quarta-feira, outubro 28, 2015

Especialistas e não-especialistas (Post no Facebook - 27 Outubro 2015)

Post publicado no Facebook, no mural de Eduardo Rego - 27 Outubro 2015
(https://www.facebook.com/eduardo.rego.52)

Quero fazer um comentário ao seu comentário ao meu comentário a um post do Jorge Buescu e sei que posso confiar na sua abertura para esta discussão. Quando fala da "forma demasiado assertiva, cheia de certezas, que algumas pessoas não especialistas exibem" quando falam sobre economia ou direito (ou outro assunto qualquer) conhecendo muito pouco da matéria em causa, e se depreende a sua incomodidade ou irritação por esse facto, todos sabemos de que fala. Pode de facto ser muito irritante ouvir alguém que tem apenas um conhecimento superficial de um assunto pretender apresentar-se como um profundo conhecedor.
Mas gostaria de fazer algumas observações sobre este ponto:
1- Penso que essa situação é rara. Receio que o que aconteça com frequência, é que, ao ouvirmos alguém falar em público sobre uma questão qualquer e exprimir a sua opinião (sobre a constitucionalidade da formação deste ou daquele governo, por exemplo), consideramos, de forma apressada, que essa pessoa pretende “armar em especialista” quando está apenas a exprimir uma opinião como cidadão ou como comentador generalista. Todos, leigos e especialistas, têm direito a ter, exprimir e defender a sua opinião e fazê-lo, mesmo de forma demasiado assertiva, não significa pretender assumir um estatuto que não se possui. A opinião de uma pessoa leiga, sensata e com um conhecimento superficial da Constituição (para prosseguir com o exemplo que escolhi), não é menos válida que a de um constitucionalista para o debate público - para nos ajudar a considerar várias possibilidades e pensar sobre elas como cidadãos. Digo acima que “receio” porque, implícito naquele julgamento, que fazemos com frequência, está a ideia de que apenas os especialistas devem comentar certos assuntos. Assim, ao ouvirmos um jornalista ou um empresário falar sobre a Constituição, podemos dizer, com demasiada leviandade, que está a “armar em especialista” quando está apenas a fazer o que, como cidadão e como profissional, lhe compete.
Dito de outra forma: acho que estamos, como sociedade, pouco habituados ao exercício da cidadania e ainda achamos demasiado estranho o facto de um simples cidadão, não -especialista, comentar um assunto da esfera social/política/jurídica/económica. Temos dificuldade para lhe reconhecer idoneidade para o fazer, como simples cidadão. No entanto, não existem peritos em cidadania que tenham, sobre esta questão, maior autoridade que todas as outras pessoas.
2 - É verdade que há não-especialistas que falam de "forma demasiado assertiva, cheia de certezas" e que isso pode ser irritante. Mas a mesma coisa acontece, exactamente nos mesmos termos, com os especialistas. Penso que isso acontece até com muito mais frequência entre os especialistas do que entre os não-especialistas e que isso é, não só mais frequente, mas muito mais perigoso. Pode dizer-se “Ah… mas os especialistas têm autoridade para o fazer, porque eles conhecem o assunto de que falam”. Se estivermos a referir-nos a factos sobre genética ou sobre sismos, isso pode ser verdade. Mas certamente que não é (ou apenas raramente o é) quando se fala de política económica ou da interpretação das leis, para prosseguir com o mesmo exemplo.
Penso mesmo que um dos maiores problemas políticos actuais (e, secundariamente, um sério problema de ética científica) é o facto de termos a paisagem mediática invadida por especialistas, técnicos, investigadores, professores, pessoas academicamente certificadas como peritos mas na realidade alinhadas com os poderes que, abusando da sua posição de especialistas e apresentando-se sob a pele de sábios independentes, confundem propositadamente factos com opinião e defendem posições sectárias, por vezes profundamente polémicas e ideológicamente extremas, apresentando-as como “factos científicos” indiscutíveis e consensuais e sustentando assim a famosa TINA.
Basta ouvir um painel de politólogos para perceber do que estou a falar.
Penso que é muito mais pernicioso para a sociedade que o especialista “se arme em especialista” para servir interesses particulares que não revela ou para defender a posição de uma facção política do que que o sindicalista “se arme” em constitucionalista para servir uma posição que é publicamente assumida e que todos sabemos qual é.
3 - As questões de economia ou de direito (ou de defesa, ou de ordenamento do território ou…) têm, evidentemente, um enorme conteúdo técnico, mas são essencialmente questões políticas, de cidadania, que todos devemos discutir e temos capacidade para discutir. Os especialistas de todas essas áreas tem uma responsabilidade maior nessa discussão, deveres mais exigentes, porque devem fornecer toda a informação possível à sociedade (e “informação” inclui dar a conhecer as diferentes opiniões e os debates em curso) mas não possuem nenhum direito particular. As decisões sobre todas estas questões são de ordem política e, para definir o tipo de sociedade que queremos, todos somos especialistas, em pé de igualdade.

terça-feira, outubro 27, 2015

Fernando Negrão (Post no Facebook a 24 de Outubro de 2015)

"Se me perguntar a minha opinião, eu direi que os partidos que são contra a integração na União Europeia, os partidos que são contra a moeda única, os partidos que são contra as alianças militares como a NATO não devem integrar um governo na União Europeia".
As palavras são de Fernando Negrão, candidato apresentado pelo PSD e CDS à presidência da Assembleia da República, ontem felizmente derrotado, e foram proferidas ontem, diante das câmaras de televisão.
Se considerarmos que Negrão é um verdadeiro jurista (não daqueles que fez Direito apenas para facilitar o tráfico de influências e ganhar dinheiro em negócios escuros), um juiz de direito e uma pessoa geralmente considerada como um democrata e uma pessoa de bom senso, podemos apreciar bem o nível de desnorte, de fúria revanchista e de radicalismo anti-democrático que invadiu as fileiras do PSD.
O que Cavaco nunca soube mas aparentemente até um deputado até aqui legalista e institucionalista como Negrão esqueceu é que quem “não deve” integrar um governo não são as forças que defendem ou criticam esta ou aquela política, mas sim e apenas as forças que não possuam apoio parlamentar suficiente. São apenas essas as forças que “não devem” estar no Governo. Ser contra a moeda única, o euro ou a NATO não é proibido e não é um crime. É apenas uma opinião e não existem em Portugal crimes de opinião. Negrão e todo o PSD e todo o CDS podem ter uma opinião diferente, mas isso não torna a sua opinião mais correcta e certamente não a torna mais respeitável. Negrão pode dizer que não gosta, pode dar argumentos para justificar por que razão não gosta, mas não pode dizer, em abstracto, que algumas forças “não devem” integrar o Governo para mais quando, em concreto, essas forças até possuem todos os requisitos políticos e constitucionais para o fazer e tudo, na política e na Constituição, diz que “devem”. Não há, nos programas dessas forças políticas com quem Negrão não simpatiza, nada que esteja em choque com a Constituição – como aliás o Tribunal Constitucional tem de garantir.
O que lamentavelmente Negrão deixou de perceber é que o único dever que existe em relação a quem deve ou não deve integrar o Governo é o dever de respeitar a Constituição e a vontade do povo expressa nas eleições, que se traduz na composição do Parlamento. É lamentável que um deputado como Negrão considere que o seu “achómetro” se deve sobrepor à soberania da Assembleia da República.
A decisão sobre quem deve ou não deve estar no Governo pertence ao povo. Isto, pelo menos por enquanto, enquanto o PSD, o CDS e Cavaco não conseguirem lançar o país numa guerra civil para instaurar um regime autoritário sem máscaras, como é cada vez mais claro que sonham fazer.

Cavaco, Boliqueime e a PIDE (Post no Facebook - 27 Outubro 2015)

Há uns anos, depois de não sei que mesquinhez de Cavaco, Marcelo Rebelo de Sousa terá feito o seguinte comentário assassino: "Pois... pode tirar-se o homem de Boliqueime, mas não se pode tirar Boliqueime do homem!"
Houve quem tivesse visto no comentário uma reacção classista do eixo Cascais-Lisboa contra um homem oriundo de classes modestas. Mas a verdade é que nunca ninguém se lembraria de dizer que "não se consegue tirar a Azinhaga do Ribatejo de José Saramago" ou "não se consegue tirar Loulé de António Aleixo" com o mesmo sentido. Não há naturalmente nada contra Boliqueime (que poderia até ter ficado no homem com geniais resultados, como Sernancelhe ficou em Aquilino Ribeiro) mas algo que tem a ver com a mesquinhez de terra pequena, com os pequenos ódios e pequenas rivalidades e bisbilhotices de aldeia, com a vontade de "ser alguém" acima dos outros, de ganhar uma respeitabilidade que se acha que não se tem ou que não se sente reconhecida, com a vontade revanchista de, um dia, mostrar a todos os outros do que se é capaz e poder enfim humilhá-los, que ficou em Cavaco e em torno do qual a sua vida se construiu.
Mas Cavaco não é só de Boliqueime e não é só Boliqueime que não se consegue tirar do homem. É a PIDE que não se consegue tirar do homem.

Comentário publicado no Facebook 27 Outubro 2015 a um post de Jorge Buescu

Comentário publicado no Facebook, na timeline de Jorge Buescu (https://www.facebook.com/jorge.buescu), em resposta a um seu post de 27 Outubro 2015.

Post de Jorge Buescu: “Em Portugal não vale a pena estudar Economia nem Direito. Em 2011-2013 descobri que todos os utilizadores portugueses do Fb eram afinal especialistas ocultos em Economia. A quantidade de comentários definitivos sobre dívida, défice, crescimento, austeridade e respectiva convicção de argumentação convenceram-me de que todos sabem tudo sobre Economia. Em 2015 passa-se o mesmo com a Constituição: afinal, sem que eu imaginasse, todos os portugueses conhecem as subtilezas mais recônditas da nossa Lei Fundamental, e não hesitam mesmo em interpretá-la, realizando um exercício de jurisprudência pessoal que não deixa espaço para dúvidas. Enquanto ignorante de ambos os campos, estou impressionado. Espero apenas que não se siga a Matemática, senão aguarda-me o desemprego.”

Comentário de JVM: "Este é o tipo de comentário que nunca esperaria de alguém que se dedica à divulgação de ciência. Considerar que as pessoas que comentam questões de direito e de economia estão a armar em “especialistas” e a pretender que “sabem tudo” equivale a dizer que deviam estar caladas e que deviam deixar a conversa para os verdadeiros especialistas.
Penso, pelo contrário, que é bom que uma quantidade crescente de cidadãos se tenha começado a interessar por economia e por direito (a ler artigos e livros, a discutir, a ler e a participar em blogs) porque essas questões são questões essenciais da cidadania e não devem, de forma alguma, ficar restringidas aos especialistas. Tal como as questões das ciências duras ou naturais não devem ficar limitadas às discussões dos especialistas - nem sequer a matemática, como penso que Jorge Buescu concordará.
Acho, igualmente, que o esforço feito por muitas dezenas de especialistas de economia e de direito nos últimos anos para divulgar estas disciplinas e para fomentar a sua discussão cidadã, organizando reuniões, publicando livros e artigos e animando discussões online (pessoas como os investigadores José Maria Castro Caldas, Ricardo Paes Mamede, Francisco Louçã, Ricardo Cabral, Paulo Trigo Pereira, Luís Aguiar-Conraria ou Alexandre Abreu, como os jornalistas Rui Peres Jorge, Sérgio Aníbal ou João Ramos de Almeida, como os políticos José Gusmão ou Pedro Nuno Santos, economistas consagrados internacionalmente como Paul Krugman, Joseph Stiglitz ou Thomas Piketty, especialistas de direito como Eduardo Paz Ferreira, António Hespanha ou o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa) não devem ser ignorados e devem, pelo contrário, ser reconhecidos, agradecidos e estimulados. A verdade é que, nos últimos anos, graças ao esforço das pessoas que cito e de muitas mais, a cultura cidadã dos portugueses e, em particular, na área da economia e do direito, sofreram um enorme progresso, que nada autoriza a ridiculizar."

segunda-feira, outubro 26, 2015

Um PR que... (Post no Facebook a 26 de Outubro de 2015)


Um PR que ameaça não cumprir a Constituição que jurou defender, cumprir e fazer cumprir. Um PR que faz chantagem com os deputados da esquerda, ameaçando-os com um eterno governo de gestão de direita se não aprovarem um Governo que eles consideram que atenta contra o interesse nacional. Um PR que tenta dividir um partido apelando sibilinamente à desobediência dos seus deputados não só em relação às orientações da sua direcção, o que seria grave, mas apelando à sua desobediência em relação às suas próprias promessas eleitorais, o que é estarrecedor. Um PR para quem existem votos de primeira e votos de segunda, cidadãos de primeira e de segunda, deputados de primeira e de segunda, partidos de primeira e de segunda. Um PR que se arroga o direito de examinar e de condenar ao index os programas dos partidos que não lhe agradam, apesar de devidamente sancionados pela lei constitucional e pelo povo soberano. Um PR que não hesita em apelar à intervenção das forças internacionais que mais podem prejudicar o país, para o ajudar a impedir a entrada em funções de um governo constitucional com apoio de esquerda. Um PR que se arroga o direito inconstitucional de fazer um exame prévio de um programa de Governo apenas porque este é um Governo de esquerda. Um PR que considera que a lei deve ser diferente para cada um, conferindo mais direitos às pessoas e organizações de direita que às pessoas e organizações de esquerda. Um PR a quem não se conhece um gesto de esboço de tentativa de defesa da soberania nacional e que sempre se pôs de cócoras perante os poderes estrangeiros e o poder financeiro. Um PR que dobra a espinha perante a ditadura da Guiné Equatorial e a cleptocracia angolana e que nunca teve um gesto ou uma palavra em defesa dos direitos humanos quando isso lhe podia causar algum dissabor. Um PR que acha normal que um amigo banqueiro lhe proporcione lucros extraordinários na compra de umas acções e que se indigna quando o interrogam sobre o facto. Um PR que nunca respondeu às suspeitas de comportamento impróprio porque se considera acima da lei e do julgamento moral. Um PR que se julga inimputável e que talvez devesse ser. Um PR que diz - e talvez pense - que está para nascer uma pessoa mais honesta do que ele próprio, o que faz supor que considera a honestidade uma marca de papel higiénico. Um PR que se recusa a comparecer no funeral do único prémio Nobel português porque ele era comunista. Um PR que transborda rancor e azedume e ressentimento. Um PR que semeia o ódio e aduba o terreno da guerra civil. Um PR que é um exemplo de tudo o que não se deve fazer na vida pública. Um PR que é um exemplo de arrogância, de autoritarismo e de opacidade. Um PR que não dignifica a sua função, que se desonra quando actua no âmbito das suas funções, que nos envergonha e envergonha o país. Um PR que está convencido de que é o soberano do país. Um PR que está convencido de que é a rainha de Inglaterra. Um PR que não tem a noção do que é honra, pátria, democracia ou estado de direito. Um PR que poderia ser substituído com vantagem num sorteio feito entre os cidadãos nacionais. Um PR a respeito do qual nunca se poderia falar de grandeza. Um PR por quem é impossível ter respeito. Um PR que não se dá conta de metade disto. Um PR que está muito satisfeito consigo próprio. Um PR como nunca se viu e espero que nunca mais se verá. Um PR rasca.

domingo, outubro 25, 2015

A Confederação do Turismo de Portugal e a formação do Governo - Post no Facebook a 25 de Outubro de 2015

A notícia já tens uns dias, mas vale a pena comentar.
Gostava de saber se os associados da Confederação do Turismo de Portugal mandataram mesmo o seu presidente Francisco Calheiros para vir defender em público um Governo de direita. Um bocadinho de decência e de seriedade institucional ficava tão bem.

("Confederação do Turismo defende "diálogo" entre coligação e PS" - http://www.noticiasaominuto.com/politica/463322/confederacao-do-turismo-defende-dialogo-entre-coligacao-e-ps)

quinta-feira, outubro 22, 2015

A cavacada

Comentário publicado no Público online a 22 Outubro 2015 - 21h32

Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.

A indigitação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro pelo Presidente da República é juridicamente sustentável e politicamente legítima e não constitui uma surpresa.

Se a declaração do Presidente da República se ficasse por aqui, não haveria muito mais a dizer, apesar da “perda de tempo” que essa decisão representaria.

Só que Cavaco Silva entendeu, tristemente, mais uma vez, falar como Cavaco, em vez de como Presidente da República, ser ainda mais Cavaco do que nos tem habituado até aqui e acrescentou algumas barbaridades que não só estão longe do respeito pela tradição política democrática que Cavaco tanto diz respeitar, como estão longe do papel de árbitro do sistema político que compete ao Presidente da República e constituem uma verdadeira descarga de petróleo na fogueira da disputa partidária que vivemos. Cavaco, mais uma vez, mostrou que gosta de falar de estabilidade política e de sensatez, mas que não consegue promover a primeira, nem sabe usar a segunda.

Cavaco foi, de facto, muito mais longe do que a indigitação de Pedro Passos Coelho e não só fez um discurso inflamado em favor do “arco da governação”, que lamentou amargamente não ter podido dar origem a um acordo governativo a três (PS-PSD-CDS), como se enfureceu com o PS por não ter chegado a acordo com o PSD e o CDS – algo incompreensível, já que os seus programas “não se mostram incompatíveis, sendo, pelo contrário, praticamente convergentes quanto aos objectivos estratégicos de Portugal” –, como se lançou numa diatribe contra os partidos que, no seu entender, não devem sequer fazer parte deste clube restrito dos autorizados a governar.

É verdade que Cavaco disse que, agora, a palavra era do Parlamento, mas antes disso fez questão de sublinhar de uma forma pouco ambígua que só por cima do seu cadáver é que os partidos de esquerda teriam o gosto de ver em S. Bento um governo da sua preferência (“Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da união bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da união económica e monetária e a saída de Portugal do euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador”). O que Cavaco disse equivaleu a lançar na clandestinidade (e certamente fora do governo) o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista e a forma como espumou na fase final da sua comunicação deixou-me convencido de que, se pudesse, tê-lo-ia feito. Por um momento pensei que poderia já ter mandado uma canhoneira bombardear a Soeiro Pereira Gomes e a Rua da Palma. Não é um bom sinal.

Cavaco considerou mesmo que a solução de governo à esquerda que lhe foi apresentada – e que não tinha sequer necessidade de qualificar nesta fase – era “uma alternativa claramente inconsistente”, o que deixa no ar a possibilidade de o Presidente não a aceitar nem sequer como uma segunda escolha. Estando Cavaco condenado a ser Cavaco, certamente por pecados graves cometidos noutra vida, é evidente que esta ameaça constitui uma deselegante (e antidemocrática e inconstitucional) forma de pressão sobre o Parlamento, para forçar a mão a alguns deputados do PS e convencê-los a aprovar o programa PSD-CDS.

Num lamentável desnorte, Cavaco foi mesmo ao ponto de incentivar os deputados do PS a votar contra o seu compromisso eleitoral, sublinhando que a decisão não é da Assembleia da República, mas de cada um dos seus deputados (“A última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos deputados à Assembleia da República.” “É aos deputados que cabe apreciar o programa do governo…” “É aos deputados que compete decidir, em consciência e tendo em conta os superiores interesses de Portugal, se o governo deve ou não assumir em plenitude as funções que lhe cabem.”) De facto, o órgão de soberania chama-se “Assembleia da República” e não “deputados”.

O que se segue? Cavaco quis sugerir que irá até onde for preciso para manter o BE e o PCP fora do poder (“É meu dever tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do país”).

Pode esta loucura antidemocrática de Cavaco levá-lo a manter um governo de gestão PSD-CDS no poder até que outro Presidente possa dissolver a Assembleia da República? A resposta sensata é não. Seria péssimo para o país, impedido de tomar decisões que urgem, seria péssimo para a nossa credibilidade externa, péssimo para a situação política, que viveria uma crispação inédita, péssimo para cada um dos portugueses. Mas Cavaco habituou-nos a tudo. Sabemos que o país e os portugueses contam pouco ao lado dos seus ódios figadais.

quarta-feira, outubro 21, 2015

O desespero é mau conselheiro - Post no Facebook de 21 Outubro 2015

O desespero é mau conselheiro

Primeiro, foi a alegria de ser a candidatura mais votada.
Depois, a preocupação ao constatar que afinal a maioria era de esquerda.
A seguir o terror por o PS, BE e PCP estarem a caminho de um entendimento parlamentar. Finalmente o desespero por o acordo de esquerda estar a chegar a bom porto.
Só que o desespero é mau conselheiro e vieram as acusações de “fraude”, “usurpação”, “golpe de estado” e os outros disparates como “o partido que tem mais votos deve governar”.
Uma das formas que este desespero está a tomar (e uma das razões por que a coligação PSD-CDS insiste na indigitação de Pedro Passos Coelho por Cavaco Silva) é a tentativa de pressionar os deputados do PS simpatizantes de uma solução “Bloco Central” a viabilizar o governo minoritário.
Aqui sim, seria uma verdadeira vitória na secretaria e uma entorse clara àquilo que podemos intuir sobre o sentido do voto no PS - que sempre disse que seria uma alternativa a direita e que não teria sentido viabilizar um governo da direita.
Este apelo à pressão sobre os deputados do PS (que será interessante ver até que extremos irá) é visível, por exemplo, no artigo “4 razões, mais uma, para Cavaco não nomear Costa“ (http://ionline.pt/417751), publicado no jornal i, da autoria de Graça Canto Moniz, coordenadora do Gabinete de Estudos do CDS mas que por razões que não conheço o i identifica apenas como “blogger”.

Outro texto na mesma linha foi publicado no DN pela mão de Diogo Feio (http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/clareza-normalidade-e-estabilidade-4845501.html ).

Já deu para perceber que, neste momento de desespero, o PSD e o CDS estão dispostos a tudo (a tresler a constituição, a mentir sobre as regras democráticas de formação dos governos, a inventar uma “tradição de governo” que beneficia a direita, a acirrar os mais básicos terrores da população contra os supostos malefícios de um governo de esquerda, a difamar os seus adversários políticos, a procurar aliados no estrangeiro que se disponham a colaborar no ataque a um governo nacional constitucional).

É quase cómico ouvir representantes da coligação de direita falarem hoje no "radicalismo" do BE ou do PCP. Há muitos anos que não se via um governo tão radical em Portugal. Só é pena que o radicalismo não lhes dê para defender a pátria no contexto internacional, para preservar o património nacional e para reforçar a dignidade das instituições, algumas das bandeiras que a direita digna soube levantar no passado.

sábado, outubro 03, 2015

Nove razões por que será bom ter um governo de esquerda

3 Outubro 2015

Como será bom ter enfim uma governação e uma acção política que não seja apenas obediência.


José Vítor Malheiros


A primeira razão é mesmo aquela que o PSD e o CDS já adivinharam e vieram denunciar nos debates televisivos em tom inflamado, como se fosse razão para uma pessoa honesta ter vergonha. A primeira razão por que será bom ter um governo de esquerda é mesmo (confesso, confesso) não ter de continuar a ver e ouvir Pedro Passos Coelho nove vezes em cada noticário, primeiro como primeiro-ministro, depois como presidente do PSD, depois como candidato às eleições, depois como representante de Portugal (vá-se lá saber porquê) num Conselho Europeu, depois como conferencista numa conferência, depois como entrante numa feira agrícola, depois como sainte de uma audiência com Cavaco, depois como visitante daquilo e comentador da outra coisa. Isso, só por si, é um alívio. Não é que seja pessoal, que não é. Não é só porque os seus lábios eternamente crispados e a escassez do seu léxico me arrepelam a vesícula. Não é só porque a sua cerviz curvada e as suas mãos postas frente a Angela Merkel me encanzinam. É mais político. Mas pôr fim à sua ubiquidade será uma benção.
A segunda, mais séria, é porque poderemos ter um governo que, para equilibrar as contas, vai recorrer a outras medidas que não sejam rapar os rendimentos do trabalho, confiscar subsídios, aumentar o IRS, criar prestações extraordinárias sobre os salários, cortar pensões, reduzir prestações sociais, cortar serviços públicos, vender empresas públicas estratégicas fundamentais para a economia e vai (espero) encontrar meios de aumentar a receita fiscal olhando também para o património e para os rendimentos do capital e, principalmente, reduzindo a “fuga legal” aos impostos das grandes empresas e das grandes fortunas. Poderemos ter um governo que não acha que os trabalhadores são mimados, que os desempregados são preguiçosos, que os beneficiários de subsídios são parasitas, que os emigrantes são piegas. Poderemos ter um governo que olha para nós não como contribuintes mas como pessoas e cidadãos.
A terceira razão é porque o novo governo vai (espero) defender os interesses nacionais em Bruxelas e noutros fóruns internacionais, o que é uma novidade bem-vinda (quase que nos esquecemos como é que é, mas é possível) e discutir com os parceiros da União Europeia como se fossem parceiros em vez de sermos empregados deles apanhados em falta.
A quarta razão é porque o novo governo vai tentar fazer crescer a economia, o investimento, o emprego e o rendimento disponível dos portugueses, apostando na educação, que garante o reforço das competências; na investigação, que produz o conhecimento que é a matéria-prima mais importante que há; na inovação, que transforma o conhecimento em riqueza; na sustentabilidade social e ambiental, que garante que as próximas gerações não encontrarão um país delapidado e que criará novos mercados; no financiamento das PME, que representam a maioria da economia nacional.
A quinta razão é porque acabou o ilegal, ilegítimo, inconstitucional, imoral e estúpido cordão sanitário que impedia que os partidos à esquerda do PS se aproximassem do poder (veja-se como Cavaco reage à ideia de PCP e BE possam apoiar o futuro governo!) e que desperdiçava assim uma imensa quantidade de ideias e de capacidade de intervenção e afastava milhões da política ao certificá-la como um jogo viciado à partida, onde só a direita e a esquerda light podiam actuar.
A sexta razão é porque vamos enfim ter bancadas parlamentares que apoiarão o governo mas que não serão apenas a voz do dono, exemplos vergonhosos de submissão, de obediência e de subserviência mas que farão o seu dever como representantes do povo, apoiando quando necessário mas também discutindo e propondo alterações.
A sétima razão é porque teremos um governo que não confunde o Estado Social com a sopa dos pobres - como a pobre, pobre Isabel Jonet - e que sabe que o Estado Social é de todos para todos porque só assim se garante a justiça e a equidade e só assim se garante a qualidade e a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública, da Segurança Social, dos programas sociais.
A oitava razão é porque vamos ter um governo que sabe o que é a Cultura e que não a confunde com a decoração de interiores, que sabe que a cultura é um factor de progresso social e individual, de bem-estar social e individual, algo essencial para a vida intelectual de cada um de nós e, por isso, para a nossa vida em sociedade, para o estímulo do conhecimento, da criatividade, do prazer da fruição, do sentido crítico e do sentido de humor sem os quais não se consegue inventar uma sociedade onde seja bom viver.
A nona razão é porque poderemos ter enfim uma governação e uma acção política que não é apenas obediência (à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu, ao FMI, ao Eurogrupo, à Alemanha, aos mercados, à Goldman Sachs, aos tratados existentes e a existir, aos poderes estrangeiros em geral) mas que pode ser invenção, imaginação, participação, debate e criação. A nossa invenção. Como numa democracia!


jvmalheiros@gmail.com