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sexta-feira, novembro 21, 2014

Os Media como ponta-de-lança do Complexo Político-Financeiro de Manipulação e Persuasão

Comunicação apresentada por José Vítor Malheiros no Colóquio Internacional "Manipulação e persuasão - Discursos e Práticas"
UBI-Universidade da Beira Interior - Museu dos Lanifícios - 20-21 Novembro 2014

Resumo

Os media descrevem e (nos melhores casos), comentam, analisam e criticam a realidade. Esse trabalho de descrição (notícia, entrevista, reportagem), de comentário, análise e crítica constitui um discurso que não é criado de raiz, fruto do desejo ou da imaginação do seu autor, mas usa como matéria-prima um corpus lexical e um conjunto de proposições que são criados pelos principais agentes dos vários acontecimentos que são matéria mediática. Essa limitação constitui um molde ideológico do qual os media, por boas e más razões, têm uma enorme dificuldade em se descolar. Essa descolagem constitui, porém, um imperativo para o jornalismo se este pretende servir a liberdade e a democracia através do alargamento das escolhas sociais disponíveis para os cidadãos e não perpetuar situações de tutela ou de totalitarismo. 

Texto

A ficção e a poesia nascem da cabeça dos seus autores.
O jornalismo não.
Os jornalistas não produzem os textos que escrevem a partir da sua imaginação.
O jornalismo não só tem o dever de descrever o real mas tem o dever de dar voz às pessoas. As histórias que o jornalismo conta, são contadas por outras pessoas. O jornalismo selecciona as histórias que conta, escolhe a forma como as conta e escolhe as pessoas que usa como fonte de informação, mas baseia-se sempre em "fontes".

Os jornalistas recolhem informação através de testemunho directo, através dos seus olhos e dos seus ouvidos, como acontece no caso das reportagens, mas, na esmagadora maioria dos casos, as informações que recolhem e que usam para produzir os seus textos são constituídas por depoimentos de pessoas ou fontes documentais.
Um texto de jornal ou uma peça de rádio ou televisão é sempre o resultado final de um trabalho em cadeia que começa com uma informação primária que vai sendo trabalhada por sucessivas vagas de pessoas e que vai sendo enriquecida com informação de outros afluentes.

Uma das preocupações do jornalista durante o manuseamento da informação que pesquisa, que solicita a outrem ou que lhe é enviada sem que ele a solicite é o RIGOR.
Há quem lhe chame ainda “objectividade”, apesar do debate sobre a inexistência da objectividade, e é evidente que se trata de uma preocupação com a "verdade", mas é mais adequado chamarmos-lhe aqui rigor. Rigor no sentido de “exactidão” e de “disciplina”.
Em que consiste este rigor na prática? No cuidado em não corromper a informação primária, em não se afastar dos testemunhos recolhidos e dos textos consultados, em não desvirtuar a informação transmitida pelas fontes.
No jornalismo as fontes são preciosas. Um dos aforismos do jornalismo que todos os jornalistas conhecem é “Não se faz jornalismo sem fontes”.
Só que há um problema, que todos os jornalistas também conhecem bem e ao qual corresponde outro aforismo: “Não há fontes desinteressadas”.
As fontes são sempre parte interessada. Não há fontes puras, inocentes, sem história e sem desejo. As fontes possuem perspectivas próprias, valores próprios, interesses próprios (muitas vezes legítimos, outras vezes menos legítimos) e todas elas (quer se trate de pessoas ou de documentos) tentam convencer os seus interlocutores da bondade das suas teses.

Como se evita o enviesamento da informação devido à parcialidade das fontes?
A principal solução consiste em diversificar as fontes. Por isso se tenta confirmar informação em duas ou mais fontes independentes, para estabelecer “os factos”, para saber “o que aconteceu”, para encontrar “a verdade”. Se houver coincidência nos relatos de duas ou mais fontes independentes, podemos ter um razoável grau de confiança na descrição.

Mas quando se trata de um facto que possui uma única fonte primária? Quando se trata de uma decisão do Governo, que consta de um documento oficial? Quando se trata de uma opinião emitida por uma pessoa, de um discurso, de uma proposta da organização X ou do partido Y? Quando se trata da declaração de greve de um sindicato ou de um alerta da Protecção Civil ou de um aviso do Banco de Portugal? Nestes casos é evidente que há uma e uma só fonte primária. Não há volta a dar. Sempre que se trata de uma decisão, de um anúncio, de uma declaração, da resposta de uma qualquer instituição, de um qualquer poder, basta ter acesso à fonte primária para termos toda a informação. É claro que se podem pedir comentários, críticas ou análises a outrem mas, no que diz respeito à notícia em si, há uma única fonte primária.
E mais: qualquer desvio da fonte primária pode ser lida como um desvirtuamento da informação, uma manipulação indevida, talvez mal-intencionada, um atrevimento.
Em nome do rigor e do não-enviesamento da informação, o jornalista irá provavelmente repetir ipsis verbis o que diz o comunicado, a intervenção parlamentar, a proposta de lei, o entrevistado.

É assim que o discurso do entrevistado, o léxico do documento, a sua estrutura, a sua argumentação lógica, a sua filosofia implícita, os seus valores, vão sendo insensivelmente transpostos para o texto jornalístico.

E é assim que a própria preocupação de rigor, de objectividade, de não comentar, de não dar opinião, de não editorializar, se tornam o principal instrumento do imperialismo lexical e proposicional do poder, dos poderes, um instrumento de propaganda que apenas repete, nos mesmo termos e sem comentários, o discurso do poder, a narrativa do poder.
Há quem pense que isso acontece porque todos ou a maior parte dos jornalistas são de direita. Ou porque foram comprados para repetir o que diz a voz do dono. Ou porque têm medo de exprimir uma opinião divergente. Mas não é preciso procurar tão longe uma explicação. Existem, na própria lógica de produção do jornalismo, mecanismos perversos que facilitam a reprodução da narrativa dominante.

É evidente que a prática jornalística que se refere acima não faz parte das "boas práticas" e existem, nas boas práticas, preceitos e exemplos que permitem evitá-la e fazer diferente. Outros aforismos usados na profissão dizem "o jornalista não é um mensageiro" ou "o jornalista não é um pé de microfone" - para sublinhar que o jornalista não pode limitar-se a registar e repetir o que lhe é dito. O que significa que é possível e desejável fazer de outra forma. Mas é mais difícil fazer de outra forma. E mais arriscado.
É possível fazer mal sem ofender de forma frontal as regras básicas da profissão (repetir um discurso sem a mínima nota crítica) e é muito fácil expor-se a críticas quando se faz bem. Porque fazer bem significa explicar conceitos, desmontar argumentações, apontar ambiguidades, considerar contextos, lembrar antecedentes, denunciar eufemismos, encontrar contradições. 

Dizer "O  ministro garantiu que não haverá despedimentos e que os 697 funcionários da Segurança Social passarão para o regime de requalificação" pode ser formalmente rigoroso, mas é uma mentira. Uma enorme mentira. Mas dizer que serão despedidos também não é absolutamente verdadeiro. Pelo menos não é juridicamente verdadeiro. A verdade encontra-se algures entre as duas formulações. Os funcionários são colocados num limbo onde lhes reduzem drástica e progressivamente os salários, mas esse limbo não tem um nome além do seu nome no léxico da propaganda: "requalificação". E, quando o jornalista fala deste limbo, para que não haja ambiguidade sobre aquilo de que está a falar, para que se perceba que se trata desta situação precisa e não de qualquer outra, é obrigado a usar o eufemismo ambíguo criado pelo poder. Para evitar a ambiguidade no discurso jornalístico, impõe e credibiliza a ambiguidade do discurso do poder.

A situação é particularmente grave porque este discurso dos poderes não tem uma contrapartida por parte dos não-poderes, dos desvalidos, dos pobres, dos desempregados, dos doentes, dos pensionistas, dos velhos, do "homem da rua". E não tem essa contrapartida porque os não-poderes não existem de forma organizada, institucionalizada. Os não-poderes não tem porta-vozes nem documentos pré-formatados, não emitem comunicados nem fazem discursos. Os sem-abrigo não têm porta-voz. O discurso dos não-poderes não existe já feito, tem de ser fabricado laboriosamente desde o início pelo jornalista, peça a peça, palavra por palavra, com o risco de que tem de o construir a partir de contribuições não-legitimadas institucionalmente.

Os trabalhadores sindicalizados são representados por um sindicato, os trabalhados não sindicalizados podem ser representados por uma central sindical, mas quem representa os desempregados, quem pode falar em seu nome? Um jornalista que tente "dar voz a quem não tem voz" (outro aforismo querido da profissão) só pode citar declarações pessoais, narrar casos anedóticos, nunca formalmente representativos, que desaparecem num mar de faits-divers de faca e alguidar. São apenas mais umas quantas histórias "de interesse humano", a somar-se às das telenovelas. Nada para ser levado muito a sério. O poder, esse, tem sempre representação e uma representação formal e legítima. O poder pode sempre ser citado.

O desequilíbrio na autoridade aparente destes discursos é abissal.
Os poderes, para mais, falam muito. Não há poder calado. Há todos os dias declarações de empresas, de partidos, de ministros, de comentadores, de bancos, de polícias, de entidades reguladoras, de organismos comunitários suficientes para encher 24 horas de notícias com as imagens convenientes.

Mas, apesar de tudo, se os jornalistas não são coniventes em massa com este estado de coisas, porque não mudam a forma como fazem a cobertura da actualidade? Porque não chamam despedimentos às "dispensas" de trabalhadores e à "libertação" de funcionários públicos, porque não chamam empréstimo ao "resgate", porque não chamam trabalhadores aos "colaboradores", porque não dizem "facilitar despedimentos" em vez de "flexibilizar o emprego" ou de "agilizar licenciamentos", porque não dizem "empobrecimento" em vez de austeridade, porque não dizem CDS, PSD e PS em vez de “arco da governabilidade” ou “arco da governação”? Porque não dizem cortes em vez de "poupanças"?

A razão principal é o processo de proletarização e de precarização a que os jornalistas têm sido submetidos e o processo de pauperização das redacções. Não porque isso tenha aumentado a sua precariedade ou o seu medo, mas porque isso alterou de forma radical a forma de produção do jornalismo.

Por razões que não cabe aqui analisar, as redacções sofreram cortes profundos que reduziram o número de jornalistas e de outros trabalhadores e que reduziram os seus recursos em geral. E o trabalho de jornalista, que tinha sido durante um século um labor intelectual, transformou-se numa actividade industrial, sujeita às exigências da "eficiência", da "produtividade", da "optimização", da "redução de custos" de qualquer outra actividade industrial.

O jornalismo obedece hoje, na esmagadora maioria das redações (há excepções) a regras características do modo de produção industrial.
Isto significa que o consumo de recursos (tempo, deslocações, número de fontes consultadas, tempo dedicado a cada fonte, tempo dedicado a confirmar informações, a procurar contraditório) foi reduzido ao mínimo. E significa que são privilegiadas as notícias que sejam mais fáceis e mais baratas de fazer. A consequência é que aqueles critérios-notícia que nos habituámos a considerar como decisivos (a actualidade, a novidade, a relevância, o impacto, etc.) foram suplantados por outro critério: o custo.
O que significa que a disponibilidade passou a ser o bem mais prezado pelos jornalistas. 

Que disponibilidade? A disponibilidade de imagens e fontes passíveis de ser usadas num texto, a disponibilidade de explicações e citações, à mão de semear, prontas a usar. 
Há um fenómeno que dá pelo nome de "availability bias", que os psicólogos conhecem bem, que significa que todos temos uma tendência para recorrer à explicação mais disponível, mais familiar, para criar uma narrativa que dê sentido ao nosso mundo. A actual situação dos jornalistas reforça de uma forma extrema esse "availability bias". A explicação mais disponível será sempre a mais usada pelos jornalistas. Porque não há tempo a perder. É a "optimização" da produção das notícias.

E o poder, todos os poderes, sabem isto e investem meios consideráveis para criar e disponibilizar explicações prontas-a-usar para que os jornalistas as utilizem. Conceitos sintéticos, ágeis e cheirando a moderno. "Requalificação", "sair da zona de conforto", "compressão das despesas", "corte nas gorduras". Explicações devidamente formatadas, concisas e elegantes, como os jornalistas gostam, como os jornalistas precisam.  "Vivemos acima das nossas possibilidades, agora chegou a hora de pagar." "Não podemos pagar o Estado Social. Se fôssemos ricos podíamos, mas não somos." "O Estado não tem vocação para gerir empresas".
Ou mesmo outras formulações mais brutais, que servem de subtexto a muitas das formulações dos media. "Os desempregados não encontram emprego porque são preguiçosos". "Os trabalhadores velhos estão a roubar os empregos aos desempregados jovens". "Só os parasitas é que vivem de subsídios". Etc. , etc.. Explicações simples, que toda a gente percebe, que vão buscar alimento nos nossos preconceitos, na nossa raiva, na nossa ignorância.
É assim se reproduz um discurso, sempre simplificado, sempre eufemístico e melífluo, secretamente repressivo, que distribui culpas e méritos segundo os interesses do poder. Assim se reproduz o discurso do poder. Que os media amplificam e impõem no discurso social, no nosso discurso. Às tantas, todos falamos como o poder. E até os sindicatos falam de "mobilidade" e "qualificação" quando querem dizer despedimentos.

É possível mudar este estado de coisas? Penso que sim. Existem aliás ainda muito bons exemplos de excelente jornalismo, de verdadeiro jornalismo, como provou recentemente a história dos acordos fiscais secretos no Luxemburgo, publicado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.

Precisamos, antes de mais, de leitores e espectadores mais exigentes, que exijam saber o que se passa e não apenas o que os poderes dizem. Precisamos de exigir aos jornalistas que fiscalizem de facto os actos do poder em vez de os descrever e que fiscalizem as suas declarações em vez de as repetir. Precisamos de contraditório mas não o contraditório do "este diz isto e aquele diz aquilo", nem o contraditório do "o Governo diz isto e a oposição diz aquilo" (ou melhor: "o Governo diz isto e o maior partido da oposição diz aquilo"). Precisamos de verificar os factos, de "fact checking".
Precisamos de contrapor às declarações do poder, a realidade. O jornalismo não tem como função ser uma caixa de ressonância do poder. O jornalismo tem de descrever o mundo, de fiscalizar os poderes e de mostrar aos cidadãos quais são as escolhas possíveis.

O jornalismo tem como dever descrever o mundo, mas não para nos divertir ou distrair. O entretenimento é uma função nobre, mas não é a função do jornalismo. O jornalismo tem como função descrever o mundo, contar o que se passa e o que se diz, apresentar-nos coisas e pessoas, para nos permitir agir como cidadãos. O jornalismo fornece-nos informação, opinião e debate para nos permitir criar uma opinião que possa sustentar a nossa acção. A função do jornalismo é alargar o leque de escolhas dos cidadãos e mostrar as consequências de cada uma de forma a permitir escolhas informadas. É esse o ethos do jornalismo. O problema é que, na maior parte dos casos, não o está a fazer. 

Ao contrário do marketing e da publicidade, que tentam conquistar "share of mind" para os seus produtos, impor-nos determinados comportamentos e reduzir o nosso leque de escolhas, o jornalismo tem o dever de alargar as opções que temos à nossa frente. Identificando essas opções, trazendo-as para a luz ou desenterrando-as, de forma a mostrar-nos tudo o que é possível. A função do jornalismo é tornar evidente essa diversidade de escolhas a que chamamos democracia. E não matraquear-nos com a cassete do poder, com os chavões da inevitabilidade e da impossibilidade da escolha.

A função do jornalismo é produzir democracia porque a democracia é o regime das escolhas e não é possível fazer escolhas livres e informadas sem jornalismo.
É uma nobre função que os jornalistas têm de assumir com responsabilidade e correndo os riscos necessários.
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terça-feira, junho 08, 2010

“Esta caderneta de cromos vai infernizar-lhe a vida”

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 8 de Junho de 2010
Crónica 22/2010

Proibir o marketing directo dirigido a crianças é a coisa certa a fazer

Talvez tenha sido assim nos outros campeonatos mundiais de futebol, mas não reparei. Desta vez fui obrigado, porque um génio do marketing pôs rapazinhos a distribuir à borla cadernetas de cromos South Africa 2010 FIFA World Cup à porta das escolas. Um deles postou-se à porta da escola do meu fi lho mais novo e, nesse dia, ele trouxe uma caderneta para casa, excitadíssimo, e pediu-me para não me esquecer de comprar os cromos no dia seguinte. Não achei muita graça ao facto de alguém ter decidido manipular desta forma um consumidor de 7 anos de idade (milhares de crianças, provavelmente) mas, como o génio do marketing tinha calculado, não atirei a caderneta para o lixo.

No dia seguinte não comprei os cromos, mas o meu filho fez-me prometer que iria lembrar-me no dia seguinte.

Comprei dez pacotes (seis euros) e estivemos nessa noite a colá-los na caderneta. Depois de colados os quarenta e seis cromos (havia quatro repetidos) a caderneta tinha um ar de tão vazia como no princípio mas o meu filho estava satisfeito. Um dia, talvez ainda antes de o Mundial acabar, a caderneta estaria toda cheia de cromos.

Passados uns dias comprei mais uns pacotes de cromos, que colámos na caderneta depois do jantar. Foi só depois deste segundo serão que tive a curiosidade de fazer as contas ao custo total da caderneta. Foi então que concluí que, para conseguir os 637 cromos, mesmo que não saíssem cromos repetidos nas carteirinhas, seria preciso comprar 128 pacotes. A sessenta cêntimos, seriam 76,80 euros. Mas, considerando que nas cadernetas aparecem muitos cromos repetidos (não ao princípio, como é lógico, mas para o fim isso é frequente), a caderneta ficará certamente por uns 100 ou 120 euros, ou mesmo mais.

Não digam nada ao meu filho, mas ele não vai ter nunca a caderneta do Mundial toda cheia e receio que nunca mais vá ter nenhuma colecção de cromos. Para mais, a caderneta foi lançada antes de se saber qual seria a composição exacta das selecções e, por isso, os cromos representam apenas uma aproximação às verdadeiras selecções, o que reduz o seu valor como documento. A alegação do editor, a Panini, de que “a colecção incluirá as imagens dos jogadores das equipas em competição” é, portanto, falsa (digo de passagem que o facto de um cromo se chamar Cardoso ou Serafim me é absolutamente indiferente, mas não o será para os mais fiéis).

Um livro de 80 euros é um livro caro. E se for de 120 euros é muito caro. Já comprei a 120 euros livros de arte, aqueles livros de grande formato que dão pelo deselegante nome de coffee table books mas que possuem um aspecto gráfico que vai do sofisticado ao sublime. A caderneta da Panini não é nenhuma das coisas: a qualidade do papel, da impressão, das fotos ou do design é, digamos, modesta.

A que se deve o custo? Ao facto de muita gente querer aquela caderneta. Ninguém é obrigado a comprar. Compra quem quer, quando quer, se quiser. É a lei do mercado.
E não me passaria pela cabeça criticar a virtude de algo que tantos neoliberais consideram mais incontestável que a virtude das próprias progenitoras.

Há apenas um senão: é que a dependência que a oferta da caderneta pretende suscitar se dirige não só a adultos mas também a crianças. De facto, os pais possuem a capacidade de limitar a publicidade que os seus filhos vêem na televisão ou nas revistas – infelizmente, as leis sobre a publicidade dirigida às crianças são extremamente permissivas em Portugal –, mas não conseguem evitar que alguém lhes enfie na mão algo que vai obrigar as suas famílias a desembolsar uma quantia considerável sob a ameaça de choros e discussões. Proibir a distribuição destes “brindes” envenenados a crianças seria a coisa certa a fazer, mas considerando que o Governo não o queira fazer, sugiro que, pelo menos, as cadernetas levem impresso na capa um imenso quadrado a preto, como os maços de cigarros, com dizeres do género “Esta caderneta pode infernizar a sua vida” e que, como acontece com as taxas do crédito bancário, digam claramente quanto custam: “Atenção: esta caderneta pode custar 120 euros ou mesmo mais!” Assim, pelo menos, as famílias podem saber com o que contar. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, maio 12, 2010

As nove virtudes teologais

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Maio de 2010
Crónica 19/2010

Isto não é uma campanha de publicidade para pasta de dentes. Isto tem de ser mesmo verdade

Confesso que não percebo a campanha “Foi o Pai que me ensinou”, que está por todas as ruas para comemorar a visita papal. Sei que este Pai se escreve com maiúscula porque foi assim que a Agência Ecclesia escreveu no despacho que anunciava a campanha. Pelos mupis e pelos cartazes não se pode saber porque está tudo em maiúsculas.
As notícias que li sobre a campanha falavam do slogan como se fosse a coisa mais evidente do mundo e não explicavam que pai era aquele. Imagino que alguns dos jornalistas que estiveram na conferência de imprensa onde a campanha foi apresentada eram católicos praticantes e perceberam logo tudo e que os outros tiveram vergonha de perguntar para não lhes chamarem ateus, mas a verdade é que eu não sei de que pai estão a falar.
Do Pai Eterno? Do pai, daquele que não costuma precisar de maiúscula? Do pai espiritual? Do Papa?
Se é do Pai Eterno, é inquestionável que foi ele que ensinou tudo isto não só aos nove protagonistas da campanha, mas também a todos nós, porque também criou todas as aves do céu e todos os peixes do mar, mas será mesmo ele? E se fosse ele porque é que fariam esta campanha para a visita do Papa? Será uma homenagem aos pais, tipo Dia do Pai católico, para sublinhar a importância das figuras tutelares masculinas no ensinamento da virtude, para contrabalançar um pouco os escândalos da pedofilia? Uma campanha pelo pai espiritual não parece ser, porque a figura está em desuso.
É provável que seja o Papa, porque a campanha foi concebida como uma homenagem prestada ao ilustre visitante e porque sei que os verbos que a compõem (“Partilhar foi o Pai que me ensinou”, Amar, Rezar, Acreditar, Confiar, Esperar, Perdoar, Escutar e Festejar) foram extraídos dos textos de Bento XVI, mas tive as minhas dúvidas, porque me pareceu algo excessivo. Será que oPapa  teve de facto esta influência naquelas nove pessoas que dão a cara pela campanha? Tanto quanto sei (a campanha tê-lo-ia dito) nenhuma destas pessoas privou com o Papa. Foi Bento XVI que ensinou aquele simpático casal de namorados a amar? Foi ele que ensinou aquela senhora a partilhar? E aquele jovem a confiar? E os outros todos? Apenas pelo seu exemplo à distância e pelos seus escritos e pelos seus sermões? Que lindo!
Ou será uma confusão propositada entre Deus e o Papa, para não sabermos muito bem de que Pai se fala, uma jogada de “culto da personalidade”, um “desvio”, como se diria se fosse na política?
O problema é aquele pronome, aquele “que”, que indica este pai como o responsável, o único responsável pela aprendizagem de todas estas coisas tão importantes. Não terá havido mais alguém que tenha ensinado estas pessoas a confiar e a escutar e a partilhar? Não terá havido um pai? Um daqueles pais normais, sem maiúscula? E não terá havido uma mãe, também normal, também sem maiúscula? E não terá havido um amigo, uma namorada, um professor, um marido, um desconhecido, um livro, um poema, um olhar, uma paisagem, um quarteto de Brahms, uma Vista de Delft? Tudo isso junto? Foi mesmo o Papa que? Deve ter sido, porque isto não é publicidade para pasta de dentes, isto tem de ser mesmo verdade.
Ou terá sido um descuido? Alguém que deixou cair um acento no Papa e o transformou em papá?
Se o Papa tivesse só ajudado a ensinar e tivesse deixado lugar para os lírios do campo ensinarem alguma coisa, era mais plausível, mas assim... se foi o Papa que, é mais difícil.
Se alguém me garantisse que foi o seu pai que o ensinou a fazer o nó da gravata e mais ninguém, isso parecer-me-ia credível. Mas para as outras coisas em geral há mais pessoas a contribuir. E livros e tal. Mas se este é o Papa, não será que um pai de letra pequena se poderá entristecer de ver chamar pai a outro? Ou será que estão mesmo a falar do pai de letra pequena?
Claro, deve ser isso! E a razão por que se faz esta campanha de glorificação do pai é porque... porque... não consigo lembrar-me de nenhuma razão especial para fazer isso com o pai e não fazer a mesma coisa com a mãe, mas pode ser que isto esteja nos planos da Igreja para os próximos dias. É isso com certeza. É isso. Estou ansioso por descobrir o que é que a mãe ensinou. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 16, 2010

Isto é um anúncio, um anúncio, anúncio, anúncio, anúncio…

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 16 de Março de 2010
Crónica 11/2010
 
A publicidade on-line terá mesmo de repetir todos os erros da publicidade noutros suportes?

Por que razão pensarão os anunciantes que a melhor maneira de fazer publicidade aos seus produtos é serrazinar até à medula os leitores e os espectadores com imagens que surgem inopinadamente à frente dos seus olhos? Por que razão continuarão a pensar que a melhor maneira de convencer os consumidores da absoluta necessidade que eles têm dos seus excelentes produtos e dos seus inovadores serviços é interrompê-los sempre que eles querem ler uma notícia num site na Web ou ver um programa na televisão? Por que razão pensarão que interromper uma pessoa, impedi-la de fazer o que ela quer fazer, forçá-la a ver algo que não quer ver e a ouvir algo que não quer ouvir, é a melhor forma de fazer publicidade? O que será que eles ainda não perceberam?

Há quem diga que há uma boa razão para esta prática: ela funciona. No entanto, há outros critérios que gostamos de ver aplicados pelas empresas para além da eficácia.
Afinal, o Zyclon B revelou-se uma forma extraordinariamente eficaz de liquidar seres humanos em massa e não é por isso que ela passou a integrar os manuais de procedimentos das empresas modernas. A verdade, porém, é que estes métodos agressivos e repetitivos, a que o guru Seth Godin (Seth's Blog) chama apropriadamente “marketing de interrupção”, não são eficazes para chamar a atenção e muito menos são eficazes ou eficientes para despertar a atenção, o interesse ou o desejo dos futuros compradores e é por isso que os anunciantes recorrem a estas doses maciças – tentando fazer através da manipulação bruta o que não conseguem fazer através da criatividade.

Na televisão, por exemplo, os marketeers descobriram essa subtil forma de chamar a nossa atenção que consiste em subir o volume dos anúncios para um nível tal que conseguiram criar o reflexo condicionado de carregar no botão mute do comando mal surge a ficha técnica do filme que estávamos a ver. Há anos que só por descuido ouço o som de um anúncio e nunca por muitos segundos.

Penso que muitos outros farão o mesmo. E, no entanto, a publicidade poderia ser algo interessante, se soubesse considerar os seus alvos como seres pensantes e não como carneiros lobotomizados com cartão de crédito.
Godin lançou em 1999 o seu livro Permission Marketing, onde alertava os anunciantes e publicitários para o risco do “marketing de interrupção” (as pessoas não gostam, irritam-se, não compram e a tecnologia oferece-lhes cada vez mais meios para contornar a publicidade) e onde defendia o advento do “marketing de permissão”.

Neste modelo, os consumidores declaram o que lhes interessa, a publicidade que estão interessados em receber e de que forma. Ainda que os números de pessoas atingidas sejam menores, como se trata de clientes potenciais, o seu valor para as empresas é maior. E a liberdade (os anunciantes que não se lembrem do significado do conceito podem fazer uma busca no Google) dos utilizadores é preservada.

A Web oferece formas relativamente simples de concretizar estas práticas de opt in na publicidade – como fazemos quando compramos uma revista de moda ou de informática, cheia de anúncios, mas sem os quais a revista não teria para nós o mesmo valor. O que é lamentável é que, com as potencialidades que a Web abre a uma publicidade mais criativa e mais respeitadora dos direitos dos consumidores, os anunciantes e os “criativos” continuem a oferecer-nos a mesma publicidade invasiva de sempre, tapando as notícias que queremos ver e cobrindo as páginas que queremos ler, intrometendo-se malcriadamente à nossa frente e gritando na nossa cara.

E isto quando não optam pela escrita de artigos falsamente publicados como informação nos jornais ou pela “colocação de produtos” nas mãos dos personagens dos filmes que mostramos aos nossos filhos. A publicidade gosta de se apresentar como um dos exemplos cimeiros de criatividade na nossa sociedade. Será que isto é o melhor que consegue fazer? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 14, 2009

Por favor não telefone

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009


O "Serviço" possui profissionais altamente qualificados que podem explicar-nos todas as razões por que não temos razão

"A sua chamada é importante para nós, por favor não desligue". A voz tem um tom de enfado. Imagino que devem ter obrigado a senhora a repetir a mensagem até considerarem a gravação perfeita. Não é.

Musiquinha electrónica. "Lamentamos o tempo de espera. A sua chamada é importante para nós. Por favor aguarde." Musiquinha electrónica. O "por favor, aguarde" surge intercalado com o "por favor, não desligue". É para variar e não ser tão chato. É na mesma. Quando aparece finalmente uma ser humana do outro lado do telefone já não me lembro a quem estava a telefonar. Digo e desligo.

A experiência pode ser mais violenta. "Bem-vindo ao Serviço de Clientes da Silva & Silva." Quando uma gravação diz "Bem-vindo" devemos preparar-nos para o pior. Uma empresa que não põe a hipótese que a pessoa que está a ligar seja uma mulher tem uma visão particular do mundo. E se houver uma referência a um "Serviço de Clientes" deve-se fugir sem perder tempo a desligar o telefone. O "Serviço" possui profissionais altamente qualificados que conhecem todas as técnicas que permitem explicar-nos todas as razões por que não temos razão.

Algumas das mensagens foram produzidas para promover a venda de ansiolíticos. São - as - gra - va - ções - que - di - zem - a - men - sa - gem - mui - to - de - va - gar e nos explicam as coisas muito mais detalhadamente do que precisamos: "Se pretender deixar uma mensagem, espere o sinal sonoro que se vai seguir a esta mensagem gravada. Após a emissão desse sinal sonoro, deve gravar a sua mensagem. Quando terminar a gravação da sua mensagem pode desligar o seu telefone carregando na tecla vermelha".

Há as mensagens didácticas, que nos dizem o que precisamos de fazer para podermos saber o que temos de fazer: "Para um melhor atendimento, por favor ouça atentamente as instruções que lhe vamos transmitir e escolha a opção pretendida seleccionando o número que lhe for indicado". As mensagens primas são outra grande categoria. "Para assuntos relacionados com facturação, prima 1. Para assuntos relacionados com promoções ou para adesões ao serviço Gold, prima 2. Para assuntos relacionados com avarias e apoio técnico, prima 3. Para voltar a ouvir esta mensagem, por favor prima 4. Para ser atendido por um operador prima a raiz quadrada de menos 1." E algumas mensagens levam o cosmopolitismo ao ponto de repetir tudo em inglês, neste caso como forma de promoção de antiácidos.

O que tudo isto significa é que as telefonistas estão a desaparecer. Aquelas pessoas que sabiam quem estava onde, o que fazia cada um, quantas secções havia na empresa, que percebiam os clientes, que conheciam os fornecedores, que tomavam nota de recados, que sabiam reconhecer uma urgência e que até sabiam o que a empresa em que trabalhavam fazia, estão a desaparecer. Os gestores dizem que é um sinal de progresso e que uma gravação faz tudo muito melhor. E até certo ponto é verdade, porque agora podemos ser atendidos por uma doutorada em ciências políticas em cuja secretária a chamada caiu e aproveitar para discutir as lacunas da democracia representativa enquanto ela tenta (infrutiferamente, porque também tem de ouvir a gravação) pôr-nos em contacto com o armazém, que era o que nós queríamos. Mas é evidente que seria preciso ser muito estúpido para pensar que uma gravação é melhor que uma telefonista e os nossos gestores são tudo menos estúpidos. A verdadeira razão tem de ser outra. A minha teoria é que as telefonistas estão a ser chacinadas por um serial killer (ou vários) e as gravações são apenas um estratagema para disfarçar a vaga de crimes. É a única explicação sensata. Se concorda, prima 1. Jornalista (jvm@publico.pt)

terça-feira, novembro 07, 2006

Puxar e empurrar

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Novembro de 2006
Crónica 39/2006

O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção"

Já estamos de tal forma habituados que nem falamos disso, mas uma das características mais importantes da Web é o facto de a rede não enviar informação para ninguém que não a tenha previamente pedido. Para aceder a um site temos de escrever o seu endereço ou de clicar num link. Só depois o site envia para o nosso computador a página que pedimos. A expressão técnica para isto é tecnologia "pull" (puxar): para obter a informação que queremos é preciso "puxá-la" para o nosso computador.

A tecnologia "pull" é o oposto da tecnologia "push", que consiste em "empurrar" a informação para os clientes. A TV ou a rádio são exemplos clássicos de tecnologia "push". Toda a difusão é "push" (radiodifusão, teledifusão), ainda que isso não signifique que o utilizador seja obrigado a consumir aquilo que é empurrado para cima dele. De entre a oferta que é difundida, o consumidor pode escolher o que quer, mas é evidente que o poder de escolha que é entregue ao utilizador da Web é infinitamente maior.

É por isto que dizemos que na Web se "disponibiliza" informação (que fica quieta num servidor à espera de ser chamada pelos interessados), enquanto nos outros meios se diz que se "distribui" ou se "difunde" informação.

É, entre outros factores, a lógica "pull" da web que permite que todos sejamos editores: como não se gasta energia para empurrar a informação para todo o universo de utilizadores possíveis (à espera que um deles a use), como basta escrever um texto e depositá-lo num servidor, ficando o "custo do transporte" do lado do consumidor, isso facilita a multiplicação de produtores de informação.

Se há um domínio onde a lógica predominante continua a ser a de empurrar o produto para a frente dos olhos do consumidor, não só quando ele não o pede mas mesmo quando ele expressamente não o deseja, é o mundo da publicidade.

O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção": se queremos ver um filme na televisão, interrompem-nos o filme com anúncios; se queremos ouvir um debate na rádio, obrigam-nos a ouvir um ror de anúncios; se queremos jantar, telefonam-nos para nos convencer a mudar de banco.

Poder-se-ia definir a publicidade como a arte de obrigar o consumidor a ver algo que não quer, para o convencer a comprar algo de que não precisa. E o verdadeiro êxito consiste em forçar um cidadão a ver um anúncio o número de vezes suficiente para o levar a vomitar.

Esta violação da vontade do cidadão é alegremente tolerada com a desculpa de que se trata "da economia" e o argumento totalitário de que, se alguém não quer ver publicidade, pode não ver televisão, não ouvir rádio, nem ler jornais, não ir ao cinema e andar pela rua de olhos fechados.

O advento da Internet fez sonhar um mundo diferente: um mundo onde a publicidade passasse também a seguir a lógica "pull" e pudesse ser apresentada apenas a quem a pedisse. Isto faz tanto mais sentido quanto os consumidores gostam de publicidade (quando é bem feita), precisam dela e usam-na para os ajudar a tomar decisões de compra. A única coisa que gostariam de dispensar é a agressão, não a publicidade. Quem quer comprar um carro não dispensa os anúncios de carros e quem se interessa por tecnologia (mesmo que não vá comprar um computador) folheia com prazer e proveito os anúncios de informática. A promessa de uma publicidade civilizada, porém, está ainda por cumprir. A publicidade online está a ganhar terreno, crescendo a bom ritmo, mas, apesar da tecnologia permitir formas inteligentes de promoção de bens e serviços, as fórmulas mais usadas repetem as receitas agressivas e pouco interessantes dos outros suportes e o "permission marketing" (onde se pergunta aos clientes que publicidade querem receber) é ainda uma miragem. Mas, da mesma maneira que a Web representou uma revolução, pelo poder que deu aos consumidores de informação, há uma revolução a ganhar para os anunciantes que comecem a tratar os consumidores como seres pensantes.

terça-feira, setembro 26, 2006

Privacidade

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 26 de Setembro de 2006
Crónica 33/2006

Muitas pessoas olham para estes excessos com resignação, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso.

1. Faça uma pesquisa no Google. Verá aparecer na parte de cima da sua página e na barra da direita uma série de links identificados pela fórmula "Links patrocinados".

Estes links remetem para sites relacionados com aquilo que pesquisou e o seu aparecimento obedece às regras da publicidade. Tudo o que o anunciante tem de fazer é escolher a expressão ou expressões a que pretende associar o seu site. Uma pastelaria que pretenda anunciar no Google pode, por exemplo, escolher a expressão "chá e torradas" de forma que, sempre que alguém a escreve na caixa de pesquisa, o nome da pastelaria apareça nos Links patrocinados.

A tecnologia enriquece a pesquisa pois oferece ao utilizador, para além dos resultados que satisfazem exactamente os termos da sua pesquisa, uma colecção de links relacionados que podem ser interessantes. E oferece aos anunciantes, por outro lado, um público-alvo que já se inclui numa faixa de interessados pela sua actividade. Um casamento perfeito.

2. Abra uma conta no Gmail (o serviço gratuito de correio electrónico do Google). Verá que, ao lado da sua caixa de mail, aparece igualmente uma coluna de "Links patrocinados" que, curiosamente, têm também alguma coisa a ver com o teor das suas mensagens. São também links de anunciantes que escolheram determinadas expressões e que a mesma tecnologia do Google consegue associar a determinadas mensagens.

Nas suas páginas de Ajuda, o Google garante que "o Google NÃO lê a sua correspondência".

Como é que faz então? A explicação vem na linha seguinte: trata-se de "um processo totalmente automatizado". Não há ninguém no Google a ler a sua correspondência, mas há um programa que a lê e que pesquisa os termos relevantes para poder associar a uma mensagem sobre automóveis um anúncio de gasolina e a uma declaração de amor o link de uma florista.

3. O programa secreto de escutas sem autorização judicial que a National Security Agency lançou nos Estados Unidos por ordem do presidente George W. Bush, que monitoriza correio electrónico e telefonemas, recorre também a tecnologia semelhante. Os telefonemas são ouvidos por programas que conseguem identificar os indivíduos que incluam na mesma chamada expressões como "Bush" e "bomba", mas não existe uma batalhão de pessoas a ouvir as chamadas. O facto permite que os defensores do programa (cuja existência só recentemente e relutantemente foi reconhecida pela Casa Branca) digam que não se trata de um programa de escutas. O programa de intercepção de comunicações Echelon, lançado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, faz a mesma coisa a nível mundial.

4. O sociólogo espanhol e teórico da Sociedade da Informação Manuel Castells já tinha alertado para o fim da privacidade na Era da Internet, mas o que sucede é que um número considerável de pessoas olha para estes excessos com resignação, como se eles fossem inerentes à tecnologia, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso e não houvesse escolha possível no seu controlo. A ameaça terrorista, por outro lado, veio reforçar a convicção da bondade da redução das liberdades individuais quando está em causa a segurança.

5. Seja em nome do marketing (que promete adequar a oferta publicitária aos nossos desejos se permitirmos o escrutínio da nossa vida pessoal) ou da segurança (que nos jura que o escrutínio da vida pessoal dos cidadãos é essencial à identificação dos terroristas) a verdade é que a invasão da vida privada está em curso. Por ignorância, comodidade ou crença na absoluta benevolência das autoridades, os cidadãos têm permitido que essa vigilância se alargue. E, por espantoso que pareça, o facto de essa invasão estar em grande medida a ser realizada por robôs constitui um descanso para muita gente, como se os robôs não fossem os mais obedientes servidores do poder.

terça-feira, setembro 14, 2004

Call center

Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Setembro de 2004
Crónica 32/2004

“Não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada.”

“Bom dia, fala a Sandra, em que é que lhe posso ser útil?”
“Bom dia, é da Companhia de Seguros Oriental?”
“É sim, bom dia, fala a Sandra, posso saber com tenho o prazer de estar a falar?”
“Precisava de saber a vossa morada por favor.”
“Mas posso saber com quem estou a falar?...”
“Não precisa de saber o meu nome… Só preciso de saber a vossa morada...”
“É pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“A única informação de que preciso é a vossa morada, para mandar uma carta. É uma informação pública, não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada…”
“É só pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“Isto é uma gravação?...”
“Não, eu já disse ao senhor que fala a Sandra…”
“O Hal também tinha um nome mas isso não o impedia de… Não interessa. O que lhe estou a dizer é que não precisa de saber o meu nome e mesmo que lhe diga o meu nome isso não torna o atendimento mais personalizado. Se nós tivéssemos de facto uma relação pessoal, seria razoável dizer-lhe o meu nome porque você me iria reconhecer. Como não nos conhecemos, não é o facto de eu lhe dizer o meu nome que vai personalizar a nossa relação. Além de que eu não quero personalizar a minha relação consigo e algo me diz que você também não. Percebe? O facto de me perguntar o meu nome só quer dizer que você está a olhar para um monitor onde está escrito que me deve perguntar o nome ou alguma coisa do género. O que não só não é pessoal como é até bastante impessoal e até um bocadinho desagradável….
“Eu acho que não estou a ser desagradável para o senhor… Se o senhor não quiser dizer o nome não tem de dizer o nome, mas é só para poder tratar o senhor pelo nome e se não me disser o nome não o posso tratar pelo nome…”
“É evidente que não pode…”
“É só o que eu estou a dizer ao senhor… Eu disse ao senhor o meu nome…”
“Sim eu sei. Sandra. Mas isto não é um baile de debutantes, não precisamos de nos apresentar uns aos outros antes de fazer uma pergunta.”
“…Eu acho que estou a ser correcta com o senhor… Eu estou só a perguntar ao senhor o nome do senhor porque…
“ Para o tratamento personalizado, já sei… (suspiro) José Vítor Malheiros!...”
“Bom dia senhor Zé, em que posso ajudá-lo?”
“Tem a certeza de que isto não é uma gravação? Eu…”
“ Não é uma gravação senhor Zé, eu estou a falar com o senhor a perguntar em que posso ser útil ao senhor, senhor Zé…”
“…só queria saber a vossa morada.”
“Em que localidade, senhor Zé?”
“A morada da vossa sede, Suponho que é em Lisboa, mas não sei se é.”
“Mas nós temos muitas agências e sem me dizer a cidade…”
“Lisboa!”
“Temos muitas moradas em Lisboa. Tem preferência pela rua, senhor Zé?”
“Tenho. A rua onde está a vossa sede. Quero-mandar-uma-carta!”
“Posso saber se é um assunto relativo a seguro de vida, automóvel, de acidentes pessoais…”
“Ouça, Sandra. Acho que já percebi esta questão do tratamento personalizado… Em vez de estarmos aqui a falar ao telefone porque é que não nos encontramos pessoalmente? Isso ia ser muito personalizado. Aí eu podia explicar-lhe pessoalmente porque é que quero escrever a carta, podíamos discutir a epistolografia no século XVIII e, quem sabe, com o tempo, à medida que nos fôssemos conhecendo melhor, talvez conseguisse convencê-la a dar-me a morada. Não digo no primeiro encontro porque estas coisas às vezes levam o seu tempo, mas talvez no segundo ou terceiro… O que me diz, Sandra?…
“… eu só estou a perguntar ao senhor Zé… e acho que estou a ser correcta com o senhor Zé…eu não disse ao senhor Zé que não dava a morada ao senhor Zé…”
“Claro que não disse. Aliás ainda não me disse nada. Mas o que acha do meu convite? Acha que se pode escapar amanhã para nos encontrarmos? Eu podia levar um cravo na lapela para me reconhecer… ou acha muito marcado politicamente? Uma gabardine! Posso levar uma gabardine! Já ninguém usa gabardine. Ou um chapéu de coco. Ia ser fácil reconhecer-me. Acha que podia levar a morada escrita numa folhinha de papel e, se simpatizasse comigo…”
“A morada da sede é…”