terça-feira, julho 31, 2001

Amálgamas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2001
Crónica x/2001

A cimeira de Génova, a contestação "anti-globalização" a que serviu de pretexto e a repressão de que esta última foi objecto deram origem a uma chuva de comentários nos órgãos de comunicação nacionais e internacionais que seriam todos interessantes se não sofressem tantos do mal da simplificação abusiva.
Todos os comentadores com alguma seriedade concedem que, sob o manto diáfano da designação colectiva "manifestantes anti-globalização", se reúnem os movimentos e os indivíduos mais díspares e mesmo mais opostos, de defensores da agricultura biológica a nacionalistas radicais, de militantes ecologistas a adeptos da teologia da libertação, de jovens empenhados em movimentos de solidariedade social a arruaceiros, de vegetarianos a terroristas em botão, de anarquistas a "hooligans" amadores ou profissionais, passando por homens e mulheres genuinamente preocupados com as injustiças e as desigualdades sociais. E o mesmo se poderia dizer dos "defensores da globalização", onde se podem encontrar sem dificuldade convictos defensores do desenvolvimento sustentável e da solidariedade internacional, misturados com especuladores sem escrúpulos, ditadores e mafiosos de vários matizes.
No entanto, sempre que se trata de analisar os acontecimentos, o pé de muitos comentadores — e da imprensa em geral, diga-se de passagem — desliza para a simplicidade da amálgama, de um lado e de outro da barricada. É mais fácil falar de "Globalização - Pró ou Contra" que tentar discriminar razões, objectivos, meios e fins. E a imprensa é, sabemos, simplificadora da realidade, sacrificando matizes que às vezes fazem deitar fora o bebé com a água do banho.
O maniqueísmo das análises tem desculpas de ordem prática mas não é aceitável num comentador isento. Da mesma forma, não é aceitável que se tente obrigar os cidadãos a escolher entre o manifestante munido de um cocktail Molotov e o empresário que deita fogo a uma aldeia para explorar a madeira tropical. Perante este maniqueísmo (lembram-se de quando qualquer pessoa de esquerda era acusada de querer o Gulag?) é preciso saber recusar as duas ignomínias que nos estendem sobre a bandeja.
Pode (e deve) compreender-se os riscos da globalização e tentar combater os seus efeitos nefastos (sejam eles efeitos "perversos" ou "inevitáveis" do capitalismo ou da tecnologia) recusando ao mesmo tempo o cocktail Molotov.
É possível compreender algumas das razões dos manifestantes de Génova e recusar outras, aderir a algumas palavras de ordem e recusar outras, adoptar certas formas de protesto e repudiar outras.
É evidente que a participação num movimento social traz consigo uma responsabilidade colectiva e não é possível ilibar totalmente um manifestante dos gestos praticados pelo grupo em que se integra — por muita ingenuidade ou inconsciência que possa haver na adesão a esse grupo. Mas, pela mesmíssima razão (porque somos livres de escolher), é absolutamente ridículo que alguém pense que nos pode propor como únicas alternativas a fome em África ou o terrorismo basco.

terça-feira, julho 24, 2001

Os cartazes do medo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Julho de 2001
Crónica x/2001

O espectro da insegurança nas ruas sempre caracterizou o discurso propagandístico da direita. O argumento tem duas lógicas convergentes: por um lado, insinua-se que a esquerda, com o seu discurso de defesa dos trabalhadores e devido às simpatias proletárias da sua herança marxista, é naturalmente benevolente perante aquilo a que Marx chamou o "Lumpenproletariat" — os marginais em geral e os criminosos em particular. São reflexos dessa lógica os argumentos que afirmam que o rendimento mínimo garantido promove a marginalidade. Da mesma forma, as ideais de esquerda são assimiladas ao caos social e à insegurança civil.
Por outro lado, sugere-se que apenas a direita sabe exercer a autoridade, e que apenas ela respeita suficientemente a propriedade para pôr em prática os mecanismos sociais da sua protecção.
Além da sua força na captação de votos (no melhor dos casos), estes argumentos têm outra propriedade, devido ao clima de medo que geram: quando quem os usa consegue chegar ao poder, eles justificam uma intervenção musculada no discurso e na prática social e política, na relação com os parceiros institucionais e as oposições — privilegiando uma "atitude disciplinadora" versus uma "prática solidária".
Os cartazes "Lisboa parada", com que o candidato do PSD à Câmara Municipal de Lisboa, Pedro Santana Lopes, encheu a cidade — em particular o típico "Lisboa parada com medo dos assaltos" — , são exemplos desta lógica.
Neste cartaz, vê-se uma imagem desfocada de um assalto à mão armada em pleno dia: um homem armado de uma faca arranca um saco que uma mulher traz a tiracolo.
O cartaz tem o exagero da propaganda. Lisboa não está parada com medo dos assaltos e dizê-lo leva a crer que a candidatura que os colocou tem da cidade a imagem caricatural de uma beata aldeã de idade avançada apavorada com a urbe selvagem e frenética. O cartaz (toda a série, de facto) tem, ainda, o inconveniente de realizar uma campanha pela negativa, sem defender nenhum ponto de vista, sem fazer propostas concretas e até sem fazer críticas precisas (no conteúdo ou no destinatário).
Mas o cartaz tem principalmente a desvantagem de constituir objectivamente uma campanha de publicidade em prol da criminalidade — no que não será certamente o desejo do candidato Santana Lopes. Dizer em grandes cartazes que Lisboa está paralisada com medo dos assaltos (como o tinha já feito o Partido Popular) e insinuar que os lisboetas não saem à rua devido à vaga de criminalidade é convidá-los a sentir medo da sua cidade. Ora a criminalidade combate-se principalmente fazendo da cidade um local vivo e habitado por cidadãos sem medo.
Anunciar em grandes cartazes que os fora-da-lei são donos da cidade é adequado para a promoção de um "western". Mas seria mais tranquilizador se soubéssemos que Santana Lopes tinha aceitado finalmente que não é Gary Cooper.

terça-feira, julho 17, 2001

Chapéus contraditórios

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Julho de 2001
Crónica x/2001

A discussão sobre a recente directiva da Alta Autoridade para a Comunicação Social sobre a recolha de imagens de pessoas em situação de fragilidade psicológica suscita aquilo que poderíamos chamar uma questão de chapéus.
As sociedades democráticas estimulam a organização de grupos com interesses e objectivos comuns. Esses grupos (partidos, clubes, associações, empresas) defendem as suas posições, colocando-as em confronto com outras num mercado de ideias que se pretende aberto. Esse confronto — aliado a mecanismos de livre escrutínio, adesão, recusa ou contestação por parte do público — encontra-se no cerne da sociedade democrática.
Esta livre organização de interesses tem como resultado que todos nós representamos vários papéis, de acordo com os vários grupos de que fazemos parte. Somos todos funcionários de empresas, membros de associações, de partidos e clubes e, dentro de cada um destes grupos, representamos muitas vezes mais de um papel.
É frequente que um indivíduo, interrogado por um jornalista ou por alguém que, de alguma forma, vai dar eco às suas opiniões, insista em sublinhar o estatuto em que faz as suas declarações — o que é um reflexo positivo da organização da sociedade civil, da vivacidade do mercado de ideias e da veemência da defesa dos interesses dos vários grupos sociais.
É evidente que o estatuto de quem fala é fundamental para avaliar a idoneidade e/ou o peso de uma dada afirmação. É fundamental saber se uma declaração está a ser feita por alguém enquanto ministro ou espectador de cinema para sabermos a importância que devemos dar às afirmações produzidas.
É igualmente claro que há casos onde a identificação usada por um dado indivíduo para falar em público tem consequências ponderosas. Saber se o funcionário de uma dada instituição está a transmitir um sentimento individual ou a representar a instituição é sempre fundamental. Da mesma forma, é importante saber se alguém fala enquanto dono de uma empresa ou presidente de uma federação de trezentas empresas. É evidente que ambas as posições são possíveis (falar em nome pessoal ou em nome da instituição) mas o que não é sempre possível, é usar alternadamente os dois chapéus — mesmo que se tenha o cuidado de dizer que se fala hoje enquanto A e amanhã enquanto B.
Vem isto a propósito das declarações, feitas a título pessoal, de Carlos Veiga Pereira, criticando a directiva da Alta Autoridade para a Comunicação Social, de que é... porta-voz.
A directiva que Veiga Pereira critica encontra-se de facto ferida de um excesso de zelo profundamente ridículo. Mas o que interessa é que um porta-voz é alguém que aceita dar voz à posição oficial de um dado órgão, o que pressupõe uma profunda identidade com o seu funcionamento e a aceitação do resultado do seu trabalho, quer com ele se concorde pessoalmente ou não.
A esquizofrenia de posições divergentes coincidindo na mesma pessoa conforme o chapéu que têm na cabeça não pode senão levar-nos a pensar que as posições não pertencem à cabeça mas sim ao chapéu.