terça-feira, novembro 21, 2006

Prendas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 21 de Novembro de 2006
Crónica 41/2006

No entanto, nada disto tem de ser assim. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.

Todos os anos é a mesma coisa. Queixamo-nos do consumismo da data; queixamo-nos da agressão comercial e da despudorada publicidade destinada às crianças; queixamo-nos da abundância de prendas que as nossas crianças recebem – tantas que nem têm tempo para as desfrutar, tantas que nem conseguem apreciar as que têm; queixamo-nos do materialismo que substitui a solidariedade a que a data devia supostamente ser votada; queixamo-nos das prendas inúteis que recebemos, compradas só para que o nosso nome possa ser riscado de uma lista de prendas.

Todos os anos é a mesma coisa mas isso só nos assalta quando os centros comerciais se enchem dos enfeites natalícios (no final de Outubro!) e quando jovens matinais invisíveis começam a atafulhar as nossas caixas de correio com enormes panfletos coloridos e indesejados cheios de Pais Natais, enquanto os canais e os programas infantis explodem em anúncios.

Pensamos que nada disto é bom, que nada disto é necessário para os nossos filhos, que não é assim que os queremos educar, e descobrimo-nos uns dias antes do Natal mergulhados em mares de gente, a tentar encontrar a última versão da boneca, o último modelo da consola, a encher caixas com brinquedos e a embrulhar prendas num frenesim alucinado, infectados pelo espírito do Natal venal.

Envergonhamo-nos desta girândola de futilidades enquanto mil milhões de seres humanos vivem com 80 cêntimos de euro por dia, enquanto mais de 4.000 crianças morrem por dia por falta de água e de cuidados básicos de higiene, mas continuamos no ano seguinte e no aniversário seguinte, depois da purificação de um suspiro.

E, no entanto, nada disto tem de ser assim. A dádiva natalícia não tem de ser um estímulo da posse e da cupidez e o desejo de dar não tem de ser sempre canalizado para as prateleiras das grandes superfícies. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.

Há no mercado um número crescente de empresas que promete oferecer para causas nobres uns cêntimos por cada compra que fazemos ou uma parte dos lucros que fizerem em certos produtos. Todas estas iniciativas são meritórias – ainda que não seja sempre claro se o fazem por cálculo comercial ou genuína solidariedade – e isto é certamente algo que podemos fazer. Mas é possível fazer coisas ainda mais simples e mais úteis, como evitar submergir os nossos filhos e os dos outros em brinquedos supérfluos e dedicar esse tempo e esse dinheiro a comprar algo verdadeiramente útil para alguém que verdadeiramente precisa.

Há organismos internacionais e associações não-governamentais reconhecidas que canalizam dádivas para crianças necessitadas em todo o mundo e hoje em dia todas essas dádivas estão à distância de um clique na Internet. Pode ser dinheiro ou brinquedos, mas também podem ser oferecidas coisas tão básicas como livros ou carteiras para a escola, sapatos ou bibes, mosquiteiros ou... um porco. E estas dádivas têm a vantagem de poder ser usadas para presentear também os nossos amigos, pois elas podem ser feitas em nome de outra pessoa – que recebe um certificado a dizer que a sua prenda está nas mãos de uma criança algures no mundo.

É evidente que isto é difícil de explicar a uma criança de três anos, mas há certamente uma idade a partir da qual estes presentes serão apreciados. E mesmo que apenas encontremos oportunidade para fazer uma destas prendas por ano, isso será melhor que nada.
Os sorrisos podem ficar um bocado mais longe, mas sabemos que eles são sinceros.

terça-feira, novembro 14, 2006

Partilhar e reutilizar

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Novembro de 2006
Crónica 40/2006

Em vez de blindar as obras, as CC permitem que o seu autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada.

A culpa, é antes de mais, da tecnologia digital. Antes do digital, cada cópia (de uma música, de um filme, de um livro) ia ficando cada vez mais ténue, mais afastada do original, cada vez com mais ruído, até se tornar pouco prática ou inútil. Não que não houvesse cópias, mas cada cópia transportava consigo uma penalização. Com o digital apareceu o paraíso da cópia igual ao original e nasceu o inferno para o copyright.

A culpa é, depois, da Internet. Com a difusão permitida pela Internet, onde todos somos editores e é fácil localizar tudo, as cópias tornaram-se banais; o acesso a material com copyright, quotidiano. Mas a Web não trouxe só a facilidade da cópia – trouxe uma maré alta de informação, de cultura, de inputs novos e constantes que veio modificar a forma como trabalhamos, como criamos, como comunicamos: a Web banalizou a reutilização da informação, sem que o quadro legal do copyright tivesse integrado esse novo paradigma.

As licenças Creative Commons, que foram ontem lançadas em Portugal, flexibilizam o conceito de copyright e vêm ajudar a ordenar um mundo onde a ilegalidade se tornou a regra.

A cópia, a reutilização, a reciclagem, o remix (como gosta de dizer o criador das Creative Commons, o jurista/filósofo/tecnólogo Lawrence Lessig) são a base da inovação e da criação na sociedade actual, mas a lei do copyright tem estado mais interessada em defender os direitos patrimoniais dos velhos autores do que em promover o aparecimento de novos criadores e de novas obras.
O problema com as leis de copyright é que elas são demasiado restritivas num mundo cuja tecnologia é muito permissiva – um mundo marcado não só pela grande rapidez nas cópias e grande fluidez na circulação de informação mas também pela possibilidade do anonimato dos utilizadores.
É esta tensão que as CC vêm resolver, de uma forma inovadora que é um ovo de Colombo: em vez de blindar as obras de autor contra o seu uso, reutilização e manipulação, as CC permitem que o autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada. E é claro que, se não quiser abdicar de direito nenhum, não tem de o fazer.

Uma das novidades das Creative Commons é que estas licenças não são uma nova lei – elas funcionam como contratos individuais, celebrados ao abrigo das leis existentes, onde cada autor define a latitude a permitir à utilização das suas obras.

Esta forma de partilha da informação e de reutilização, de remix, é usada na produção científica há séculos com excelentes resultados. Apesar de os artigos estarem protegidos por direitos de autor, no domínio da ciência considera-se que os seus dados podem (e devem) ser reutilizados por outros, que vão assim criando novas obras que vão sendo publicadas de acordo com o mesmo código de uso (e deontológico). E se alguém decidir, de repente, ganhar dinheiro com uma invenção baseada na investigação de outros, que foi difundida gratuitamente? Nesse caso, o autor da invenção deve partilhar os seus benefícios com aqueles que contribuíram para ela.

As CC não são a única experiência actual no domínio da redefinição dos direitos de autor – os movimentos de Free Software e de copyleft são os mais conhecidos – mas todas elas demonstram a necessidade e a oportunidade que a tecnologia criou de definir não apenas "novas formas de propriedade" mas novas formas de "apropriação comum" e de regular o crescente uso partilhado da informação. Estas tendências são tanto mais interessantes quanto elas vêm equilibrar novos poderes e novos quase-monopólios que a tecnologia ameaçava criar. De que forma todas estas tendências se vão articular é algo que apenas os próximos episódios dirão.

terça-feira, novembro 07, 2006

Puxar e empurrar

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Novembro de 2006
Crónica 39/2006

O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção"

Já estamos de tal forma habituados que nem falamos disso, mas uma das características mais importantes da Web é o facto de a rede não enviar informação para ninguém que não a tenha previamente pedido. Para aceder a um site temos de escrever o seu endereço ou de clicar num link. Só depois o site envia para o nosso computador a página que pedimos. A expressão técnica para isto é tecnologia "pull" (puxar): para obter a informação que queremos é preciso "puxá-la" para o nosso computador.

A tecnologia "pull" é o oposto da tecnologia "push", que consiste em "empurrar" a informação para os clientes. A TV ou a rádio são exemplos clássicos de tecnologia "push". Toda a difusão é "push" (radiodifusão, teledifusão), ainda que isso não signifique que o utilizador seja obrigado a consumir aquilo que é empurrado para cima dele. De entre a oferta que é difundida, o consumidor pode escolher o que quer, mas é evidente que o poder de escolha que é entregue ao utilizador da Web é infinitamente maior.

É por isto que dizemos que na Web se "disponibiliza" informação (que fica quieta num servidor à espera de ser chamada pelos interessados), enquanto nos outros meios se diz que se "distribui" ou se "difunde" informação.

É, entre outros factores, a lógica "pull" da web que permite que todos sejamos editores: como não se gasta energia para empurrar a informação para todo o universo de utilizadores possíveis (à espera que um deles a use), como basta escrever um texto e depositá-lo num servidor, ficando o "custo do transporte" do lado do consumidor, isso facilita a multiplicação de produtores de informação.

Se há um domínio onde a lógica predominante continua a ser a de empurrar o produto para a frente dos olhos do consumidor, não só quando ele não o pede mas mesmo quando ele expressamente não o deseja, é o mundo da publicidade.

O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção": se queremos ver um filme na televisão, interrompem-nos o filme com anúncios; se queremos ouvir um debate na rádio, obrigam-nos a ouvir um ror de anúncios; se queremos jantar, telefonam-nos para nos convencer a mudar de banco.

Poder-se-ia definir a publicidade como a arte de obrigar o consumidor a ver algo que não quer, para o convencer a comprar algo de que não precisa. E o verdadeiro êxito consiste em forçar um cidadão a ver um anúncio o número de vezes suficiente para o levar a vomitar.

Esta violação da vontade do cidadão é alegremente tolerada com a desculpa de que se trata "da economia" e o argumento totalitário de que, se alguém não quer ver publicidade, pode não ver televisão, não ouvir rádio, nem ler jornais, não ir ao cinema e andar pela rua de olhos fechados.

O advento da Internet fez sonhar um mundo diferente: um mundo onde a publicidade passasse também a seguir a lógica "pull" e pudesse ser apresentada apenas a quem a pedisse. Isto faz tanto mais sentido quanto os consumidores gostam de publicidade (quando é bem feita), precisam dela e usam-na para os ajudar a tomar decisões de compra. A única coisa que gostariam de dispensar é a agressão, não a publicidade. Quem quer comprar um carro não dispensa os anúncios de carros e quem se interessa por tecnologia (mesmo que não vá comprar um computador) folheia com prazer e proveito os anúncios de informática. A promessa de uma publicidade civilizada, porém, está ainda por cumprir. A publicidade online está a ganhar terreno, crescendo a bom ritmo, mas, apesar da tecnologia permitir formas inteligentes de promoção de bens e serviços, as fórmulas mais usadas repetem as receitas agressivas e pouco interessantes dos outros suportes e o "permission marketing" (onde se pergunta aos clientes que publicidade querem receber) é ainda uma miragem. Mas, da mesma maneira que a Web representou uma revolução, pelo poder que deu aos consumidores de informação, há uma revolução a ganhar para os anunciantes que comecem a tratar os consumidores como seres pensantes.