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terça-feira, novembro 25, 2014

A detenção de Sócrates é um caso político

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Novembro de 2014
Crónica 52/2014


A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa.

1. Os políticos encontraram rapidamente a fórmula para evitar comentar a detenção de José Sócrates e as acusações que impendem sobre ele de branqueamento de capitais, fraude fiscal e corrupção. Invocando a “separação de poderes”, todos acharam por bem repetir que “à justiça cabe o que é da justiça e à política o que é da política”, não fazer comentários sobre este caso específico e fazer votos de que a justiça siga o seu curso sem perturbações.

A contenção é de louvar, até porque não se conhecem ainda as acusações concretas, muito menos os indícios que levaram o Ministério Público a acusar o ex-primeiro-ministro e menos ainda a eventual defesa de Sócrates. Mas há uma coisa que é inegável: este caso pertence à política, é muito mais um caso político do que um caso judicial e está a ter e vai ter um impacto político considerável. Não porque José Sócrates seja um político e um ex-governante ou um ex-primeiro-ministro. Se Sócrates fosse acusado de violência doméstica ou de contrabando de droga, essas acusações poderiam ser absolutamente independentes da sua acção política. Mas a acusação que é feita a Sócrates é de corrupção no exercício de cargos políticos — as outras acusações decorrem desta — e nada poderia ser mais político do que isso.

Uma das razões para tentar separar a política deste caso judicial é o desejo de proteger o mal-afamado nome da política. Mas, por esta ordem de ideias, qualquer crime cometido por um político no exercício de funções políticas, através de instrumentos a que tivesse acesso na sua qualidade de político, fossem quais fossem os prejuízos causados em bens públicos, nunca seria da ordem da política porque, sendo um crime, seria da ordem da justiça. O raciocínio sugere uma ideia imaculada da política e não faz sentido.

2. A detenção de Sócrates é um caso político. O que não significa que deva ser comentada levianamente e que não deva haver uma enorme prudência nas afirmações produzidas, devido à presunção de inocência a que todos os arguidos têm direito.

Alguns órgãos de comunicação fizeram investigações próprias e, baseados nos factos que consideram ter provado, afirmam que “Sócrates fez” isto ou aquilo. Trata-se de um risco que querem correr e apostam nisso a sua reputação. Mas um órgão de comunicação que não possua investigação própria para sustentar afirmações desse tipo tem de ter o cuidado de não as fazer e de não tratar as acusações como se se tratasse de factos provados.

3. A detenção de Sócrates lança uma imensa sombra sobre o PS e sobre a sua actual liderança. Lança uma sombra desde já — mesmo antes de conhecidas as acusações em concreto — porque a suspeita é em si uma sombra e não há formalismos jurídicos que a possam afastar. A suspeita é um sentimento que não obedece à letra da lei. O facto de Sócrates e três pessoas do seu círculo terem sido presas após uma investigação que durou um ano significa que existem fortíssimos indícios contra si. Não são a prova definitiva da sua culpa, mas são suficientes para que todos desconfiemos. A “presunção de inocência” é apenas uma regra que a justiça e a sociedade têm de seguir porque existe a possibilidade de o arguido ser inocente (ou de, pelo menos, não se conseguir provar a sua culpa, e o direito obedece à regra in dubio pro reo), mas é evidente que, hoje, não podemos presumir que Sócrates esteja inocente. Podemos apenas fazer um esforço racional para não o condenar desde já. Aliás, a própria justiça não presume a sua inocência. Se a presumisse, não haveria razão para manter Sócrates na cadeia durante quatro dias e pedir-lhe-iam apenas para se apresentar no dia seguinte enquanto durasse o seu interrogatório.

4. A sombra que este caso lança sobre o PS afecta pessoalmente António Costa, que foi não apenas ministro de José Sócrates, mas seu número dois no governo e um seu apoiante durante os anos de governação e até à actualidade. Não se trata de "crime por associação” mas sim de responsabilidade política. Se alguém apoia e avaliza a acção política de outrem e se essa pessoa comete um crime no decurso dessa acção política, é evidente que o primeiro partilha alguma responsabilidade. É isso que significa avalizar uma pessoa ou uma política. No melhor dos casos, o avalista agiu de forma leviana ou é um péssimo juiz de caracteres.

E a sombra também não pode deixar de afectar os governos onde Sócrates possa ter cometido os actos de corrupção de que é acusado e as pessoas que colaboraram com ele mais de perto, já que é pouco provável que, a ter cometido de forma continuada os actos de que é acusado, os tenha cometido sem alguma conivência de outros.

A credibilidade de Costa ficou seriamente afectada pela prisão de Sócrates e a sua capacidade para reunir uma equipa à sua volta fica limitada pela imperiosa necessidade de excluir dela os socratistas mais visíveis. Se Costa ainda pode sonhar com a maioria absoluta tendo em conta o circo que irá ter lugar até às eleições e os nomes que entretanto irão cair à volta de Sócrates, só o futuro dirá.

terça-feira, maio 31, 2011

A nódoa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Maio de 2011
Crónica 22/2011

Os socialistas do PS só vão aparecer quando tiverem a certeza de que Sócrates já não respira


1. Espero que Mário Soares tenha oportunidade de participar noutra campanha eleitoral, noutro ciclo de vida do seu partido. Isto porque deixar como testamento político um apelo ao voto em José Sócrates seria um final particularmente triste para um homem com a sua carreira e com a sua visão política. Seria a prova que na política a má moeda expulsa sempre a boa moeda, em Portugal ou na Europa, como os tempos parecem insistir em nos provar.


É verdade que aquilo que Soares encontrou para dizer de positivo a propósito de Sócrates foi prudentemente escasso (“ganhou uma experiência excepcional, tem amigos na Europa e conhece toda a gente”) e que a sustentação do seu apelo ao voto no PS foi “apenas” a sua fidelidade “ao Partido Socialista que ajudou a criar”, mas a intervenção do líder histórico do PS no Palácio de Cristal serviu para mostrar de que forma todo o partido – com raríssimas excepções - está refém de Sócrates.


Será porque acham que Sócrates é de facto o melhor líder possível para o Governo de Portugal? Porque acreditam de facto que Sócrates defenderá o Estado Social? Porque acreditam que Sócrates tem a visão (seja qual for) para o país capaz de o tirar do atoleiro? Porque acham que o prestígio internacional de Sócrates lhe permitirá renegociar os empréstimos em melhores condições? Porque acreditam na sua competência técnica? Na sua honestidade? Não. As razões são outras. Antes de mais, porque acham que Sócrates é o único líder socialista que pode ganhar estas eleições e o que o PS quer neste momento é ganhar as eleições, (aconteça o que acontecer ao país). Depois, porque receiam o conhecido carácter vingativo do chefe... que ainda tem os cordelinhos do partido na mão.

Só depois de Sócrates cair aparecerão os seus oposicionistas. Aparecerão em bando, quando tiverem a certeza de que já não respira. As razões do apoio dos socialistas do PS a Sócrates são, assim, as piores possíveis: ou o medo ou o sectarismo partidário. E a razão invocada no apelo ao voto é a única possível: o PSD é ainda pior do que nós.



2. Não percebo o que pode levar um dirigente socialista a defender o seu apoio a José Sócrates com base no argumento de que ele “é o líder do meu partido”. Não perceberão estas pessoas, de quem se esperaria alguma cultura política, que esse argumento, que os estalinistas utilizaram de forma extensiva durante décadas, se encontra na raiz dos maiores crimes políticos jamais perpetrados?



Não perceberão que esse argumento, sectário por excelência, não é um argumento? Não percebem que esse falso argumento justificaria todos os crimes? Que ele é amoral? Até que ponto irão continuar a apoiar Sócrates? Vão continuar a apoiá-lo faça o que fizer? Se um dia, em vez de disparar grosserias no Parlamento, como se acostumou a fazer, pegar numa caçadeira e começar a disparar umas cartuchadas a eito no meio da multidão dirão que quem o criticar está apenas a servir os interesses do PSD, a atacar o Estado Social?

Achará o PS que os benefícios da acção governativa do PS (também os houve) compensam e devem fazer esquecer as aldrabices, as manipulações, as negociatas? Quererá o PS adoptar oficialmente a atitude dos autarcas corruptos que “roubam mas fazem”? Serão os ajustes directos aos amigos, as PPP sem controlo e a sonegação de informação uma espécie de “imposto revolucionário” que o povo deve pagar directamente para o bolso de alguns beneficiários em contrapartida de ainda termos o Serviço Nacional de Saúde? Acha o PS que as benesses que concede ao país devem ter como paga a sua absoluta impunidade? Defenderá o PS a monarquia absoluta?

Não sei se o PS percebe a nódoa que o consulado socratista constitui para si, a desvergonha que representa e que transformou em bandeira, o descrédito que trouxe para a política e aos políticos, o autêntico escarro que significa na cara do eleitorado em geral e dos socialistas em particular. Parece que não. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 19, 2011

A vergonha ou a denúncia?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Abril de 2011
Crónica 16/2011

Escolher entre um Governo de bananas liderados por um aldrabão ou um governo de aldrabões liderados por um banana


Uma palavra que está a aparecer cada vez com mais frequência nas conversas onde se discute a situação portuguesa - situação económica, financeira ou política - é “vergonha”. Vergonha própria e vergonha alheia. Até amigos estrangeiros me confessam sentirem um bocadinho de vergonha por Portugal. A vergonha própria é aquela que sentimos por aquilo que não conseguimos fazer colectivamente e pelo mundo que vamos deixar aos nossos filhos. A vergonha alheia é por aquilo que vemos os outros fazer em nosso nome. As cascatas de mentiras que jorram da boca dos políticos nacionais, profissionais ou amadores, que afinal sabiam o que juraram não saber, fazem o que juraram não fazer e contradizem o que juraram defender. Mas também a desfaçatez dos empresários que pregam moral mas nem sequer pagam os seus impostos. Ou a oca altivez de quem reclama a mais exigente pose moral mas não perde uma oportunidade de ganhar uns euros à conta de um favor de um banqueiro amigo. Todos nos perguntamos como deixámos as coisas chegar a este ponto, em que não podemos acreditar nos governantes, mas também não podemos acreditar na oposição, nem podemos acreditar que as eleições tragam uma brisa de honestidade. Em que o Presidente da República lança bocas da geral e desaparece quando há trabalho sério a fazer. Em que os bancos acumulam juros fabulosos enquanto o país se arruína, mas pedem esmola ao Estado e roubam impostos ao povo como um Robin dos Bosques ao contrário. Em que os empresários só aparecem para se queixarem do desperdício dos investimentos públicos depois de terem metido ao bolso o dinheiro dos investimentos públicos e quando têm a certeza que a fonte secou. Em que todos os ex-governantes (e os ex-ministros das Finanças, em particular) vêm para a praça pública queixar-se dos actuais governantes e garantir que todos eles sem excepção governaram com escrupulosa honestidade e inexcedível competência e deixaram o país melhor do que o encontraram. Não haverá limite para a lata dos ex-ministros das Finanças? Não há.

As páginas dos jornais são colecções de histórias de terror e as saídas que discutimos para a crise são ou fazer “greve à democracia” (Marinho e Pinto), ou voltar atrás no tempo e não fazer o 25 de Abril (Otelo) ou apostar na democracia directa em vez da democracia representativa (Otelo bis). A política já acabou? Estamos em plena farsa? Qual é o gesto político a fazer? Impugnar os partidos? Greve à democracia como quer o bastonário dos Advogados? Desobediência civil? Emigrar? O que fazer quando os partidos do “arco do poder” se tornaram coios de salteadores e usurpam a República? O que fazer quando nos obrigam a escolher entre Sócrates e Passos Coelho para primeiro-ministro? O que fazer quando nos querem obrigar a escolher entre um Governo de bananas liderados por um aldrabão ou um governo de aldrabões liderados por um banana? O que fazer quando nos obrigam a escolher entre a forca e a guilhotina?

Neste momento de crise, onde os pobres aumentam, onde o número de desempregados reais cresce, onde os salários descem, onde a fome alastra, onde a corrupção é sempre impune, onde a iniquidade é regra, onde o FMI e a União Europeia nos vêm ditar as regras de conduta que garantirão que os banqueiros serão pagos mas que não garantirão absolutamente mais nada - nem bem-estar, nem justiça, nem liberdade, nem democracia, nem progresso, nada daquilo que nos diziam que a Europa simbolizava -, o que se pode esperar? O que se pode fazer? Há algo de que não se pode abdicar: do protesto, da denúncia e da voz. Pelo menos, poderemos dizer aos nossos filhos que há uma vergonha que não merecemos: a de nos termos calado. Essa vergonha cai inteira sobre os submissos militantes dos partidos que escolheram e nos propõem esta forca e esta guilhotina. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 12, 2011

Puseram alguma coisa na água?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Abril de 2011
Crónica 15/2011

O PS é uma família e não renega os seus filhos. Mesmo que Sócrates destrua o país o partido vai continuar a gostar dele

Apesar da imensa cobertura mediática do congresso do PS deste fim-de-semana, os media não contaram a história essencial. Refiro-me à mudança de nome do PS, que abandona a designação de Partido Socialista e passa agora a adoptar oficialmente a designação pela qual já era informalmente conhecido: Partido de Sócrates. A alteração tem o inconveniente de manter a mesma sigla, mas a designação alternativa Partido do Zé, defendida com o habitual brilho intelectual por António Vitorino, não colheu o apoio dos congressistas. O que importa é que, depois deste congresso, ficou mais clara a identidade do PS e mais bem definida a sua visão para o país.
O congresso teve momentos muito diversos e oscilou entre o ambiente de seita acossada cerrando fileiras (“Eles estão todos contra nós mas há-des ver”) e um tom bajulatório de exaltação caudilhista com longa tradição política. E houve um perfume retro muito bem conseguido pela produção. Só se lamenta que o “Don’t cry for me Portugal” que tinha sido especialmente gravado por Madonna não tenha chegado a ser exibido.
Sintomática do ambiente foi a intervenção de Jaime Gama que, apesar de, na substância, ter posto os pontos nos is quanto às responsabilidades do Governo e do primeiro-ministro na negociação do empréstimo à UE e FMI (Gama tem alguma sensatez), seguiu na forma o mesmo tom laudatório do líder (“os ombros de José Sócrates” devem aceitar mais esta “dificuldade”, disse Gama). Podia ver-se a cruz a ser arrastada pela Via Sacra.
Já sabíamos que no PS de Sócrates as críticas e as dissidências eram malquistas e se pagavam caro. Agora sabemos que o unanimismo foi assumido pelo partido como um valor nuclear. A justificação é o acosso da esquerda e da direita, mas os estalinistas também não tinham falta de argumentos para defender o encobrimento e a participação nos crimes do regime. Não há muitas ideias políticas mais suspeitas do que este “sigamos com uma obediência cega e num silêncio servil o nosso líder autocrático porque estamos cercados”, mas foi esse o moto que o PS decidiu escolher. Tal como preferiu o deleite auto-complacente (Ana Gomes foi uma das raras excepções) ao mínimo olhar crítico sobre a realidade.
É verdade que houve intervenções que abordaram a crise política, financeira e social portuguesa, tendo apresentado aos congressistas presentes um leque de propostas estratégicas para enfrentar os problemas da Nação. Só que o leque foi desde um “Zé, pá... Eles querem porrada mas eles mal sabem como nós somos danados para a porrada... e então tu, caraças, pá, Zé!” até “Tu, Zé, nem sabes o orgulho que eu, caraças, tenho de estar ao teu lado, pá”. Sócrates, como não podia deixar de ser, emocionou-se.
Pode dizer-se que tudo isto é compreensível. Que isto mais não é que lealdade, camaradagem, amizade, valores importantes (uma das músicas de fundo do vídeo exibido foi “That’s what friends are for”), mas o que o PS parece não perceber é que há valores que um partido tem de prezar mais que esses, como a honestidade, a justiça ou o bem-estar dos portugueses. Que os amigos de Sócrates lhe dêem palmadas nas costas é normal. Que o partido o reeleja para o colocar de novo à frente do Governo é irresponsável. E que o PS se compraza em ser o partido dos amigos é preocupante. Não é que os outros não sejam, mas têm um bocadito de vergonha. Ninguém pensou que seria melhor o PS apresentar-se como o partido das ideias para Portugal do que como o partido da lealdade ao chefe?
Uma das explicações para este congresso alegremente mentecapto e de glorificação do líder é, simplesmente, que alguém tenha posto alguma coisa na água. Outra explicação possível é que o PS seja só isto. (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, abril 11, 2011

Quem deve negociar o empréstimo?

Texto publicado como Note no Facebook

by José Vítor Malheiros on Monday, April 11, 2011 at 4:40pm
 
Ontem, no encerramento do Congresso do PS, José Sócrates anunciou que o Governo irá liderar as negociações do empréstimo com a UE e o FMI e que haverá “um acompanhamento deste processo por parte de todos os órgãos de soberania e por parte dos partidos”.

O anúncio (que deveria ter sido feito pelo Governo em sede própria e não pelo dirigente do PS no seu congresso partidário) era inevitável, como qualquer pessoa de bom senso poderia ter explicado ao primeiro-ministro e como aliás Jaime Gama tentou fazer durante o próprio congresso. Mas vale a pena revisitar este episódio confrangedor onde Governo, Presidente da República e a oposição sacudiram violentamente a água do capote numa birra infantil, dando mais uma vez uma imagem de Portugal como país alucinado, onde nenhuma instituição parece conhecer o seu papel e onde a responsabilidade parece eternamente de folga.

É evidente que tinha de ser o Governo a liderar as negociações. Só o Governo governa, só o Governo obriga contratualmente a República, só o Governo pode contrair um empréstimo, negociar os seus termos, assiná-lo e comprometer-se a pagá-lo.

É evidente que a União Europeia e o FMI irão exigir um compromisso de que as garantias dadas por este Governo demissionário serão respeitadas pelo próximo Governo, seja ele qual for.

É evidente que a EU e o FMI não podem negociar o empréstimo com o PSD nem com qualquer partido porque não compete à EU nem ao FMI indigitar o próximo Governo português (por enquanto há ainda umas formalidades democráticas que têm de ser respeitadas)

É evidente que o Governo, como único negociador idóneo, terá de se comprometer perante a UE e o FMI a obter essas garantias e terá de as obter.

É evidente que a única forma de o fazer será através de negociações com a oposição.

É evidente que a oposição, sob pena de dar de si mesma uma aparência mortalmente irresponsável, tem de participar nas negociações e não pode por birra decidir que não o faz.

É evidente que essas negociações entre Governo e oposição devem ser mediadas pelo PR - porque essa arbitragem dará uma garantia suplementar à UE e ao FMI e porque o actual clima de crispação partidário não permite outra solução.

É evidente que o Presidente da República deve participar nessa negociação entre Governo e Oposição, mas que essa participação não se faz como parte mas como árbitro, como mediador e como garante do acordo.

É evidente que o Presidente da República não precisa de ter “ministérios” nem “equipas técnicas” para fazer o seu trabalho. Uns assessores, uns blocos de papel e lápis são suficientes.

Posto isto, há de facto um argumento que pode ser avançado por Cavaco Silva para não mexer uma palha. Pode dizer que não lhe pagam para isso. E é verdade. De facto, Cavaco Silva prescindiu do ordenado de PR para continuar a receber e acumular as suas pensões, que rendiam mais. É um facto que lhe pagamos, mas pagamos-lhe para ser pensionista e não para ser PR.

terça-feira, março 29, 2011

Sem cabeça e sem coração

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Março de 2011
Crónica 13/2011

Alguém imagina Sócrates convidado para dar aulas numa universidade prestigiada?


Quando o PS decide escolher de novo José Sócrates para o cargo de secretário-geral por uma esmagadora maioria de 93 por cento – seria injusto chamar-lhe “venezuelana”, porque Hugo Chávez fica-se por uns míseros 60 por cento – está a dizer-nos que não tem mais nenhuma ideia para propor aos portugueses que não sejam as que nos apresentou nos últimos seis anos e que não tem um desejo de nada diferente. E um partido sem ideias e sem desejo, sem cabeça e sem coração, está, se não morto, pelo menos em coma.

Percebe-se que Sócrates se recandidate ao cargo. O actual primeiro-ministro é um homem ambicioso, que não pode razoavelmente esperar fazer carreira em qualquer outro domínio que não seja o da política e esta é a última das últimas oportunidades para se manter no poder. Alguém imagina Sócrates convidado para dar aulas numa universidade prestigiada? A fazer o circuito internacional das conferências? A dirigir uma organização intergovernamental? Partilhando a sua visão na administração de uma fundação? Lançando-se numa carreira de ensaísta? Escritor? Não importa se as probabilidades de Sócrates vencer as próximas eleições são baixas ou altas: esta é a sua última oportunidade. E Sócrates, se tem a combatividade de um samurai, não tem a abnegação correspondente. É fácil imaginá-lo aos berros mas não a beber a cicuta e ainda menos a sair de cena sem espernear. Sócrates irá tentar a sua última oportunidade. Quem sabe? O PS é um dos partidos do “arco do poder” (o mal, tem eixo; o poder, arco) e a sua clientela, alargada pelos últimos anos de consulado e bem estimulada nestas últimas semanas de poder, pode ainda… Quem sabe?

Uma questão que é necessário colocar a um PS que não se cansa de acusar o PSD de colocar os interesses do partido à frente do país, é esta: 93,3 por cento do PS pensa realmente que Sócrates é a melhor solução para governar Portugal? Se é assim, é de esperar que, ganhe ou perca as eleições daqui a dois meses, o PS se mantenha sob a liderança do actual secretário-geral. Mas, se a perda de eleições motivar a queda de Sócrates, isso quererá dizer que, como todos suspeitamos, o PS apenas escolheu o líder que possuía a maior desfaçatez, na esperança de realizar uma campanha vitoriosa. Afinal, o homem já ganhou duas eleições… Quem sabe?

É claro que, apesar da esperança infundada dos socratistas, toda a gente sabe que Sócrates vai bater no fundo, com estrondo. Nessa altura, o PS vai experimentar um sobressalto cívico, talvez até republicano (não me atrevo a dizer socialista) e, das reservas das coortes do PS vai sair um candidato, talvez um candidato e meio (nunca dois, nunca dois… em Portugal não há tradição, estas coisas combinam-se, não é preciso discutirmos em público, como vendedeiras) que se disporá a assumir a liderança do PS durante a oposição, que em Portugal dá pelo nome de travessia do deserto devido à escassez de víveres que acompanha o estatuto.

Mas antes disso, naquele período de agitação que precede a indigitação do candidato a líder de um partido e que obedece a regras semelhantes às da procura da reencarnação do Dalai Lama, vamos ouvir nomes (“Nem sabia que ele era do PS…”), relembrar percursos (“Ah... foi ela que fez isso?”), comparar currículos (“Estudou numa universidade a sério?”), sondar reputações (“Dizem que até é honesto!”), avaliar atitudes (“Demitiu-se!?”) e, em plena fase de candidaturas das pré-candidaturas, vamos descobrir que, numa gruta sob o Largo do Rato, existem homens e mulheres capazes de liderar o partido e de dirigir um Governo, competentes, dinâmicos e com visão, honrados e respeitados, com consciência social e capazes de dizer sustentabilidade sem gaguejar. O que é pena é que tenham passado todos estes anos a jogar às cartas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 05, 2010

O fim do caminho

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Outubro de 2010
Crónica 33/2010

O PS deve algo melhor do que José Sócrates ao povo português

Há sempre uma altura em que um líder partidário (ou de qualquer outra organização) deixa de ser um trunfo para passar a ser um peso morto, uma desvantagem, um obstáculo, uma liability. Os mais argutos apercebem-se dos primeiros sinais da coisa e saem graciosamente – ou pelo menos discretamente. Aos menos subtis é preciso empurrá-los. Para José Sócrates essa ladeira escorregadia começou há muito tempo, com a história de uma licenciatura take-away (cuja importância os seus correligionários nunca perceberam) e, depois de muitas peripécias eivadas de enredos judiciários, acabou na semana passada, quando se provou à saciedade que o retrato que fazia do país nos últimos meses (anos?), as garantias que dava e as promessas que fazia em matéria financeira eram absolutamente infundadas. Podemos discutir se se tratou de um optimismo desmedido, de cegueira selectiva, de uma abençoada ignorância, de um vício contumaz de mentira compulsiva (uma condição que dá pelo poético nome clínico de pseudologia fantastica) ou de mera desfaçatez, mas a verdade é que um equívoco desta dimensão é insustentável. Tão insustentável como o caminho das finanças públicas. Seja ele inocente ou calculado.

Os sacrifícios que o primeiro-ministro veio pedir ao país – e que não poupam sequer os mais pobres dos pobres – poderiam eventualmente ser aceitáveis se José Sócrates possuísse uma honorabilidade a toda a prova – mas, infelizmente, não é isso que acontece.
Os sacrifícios poderiam ser aceitáveis se o primeiro-ministro, num gesto de normal humildade, viesse dizer que tinha avaliado mal a situação e explicasse que o tinha feito com razões e até pelas melhores razões. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.

Os sacrifícios poderiam ser aceitáveis se o primeiro-ministro aproveitasse esta circunstância excepcional para impor alguma equidade ao sistema fiscal e, ao mesmo tempo que taxa os mais pobres, corta abonos de família, reduz prestações sociais e participações em medicamentos, viesse anunciar o fim do paraíso fiscal da Madeira, a taxação das empresas que o usam para fugir aos impostos, um tratamento fiscal dos bancos e das grandes empresas em linha com o que acontece ao comum das empresas portuguesas, o recurso aos sinais exteriores de riqueza para combater a fraude e a corrupção. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.

Os sacrifícios poderiam finalmente ser aceitáveis se o primeiro-ministro apontasse alguns caminhos para o país que não passassem pela adopção da miséria durante os próximos anos como meio de atingir a simples sobrevivência, se tivesse avançado alguma ideia mobilizadora, se conseguisse, enfim, dizer aos portugueses em nome de que lhes pede agora estes sacrifícios e o que podem esperar deles no futuro, se os convencesse de que não estão simplesmente a pagar os benefícios de que os accionistas e gestores do BPN gozaram abusivamente nos últimos anos. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu.
O que é espantoso é que o partido que apoia o Governo parece não se dar conta de que a credibilidade do líder do Governo – e, por extensão, do Governo - chegou ao fim, e continua a defendê-lo como uma simples vítima da conjuntura internacional hostil, perdendo com isso uma preciosa réstia de credibilidade. Que o Governo finja que não vê, percebe-se e espera-se. Que o PS finja que não vê é irresponsável e inaceitável. Veremos nos próximos anos se o PS deve algo a José Sócrates. Do que não há dúvida é de que deve algo melhor do que José Sócrates ao povo português. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 24, 2006

O mesmo e outra coisa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Janeiro de 2006
Crónica 4/2006

Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.


A eleição de Cavaco Silva à primeira volta não pode considerar-se uma surpresa, anunciada como foi pelas sondagens e pela evidência disponível para todos os que quisessem ver.

O facto mais surpreendente destas eleições é outro, que as sondagens também já tinham anunciado, mas ninguém tinha levado demasiado a sério: o segundo lugar de Manuel Alegre, destacado de Mário Soares. Nas sondagens, a posição inflacionada de Alegre podia ser um ajuste de contas com o PS, sem a responsabilidade do voto, por parte de alguns eleitores. Mas não foi isso que aconteceu – o que prova o rigor crescente das sondagens e como elas devem ser levadas a sério.

A votação de Alegre é significativa não por aquilo que ela diz dele (não nos diz nada de novo, ao contrário, por exemplo, da votação em Jerónimo de Sousa) mas pelo que diz do eleitorado – e é significativa independentemente do que Alegre faça desses votos nos próximos tempos.

O milhão de eleitores que votou numa candidatura de esquerda sem apoio de nenhum partido evidencia que não só há vida política para além dos partidos mas que há uma esquerda democrática para além dos partidos e que uma parte da esquerda que sustenta habitualmente com o seu voto o aparelho e as clientelas socialistas o faz por falta de alternativa. Poderá dizer-se que as ideias (vagas) expressas na campanha por Soares eram ainda menos alinhadas e menos conservadoras que as ideias (igualmente vagas) de Alegre, cujo apelo ao movimento cívico dos cidadãos aparece sempre embrulhado numa mensagem patriótica de etiologia duvidosa. Mas a imagem romântica de Alegre cidadão, candidato de cidadãos, para uma república de cidadãos, excedeu as limitações do seu discurso. O facto é tanto mais significativo quanto Alegre não representa uma fractura populista antipartidos (como o eanismo) mas uma alternativa no seio de um partido. Se Cavaco é a economia, o rigor e a seriedade, e Soares a política e a paixão, Alegre é a cidadania e a procura de outra coisa.

É evidente que a procura dessa outra coisa (ou melhor: de outras “outras coisas”) também se manifesta nas candidaturas de Francisco Louçã ou de Jerónimo de Sousa, mas estas candidaturas aparecem do lado de fora do poder, onde essas lógicas são parte da própria alterdoxia. Com Alegre, essa procura ainda não é uma doxa e surge no seio de uma área que o “establishment” político julga suficientemente representada pelo Partido Socialista. Não está e o fenómeno não é novo, mas endémico - ele já tinha sido evidente com Pintasilgo, por exemplo.

2. Houve na noite das eleições atropelos entre os vários directos, como seria inevitável, por atabalhoamento ou cálculo. Mas aconteceu um que não podia ter acontecido: o de José Sócrates, interrompendo Manuel Alegre. Falando na ambígua qualidade de secretário-geral do PS e de primeiro-ministro (garantiu “bom relacionamento e colaboração institucional” com o novo PR), Sócrates obrigou as televisões a desviar as câmaras de Alegre para si (apesar das hesitações evidentes na dança das imagens).

O gesto foi grosseiro, acintoso, prepotente e indiciador do pior possível para o Partido Socialista.
Se Sócrates falava como primeiro-ministro (e é impossível não falar, dadas as circunstâncias) deveria dar espaço a todos os candidatos. Se falava como dirigente do PS mandaria a cortesia, o pragmatismo e o respeito pelo eleitorado que reconhecesse o militante do seu partido que alcançou o melhor resultado.

Posteriormente, o gabinete de Sócrates veio dizer que não teria sido por acinte que se teria sobreposto a Alegre mas por descuido.

Que a nossa única esperança seja a incompetência da equipa do primeiro-ministro revela a pouca ambição das nossas expectativas.

Por outro lado, que Soares não tenha referido Alegre é compreensível – formalmente tratava-se apenas do segundo votado - ainda que isso deixe a dúvida sobre se Soares terá percebido que foi o azedume que o perdeu.

terça-feira, maio 31, 2005

Água morna

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Maio de 2005
Crónica 18/2005

A que lógica obedecem as auditorias ministeriais de três em três meses senão à de uma campanha de marketing?

A comunicação do primeiro-ministro sobre a situação orçamental do país constituiu a primeira grande oportunidade de José Sócrates mostrar um estofo de estadista. A oportunidade consistia na existência de um problema grave (a crise orçamental) e na possibilidade real de pôr em prática uma solução (devido à confortável maioria parlamentar, à conjuntura partidária favorável e à existência de um largo consenso entre os técnicos quanto às medidas necessárias).

Sócrates teve a oportunidade mas falhou. Não falhou por ter apontado um caminho errado, mas pela tibieza com que esboçou os passos a dar. No discurso de Sócrates (que vale a pena ler no papel, pois a retórica é também a arte de dar a entender que se disse algo que não se disse) nem tudo é fogo de artifício, mas há demasiado fogo de artifício. Muitas das medidas anunciadas, parecendo corajosas, são de facto tímidas, quando não medrosas; outras, parecendo concretas, são vagas; outras, parecendo socialmente justas, são apenas populistas.

O discurso de Sócrates mostrou um político mais preocupado com a retórica do que com as medidas, mais preocupado com a imagem do que em governar o país. Se a sua coragem (que o primeiro-ministro, com uma frequência embaraçante, tanto gosta de declarar) não ficou demonstrada, a sua veia política também não: é que este era o momento, de todos os momentos, onde era possível lançar a semente de reformas ambiciosas.

O Estado deve exigir que os cidadãos contribuam para a sociedade de acordo com os seus rendimentos e património. Não se entende por isso que um sistema fiscal que se pretende socialmente justo não inclua um imposto sobre as grandes fortunas. O Estado perde a moral para atacar os prevaricadores que não pagam o que devem quando ele próprio institui que alguém que tem de facto mais deve pagar legalmente menos.

Quanto ao IVA, para além de se tratar do imposto que mais penaliza os pobres, como o PS não se cansou de dizer quando o PSD o aumentou, é duvidoso que o aumento da taxa se traduza num aumento da receita. A sua duvidosa justiça e a sua duvidosa eficácia deveriam ter sido suficientes para não adoptar a medida.

As medidas contra a evasão fiscal vão em geral no bom sentido, ainda que seria de exigir que Sócrates anunciasse um verdadeiro pacote de medidas concretas (só agora é que começou a pensar no assunto?) e não apenas generalidades. E algo que não se percebe de todo é a razão por que o Governo quer acabar com o sigilo fiscal de todos (no que é uma interferência intolerável na esfera privada) mas apenas propõe o levantamento do sigilo bancário nos casos “de particular risco” numa estranha transparência selectiva. Parece evidente que o cruzamento de dados por parte da Administração Pública faz sentido para evitar a fuga ao fisco, mas é indispensável tornar público o rendimento de cada cidadão? E não sendo indispensável será isso lícito? Afinal quem precisa de conhecer os meus rendimentos? O fisco ou o meu vizinho? Por outro lado, não deveria o fisco ter acesso directo às contas bancárias, se tem acesso a todos os outros dados relevantes para avaliar a situação patrimonial de um dado cidadão?

A aproximação dos regimes de segurança social do sector público e privado é sem dúvida necessária, em nome da equidade. Mas se a medida é justa e necessária porquê arrastá-la ao longo de três legislaturas (promessa impossível de garantir) e torná-la dessa forma talvez inaplicável? Porque não aplicá-la já, no espaço de tempo mais curto possível, e arrostar com a contestação sindical da medida? Parece ser um daqueles casos em que, por medo de saltar, se pretende transpor o fosso com três pequeninos passos.

As promoções automáticas são outro caso: porquê suspendê-las “temporariamente e a título excepcional” em vez de acabar com elas de vez, mantendo as promoções por mérito e concurso? Não serão elas uma injustiça e uma fonte de despesa? E que disparate é este das auditorias ministeriais de três em três meses? A que lógica obedecem senão à de uma campanha de marketing, onde se pretende ter sempre uma novidade para nos ir mostrando?

Estes sinais não nos dão motivo para confiar nem na justiça nem na determinação destas medidas.

E muito menos permitem confiar naqueles princípios de acção enunciados de forma geral sobre o fim dos privilégios, dos regimes de excepção, a reforma administrativa, etc.

terça-feira, março 15, 2005

F words

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Março de 2005
Crónica 9/2005

Há quem pense que é aceitável falar de Guantánamo uma vez, mas indelicado mencionar a questão segunda vez.


1. A nomeação de Freitas do Amaral como ministro dos Negócios Estrangeiros foi o que se pode chamar um golpe de prestidigitação de José Sócrates. O golpe surtiu o seu efeito principal (surpreender os analistas e suscitar a admiração popular) mas teve efeitos contraproducentes: fez praticamente a unanimidade contra si dos comentadores políticos e lançou a desconfiança nas chancelarias internacionais. Se os primeiros encontraram nas críticas de Freitas à Administração americana a respeito da guerra do Iraque razão suficiente para que este não pudesse sobraçar a pasta, as segundas começaram a pensar se a política externa portuguesa se iria afastar da sua aposta no eixo euro-atlântico.

Infelizmente, a maior parte dos argumentos avançados contra a nomeação de Freitas do Amaral são da ordem da Realpolitik: sendo os Estados Unidos a única potência mundial não é prudente antagonizar o Império, ponto final. Freitas desagradou aos americanos e isso devia impedi-lo de ocupar o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Os comentadores não perderam tempo a analisar os argumentos e as razões de Freitas (coincidentes, aliás, com os de muitos milhões de outros, nomeadamente de muitos americanos que se opuseram à guerra do Iraque) e preferiram esquecer as condições em que a guerra foi lançada para sublinhar apenas a incomodidade que o novo cargo de Freitas podia trazer a Portugal.

Não está em dúvida que, num cenário de reaproximação entre a Europa e os Estados Unidos e perante os desafios internacionais que recomendam esse alinhamento (do Médio Oriente à China), Freitas seja um nome pouco indicado. Isto é do domínio da prudência e do sentido prático. Mas o que não é admissível é que, em nome dessa conveniência política, que se reconhece, sejam apresentadas como barbaridades declarações que condenam factos que nenhuma conveniência deve branquear. Isto é do domínio da coerência e da dignidade. É um facto que Bush mentiu à comunidade internacional para justificar a invasão do Iraque e é um facto que Bush considera que o cumprimento da lei internacional ou o respeito dos direitos humanos se deve exigir aos outros países mas não aos EUA – o que é uma marca das tiranias e Freitas tem razão aqui. Se Guantánamo fosse na Turquia, seria insustentável para a opinião pública europeia a existência de negociações de adesão com Ancara. E se fosse uns quilómetros mais para norte, em Cuba-Cuba, as autoridades dos EUA não calariam a sua indignação. Dizer isto não tem nada de anti-americano e a prova de que Guantánamo não reflecte nem o sonho nem toda a sociedade americana é a vaga de movimentos e de cidadãos americanos que lutam por repor a legalidade, reconquistar os direitos perdidos com o Patriot Act e denunciar os crimes de guerra. Em Portugal há quem pense que é aceitável falar de Guantánamo uma vez, mas indelicado para os nossos aliados mencionar a questão segunda vez.

2. No seu discurso de tomada de posse, José Sócrates anunciou a sua intenção de permitir a venda de medicamentos de venda livre noutros estabelecimentos que não as farmácias. A medida é correcta, útil, facilita a vida e aumenta o bem-estar dos cidadãos, não tem riscos (se for acompanhada de cuidados mínimos), tem sido defendida por muitos técnicos de saúde e a sua aplicação já se faz há muitos anos noutros países. As farmácias falam de riscos, tentando proteger o seu mercado cativo e convencer-nos de que o facto de comprar aspirinas na farmácia nos protege mais do que comprá-las no supermercado.

É evidente que há no anúncio de Sócrates uma vontade de afirmação de independência dos “lobbies” (o que é bom) e é evidente que a inovação e as reformas se afirmam com pequenos passos como este (ainda que não se resumam a eles).

3. A terrível questão que nos deixam a nomeação de Freitas e o enfrentar das farmácias é saber até que ponto são ambas sinais de uma vontade ao serviço de uma estratégia (qual?) e até que ponto não são gestos avulsos apenas decididos pelo desejo de marcar a agenda mediática, surpreender o homem da rua, entreter os comentadores e gerir o “status quo”.

terça-feira, março 01, 2005

Desejos de Ano Novo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Março de 2005
Crónica 7/2005

A qualificação infelizmente é lenta, mas o progresso não se compra chave na mão


Nesta altura em que todos os comentadores aproveitam para dar conselhos ao primeiro-ministro indigitado, em que os grupos de interesse se alinham para saber de que forma poderão influenciar as políticas e os cidadãos recuperam da fugaz alegria de ter posto a andar Santana Lopes, é altura de exprimir alguns desejos retardados de Ano Novo sobre o Governo de José Sócrates.

O primeiro desejo nasce de uma perplexidade perante a quantidade de comentadores que discutem se Sócrates deve governar à direita por ter ganho as eleições ao centro ou à esquerda por as eleições terem mostrado uma maioria de esquerda. É curioso como todos estes comentadores admitem como certo e seguro que Sócrates não tem o mínimo programa político e deve actuar de forma a satisfazer a sua clientela partidária e eleitoral, garantir uma calma travessia da legislatura e uma eventual reeleição. É evidente que o vago programa eleitoral com que o PS se apresentou permite estas considerações, mas seria conveniente que o PS e José Sócrates se preocupassem não em governar à esquerda ou a direita, mas em pôr em prática aquilo que convictamente pensam ser o melhor para o país, para os seus filhos.

Isto não quer dizer que se possa governar numa terra de ninguém ideológica, mas quer dizer que o PS não se deve abster de tomar medidas que considera adequadas, necessárias e estrategicamente importantes por recear que sejam rotuladas de uma forma eleitoralmente inoportuna. Deve dizer-se, aliás, que num país onde tanto está por fazer (que sector, em Portugal, pode ser dado como exemplo de qualidade?) existem inúmeras medidas de organização do Estado que não podem deixar de merecer apoio à esquerda e à direita (se não em termos partidários, pelo menos em termos sociais). Temos os exemplos das reformas da justiça ou do sistema fiscal, que direita e esquerda reclamam, que a direita não fez quando podia (e devia, se não em nome da moral, pelo menos em nome do funcionamento do mercado) e que o PS pode agora fazer (e deve, em nome da justiça social).

Seria bom ter presente que os interesses instalados que impedem estas reformas não são os do “capital”, nem os dos “trabalhadores”, mas são os daqueles que vivem fora do sistema, à margem da lei, quer se trate de empresas prevaricadoras ou indivíduos corruptos.

O segundo desejo nasce da fala delicodoce e ideologicamente neutra que marcou a campanha do PS. Se isso é compreensível (ainda que desgostante) em período eleitoral, é inaceitável que se transforme no discurso do Governo. Do Governo exige-se que fale verdade, que explique as suas medidas, que não escamoteie dificuldades. O povo poderá aceitar sacrifícios em nome do progresso, não aceitará mentiras (como estas eleições mostraram). Entre o derrotista “discurso da tanga” e a pura ”tanga” a república tem de saber encontrar o caminho da verdade.

O terceiro desejo chama-se educação. É compreensível que Sócrates não tenha querido recuperar a “paixão da educação” e tenha preferido um “choque tecnológico” (cujo tradução subliminar é “milagre”) e o “objectivo” de criar 150.000 empregos. No entanto, é bom não esquecer que a única coisa capaz de promover o progresso tecnológico e o emprego é a qualificação. A inovação e a produtividade também dependem da qualificação. A qualificação infelizmente é lenta, mas o progresso não se compra chave na mão. A qualificação não se faz de uma dia para o outro, mas pode dar frutos no tempo de uma legislatura - e com o concurso de associações patronais e sindicatos.

O quarto desejo é avaliação. Avaliação de serviços mas também de políticas. O que pressupõe definição de objectivos, atribuição de meios, uma cultura de responsabilização, medição de resultados, um sistema de incentivos e sanções. Não há razão para que se fale de avaliação no ensino e na investigação e não na justiça ou na fiscalidade (para retomar os mesmos exemplos). E competente e independente, claro. A avaliação é a arma da competência, mas é também a arma contra a corrupção.

O choque tecnológico não pode ser a Ascensão das Máquinas nem uma campanha de marketing. Se Sócrates preferir as photo-ops do choque tecnológico em vez da aposta séria da qualificação, ficaremos a saber que as últimas eleições não serviram para nada.

terça-feira, janeiro 18, 2005

Ideologia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Janeiro de 2005
Crónica 2/2005

O que se espera de um partido político é que ele possua uma visão do mundo e objectivos para a sua mudança.

Há uns dias, numa reunião no Centro Cultural de Belém, José Sócrates afirmava que, caso o PS ganhasse as eleições legislativas, iria introduzir alterações ao Código do Trabalho aprovado pela actual maioria, mas que mas não iria revogá-lo “apenas por objecções ideológicas”.

As razões ideológicas têm, é evidente, má imagem e, desse ponto de vista Sócrates pode ter marcado um ponto. As pessoas estão habituadas a ouvir falar de erros (quando não de massacres) cometidos em nome da ideologia e alguém que apresente “razões ideológicas” para os seus actos parece na melhor das hipóteses um velho casmurro caminhando para o abismo.

“Razões ideológicas” soam a sectarismo partidário, a irracionalidade, a fanatismo, enquanto que a sua recusa tem a imagem do pragmatismo, da flexibilidade e da razoabilidade.

Acontece porém que o que se espera de um partido político é que ele possua de facto uma ideologia – que possua uma visão do mundo e objectivos para a sua mudança, que possua um sistema de ideias racionais e práticas que (entre outras coisas) nos permita ter uma ideia da sua actuação futura caso ele seja eleito para fazer leis e formar Governo.

Claro que um partido político não pode usar a sua ideologia como uma doutrina cega e tomar decisões com base em preconceitos. Um partido precisa também de ser pragmático e de se adaptar tacticamente à realidade - não se pode seguir uma receita ignorando quais os ingredientes disponíveis. Mas o pragmatismo deve apenas fornecer o grau de liberdade com que se tentam atingir os grandes objectivos da ideologia.

É evidente que a ideologia vai mudando – e, em geral, por imposição da realidade. Houve uma altura em que ser de esquerda significava inevitavelmente defender a propriedade estatal dos meios de produção – o que hoje parece não só manifestamente desfasado da realidade como até desservir os objectivos igualitários que a medida pretendia atingir.

Mas há sempre algo que se mantém. Um partido com a ideologia na gaveta é um grupo oportunista que não pode oferecer qualquer garantia de coerência – não é por acaso que o Bloco de Esquerda escolheu como slogan da sua campanha “Esquerda de confiança”. Uma “objecção ideológica” não é uma birra sem sentido.

É evidente que o PS possui uma ideologia, mas seria útil e pedagógico que não o esquecesse e que não fingisse não a ter. A escolha de um Governo numa democracia tem de ter como base uma visão do mundo que é sancionada pelos eleitores. Não o guarda-roupa do líder, nem as “boutades” de campanha. A fuga da ideologia está no ar do tempo e é um luxo a que a direita (economicamente) liberal se pode dar, entregando como entrega tanto da política às mãos invisíveis do mercado e de Deus (o que é ideológico mas pode dar-se ao luxo de ser menos voluntarista). Mas a esquerda, se não viver da sua ideologia e do sonho de querer mudar o mundo, não viverá de todo. Será indistinguível da direita tecnocrática da boa gestão, para quem os objectivos da política se resumem a encontrar as melhores medidas do ponto de vista técnico, ideologicamente neutras, com que acreditam que o mundo gerará mais riqueza – o que permitirá resolver todos os problemas.

O pragmatismo da esquerda envergonhada foi visível esta semana também nas declarações de Sampaio sobre a China. Não é possível manifestar compreensão a respeito dos atropelos dos direitos humanos na China apenas porque o seu poder económico é imenso. Pode-se sim, pragmaticamente, considerar que a defesa dos direitos humanos naquele país deve ser um esforço a prosseguir numa via não confrontacional e de diálogo, porque essa parece ser a melhor táctica, mas a prosseguir com tenacidade e sem recuos.

Para eleger um homem ou uma mulher não nos basta saber se é hábil ou inteligente. Queremos saber para onde vai, o que o/a faz mover, qual é o seu sonho. A ideologia é a ambição que os partidos têm para a sociedade, o seu sonho (as vezes o nosso pesadelo). Se um partido não tem grandes ambições, tem apenas para nos oferecer a pequenez das suas invejas.