terça-feira, janeiro 31, 2006

Razão irracional

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Janeiro de 2006
Crónica 5/2006

O nosso cérebro é uma máquina de encontrar analogias e de fazer catalogações. E isso é uma actividade que não se pode desligar.

O nosso cérebro é uma máquina tão eficaz a comparar dados, encontrar padrões e deduzir regras que consegue realizar sem esforço a tarefa de encontrar inteligência mesmo naquilo que a não tem.

Há provas evidentes disto à nossa volta, mas poucas são tão eficazes como ler os horóscopos que as revistas mais ou menos femininas nos fornecem.

A verdade é que não é possível ler certas frases sem que o nosso pensamento voe para uma situação real (passada, presente ou simplesmente possível) com alguma semelhança com a referida. Não é possível ler “Dedique uma parte do dia a tratar das questões domésticas que tem negligenciado” sem nos lembrarmos daquela reparação que já devíamos ter feito e para a qual ainda nem tivemos tempo de pedir os orçamentos. Ou ler “Dê um salto a um ginásio e goze uma boa massagem” sem pensarmos que, realmente, merecemos um bocadinho mais de atenção de nós próprios.

Isso acontece porque o nosso cérebro é uma máquina de encontrar semelhanças, analogias e de fazer catalogações. E isso é uma actividade automática, que não se pode desligar. Não se pode ler “Está a atravessar um momento em que é particularmente atraente para o sexo oposto” sem pensarmos naquela colega que ri de uma maneira tão fresca de todas as nossas piadas.

Os estudos científicos feitos sobre a astrologia dizem-nos que uma das razões para o seu êxito é o facto de recorrerem a lugares-comuns que são verdadeiros para qualquer pessoa (“Existe um conflito entre a sua vida profissional e a sua vida pessoal” ou “Você é uma pessoa prudente, mas às vezes gosta de arriscar” ou “Às vezes custa-lhe encontrar um equilíbrio entre os seu eu racional e o seu eu emocional”) e de no-los apresentarem como tendo sido feitos apenas para nós.

Quando um destes retratos genéricos é mostrado a alguém e se pergunta a essa pessoa se lhe parece que o retrato se aplica mais a si ou aos outros, ela dirá que se aplica especialmente bem a ela (é natural, todos somos um pouco egocêntricos). Mas existem outras razões para a fé na astrologia.

Também existem horóscopos, muitas vezes sob a forma de bons conselhos, que foram escritos propositadamente para se transformarem em profecias auto-realizadoras (“Hoje, vai apreciar tudo o que vir à sua volta. Goze a beleza da Natureza”). Alguém que acredite nos signos verificará que o seu horóscopo tem, de facto, uma espantosa clarividência, pois, consciente ou inconscientemente, irá fazer o possível para que ele se realize. Um autor de horóscopos profissional terá ainda o cuidado de escrever a uma sexta (mas não a uma terça) coisas como “Hoje vai sair para se divertir, mas coma e beba com moderação” ou “Não se preocupe com o que os outros pensam de si. Faça algo louco e arriscado”.

O que isto quer dizer é que, mesmo sem truques baixos, é impossível ler os signos sem... acreditar neles. Sem constatar que eles se aproximam espantosamente da nossa vida.

É impossível não encontrar paralelos entre o horóscopo e a nossa vida e é difícil acreditar que isso acontece por acaso. Para não acreditar nos signos é preciso um olhar céptico e o recurso a técnicas de validação (verificar que os outros signos que não o nosso “acertam” na nossa vida tantas vezes como o nosso) que estão afastadas da prática quotidiana da maior parte de nós. É natural que uma simples olhadela distraída ao horóscopo dê origem a uma crença na astrologia.
Da mesma forma, o nosso cérebro encontra relações e racionalidade noutros locais onde eles não existem: é assim fácil ver conspirações onde só existe má-vontade, estratégia onde só existe negligência e corrupção onde só existe desleixo.

terça-feira, janeiro 24, 2006

O mesmo e outra coisa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Janeiro de 2006
Crónica 4/2006

Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.


A eleição de Cavaco Silva à primeira volta não pode considerar-se uma surpresa, anunciada como foi pelas sondagens e pela evidência disponível para todos os que quisessem ver.

O facto mais surpreendente destas eleições é outro, que as sondagens também já tinham anunciado, mas ninguém tinha levado demasiado a sério: o segundo lugar de Manuel Alegre, destacado de Mário Soares. Nas sondagens, a posição inflacionada de Alegre podia ser um ajuste de contas com o PS, sem a responsabilidade do voto, por parte de alguns eleitores. Mas não foi isso que aconteceu – o que prova o rigor crescente das sondagens e como elas devem ser levadas a sério.

A votação de Alegre é significativa não por aquilo que ela diz dele (não nos diz nada de novo, ao contrário, por exemplo, da votação em Jerónimo de Sousa) mas pelo que diz do eleitorado – e é significativa independentemente do que Alegre faça desses votos nos próximos tempos.

O milhão de eleitores que votou numa candidatura de esquerda sem apoio de nenhum partido evidencia que não só há vida política para além dos partidos mas que há uma esquerda democrática para além dos partidos e que uma parte da esquerda que sustenta habitualmente com o seu voto o aparelho e as clientelas socialistas o faz por falta de alternativa. Poderá dizer-se que as ideias (vagas) expressas na campanha por Soares eram ainda menos alinhadas e menos conservadoras que as ideias (igualmente vagas) de Alegre, cujo apelo ao movimento cívico dos cidadãos aparece sempre embrulhado numa mensagem patriótica de etiologia duvidosa. Mas a imagem romântica de Alegre cidadão, candidato de cidadãos, para uma república de cidadãos, excedeu as limitações do seu discurso. O facto é tanto mais significativo quanto Alegre não representa uma fractura populista antipartidos (como o eanismo) mas uma alternativa no seio de um partido. Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.

É evidente que a procura dessa outra coisa (ou melhor: de outras “outras coisas”) também se manifesta nas candidaturas de Francisco Louçã ou de Jerónimo de Sousa, mas estas candidaturas aparecem do lado de fora do poder, onde essas lógicas são parte da própria alterdoxia. Com Alegre, essa procura ainda não é uma doxa e surge no seio de uma área que o “establishment” político julga suficientemente representada pelo Partido Socialista. Não está e o fenómeno não é novo, mas endémico - ele já tinha sido evidente com Pintasilgo, por exemplo.

2. Houve na noite das eleições atropelos entre os vários directos, como seria inevitável, por atabalhoamento ou cálculo. Mas aconteceu um que não podia ter acontecido: o de José Sócrates, interrompendo Manuel Alegre. Falando na ambígua qualidade de secretário-geral do PS e de primeiro-ministro (garantiu “bom relacionamento e colaboração institucional” com o novo PR), Sócrates obrigou as televisões a desviar as câmaras de Alegre para si (apesar das hesitações evidentes na dança das imagens).

O gesto foi grosseiro, acintoso, prepotente e indiciador do pior possível para o Partido Socialista.
Se Sócrates falava como primeiro-ministro (e é impossível não falar, dadas as circunstâncias) deveria dar espaço a todos os candidatos. Se falava como dirigente do PS mandaria a cortesia, o pragmatismo e o respeito pelo eleitorado que reconhecesse o militante do seu partido que alcançou o melhor resultado.

Posteriormente, o gabinete de Sócrates veio dizer que não teria sido por acinte que se teria sobreposto a Alegre mas por descuido.

Que a nossa única esperança seja a incompetência da equipa do primeiro-ministro revela a pouca ambição das nossas expectativas.

Por outro lado, que Soares não tenha referido Alegre é compreensível – formalmente tratava-se apenas do segundo votado - ainda que isso deixe a dúvida sobre se Soares terá percebido que foi o azedume que o perdeu.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Ética e lei

O comportamento dos homens públicos é um dos terrenos clássicos de discussão da ética

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 17 de Janeiro de 2006
Crónica 3/2006

Há alguns dias, em jeito de resposta à acusação de comportamento impróprio devida ao facto de ocupar a presidência de uma empresa que poderá ter beneficiado enquanto ministro e às vozes que sugeriam a sua demissão ou pediam a sua censura, o deputado socialista Joaquim Pina Moura decidiu responder que a única ética que reconhecia na República era a lei da República. E, não tendo ele cometido nenhum acto ilegal, não via qualquer razão para se demitir nem qualquer base para as críticas que lhe eram dirigidas.

O argumento considera que os princípios éticos da República estão todos plasmados na lei e não existem fora dela. Como a condenação da lei é algo que não se pode decretar “a priori”, apenas com base numa interpretação pessoal dos textos legais – e, pelo contrário, exige o devido processo –, decorre das declarações de Pina Moura que só desrespeita a ética republicana quem é condenado pelos tribunais. Inversamente, bastará não ser apanhado nas malhas da lei para viver como exige a ética. O raciocínio tem a dúbia virtude de transformar a ética em algo indistinguível daquilo a que em linguagem comum se chama “esperteza saloia”.

A lógica é maniqueísta e tem, para os suspeitos, a vantagem pragmática de reduzir a possibilidade de que algum acto venha a ser considerado não ético. É a aplicação da lógica hipergarantista à ética.

Mais: apaga de facto o julgamento ético, substituindo-o pelo julgamento legal. Deixa assim de haver falhas éticas, actos eticamente reprováveis ou de conformidade ética duvidosa para passar a haver apenas ilhas de infracções e crimes num mar de absolvições.

Esta posição é tanto mais chocante num deputado quanto a ética é eminentemente democrática (ao contrário da lei, que não o é por natureza), pois parte do desejo de procurar uma verdade mutável através do debate aberto na sociedade.

A declaração é, por outro lado, tanto mais ridícula quanto o comportamento dos homens públicos foi desde sempre um dos terrenos clássicos de discussão e de aplicação da ética.

E é tanto mais disparatada para um deputado quanto ela menoriza o julgamento dos cidadãos e o substitui pelos critérios do poder judicial – como se um fosse redutível ao outro.

De facto, não é a lei a ditar a escolha dos homens e mulheres que exercem o poder legislativo ou executivo mas a vontade popular. E este, entre outras coisas, vive do julgamento ético que continuamente fazemos dos dirigentes que escolhemos. Quanto mais não seja por esse facto, a ética não é redutível à lei.

Ao querer subtrair a sua actuação ao julgamento ético e ao pretender reconhecer apenas o poder judicial, Pina Moura quer recusar aos cidadãos o seu direito à discussão dos seus actos, à crítica e à censura. Seria aceitável se Pina Moura fosse apenas um gestor; é inaceitável num deputado.

Que a lei não fornece a única grelha de análise dos nossos actos, todos o sabemos. Os actos de um homem público estão, entre muitos outros, submetidos ao escrutínio da opinião pública (e da imprensa como expressão da liberdade dessa opinião), dos eleitores (que se manifestam nas eleições e não só) e dos próprios pares (no caso vertente, dos deputados da Assembleia da República). E um homem público é aquele que aceita a legitimidade desses julgamentos. Aparentemente, Pina Moura não aceita.

É evidente que o julgamento ético não pode ser algo vago, sujeito aos humores dos julgadores. Deve basear-se em critérios conhecidos, possuir formalidade, ter referências escritas e uma memória, de forma a garantir a equidade. Não é preciso que se transforme em lei para o fazer. Mas esse julgamento ético deve ser feito, num exercício contínuo, aberto e participado, justo mas exigente. Se a lei não se pode confundir com a ética, isso não significa que esta não aplique os seus julgamentos. Nos domínios da ética esses princípios estão plasmados em linhas de conduta, em códigos deontológicos, no julgamento dos pares, em normas de boas práticas, em constante discussão mas que não devem ser levadas menos a sério por isso. Cabe aos deputados que fazem as leis para os outros, zelar para que a ética não seja descurada nas suas bancadas.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Estagiários

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Janeiro de 2006
Crónica 2/2006
Há “estagiários” de jornalismo que cumprem três e quatro “estágios curriculares” não remunerados.
Em Portugal, saem do Ensino Superior todos os anos cerca de 1500 licenciados em Comunicação ou Jornalismo. Destes, um número significativo (metade? mais?) sonha ser jornalista e inicia os seus contactos com vista à sua entrada nesta profissão. O problema é que o número de postos de trabalho como jornalista tem diminuído nos últimos anos e as possibilidades de contratação que estes recém-licenciados encontram são mínimas.

Algumas (infelizmente poucas) das escolas de onde saem estes jovens exigem um “estágio curricular” antes de lhes dar o diploma. Este estágio é chamado “curricular” porque, em teoria, é parte integrante do currículo académico e tem como função fornecer aos estagiários uma formação em exercício, mergulhados no ambiente real de uma empresa, sob a dupla tutela da faculdade onde estudam e de um orientador da empresa. Estes estágios duram três meses, exigem uma candidatura do estudante, estão condicionados por um processo de selecção por parte da empresa e, em geral, não são remunerados ou apenas prevêem o pagamento de um subsídio de alimentação e/ou deslocação.

Em princípio, este estágio é uma parte da formação do ainda estudante e como tal deve ser encarado por formandos e formadores.

No final do estágio o formando deve realizar um relatório que serve a função de projecto de fim de curso. Só depois recebe o seu diploma. Se posteriormente o feliz jovem licenciado for contratado como jornalista, terá de realizar um outro estágio – o “estágio profissional”. Só depois será oficial do ofício, com direito à passagem da carteira profissional definitiva.
Mas os estagiários do título desta crónica são os outros – os “curriculares”.

Os “estágios curriculares” levantam várias questões. A principal reside no facto de que, na sua maioria, eles não são levados a sério nem pelas empresas anfitriãs nem pelas escolas que enviam os estudantes. O estágio é assim em grande parte desperdiçado (ainda que os estagiários o considerem enriquecedor e entusiasmante). Outro problema reside no facto de a designação de “estágio curricular” foi indevidamente apropriada por muitas empresas que a utilizam apenas como uma ténue cobertura legal para explorar gratuitamente a mão-de-obra de recém-licenciados que, frequentemente, até provêm de escolas que não exigem tal coisa.

A situação é tanto mais escandalosa quanto muitas empresas não só não formam, como não pagam e usam esses recursos baratos para produzir as suas publicações, oferecendo por vezes sucessivos “estágios curriculares” aos jovens candidatos a jornalistas que, perante a alternativa do desemprego, os aceitam. Soube recentemente de uma redacção onde havia 4 jornalistas profissionais e sete “estagiários”, sem salário, que asseguravam a produção de uma revista, sendo que os estagiários se encontravam a cumprir, nalguns casos, o terceiro ou quarto “estágio”. E é frequente surgirem no PÚBLICO candidatos com vários “estágios curriculares” não remunerados no seu CV.

Os autores deste escândalo são, em primeiro lugar, as empresas prevaricadoras, mas há responsabilidades da parte de outros agentes. Por parte das entidades oficiais, por exemplo, que realizam fiscalizações para avaliar outras situações de ordem laboral, mas onde os “estagiários” passam muitas vezes entre o crivo. Mas, acima de tudo, por parte das universidades, que deveriam levar mais a sério os estágios dos seus estudantes, acompanhando-os de facto e sendo mais exigentes com as empresas de acolhimento, com quem deveriam trabalhar, de facto, em parceria.

Não seria difícil, por outro lado, obrigar as empresas que pretendem acolher estagiários a uma certificação, que exigiria o cumprimento de certos requisitos, e publicar a lista de empresas assim credenciadas.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Votos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 3 de Janeiro de 2006
Crónica 1/2006

Na expressão de votos há uma ideia de abnegação, mas os votos de cartão de Boas Festas são mais baratos.

O fim e início do ano são momentos propícios para a expressão de desejos. Eles aparecem nos cartões que mandamos aos amigos e nos votos que trocamos na rua e no emprego. “Um Bom Ano!”, “Desejo a V. Exa. e Excelentíssima família um excelente 2006”, etc.

Os votos são desejos que se exprimem mas foram antes disso apelos à divindade - e continuam a ser. Fazer votos é desejar mas é também prometer. Mais concretamente: é prometer algo em troca de uma contrapartida – castidade em troca de graça divina, perpétuo louvor a Deus em troca de um filho, boa vontade em troca de benesses para os nossos amigos.

Enviamos aos nossos amigos os nossos votos de bom ano porque eles são uma declaração de solidariedade – e porque nos sentimos bem quando nós próprios os recebemos – mas também porque são uma forma de conjurar os deuses e esconjurar os demónios. Fazemo-lo por esse hábito que não sabemos se é costume se superstição, mas que é certamente um pouco dos dois.

Não é só em relação aos outros que exprimimos desejos no início do ano: também o fazemos em relação a nós próprios. Só que o fazemos em geral em segredo, para não nos comprometer. O problema dos votos de Bom Ano é precisamente que neles não existe uma promessa nem um compromisso – na maioria dos casos há apenas uma fórmula; nos casos mais fervorosos, um pedido. Na expressão de votos há uma ideia de abnegação, até de sacrifício, mas os votos de cartão de Boas Festas são mais baratos.

Para uma cultura de pobreza e ignorância, sebastianista e religiosa como a portuguesa, os votos de Bom Ano revestem-se do pior significado possível: são a manifestação viva da fé messiânica. Para os portugueses, os votos de Bom Ano não são uma mera fórmula. São a voz do desespero e da única esperança, um grito irracional na salvação inesperada e imerecida, em qualquer coisa que não dê muito trabalho mas dê todos os frutos ou que nem sequer dê frutos mas nos isente de preocupações, como Cavaco Silva, o novo Quadro Comunitário de Apoio ou o Euromilhões.

Para os portugueses, praticamente isentos de contaminação calvinista, os desejos de Bom Ano que distribuímos não possuem nenhum compromisso de investimento ou de trabalho, apenas suplicam uma dádiva: pedem que a prosperidade nos caia em cima da cabeça.

Isso não quer dizer que os nossos votos não possam mudar a realidade – isto mesmo sem recorrer à explicação “deus ex machina” de Deus. O filósofo francês Alain dizia que não é o amor que mantém os casamentos, mas sim a boa educação (“politesse”) e o mesmo se pode dizer de muitas outras relações – com maioria de razão. Os votos de Bom Ano são úteis porque existe uma probabilidade não nula de que se possam transformar em profecias auto-realizadoras. Pode ser porque isso aviva a centelha divina que nos ilumina ou apenas porque a propaganda funciona, mas todos sentimos vontade de ser melhores quando ouvimos “Paz na Terra aos homens de boa vontade”. Porque não haverá isso de funcionar para “Espero que 2006 lhe traga a si e a todos os seus toda a felicidade que desejam”?

São esses os meus votos: que consigamos fazer de 2006 algo melhor do que fizemos em 2005.

domingo, janeiro 01, 2006

A cor dá-se à luz

Texto escrito para o catálogo de Jorge Rodrigues, publicado pela Galeria Filomena Soares, sob a coordenação de João Pinharanda

1. Experimente-se definir luz. O desafio não nos permite chegar muito longe. Podemos tentar definir a luz a partir do conceito de visão, mas depressa concluímos que não é possível definir a segunda sem recorrermos de novo à primeira e encontramo-nos encerrados numa tautologia pouco produtiva.

A própria ciência define luz como a radiação electromagnética que é detectada pelo olho humano. A definição diz muito e pouco. A luz é um fenómeno físico, uma torrente de fotões, uma onda de partículas definível em termos objectivos de radiação, passível de ser medida por instrumentos e até divisível em categorias segundo os comprimentos de onda e as frequências, mas esta definição não dispensa o olho humano. No fundo, estamos a dizer que luz é aquilo que percebemos como luz e caímos de novo na tautologia.
A luz está no princípio de todas as suas definições, como no primeiro dia do Génesis.

Aquilo a que chamamos luz é a radiação electromagnética que vai dos 400 nanómetros de comprimento de onda (luz violeta) aos 700 nanómetros (luz vermelha) - sendo que um nanómetro é um milionésimo de milímetro – mas o aparente rigor destes números é falso: a luz não tem limites bem definidos, porque a gama de luz visível varia de pessoa para pessoa. Aquilo que para uma pessoa já é luz para outra é ainda escuridão – e não estamos aqui a falar da intensidade da luz mas da sua posição no espectro electromagnético, a que podemos chamar a sua cor ou o seu sabor. A mesma coisa se passa com o som, pois enquanto uma pessoa ouve distintamente o silvo penetrante de um apito usado para chamar os cães, outra apenas consegue ouvir o silêncio.
Os humanos também se conseguem aperceber da "luz" que está fora dos limites do visível: a nossa pele sente sob a forma de calor a radiação para lá do vermelho, a que chamamos impropriamente "luz" infravermelha. E os nossos genes sofrem constantes mutações causadas pela "luz" ultravioleta – que terá sido um dos principais instrumentos das mudanças evolutivas dos seres vivos.
Não é só a experiência da luz que é humana e intransmissível. É a sua própria natureza que é humana. Sem humanos haveria radiação, mas não luz. A luz não é o fotão mas a percepção do fotão. Só quando um fotão encontra uma retina e um córtex visual se transforma em luz.
Se não houver ninguém para ouvir o som da árvore que cai na floresta, ela também não será banhada por qualquer luz.
A luz é um axioma e está antes da definição, mas está depois da percepção.
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2. Por diferentes que sejam os dois fenómenos, a luz e o som sempre andaram de mãos dadas. Newton encontrou sete cores no espectro da luz solar (introduzindo entre o azul e o violeta um índigo que de outra forma poderia não ter entrado na lista) para forçar a analogia com as sete notas da escala musical. E sabemos que há telas que vibram de cor.

Ao contrário dos sons que nunca se misturam, por muito que se façam coincidir, e cujos elementos constituintes são sempre reconhecíveis para o ouvido treinado, a luz (as luzes)m tendência para a unidade, para a fusão, como se tivessem horror à separação. Se apontarmos o foco de três projectores de cores para uma parede, o resultado é indistinguível daquele que seria causado por um único foco da cor resultante. Mas um acorde de três notas nunca será confundido com uma única nota.
Enquanto a música é a arte da fusão, a pintura sempre brincou com a análise da luz e da cor.
Pintar a luz, porém, é uma tarefa tanto mais impossível quanto a luz, estritamente falando, não tem cor – apenas permite ver as cores. Não é só a luz branca que não tem cor: a luz vermelha também não é vermelha e a azul não é azul. Elas apenas nos permitem ver o vermelho e o azul. A luz é aquilo que permite ver, um meio, um caminho, um meio de transporte de uma dada informação. Para ver a luz e pintá-la, teríamos de a iluminar. E com que é que se iluminaria a luz? Tudo o que conhecemos da luz são as cores, que são as suas sombras da caverna platónica.
A luz visível não, é paradoxalmente, aquela que nós vemos, mas a que nos deixa ver. A luz é apenas aquilo que nos deixa ver as cores. Ou as inventa.
É que o paradoxo da luz prolonga-se pela cor. As cores que vemos nas coisas que nos rodeiam não são as suas cores intrínsecas, mas as cores que elas reflectem, as cores que rejeitam. Uma parede vermelha absorve todas as outras cores do espectro e atira-nos o vermelho aos olhos. No fundo, a parede "é" tudo menos vermelha. E quando não há luz, a parede não "é" vermelha. Não é que o vermelho lá esteja e nós sejamos incapazes de o ver no escuro. No escuro, a cor não está, ainda que estivéssemos lá para a ver. Um jogo de essência e aparências. Quando abrimos a cortina só um bocadinho para ver se a cor lá está vê-mo-la aparecer, mas ela nasceu da janela e não da parede. As fotografias a cores só existem depois de saírem da câmara escura. A cor dá-se à luz.
Também a cor é humana. Mais humana ainda do que a luz pois os receptores de cor que temos na retina não existem sequer na maioria dos mamíferos. Mais humana ainda do que a luz, porque as variedades da sua percepção são imensas. Há daltonismos de todas as cores e há cores cujo conceito nem sequer existe na cabeça de certas pessoas.
A textura da luz não é mais que a cor do ar ou de outro meio que ela atravesse. Por isso o céu é o lugar da luz na pintura e na teologia. A luz nunca está, passa. Como o tempo. Ou o som. A luz (como a electricidade) é uma forma de energia que não se consegue armazenar nessa forma. A luz que sai da lâmpada quando o interruptor deixa passar a electricidade esteve guardada na água parada das barragens
A luz é movimento por definição – o mais rápido movimento que se conhece. Um movimento indefinível e infinito, tão rápido que ninguém a vê mover, tão rápido que ela parece omnipresente. Com sorte, às vezes, capturamo-la furtivamente, numa aura ou numa aurora, mas a luz não é mais clara à luz da ciência que à luz da arte.

José Vítor Malheiros