arte ou a religião (poderia dizer-se o pensamento ou a linguagem) é a sua impossibilidade de ter como referente o inexistente. Basta nomear algo para essa coisa existir. Basta imaginar que se intuiu, sonhar que se imaginou.
Não precisamos de resolver se o pensamento é possível ou não sem a linguagem para saber que ambos são indissociáveis da criação. Criamos como respiramos, mesmo sem querer, e inventamos sentido de forma automática para o mais ténue dos ectoplasmas. É impossível que algo não tenha uma história. Tudo evoca algo.
Vistas as coisas assim, não há nada que não exista. As coisas existem mais ou menos corporeamente, apenas. Mais ou menos consensualmente. Mas todas as coisas nomeáveis existem, todas as coisas vislumbradas, sentidas, imaginadas, desejadas. No mundo do pensamento ou da linguagem, o real é apenas uma das categorias das coisas, o irreal é apenas outra.
Quando George W. Bush falou de "nucular weapons" elas passaram a existir como expressão, aliás rica de significado (veja-se www.wikiality.com/Nucular_weapons), ainda que não como armas físicas. Exactamente da mesma maneira que a expressão "pensamento político de Luís Filipe Menezes" também existe.
Curiosamente, esta produção de sentido - racional por excelência, mas não exclusivamente devida à razão (vide Damásio) - constitui um contraponto à ciência moderna. Enquanto na Idade Média tudo era possível - um dragão podia fazer desaparecer um castelo com um sopro -, a ciência do século XVII fez surgir o impossível, com a sua tónica na experimentação, em causas e efeitos. O impossível do mundo real desvanece-se na nossa mente e é por isso que até sabemos a cor das escamas do dragão.
Lembro-me de uma vez, antes da Web, ter telefonado para a livraria inglesa Hatchards para fazer uma encomenda e de ter incluído no rol um livro que fez o meu livreiro franzir o sobrolho: "A General History of Labyrinths", de Silas Haslam. "Onde é que viu essa referência? Por acaso foi num livro de Borges?" "Ah... acho que sim... porquê?" "É uma daquelas brincadeiras que ele faz. Esse livro não existe." Fiquei desiludido porque se trata de um livro excelente, de grande erudição, com belíssimas ilustrações feitas pela mulher do autor, Anna, uma estudante de Belas-Artes vienense que viria a enlouquecer e que morreu num manicómio em Londres, mas não havia nada a fazer. Se o livro não existia não o podia comprar. Mas sei como ele é.
A revista "New Yorker" possui uma secção sobre língua onde os leitores podem sugerir palavras que não existem mas deviam existir. A maior parte delas são complexas e eruditas, mas é provável que alguma acabe por entrar na língua, apesar da estreiteza da porta. E todas estas palavras existem, todas possuem origens e sentido.
Numa conversa sobre palavras (não, não foi o acordo ortográfico) com a minha filha de nove anos, onde ela evidenciava o conservadorismo natural da idade, desafiei-a a dada altura a dizer uma palavra que não existisse. "Homlipse!" foi a resposta rápida, logo seguida de dúvida "Já existe?..." "Agora já! Inventaste-a!" "E o que é que quer dizer?" "Escreve-se com agá ou sem agá?" "Com agá!" "Uma homlipse é todo o pensamento de onde o humano está ausente. É quando não se pensa nas pessoas mas só nas coisas". "Inventaste agora, não foi?" "Tu inventaste a palavra, eu tinha de dar um significado. É uma palavra um bocado difícil". "É porque tinha de ser uma palavra que não existisse."
Agora já existe mesmo e daqui a uns dias até pode ser procurada no Google. Por enquanto, o Google dá como alternativa "homeclips". Jornalista
Uma coisa que têm de fascinante a arte ou a religião (poderia dizer-se o pensamento ou a linguagem) é a sua impossibilidade de ter como referente o inexistente. Basta nomear algo para essa coisa existir. Basta imaginar que se intuiu, sonhar que se imaginou.
Não precisamos de resolver se o pensamento é possível ou não sem a linguagem para saber que ambos são indissociáveis da criação. Criamos como respiramos, mesmo sem querer, e inventamos sentido de forma automática para o mais ténue dos ectoplasmas. É impossível que algo não tenha uma história. Tudo evoca algo.
Vistas as coisas assim, não há nada que não exista. As coisas existem mais ou menos corporeamente, apenas. Mais ou menos consensualmente. Mas todas as coisas nomeáveis existem, todas as coisas vislumbradas, sentidas, imaginadas, desejadas. No mundo do pensamento ou da linguagem, o real é apenas uma das categorias das coisas, o irreal é apenas outra.
Quando George W. Bush falou de "nucular weapons" elas passaram a existir como expressão, aliás rica de significado (veja-se www.wikiality.com/Nucular_weapons), ainda que não como armas físicas. Exactamente da mesma maneira que a expressão "pensamento político de Luís Filipe Menezes" também existe.
Curiosamente, esta produção de sentido - racional por excelência, mas não exclusivamente devida à razão (vide Damásio) - constitui um contraponto à ciência moderna. Enquanto na Idade Média tudo era possível - um dragão podia fazer desaparecer um castelo com um sopro -, a ciência do século XVII fez surgir o impossível, com a sua tónica na experimentação, em causas e efeitos. O impossível do mundo real desvanece-se na nossa mente e é por isso que até sabemos a cor das escamas do dragão.
Lembro-me de uma vez, antes da Web, ter telefonado para a livraria inglesa Hatchards para fazer uma encomenda e de ter incluído no rol um livro que fez o meu livreiro franzir o sobrolho: "A General History of Labyrinths", de Silas Haslam. "Onde é que viu essa referência? Por acaso foi num livro de Borges?" "Ah... acho que sim... porquê?" "É uma daquelas brincadeiras que ele faz. Esse livro não existe." Fiquei desiludido porque se trata de um livro excelente, de grande erudição, com belíssimas ilustrações feitas pela mulher do autor, Anna, uma estudante de Belas-Artes vienense que viria a enlouquecer e que morreu num manicómio em Londres, mas não havia nada a fazer. Se o livro não existia não o podia comprar. Mas sei como ele é.
A revista "New Yorker" possui uma secção sobre língua onde os leitores podem sugerir palavras que não existem mas deviam existir. A maior parte delas são complexas e eruditas, mas é provável que alguma acabe por entrar na língua, apesar da estreiteza da porta. E todas estas palavras existem, todas possuem origens e sentido.
Numa conversa sobre palavras (não, não foi o acordo ortográfico) com a minha filha de nove anos, onde ela evidenciava o conservadorismo natural da idade, desafiei-a a dada altura a dizer uma palavra que não existisse. "Homlipse!" foi a resposta rápida, logo seguida de dúvida "Já existe?..." "Agora já! Inventaste-a!" "E o que é que quer dizer?" "Escreve-se com agá ou sem agá?" "Com agá!" "Uma homlipse é todo o pensamento de onde o humano está ausente. É quando não se pensa nas pessoas mas só nas coisas". "Inventaste agora, não foi?" "Tu inventaste a palavra, eu tinha de dar um significado. É uma palavra um bocado difícil". "É porque tinha de ser uma palavra que não existisse."
Agora já existe mesmo e daqui a uns dias até pode ser procurada no Google. Por enquanto, o Google dá como alternativa "homeclips". Jornalista