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terça-feira, novembro 11, 2014

As fraudes legais, a oligarquia legal e o primado da lei

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Novembro de 2014
Crónica 50/2014


As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase secreta e a sua alteração quase impossível.

A maior notícia dos últimos dias foi a revelação da existência de um gigantesco esquema de evasão fiscal montado pelas autoridades fiscais do Luxemburgo em benefício próprio e de centenas de grandes empresas multinacionais. Este esquema permitiu poupar às empresas milhares de milhões de euros em impostos e roubar a mesma quantidade de dinheiro ao erário público dos países onde estes impostos deveriam ter sido pagos.

Que o Luxemburgo é um paraíso fiscal é algo sobejamente conhecido. O que é verdadeiramente espantoso neste esquema – revelado por um grupo de mais de 80 jornalistas do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) – é a sua dimensão, a complexidade das transações realizadas e o grau de organização e de rotina atingido pela operação.

Entre as mais de 340 empresas cujas operações de evasão fiscal foram reveladas por esta investigação, conta-se a IKEA, Pepsi, Federal Express, a consultora Accenture, os laboratórios Abbott, a seguradora AIG, a Amazon, Blackstone, Deutsche Bank, Heinz, Morgan Chase, Burberry, Procter & Gamble, Carlyle Group e a Abu Dhabi Investment Authority, para mencionar apenas algumas das mais conhecidas. As operações estão documentadas em 28.000 páginas de documentos oficiais a que os jornalistas tiveram acesso.

Uma das coisas mais relevantes nestas revelações é que elas envolvem um total de transacções da ordem das centenas de milhares de milhões de dólares (leu bem), realizadas entre 2002 e 2010, a que deveriam corresponder pagamentos de impostos na ordem dos milhares de milhões de dólares. De facto, as empresas chegavam a pagar taxas efectivas inferiores a um por cento sobre os lucros – um valor que, apesar de irrisório, representava (representa) um prodigioso maná para o Estado luxemburguês.

Outro elemento que nos faz pensar é que todos estes casos descobertos pelo ICIJ dizem respeito, exclusivamente, a clientes da empresa de consultoria financeira PricewaterhouseCoopers. Como é provável que outras empresas de contabilidade proporcionem este serviço luxemburguês aos seus clientes, percebemos que, apesar de gigante, esta montanha representa apenas a ponta do icebergue e que o total envolvido nestas evasões fiscais escapa à nossa imaginação.

Há inúmeras coisas chocantes nesta história. Uma delas é o facto de se tratar de um esquema sancionado pelo Estado luxemburguês e não de uma falcatrua perpetrada apenas pelas empresas. O Governo luxemburguês, liderado pelo actual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, assinava com as empresas acordos secretos para ganhar um euro por cada dez ou vinte euros que as empresas deixavam de pagar nos seus países, comportando-se como uma espécie de receptador de bens roubados e violando assim a mais elementar lealdade entre Estados-membros da UE.

Estes acordos secretos com as empresas não eram feitos por uns governantes corruptos, com o fim de meter uns cobres ao bolso, e que agora vão ser atirados para a cadeia. Estes acordos eram legais. Secretos, para não enfurecer os outros Estados-membros, mas legais. Legais à luz da lei luxemburguesa e legais, juram os dirigentes luxemburgueses, à luz das normas europeias. Porquê legais à luz das normas da UE, que (em teoria) proíbe todas as ajudas a empresas que possam enviesar a concorrência? Porque, respondem os luxemburgueses com ar seráfico, “todas as empresas eram tratadas da mesma maneira”. Qualquer empresa que quisesse fugir aos impostos encontrava no Luxemburgo uma mão amiga.

A legalidade desta pouca-vergonha coloca-nos um problema. O problema é que nos habituámos a definir a lei como o último refúgio da equidade e da justiça e a considerar o primado da lei como uma característica essencial das democracias. Mas o que acontece quando a lei apenas defende os mais fortes? O que acontece quando a lei é não um instrumento para proteger os mais fracos dos abusos dos mais fortes, como devia ser, mas um instrumento para proteger os abusos dos mais fortes e para subjugar os mais fracos? O que acontece quando a lei é iníqua, desumana?

Vivemos no mundo um ataque aos direitos, à liberdade e à igualdade também no plano legal. Não são apenas as leis (ou os acordos secretos) que permitem que os ricos não paguem impostos. São as leis que reduzem os direitos dos mais fracos, que reduzem os apoios sociais, que criminalizam os protestos, que impedem as greves, que criminalizam os sem-abrigo.

As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase secreta e a sua alteração quase impossível. É duvidoso que um milésimo da população da UE soubesse em que consistia o Tratado Orçamental antes de ele ser assinado. Vivemos, na UE, numa camisa-de-forças legal, composta por tratados que ninguém discutiu nem aprovou, e que poucas pessoas sabem que consequências terão. Podemos alterá-los? Em teoria, sim. Mas apenas em teoria. E se a lei se estivesse a tornar um instrumento de ditadura?

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, outubro 25, 2011

Não temos leis que cheguem?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Outubro de 2011
Crónica 43/2011

Seria ética, política e juridicamente repugnante fazer leis para aplicação retroactiva

A ideia de criminalização da actividade política que se revele prejudicial para o país tem vindo a ser defendida pela direita portuguesa e por sectores populistas avulsos. Pedro Passos Coelho defendeu no Parlamento a “responsabilização dos agentes políticos e gestores públicos”. A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, lamentou que isso não fosse possível no actual ordenamento jurídico mas manifestou a esperança de que a situação mudasse em breve. O líder da JSD instou o PGR a colocar no “banco dos réus os verdadeiros culpados da situação a que o país chegou”. Marques Mendes defendeu a mesma coisa e Medina Carreira vem clamando pela responsabilização criminal de governantes há muito tempo. Mas, aparentemente, não temos leis que cheguem e precisamos de leis novas para tornar os políticos decentes.
A ideia parece merecer apoio popular, mas ela é inaceitável por diversas razões.
Antes de mais, seria ética, política e juridicamente repugnante fazer leis para aplicação retroactiva. Depois, seria complicado definir o âmbito de acção e prazo de prescrição dessas leis retroactivas. É claro que a intenção do PSD é criminalizar o governo Sócrates e parar por aí - mas, por que não alargar o prazo até Durão Barroso ou Cavaco Silva? Ou decreta-se que apenas são criminalizáveis actos praticados à esquerda do PSD?
Depois, seria difícil tipificar o crime de “gestão política danosa” sem adoptar um ponto de vista claramente ideológico. Eu posso defender, por exemplo, que é criminoso que as transacções financeiras não sejam taxadas, que não haja um imposto sobre o património das grandes fortunas, que exista um paraíso fiscal na Madeira, que se privatizem as Águas de Portugal. O PSD terá outras ideias.
Criminalizar uma decisão política só porque teve maus resultados seria burocratizar e judicializar a política e garantir que o pior dos móbiles, a minimização do risco pessoal, se tornaria o principal motor da acção política.
É evidente que recusar a invenção deste novo crime não quer dizer que eu não exija responsabilização (e criminalização, quando isso se justificar) dos políticos. Exijo. Mas penso que não precisamos de novas leis para acusar quem se abotoou ou foi negligente com dinheiro público. Só precisamos de aplicar a lei. E, neste particular, não vejo por que não levar essa investigação aos Governos, aos Parlamentos e empresas públicas dos últimos anos e até onde a lei, as prescrições e o interesse público mandarem.
Do que precisamos é de aplicar as leis que há. De exigir que os organismos de fiscalização e regulação comecem a funcionar, do Banco de Portugal ao Tribunal de Contas, do Ministério Público às inspecções dos ministérios. Que a imprensa seja mais vigilante e assertiva. Que os cidadãos sejam mais exigentes. Precisamos de mais exigência, mais transparência, melhores procedimentos. Para que o Governo não contrate gabinetes de advogados de uma forma que carece de “rigor, correcção e transparência”. Para que os ministros saibam que não devem receber presentes de vinhos raros nem devem aceitar um subsídio de alojamento quando têm casa ao pé de Lisboa. E precisamos de respeitar e melhorar os procedimentos que existem. De consultar os sindicatos quando a lei determina e não apenas quando isso apetece ao Governo, por exemplo.
E, last but not least, precisamos que os deputados da maioria, seja ela qual for, se comportem sempre como deputados da Nação e nunca como criados do Governo. Se existe uma perversão na democracia é o facto de as maiorias no Parlamento, que sustentam o Governo por definição, abdicarem por sistema da função de fiscalização do poder executivo e impedirem as minorias de a levar a cabo. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 17, 2006

Ética e lei

O comportamento dos homens públicos é um dos terrenos clássicos de discussão da ética

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 17 de Janeiro de 2006
Crónica 3/2006

Há alguns dias, em jeito de resposta à acusação de comportamento impróprio devida ao facto de ocupar a presidência de uma empresa que poderá ter beneficiado enquanto ministro e às vozes que sugeriam a sua demissão ou pediam a sua censura, o deputado socialista Joaquim Pina Moura decidiu responder que a única ética que reconhecia na República era a lei da República. E, não tendo ele cometido nenhum acto ilegal, não via qualquer razão para se demitir nem qualquer base para as críticas que lhe eram dirigidas.

O argumento considera que os princípios éticos da República estão todos plasmados na lei e não existem fora dela. Como a condenação da lei é algo que não se pode decretar “a priori”, apenas com base numa interpretação pessoal dos textos legais – e, pelo contrário, exige o devido processo –, decorre das declarações de Pina Moura que só desrespeita a ética republicana quem é condenado pelos tribunais. Inversamente, bastará não ser apanhado nas malhas da lei para viver como exige a ética. O raciocínio tem a dúbia virtude de transformar a ética em algo indistinguível daquilo a que em linguagem comum se chama “esperteza saloia”.

A lógica é maniqueísta e tem, para os suspeitos, a vantagem pragmática de reduzir a possibilidade de que algum acto venha a ser considerado não ético. É a aplicação da lógica hipergarantista à ética.

Mais: apaga de facto o julgamento ético, substituindo-o pelo julgamento legal. Deixa assim de haver falhas éticas, actos eticamente reprováveis ou de conformidade ética duvidosa para passar a haver apenas ilhas de infracções e crimes num mar de absolvições.

Esta posição é tanto mais chocante num deputado quanto a ética é eminentemente democrática (ao contrário da lei, que não o é por natureza), pois parte do desejo de procurar uma verdade mutável através do debate aberto na sociedade.

A declaração é, por outro lado, tanto mais ridícula quanto o comportamento dos homens públicos foi desde sempre um dos terrenos clássicos de discussão e de aplicação da ética.

E é tanto mais disparatada para um deputado quanto ela menoriza o julgamento dos cidadãos e o substitui pelos critérios do poder judicial – como se um fosse redutível ao outro.

De facto, não é a lei a ditar a escolha dos homens e mulheres que exercem o poder legislativo ou executivo mas a vontade popular. E este, entre outras coisas, vive do julgamento ético que continuamente fazemos dos dirigentes que escolhemos. Quanto mais não seja por esse facto, a ética não é redutível à lei.

Ao querer subtrair a sua actuação ao julgamento ético e ao pretender reconhecer apenas o poder judicial, Pina Moura quer recusar aos cidadãos o seu direito à discussão dos seus actos, à crítica e à censura. Seria aceitável se Pina Moura fosse apenas um gestor; é inaceitável num deputado.

Que a lei não fornece a única grelha de análise dos nossos actos, todos o sabemos. Os actos de um homem público estão, entre muitos outros, submetidos ao escrutínio da opinião pública (e da imprensa como expressão da liberdade dessa opinião), dos eleitores (que se manifestam nas eleições e não só) e dos próprios pares (no caso vertente, dos deputados da Assembleia da República). E um homem público é aquele que aceita a legitimidade desses julgamentos. Aparentemente, Pina Moura não aceita.

É evidente que o julgamento ético não pode ser algo vago, sujeito aos humores dos julgadores. Deve basear-se em critérios conhecidos, possuir formalidade, ter referências escritas e uma memória, de forma a garantir a equidade. Não é preciso que se transforme em lei para o fazer. Mas esse julgamento ético deve ser feito, num exercício contínuo, aberto e participado, justo mas exigente. Se a lei não se pode confundir com a ética, isso não significa que esta não aplique os seus julgamentos. Nos domínios da ética esses princípios estão plasmados em linhas de conduta, em códigos deontológicos, no julgamento dos pares, em normas de boas práticas, em constante discussão mas que não devem ser levadas menos a sério por isso. Cabe aos deputados que fazem as leis para os outros, zelar para que a ética não seja descurada nas suas bancadas.

terça-feira, maio 03, 2005

Privilégios

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 3 de Maio de 2005
Crónica 14/2005

Existe um trabalho de reabilitação e de educação cívica a fazer no seio da polícia

1- O carro segue pela A1 a uns 160 quilómetros por hora. O carro é potente, seguro e confortável, o condutor experiente e hábil e o tráfego reduzido.

De repente, ouve-se uma sirene, aparece um carro de polícia, há uma ordem para encostar, o carro imobiliza-se na beira da estrada, um polícia aparece na janela do condutor e inicia-se o diálogo: “O sôr ia um bocadinho depressa!” “Pois é sô guarda, se calhar ia... Estou com um bocadinho de pressa...” “Pode mostrar-me os seus documentos?” “Com certeza... Sabe, eu sou advogado e vou com um bocadinho de pressa para um julgamento...” O guarda fica a olhar para a identificação que o outro lhe estende. “Bom, sô tôr...” diz muito lentamente, “Veja lá se para a próxima não vai com o prego a fundo”.

2 - Outra auto-estrada, nos arredores de Chicago. O carro segue a 75 milhas por hora (120 km/h). Uma sirene, uma ordem para encostar, um polícia que se aproxima: “Good morning, sir. Seventy five on the meter and the limit is 65”. O condutor entrega a sua carta de condução. O polícia devolve-lha acompanhada de um papel onde está escrito que tem 48 horas para pagar a multa e onde se explica que, caso a queira contestar, se deve apresentar no Tribunal na semana seguinte. O papel já traz o dia e a hora da audiência e até o nome do juiz.

3 - Os dois episódios acima não são ficção. Assisti a ambos na qualidade de passageiro dos dois carros. Da primeira vez fiquei estarrecido com a desfaçatez do condutor, mas mais ainda com a eficácia da sua táctica; na segunda, impressionado com a eficiência do processo e com o facto de nem ter passado pela cabeça do condutor discutir com o polícia.

Não pretendo que cada uma destas histórias seja exemplar da fiscalização nas estradas de cada um dos países. São episódios isolados que valem o que valem. Mas todos sabemos que o episódio português ilustra uma situação de impunidade que se vive nas estradas em Portugal.

Seria interessante conhecer a distribuição de certas multas por classes sociais ou por profissionais. Descobriríamos perdões sistemáticos a muitos profissionais de condução descuidada devido à pressa em “chegar ao tribunal”. Os jornalistas fazem aliás parte destes grupos para quem a polícia manifesta em geral uma particular compreensão, mas também lá estão os médicos, os funcionários da justiça, militares e forças militarizadas, profissionais do espectáculo, todos os carros com motorista particular (nunca se sabe de quem poderá ser o carro) e muitos outros. A aplicação da lei é, quando existe, iníqua (mesmo sem falarmos da eventual corrupção). E um sistema destes não possui qualquer capacidade pedagógica. Não se trata de defender a tontice da “tolerância zero”, mas de defender a equidade.

O Presidente da República encontra-se em plena campanha contra a sinistralidade e tem colocado a sua tónica, correctamente, na educação dos condutores. Mas é bom não esquecer que há uma batalha a travar pela educação dos agentes de regulação do trânsito. Há algumas décadas, essa batalha era pela simples alfabetização; hoje é pela sua formação democrática e pelo seu empenho profissional (o que implica perceberem o que estão cá a fazer). Numa situação onde a infracção se tornou regra, onde os condutores acham que têm o direito de galgar um traço contínuo porque o carro da frente abrandou, que têm o direito de estacionar no passeio porque não encontraram outro lugar vazio, que têm o direito de desrespeitar o limite de velocidade porque “conduzem bem” e onde, paralelamente, os polícias se habituaram a viver numa situação de inferioridade social e a ser premiados por aplicar a lógica do privilégio de classe em detrimento do direito igualitário da democracia, é evidente que existe um trabalho de reabilitação (no sentido etimológico do termo) e de educação cívica a fazer no seio da polícia.