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terça-feira, janeiro 27, 2015

A grande novidade é que a Grécia vai ter um Governo grego

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Janeiro de 2015
Crónica 4/2015

A resposta à situação actual exige instabilidade, porque exige mudanças drásticas.

1. A grande novidade das eleições legislativas gregas é que a Grécia vai ter finalmente um Governo grego, composto por gregos que se preocupam com a vida dos cidadãos gregos e não um Governo de capatazes, preocupados acima de tudo em não indispor os poderes financeiros do mundo e em obedecer às directivas das forças ocupantes.

O líder do partido espanhol Podemos, Pablo Iglesias, usou esta imagem, e ela é correcta. Até agora, na Grécia, como em Portugal, temos tido Governos que ascenderam ao poder para manter os seus países acorrentados à dívida. Governos que juraram vassalagem aos mais ricos para poderem beneficiar um dia dos seus favores, sacrificando para isso a liberdade, a dignidade, o bem-estar, a vida e o futuro de milhões de cidadãos.

Governos que tentaram destruir por dentro o Estado que construímos com o nosso trabalho e que não hesitam em delapidar o património que não lhes pertence na esperança de que, um dia, possam voltar a ajudar o inimigo a atacar de novo as muralhas da cidade e as possam encontrar mais enfraquecidas.

Governos que venderam a soberania nacional, que ofendem a memória de todos os que se sacrificaram em defesa da democracia, que escarnecem daqueles que acreditam que todos os indivíduos nascem livres e iguais em direitos. Fazem-no em troca de uns lugares em futuros conselhos de administração, ébrios de alegria por poderem ombrear com os ricos e com a consciência imperturbada dos que consideram que a conta bancária é a medida de todas as coisas e a vida dos pobres algo negligenciável.

Não há nada mais vil do que esta traição que, não por acaso, durante milénios, em todas as latitudes e em todos os povos, conheceu a mais radical das punições.

E, por isso, é com alegria que saudamos a queda do Governo de Antonis Samaras, como saudaremos com alegria o dia da queda de Passos Coelho, o primeiro-ministro cuja ambição mais exaltante é ser o cãozinho de regaço da chanceler alemã.

2. O Governo grego de coligação Nova Democracia-Pasok-Dimar, agora derrotado nas urnas, foi constituído e empossado em nome da necessidade de “estabilidade” do país, como já o anterior Governo de Papademos tinha sido e outros antes destes. Sabemos aonde levou esta “estabilidade”: desemprego de 25 por cento, desemprego jovem de 60 por cento, dívida de 317 mil milhões de euros ou 177% do PIB, a uma sociedade à beira do caos, com apoios sociais praticamente inexistentes para uma população com uma pobreza crescente, ao êxodo de profissionais, a uma economia destruída e sem motor de arranque à vista, a uma sociedade desesperada e descrente.

A vitória de anteontem do Syriza, segundo inúmeros analistas financeiros, politólogos e muitos solícitos comentadores anónimos de vários Governos europeus, corre, porém, o risco de aumentar a “instabilidade” da situação grega.

Apetece brincar e dizer que, se Samaras era a “estabilidade”, é urgente experimentar a “instabilidade”, mas é evidente que uma situação, por má que seja, pode sempre piorar e não faltará por certo na extrema-direita económica que governa a Europa quem queira aproveitar a vitória do Syriza para dar uma lição à esquerda e às veleidades de autodeterminação dos povos e para mostrar que não se devem eleger políticos de quem os bancos não gostam, cortando radicalmente o financiamento a Atenas e recusando todas as negociações.

É, no entanto, de esperar que algum bom senso prevaleça e que a Grécia não seja transformada no barril de pólvora que pode incendiar a União Europeia. Mas falemos desta “estabilidade” que a direita tanto aprecia e da “instabilidade” que ela tanto receia.

É evidente que, numa situação de paz, de progresso e justiça social, a estabilidade é um valor. Mas quando a situação é a desagregação social e a injustiça da Grécia, quando a situação é a desigualdade e a pobreza crescente que vemos no nosso país, quando a situação são os probemas estruturais da economia e a carência de financiamento dos dois países, é evidente que não é ética e politicamente admissível defender a “estabilidade”, porque essa “estabilidade” é apenas a paz podre onde os pobres morrem de fome sem reclamar.

Nos países em crise, a situação actual exige instabilidade porque exige mudanças drásticas. Não a destruição mascarada de estabilidade que vemos em Portugal, onde a calma apenas esconde uma operação de pilhagem do património público em nome da necessidade de “revitalizar a economia” com as privatizações, a par de uma campanha de ataque aos direitos laborais denominada “reformas estruturais”, mas uma instabilidade criativa, onde se admite a necessidade de inventar verdadeiras soluções que sirvam as populações. Uma instabilidade inventiva e honesta, onde será necessário correr riscos, mas onde os riscos que se correm terão uma razão de que nos poderemos orgulhar.

Este é o desafio que nos lança a Grécia de hoje. Um desafio a que respondemos com alegria porque, hoje como ontem, somos todos gregos.


sexta-feira, novembro 21, 2014

Os Media como ponta-de-lança do Complexo Político-Financeiro de Manipulação e Persuasão

Comunicação apresentada por José Vítor Malheiros no Colóquio Internacional "Manipulação e persuasão - Discursos e Práticas"
UBI-Universidade da Beira Interior - Museu dos Lanifícios - 20-21 Novembro 2014

Resumo

Os media descrevem e (nos melhores casos), comentam, analisam e criticam a realidade. Esse trabalho de descrição (notícia, entrevista, reportagem), de comentário, análise e crítica constitui um discurso que não é criado de raiz, fruto do desejo ou da imaginação do seu autor, mas usa como matéria-prima um corpus lexical e um conjunto de proposições que são criados pelos principais agentes dos vários acontecimentos que são matéria mediática. Essa limitação constitui um molde ideológico do qual os media, por boas e más razões, têm uma enorme dificuldade em se descolar. Essa descolagem constitui, porém, um imperativo para o jornalismo se este pretende servir a liberdade e a democracia através do alargamento das escolhas sociais disponíveis para os cidadãos e não perpetuar situações de tutela ou de totalitarismo. 

Texto

A ficção e a poesia nascem da cabeça dos seus autores.
O jornalismo não.
Os jornalistas não produzem os textos que escrevem a partir da sua imaginação.
O jornalismo não só tem o dever de descrever o real mas tem o dever de dar voz às pessoas. As histórias que o jornalismo conta, são contadas por outras pessoas. O jornalismo selecciona as histórias que conta, escolhe a forma como as conta e escolhe as pessoas que usa como fonte de informação, mas baseia-se sempre em "fontes".

Os jornalistas recolhem informação através de testemunho directo, através dos seus olhos e dos seus ouvidos, como acontece no caso das reportagens, mas, na esmagadora maioria dos casos, as informações que recolhem e que usam para produzir os seus textos são constituídas por depoimentos de pessoas ou fontes documentais.
Um texto de jornal ou uma peça de rádio ou televisão é sempre o resultado final de um trabalho em cadeia que começa com uma informação primária que vai sendo trabalhada por sucessivas vagas de pessoas e que vai sendo enriquecida com informação de outros afluentes.

Uma das preocupações do jornalista durante o manuseamento da informação que pesquisa, que solicita a outrem ou que lhe é enviada sem que ele a solicite é o RIGOR.
Há quem lhe chame ainda “objectividade”, apesar do debate sobre a inexistência da objectividade, e é evidente que se trata de uma preocupação com a "verdade", mas é mais adequado chamarmos-lhe aqui rigor. Rigor no sentido de “exactidão” e de “disciplina”.
Em que consiste este rigor na prática? No cuidado em não corromper a informação primária, em não se afastar dos testemunhos recolhidos e dos textos consultados, em não desvirtuar a informação transmitida pelas fontes.
No jornalismo as fontes são preciosas. Um dos aforismos do jornalismo que todos os jornalistas conhecem é “Não se faz jornalismo sem fontes”.
Só que há um problema, que todos os jornalistas também conhecem bem e ao qual corresponde outro aforismo: “Não há fontes desinteressadas”.
As fontes são sempre parte interessada. Não há fontes puras, inocentes, sem história e sem desejo. As fontes possuem perspectivas próprias, valores próprios, interesses próprios (muitas vezes legítimos, outras vezes menos legítimos) e todas elas (quer se trate de pessoas ou de documentos) tentam convencer os seus interlocutores da bondade das suas teses.

Como se evita o enviesamento da informação devido à parcialidade das fontes?
A principal solução consiste em diversificar as fontes. Por isso se tenta confirmar informação em duas ou mais fontes independentes, para estabelecer “os factos”, para saber “o que aconteceu”, para encontrar “a verdade”. Se houver coincidência nos relatos de duas ou mais fontes independentes, podemos ter um razoável grau de confiança na descrição.

Mas quando se trata de um facto que possui uma única fonte primária? Quando se trata de uma decisão do Governo, que consta de um documento oficial? Quando se trata de uma opinião emitida por uma pessoa, de um discurso, de uma proposta da organização X ou do partido Y? Quando se trata da declaração de greve de um sindicato ou de um alerta da Protecção Civil ou de um aviso do Banco de Portugal? Nestes casos é evidente que há uma e uma só fonte primária. Não há volta a dar. Sempre que se trata de uma decisão, de um anúncio, de uma declaração, da resposta de uma qualquer instituição, de um qualquer poder, basta ter acesso à fonte primária para termos toda a informação. É claro que se podem pedir comentários, críticas ou análises a outrem mas, no que diz respeito à notícia em si, há uma única fonte primária.
E mais: qualquer desvio da fonte primária pode ser lida como um desvirtuamento da informação, uma manipulação indevida, talvez mal-intencionada, um atrevimento.
Em nome do rigor e do não-enviesamento da informação, o jornalista irá provavelmente repetir ipsis verbis o que diz o comunicado, a intervenção parlamentar, a proposta de lei, o entrevistado.

É assim que o discurso do entrevistado, o léxico do documento, a sua estrutura, a sua argumentação lógica, a sua filosofia implícita, os seus valores, vão sendo insensivelmente transpostos para o texto jornalístico.

E é assim que a própria preocupação de rigor, de objectividade, de não comentar, de não dar opinião, de não editorializar, se tornam o principal instrumento do imperialismo lexical e proposicional do poder, dos poderes, um instrumento de propaganda que apenas repete, nos mesmo termos e sem comentários, o discurso do poder, a narrativa do poder.
Há quem pense que isso acontece porque todos ou a maior parte dos jornalistas são de direita. Ou porque foram comprados para repetir o que diz a voz do dono. Ou porque têm medo de exprimir uma opinião divergente. Mas não é preciso procurar tão longe uma explicação. Existem, na própria lógica de produção do jornalismo, mecanismos perversos que facilitam a reprodução da narrativa dominante.

É evidente que a prática jornalística que se refere acima não faz parte das "boas práticas" e existem, nas boas práticas, preceitos e exemplos que permitem evitá-la e fazer diferente. Outros aforismos usados na profissão dizem "o jornalista não é um mensageiro" ou "o jornalista não é um pé de microfone" - para sublinhar que o jornalista não pode limitar-se a registar e repetir o que lhe é dito. O que significa que é possível e desejável fazer de outra forma. Mas é mais difícil fazer de outra forma. E mais arriscado.
É possível fazer mal sem ofender de forma frontal as regras básicas da profissão (repetir um discurso sem a mínima nota crítica) e é muito fácil expor-se a críticas quando se faz bem. Porque fazer bem significa explicar conceitos, desmontar argumentações, apontar ambiguidades, considerar contextos, lembrar antecedentes, denunciar eufemismos, encontrar contradições. 

Dizer "O  ministro garantiu que não haverá despedimentos e que os 697 funcionários da Segurança Social passarão para o regime de requalificação" pode ser formalmente rigoroso, mas é uma mentira. Uma enorme mentira. Mas dizer que serão despedidos também não é absolutamente verdadeiro. Pelo menos não é juridicamente verdadeiro. A verdade encontra-se algures entre as duas formulações. Os funcionários são colocados num limbo onde lhes reduzem drástica e progressivamente os salários, mas esse limbo não tem um nome além do seu nome no léxico da propaganda: "requalificação". E, quando o jornalista fala deste limbo, para que não haja ambiguidade sobre aquilo de que está a falar, para que se perceba que se trata desta situação precisa e não de qualquer outra, é obrigado a usar o eufemismo ambíguo criado pelo poder. Para evitar a ambiguidade no discurso jornalístico, impõe e credibiliza a ambiguidade do discurso do poder.

A situação é particularmente grave porque este discurso dos poderes não tem uma contrapartida por parte dos não-poderes, dos desvalidos, dos pobres, dos desempregados, dos doentes, dos pensionistas, dos velhos, do "homem da rua". E não tem essa contrapartida porque os não-poderes não existem de forma organizada, institucionalizada. Os não-poderes não tem porta-vozes nem documentos pré-formatados, não emitem comunicados nem fazem discursos. Os sem-abrigo não têm porta-voz. O discurso dos não-poderes não existe já feito, tem de ser fabricado laboriosamente desde o início pelo jornalista, peça a peça, palavra por palavra, com o risco de que tem de o construir a partir de contribuições não-legitimadas institucionalmente.

Os trabalhadores sindicalizados são representados por um sindicato, os trabalhados não sindicalizados podem ser representados por uma central sindical, mas quem representa os desempregados, quem pode falar em seu nome? Um jornalista que tente "dar voz a quem não tem voz" (outro aforismo querido da profissão) só pode citar declarações pessoais, narrar casos anedóticos, nunca formalmente representativos, que desaparecem num mar de faits-divers de faca e alguidar. São apenas mais umas quantas histórias "de interesse humano", a somar-se às das telenovelas. Nada para ser levado muito a sério. O poder, esse, tem sempre representação e uma representação formal e legítima. O poder pode sempre ser citado.

O desequilíbrio na autoridade aparente destes discursos é abissal.
Os poderes, para mais, falam muito. Não há poder calado. Há todos os dias declarações de empresas, de partidos, de ministros, de comentadores, de bancos, de polícias, de entidades reguladoras, de organismos comunitários suficientes para encher 24 horas de notícias com as imagens convenientes.

Mas, apesar de tudo, se os jornalistas não são coniventes em massa com este estado de coisas, porque não mudam a forma como fazem a cobertura da actualidade? Porque não chamam despedimentos às "dispensas" de trabalhadores e à "libertação" de funcionários públicos, porque não chamam empréstimo ao "resgate", porque não chamam trabalhadores aos "colaboradores", porque não dizem "facilitar despedimentos" em vez de "flexibilizar o emprego" ou de "agilizar licenciamentos", porque não dizem "empobrecimento" em vez de austeridade, porque não dizem CDS, PSD e PS em vez de “arco da governabilidade” ou “arco da governação”? Porque não dizem cortes em vez de "poupanças"?

A razão principal é o processo de proletarização e de precarização a que os jornalistas têm sido submetidos e o processo de pauperização das redacções. Não porque isso tenha aumentado a sua precariedade ou o seu medo, mas porque isso alterou de forma radical a forma de produção do jornalismo.

Por razões que não cabe aqui analisar, as redacções sofreram cortes profundos que reduziram o número de jornalistas e de outros trabalhadores e que reduziram os seus recursos em geral. E o trabalho de jornalista, que tinha sido durante um século um labor intelectual, transformou-se numa actividade industrial, sujeita às exigências da "eficiência", da "produtividade", da "optimização", da "redução de custos" de qualquer outra actividade industrial.

O jornalismo obedece hoje, na esmagadora maioria das redações (há excepções) a regras características do modo de produção industrial.
Isto significa que o consumo de recursos (tempo, deslocações, número de fontes consultadas, tempo dedicado a cada fonte, tempo dedicado a confirmar informações, a procurar contraditório) foi reduzido ao mínimo. E significa que são privilegiadas as notícias que sejam mais fáceis e mais baratas de fazer. A consequência é que aqueles critérios-notícia que nos habituámos a considerar como decisivos (a actualidade, a novidade, a relevância, o impacto, etc.) foram suplantados por outro critério: o custo.
O que significa que a disponibilidade passou a ser o bem mais prezado pelos jornalistas. 

Que disponibilidade? A disponibilidade de imagens e fontes passíveis de ser usadas num texto, a disponibilidade de explicações e citações, à mão de semear, prontas a usar. 
Há um fenómeno que dá pelo nome de "availability bias", que os psicólogos conhecem bem, que significa que todos temos uma tendência para recorrer à explicação mais disponível, mais familiar, para criar uma narrativa que dê sentido ao nosso mundo. A actual situação dos jornalistas reforça de uma forma extrema esse "availability bias". A explicação mais disponível será sempre a mais usada pelos jornalistas. Porque não há tempo a perder. É a "optimização" da produção das notícias.

E o poder, todos os poderes, sabem isto e investem meios consideráveis para criar e disponibilizar explicações prontas-a-usar para que os jornalistas as utilizem. Conceitos sintéticos, ágeis e cheirando a moderno. "Requalificação", "sair da zona de conforto", "compressão das despesas", "corte nas gorduras". Explicações devidamente formatadas, concisas e elegantes, como os jornalistas gostam, como os jornalistas precisam.  "Vivemos acima das nossas possibilidades, agora chegou a hora de pagar." "Não podemos pagar o Estado Social. Se fôssemos ricos podíamos, mas não somos." "O Estado não tem vocação para gerir empresas".
Ou mesmo outras formulações mais brutais, que servem de subtexto a muitas das formulações dos media. "Os desempregados não encontram emprego porque são preguiçosos". "Os trabalhadores velhos estão a roubar os empregos aos desempregados jovens". "Só os parasitas é que vivem de subsídios". Etc. , etc.. Explicações simples, que toda a gente percebe, que vão buscar alimento nos nossos preconceitos, na nossa raiva, na nossa ignorância.
É assim se reproduz um discurso, sempre simplificado, sempre eufemístico e melífluo, secretamente repressivo, que distribui culpas e méritos segundo os interesses do poder. Assim se reproduz o discurso do poder. Que os media amplificam e impõem no discurso social, no nosso discurso. Às tantas, todos falamos como o poder. E até os sindicatos falam de "mobilidade" e "qualificação" quando querem dizer despedimentos.

É possível mudar este estado de coisas? Penso que sim. Existem aliás ainda muito bons exemplos de excelente jornalismo, de verdadeiro jornalismo, como provou recentemente a história dos acordos fiscais secretos no Luxemburgo, publicado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.

Precisamos, antes de mais, de leitores e espectadores mais exigentes, que exijam saber o que se passa e não apenas o que os poderes dizem. Precisamos de exigir aos jornalistas que fiscalizem de facto os actos do poder em vez de os descrever e que fiscalizem as suas declarações em vez de as repetir. Precisamos de contraditório mas não o contraditório do "este diz isto e aquele diz aquilo", nem o contraditório do "o Governo diz isto e a oposição diz aquilo" (ou melhor: "o Governo diz isto e o maior partido da oposição diz aquilo"). Precisamos de verificar os factos, de "fact checking".
Precisamos de contrapor às declarações do poder, a realidade. O jornalismo não tem como função ser uma caixa de ressonância do poder. O jornalismo tem de descrever o mundo, de fiscalizar os poderes e de mostrar aos cidadãos quais são as escolhas possíveis.

O jornalismo tem como dever descrever o mundo, mas não para nos divertir ou distrair. O entretenimento é uma função nobre, mas não é a função do jornalismo. O jornalismo tem como função descrever o mundo, contar o que se passa e o que se diz, apresentar-nos coisas e pessoas, para nos permitir agir como cidadãos. O jornalismo fornece-nos informação, opinião e debate para nos permitir criar uma opinião que possa sustentar a nossa acção. A função do jornalismo é alargar o leque de escolhas dos cidadãos e mostrar as consequências de cada uma de forma a permitir escolhas informadas. É esse o ethos do jornalismo. O problema é que, na maior parte dos casos, não o está a fazer. 

Ao contrário do marketing e da publicidade, que tentam conquistar "share of mind" para os seus produtos, impor-nos determinados comportamentos e reduzir o nosso leque de escolhas, o jornalismo tem o dever de alargar as opções que temos à nossa frente. Identificando essas opções, trazendo-as para a luz ou desenterrando-as, de forma a mostrar-nos tudo o que é possível. A função do jornalismo é tornar evidente essa diversidade de escolhas a que chamamos democracia. E não matraquear-nos com a cassete do poder, com os chavões da inevitabilidade e da impossibilidade da escolha.

A função do jornalismo é produzir democracia porque a democracia é o regime das escolhas e não é possível fazer escolhas livres e informadas sem jornalismo.
É uma nobre função que os jornalistas têm de assumir com responsabilidade e correndo os riscos necessários.
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terça-feira, maio 06, 2014

Miséria social, miséria moral: mais pobres, mais frágeis

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Maio de 2014
Crónica 24/2014

A grande herança do Governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.


Voltaire dizia que “quase toda a História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente propagandistas e exemplos.

As misérias sociais estão à vista: desemprego, precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono escolar, menos serviços públicos, mais depressão.

A miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da desconfiança como instrumentos de manipulação do público.

Não é surpreendente que, depois de Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade dos governantes, fazendo crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na guerra, seja a primeira baixa da política.

O Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados” por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo conseguiu minar consensos sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com séculos de consolidação, para melhor desmantelar o Estado social. E impôs por todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido quanto possível.

A miséria moral que este panorama evidencia pode ser menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave, porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam muitos anos a reparar.

O sucesso ímpar do Estado social após a Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia, mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do futuro.

A grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como instrumento estatal de “regulação social”. E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como todos sabemos.

E a grande herança do Governo PSD-CDS na prática política é a crescente banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.

A “saída limpa” que o Governo anunciou este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um “programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é maior.

Quando a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso quem tivesse este objectivo.


terça-feira, março 18, 2014

Não ao colaboracionismo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Março de 2014
Crónica 11/2014


Os grandes consensos políticos são indispensáveis em graves momentos de crise.

1. Em muitos dos países ocupados pelos nazis na segunda Guerra Mundial, a resistência incluía pessoas que cobriam um espectro político que ia dos cristãos conservadores e monárquicos aos comunistas e anarquistas e a razão, a necessidade e a justiça da sua aliança era uma evidência para todos. Estes grandes consensos podem ser vitais em momentos de emergência, para ultrapassar um obstáculo preciso, ainda que não constituam uma fórmula de governação política nem apaguem as diferenças e os conflitos entre os seus constituintes - diferenças vitais, também elas, para permitir o exercício da livre escolha democrática pelos cidadãos, que deve ser instituída ou restabelecida tão depressa quanto possível.

O momento que Portugal vive é um desses momentos de grave crise. Não estamos sob ocupação militar mas vivemos há três anos sob outro tipo de ocupação, virtual, comandada à distância, por potências financeiras sem nome e sem cara, que ditam os nossos destinos. Uma ocupação onde o princípio da soberania do povo é desprezado pelos próprios dirigentes que juraram defendê-lo, onde as necessidades e os desejos da população são subalternizados perante interesses que lhe são alheios, onde o património nacional e o património pessoal dos cidadãos são pilhados e exportados pelas potências ocupantes, onde o contrato social é vilipendiado como coisa desprezável, onde um governo colaboracionista atribui um estatuto sagrado aos seus deveres de obediência perante a potência ocupante mas renega as suas obrigações perante os cidadãos, onde um número crescente de cidadãos é atirado para a miséria e para a carência e impossibilitado de exercer a sua cidadania.

Com este pano de fundo, é natural que surjam na sociedade portuguesa pedidos, um pouco de todos os lados, para que as várias forças políticas se entendam e consigam chegar a um consenso. No entanto, o que temos visto surgir à direita (no governo, no PSD, no CDS e na Presidencia da República) são apelos a um consenso não para encontrar alternativas de acção, mas no sentido de reforçar e alargar a aliança colaboracionista.

O “consenso” de que fala Pedro Passos Coelho tem sido apenas uma tentativa de chamar para o seu terreno o Partido Socialista e de o comprometer com as suas políticas. A prova de que isto é exactamente assim foi a reacção do Governo ao Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente”, mais conhecido como Manifesto dos 74. Se alguém quer um consenso político alargado e equilibrado, ele está ali. Se alguém quer um consenso preocupado com o futuro dos portugueses e assente num real conhecimento da economia, do país, das constrições da política e da situação actual da Europa, ele está ali. Se alguém quer um consenso que é fruto do compromisso entre diferentes visões políticas, da direita à esquerda, ele está ali. Do documento disse-se tudo, mas vale a pena sublinhar algo particularmente nobre: o sacrifício de todos os que o assinaram.

É evidente que raros serão, entre os signatários, os que se sentirão confortáveis com cada linha de cada parágrafo. Houve certamente compromissos e negociações, insistências e cedências. Mas foi possível chegar a um texto comum, onde todos cederam um pouco no menos importante para defender o essencial. E, por isso, por terem sabido defender o essencial e pôr de lado a sectarismo que tanto mancha a prática política, a publicação deste manifesto merece ser assinalada na nossa história com uma pedra branca. O Manifesto dos 74 mostra que há quem ponha o interesse dos portugueses acima do interesse dos mercados financeiros e quem coloque a soberania do povo acima do poder sem rosto do dinheiro. O Manifesto dos 74 mostra que há, da esquerda à direita, quem não ceda ao colaboracionismo, por diferentes que possam ser as suas visões da sociedade. Este manifesto é, por isso, um importante passo para salvar a honra perdida da política, prostituída pelo Governo, e para restaurar a imagem da democracia, vítima da violação colectiva quotidiana do PSD e do CDS.

2. Este manifesto tem um reverso, sombrio. Estabelecendo um alargado consenso político a propósito de uma questão política central, é sintomático que ele tenha nascido e surgido à margem dos partidos. Pode dizer-se que essa foi uma necessidade táctica, para não fechar portas, mas não se trata apenas disso. Repare-se na fúria do PSD, na indignação do CDS, na hesitação do PS, na contenção do BE, no cumprimento distante do PCP. Pense-se agora em todos os outros manifestos que têm surgido nos últimos tempos, sempre com milhares de assinaturas, sobre questões centrais. O que vemos é um panorama onde, de forma crescente, os partidos parecem alheados destas movimentações. O facto de as propostas mais relevantes e mobilizadoras surgidas na política nos últimos tempos estarem a aparecer sistematicamente fora dos partidos não augura nada de bom e aconselha uma profunda reflexão sobre a actual prática partidária. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 04, 2014

O país do PSD não precisa de pessoas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Março de 2014
Crónica 9/2014

O “país” de que fala Luís Montenegro não é o nosso país. O “país” de que fala Luís Montenegro não é Portugal.

"A vida das pessoas não está melhor, mas a vida do país está muito melhor." A frase, de Luís Montenegro, o risonho líder parlamentar do PSD, merece entrada em qualquer colectânea de citações políticas e mesmo nos manuais de história contemporânea. Não pela profundidade do pensamento, como nos melhores casos, mas pela clareza da ideia que expõe, que no caso vertente resulta de uma mistura de simplicidade e de desfaçatez.

A primeira parte da tirada ("A vida das pessoas não está melhor”) não levanta dúvidas a ninguém e merece a concordância de todos. Há menos emprego que quando este Governo tomou posse, há mais desemprego, há mais desempregados sem apoios sociais, há mais pobreza, há mais sem-abrigo, há mais fome, há mais desespero, há mais jovens sem dinheiro para estudar, há mais portugueses a emigrar por falta de perspectivas, há mais jovens qualificados a emigrar, há mais medo, há menos liberdade, há menos apoios sociais, há menos acesso à saúde, há menos formação, há menos escolas, há menos serviços no interior, há maior conflitualidade, há menos confiança nas pessoas e nas instituições, etc. A lista exaustiva é impossível de tão longa e, por trás de cada estatística, escondem-se milhares de tragédias pessoais, de histórias que não deviam existir num país desenvolvido no século XXI.

O que é de mais difícil compreensão é aquele “a vida do país está muito melhor". É difícil porque é preciso um enorme esforço conceptual para separar este “país” que está “muito melhor” das “pessoas” que “não estão melhor”.

Que país é este de que fala Montenegro? Que entidade é esta que está tão longe e tão separada das pessoas que é possível que uma esteja muito melhor e as outras muito pior?

Existem muitas definições de estado (suponho que é do estado que fala Montenegro) mas praticamente todas elas consideram uma comunidade organizada politicamente, com um governo e um território. Que país é então este que está bem quando as suas pessoas estão mal? Que componente do país é que está melhor? Será que Montenegro fala do território? Não parece ser. Referir-se-á Luís Montenegro ao Governo? Será o Governo a parte do país que está “muito melhor”? É inegável que o executivo ganhou um novo vigor e que conseguiu construir um discurso positivo em torno da ideia de “fim do programa de ajustamento” que, por vácuo que seja, parece ter convencido alguns incautos e paralisado ainda mais o PS. Mas mesmo Luís Montenegro sabe que seria excessivo identificar Governo e país. Este país que está “muito melhor” parece ser algo mais amplo que a comissão liquidatária a que chamamos governo.

Mas então que país é este que está “muito melhor” e que não são as pessoas?

É simples: o “país” de que fala Luís Montenegro não é o nosso país. O “país” de que fala Luís Montenegro não é Portugal. O “país” de que fala Luís Montenegro é, simplesmente, o capital.

O que Luís Montenegro quis dizer foi que "A vida dos trabalhadores não está melhor, mas a vida do capital está muito melhor". Basta substituir estas poucas palavras para tudo bater certo. A vida dos dirigentes do PSD está muito melhor (basta ver como se congratulavam todos no último congresso). A vida dos dirigentes do CDS está muito melhor. A vida dos banqueiros está muito melhor. A vida dos grandes empresários está muito melhor. A vida dos multimilionários está muito melhor. A vida dos advogados que trabalham para o capital está muito melhor. A vida dos empresários que baixam salários e despedem trabalhadores com o pretexto da crise está muito melhor. A vida dos empresários sem escrúpulos está muito melhor. A vida dos empresários que vivem à conta das PPP está muito melhor. A vida dos corruptos que nunca são condenados está muito melhor. A vida dos que têm as empresas registadas na Holanda e o dinheiro nas ilhas Caimão está muito melhor. A vida dos empresários da saúde que vêem as suas clínicas aumentar a facturação à custa da destruição do Serviço Nacional de Saúde está muito melhor. A vida dos empresários da educação que vêem as suas escolas aumentar a facturação à custa da destruição da escola pública e dos subsídios do estado está muito melhor. E depois, à volta destes, há um segundo anel de empresários de serviços de luxo, de serviços “diferenciados” e “exclusivos”, que servem os primeiros, cuja vida está também muito melhor.

O que Luís Montenegro quis dizer foi que "A vida do povo não está melhor, mas a vida da oligarquia que manda no país está muito melhor". Foi por isso que se congratulou. Porque ele faz parte dela. Que isso constitua uma traição às promessas do PSD, à social-democracia que voltou a ter direito de menção no último congresso, ao interesse nacional, ao povo que o elegeu é algo que não preocupa Montenegro ou o PSD. Como diz com honestidade o multimilionário Warren Buffett, “há de facto uma luta de classes e a minha classe está a ganhar”. A diferença é que Buffett tem uma certa vergonha. E Montenegro não tem vergonha nenhuma. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 31, 2013

Mais pobres, mais desiguais, mas sempre à procura do futuro

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Dezembro de 2013
Crónica 49/2013


A sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas

Li algures que os nomes próprios que os pais escolhem para os seus filhos têm uma relação com o ambiente económico que se vive na época em que estes nascem.

Épocas de crescimento económico e de grande desenvolvimento, de pleno emprego e de investimentos arrojados, que permitem alimentar grandes esperanças para o futuro, suscitam o aparecimento de Júlios Césares, de Alexandres Magnos e de nomes de ressonâncias históricas mais nacionais mas sempre com uma predominância de nomes próprios duplos. Épocas de recessão, de desemprego e de pobreza, de retracção e ansiedade, onde o futuro se anuncia preocupante, suscitam o aparecimento de nomes singelos e discretos, prudentes Joões, Marias e Josés.

Não sei se a actual crise está a ter este reflexo onomástico, mas lembrei-me disto nos últimos dias ao ver a moderação dos títulos de tantos comentários de balanço do ano que hoje acaba ou de prospectiva do que amanhã começa, alguns deles intitulados simplesmente "2013" ou "2014", como se nenhuma esperança autorizasse o arrojo de sonhar um mundo para além da mera continuação do negro presente, como se não sobrasse energia para nenhuma iniciativa além da mera constatação do tempo que passa ou como se a simples menção da data (qualquer delas), com o que encerra de inominável, fosse suficiente para nos saturar de significado, como “1984”.

A contenção destes títulos é outra forma de dizer como é difícil, nestes tempos marcados por mentiras e desilusões, erguer bandeiras que consigam despertar paixões e mobilizar vontades.

George Steiner fala num texto feliz de como, durante a Revolução Francesa, todo o futuro parecia estar finalmente ali, à mão de semear, de como todo o futuro parecia que ia acontecer “segunda-feira de manhã”. Hoje, em Portugal, e em grande parte da mesma Europa da Revolução Francesa, o futuro parece já ter acontecido todo há muitos anos e a sua simples invocação parece um cruel exercício de cinismo, quando não de hipocrisia.

E, no entanto, devia ser fácil despertar paixões e mobilizar vontades. Devia ser fácil reunir milhões de cidadãos em torno de um programa de justiça social e de decência, de progresso económico e de emprego, de qualificação e inovação, em vez da apagada e vil tristeza da actualidade, da destruição do Estado para enriquecer os mais ricos e para empobrecer os mais pobres. Pode aceitar-se a dificuldade em acreditar numa alternativa, mas não a falta de vontade de procurar uma. Em 2014 voltaremos a andar à procura do futuro.

2. Falar de mentiras e desilusões é falar das mensagens de Natal de Passos Coelho e de António José Seguro.

Não vale a pena sublinhar a mentira dos 120.000 postos de trabalho inventados por Passos Coelho, mas vale a pena retermo-nos na “recuperação” que se vai seguir à “austeridade”. É verdade que há indicadores económicos que melhoraram e que alguns deles (exportações) são de facto positivos. É verdade que a troika pode não voltar ao Terreiro do Paço a partir de meados de 2014 e que Portugal talvez se possa financiar “nos mercados”. Mas qual é a sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas? A sociedade que herdaremos será uma sociedade muito mais pobre do que antes do “resgate” financeiro (em 2013 teremos o mesmo PIB que tínhamos treze anos antes, em 2000) e muitíssimo mais desigual, pois esta brutal perda de riqueza do país em geral foi acompanhada pelo enriquecimento dos muitos ricos, o que significa que os pobres e a classe média sofreram um empobrecimento superior à da média do país. Esta pobreza vai marcar gerações, pois o peso da dívida (que é impagável e terá de ser reestruturada) agravou-se por causa da “austeridade”. A sociedade que herdaremos terá não só muitos mais pobres mas muitos mais pobres-trabalhadores, devido à “compressão” dos custos do trabalho e à degradação das condições laborais. Teremos trabalhadores mais mal pagos em nome da ”competitividade” internacional. Teremos mais trabalhadores obrigados à docilidade pelo medo do desemprego e da miséria. Teremos empresas menos inovadoras pois o medo não incentiva a imaginação, não motiva nem impele ao risco. Teremos talvez menos desempregados oficiais, porque os mais bem preparados emigrarão ainda mais e os menos preparados deixarão de procurar emprego e aceitarão a miséria como destino. Teremos menos e piores serviços públicos. Teremos funcionários públicos humilhados e desmotivados. Teremos um sistema de investigação e inovação descapitalizado e que terá perdido uma geração de altíssima qualificação.Teremos um Estado mais pobre, com menos património, que terá sido passado a bom preço para as mãos de empresas amigas. Teremos mais conflitos sociais e mais violência. Teremos uma maior desconfiança das instituições e dos políticos em geral. Teremos um estado social amputado e instituída a caridade dispensada aos indigentes como forma de “acção social”. Passos Coelho, Paulo Portas e Mota Soares continuarão a sorrir sem vergonha e será cada vez mais difícil garantir às crianças que a indecência não compensa.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, dezembro 24, 2013

Depois do Natal

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Dezembro de 2013
Crónica 48/2013

Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar.

Quando eu era pequeno, não havia nada depois do Natal. Quando o Natal se começava a aproximar, quando chegavam as férias, eu começava a esperar o Natal e todas as expectativas, todos os desejos e todos os sonhos eram depositados aí. O Natal era um momento de esperança absoluta, que preenchia todo o horizonte, todo o futuro. Era essa a magia do Natal. A prova dessa magia era o investimento que o Natal representava, em planos, em tempo, na agitação dos preparativos.

O Natal absorvia tudo. Passávamos dias inteiros ainda antes das férias a escolher materiais e a fazer decorações de Natal para toda a casa, a comprar papéis dourados e a cortar, colar e pintar estrelas, velas e anjinhos. Era preciso ir à serra de Sintra buscar musgo para o presépio, que levava um dia a montar. A árvore ocupava outro dia. Depois as listas de compras, de presentes e de doces, as encomendas especiais, o bolo-rei nesta pastelaria, as broas na outra, os fritos a uma senhora que fazia para fora, a procura pelas lojas, depois o périplo por casa daqueles que não iríamos ver no Natal mas a quem deixávamos dias antes as prendas para abrir na Consoada.

Não era possível imaginar como seria o mundo depois do Natal, nem pensar sequer que houvesse um mundo depois do Natal. Ainda menos considerar a possibilidade de o Natal não ser aquilo que esperávamos, de não oferecer tudo o que se desejava.

E, mesmo que a realidade frustrasse uma parte das expectativas, no ano seguinte elas renasciam, da mesma maneira que um jogador compulsivo aposta todas as suas esperanças no jogo seguinte, sem pensar por um segundo em todos os jogos que já perdeu. E era verdade que depois do Natal ainda havia a passagem do ano e, na minha família, depois do fim de ano ainda havia o Dia de Reis, com festa na véspera e mais presentes, ainda que desta vez pouco mais que simbólicos, que tornavam o regresso à vida de todos os dias um processo gradual, sem ressacas violentas.

Essa magia do Natal durou para além da minha infância. Até que houve um ano em que dei por mim num dia do início de Dezembro a pensar no que iria fazer depois do Natal e percebi que a magia tinha desaparecido. O Natal tinha deixado de ocupar o horizonte, tinha perdido a capacidade de lançar o seu manto diáfano de fantasia sobre o prosaico dia-a-dia. Os pozinhos dourados mágicos que as fadas lançavam em torvelinhos pelo ar e que tornavam o mundo um sítio maravilhoso e onde os milagres eram possíveis tinham desaparecido.

A suspension of disbelief que nos permite viver todas as aventuras e deixarmo-nos embalar por todas as fantasias tinha desaparecido. O Natal tinha passado a ser uma data no calendário – uma festa com coisas agradáveis, com prendas a dar e receber, com uns jantares especiais e com as pessoas a tentar ser mais simpáticas do que de costume, mas apenas uma data. Depois da qual todos voltaríamos a ser iguais ao que éramos antes, depois da qual o mundo voltaria a ser o que era antes, sem que a festa tivesse operado qualquer magia duradoura.

Antes disso, o Natal era mágico porque era transformador. Transformador como no Conto de Natal de Dickens, capaz de transformar as pessoas más em pessoas boas, capaz de transformar para melhor a vida das pessoas – não porque fosse apenas um dia agradável. Era especial porque permitia a esperança. A esperança de que nunca mais nenhuma rapariguinha dos fósforos morresse de frio. E, não possuindo esse poder, passou a ser irrelevante e até triste. Triste porque não dá prendas aos meninos pobres que se portam bem e que lhe escrevem cartas a pedir uma casa, uma família, uma camisola, livros para a escola, um emprego para o pai, uns sapatos, o fim da guerra.

Este ano o Natal não consegue ocupar todo o horizonte de ninguém, nem sequer o das crianças, porque elas sabem que este ano as coisas estão mais difíceis, vêem que os seus pais sorriem menos e adivinham que poucos dos seus desejos serão satisfeitos. Este Natal não consegue tapar a miséria do ano que vem a seguir. Este Natal e este fim de ano é apenas o preâmbulo de um ano onde os Ebenezer Scrooge não serão tocados pela magia do Natal, onde continuarão a explorar e a torturar os seus empregados e onde as crianças continuarão a morrer de frio.

Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar e que não há nenhuma justiça divina ou mágica que premeie os bons e castigue os maus. Este Natal veio para nos mostrar que a justiça não é algo que nos vá ser oferecido e que tem de ser arrebatada das mãos daqueles que a sequestram. E a única esperança que ele permite consiste em acreditar que haverá cada vez menos pessoas a pensar como escravos e a compreender que há, lá fora, um mundo a conquistar.

(jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 17, 2013

O Natal mais triste de que há memória

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Dezembro de 2013
Crónica 47/2013

Este ano, tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos.


A última década foi palco de uma guerra discreta entre o Menino Jesus e o Pai Natal. O Menino Jesus tinha sido quase completamente eclipsado pelo Pai Natal e há uns anos um grupo dos seus apoiantes decidiu contra-atacar.

Foi nessa altura que apareceram aqueles estandartes vermelhos com o Menino Jesus dourado que as pessoas punham nas varandas para competir com os Pais Natais todos a subirem pelas fachadas dos prédios, mas o Pai Natal continuou à frente na corrida. A razão é fácil de perceber: não há filmes onde apareça o Menino Jesus a descer pela chaminé e a pôr prendas nos sapatinhos. E a figura seria ainda mais inverosímil do que a do Pai Natal, com aqueles trajes menores na noite mais fria do ano.

O Pai Natal tem um ar de avô, de folião, é uma força da Natureza, um bom gigante. Ver um recém-nascido de auréola dourada e de fralda a carregar com brinquedos é impossível de imaginar. Nem se percebe por que razão um recém-nascido daria prendas a alguém, enquanto um avô a dar prendas é natural.

A mãe de uma amiga minha, crente fervorosa nos poderes do Menino Jesus (nunca percebi bem isto no catolicismo, de haver uns crentes no Menino Jesus, outros que põem a sua fé no Cristo crescido e outros só no ressuscitado, outros mais virados para a Nossa Senhora das Dores, outros para a Nossa Senhora de Fátima) sente qualquer referência ao Pai Natal como uma punhalada. “Ai o meu rico Menino Jesus”, suspira. “Já ninguém fala do Menino Jesus”. Disse-lhe uma vez, para a consolar, que o Pai Natal também era santo, que era o grego S. Nicolau numa produção americana, mas a referência não pareceu aliviá-la e olhou-me com ar desconfiado.

Primeiro pensei que a sua preferência era de ordem teológica, mas acabei por compreender que tem mais a ver com uma questão de classe e um tudo-nada com a estética. O Menino Jesus é branco e dourado, um anjinho rosado, sem asas mas com uma auréola que lhe dá ainda mais superpoderes e longos caracóis leves e louros sobre a fronte. Depois, nasceu já com cerca de um ano e meio, o que lhe dá um ar vigoroso e fofinho e um olhar vivo e doce, em vez do ar frágil e desconjuntado dos recém-nascidos normais. O Menino Jesus é mais queque, adivinha-se-lhe um enxoval de gosto irrepreensível, fitinhas azuis de cetim, babetes de cambraia bordados à mão, mantinhas de alpaca azul-bebé e ainda tem aquelas prendas de um inexcedível bom gosto dos padrinhos Reis Magos, naqueles cofres pequeninos de prata cinzelada, que são um património.

O Pai Natal pode ser simpático mas há algo de vulgar na sua pose. É gordo, está sempre a correr de um lado para o outro, sempre a chicotear as renas e a saltar pelos telhados e a carregar sacos. Com aquela roupa de lã e aquelas botas deve suar como um cavalo e cheirar como um cossaco. A sua higiene não inspira confiança e o seu gosto é duvidoso. Porquê a cabeleira à Demis Roussos? Com que frequência é que ele lavará aquele cabelo? E aquele ar rubicundo de onde virá? Não haverá ali algum excesso de cerveja? Isso explicaria o riso a propósito e despropósito. Há algo de pouco cristão naquelas gargalhadas, como diria Jorge de Burgos. E o excesso de peso? Por que é que tem sempre de falar tão alto? Há muito de novo-rico naquele espalhafato. A verdade é que o Pai Natal tem um ar um pouco inconveniente, nem conhecemos a família dele, tudo o que veste tem um ar discount e não é uma pessoa como nós.

O Menino Jesus é tudo o que o Pai Natal não é. É discretíssimo, lindo, educado, sabe estar e não se pode ser de melhores famílias.

É verdade que o Jesus real tinha a pele muito escura, que os seus pais foram escorraçados de todos os albergues e que a mãe foi obrigada a dar à luz num estábulo no meio dos animais, mas isso são águas passadas que não vale a pena estar a lembrar porque todas as famílias têm as suas coisas. O Menino Jesus hoje é louro, e pronto. E o pai adoptivo, soube-se há pouco tempo, afinal nem era carpinteiro mas sim empresário do sector imobiliário. E a mãe era uma verdadeira senhora, elegantíssima e recatadíssima, que obedece e quase não diz nada durante toda a Bíblia.

Para as massas que andam nos centros comerciais, o Menino Jesus pode ter sido eclipsado pelo Pai Natal, mas as pessoas de qualidade ainda sabem distinguir. O Pai Natal está para o Menino Jesus como um supermercado para uma loja gourmet. Pode vender mais e ser mais conhecido, mas quem quiser qualidade, ser servido com atenção e num ambiente exclusivo, prefere ir à loja gourmet. É um bocadinho mais caro, mas é outra coisa.

Mas este ano aconteceu uma coisa surpreendente: tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos. Quase ninguém os viu. Andam os dois envergonhados por nos terem incitado a comprar presentes para eles fazerem figura junto dos nossos filhos? Ou com vergonha dos muitos sapatos onde nem um nem o outro irão pôr prendas na consoada. Tanto um como o outro sabem que o Natal deste ano será o mais triste de que há memória.

(jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 22, 2013

Patriotas pequeninos com uma pàtriazinha pequenina na lapela

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Outubro de 2013
Crónica 39/2013


“Viver em protectorado” e impor os mandados dos “protectores” é algo natural para Paulo Portas


1. O debate sobre a constitucionalidade das medidas contidas no Orçamento de Estado de 2014 tem algo de fútil. É importante em termos práticos, é uma questão de princípio central num estado de direito (trata-se do respeito pela lei fundamental, que o mesmo é dizer pela lei democrática) e é o combate político do momento mas, paradoxalmente, tem algo de fútil. E tem algo de fútil porque, desde a assinatura do memorando de entendimento com a troika, que Portugal não vive num regime constitucional. Este facto tem aliás sido salientado pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas quando usa a expressão “protectorado”, dando mostras de uma leviandade cuja aceitação o deve divertir imenso mas que, em momentos menos tolerantes da história, lhe poderia custar a cabeça. Que “viver em protectorado” e impor a nível nacional os mandados dos “protectores” seja algo aceite com tal naturalidade por alguém que se diz conservador e patriota é apenas uma das muitas incoerências com que o relativismo moral de Portas nos tem brindado. Mas pavoneia-se com uma pàtriazinha pequenina na lapela.

A violação dos princípios constitucionais com que temos convivido começa logo no artigo primeiro, que declara que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Para que a actuação do governo estivesse de acordo com o primeiro artigo da Constituição, teria sido necessário revê-la e reescrevê-lo, transformando-o em algo como “Portugal é um estado sob ocupação, tutelado por potências estrangeiras, baseado na preeminência do poder financeiro e na vontade das instituições financeiras internacionais e empenhada na construção de uma sociedade com desigualdades sociais crescentes.”

O artigo terceiro, “A soberania, una e indivisível, reside no povo”, deveria passar simplesmente a “A soberania, una e indivisível, reside na troika”.

O artigo 12º, que abre o capítulo dos direitos e deveres fundamentais, que reza actualmente “Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição” deveria passar a proclamar “Os direitos de que eventualmente gozem os cidadãos serão conferidos de acordo com o seu poder financeiro, a sua origem de classe e a sua filiação partidária”.

Quanto à acção do Governo, ela enxovalha todos os dias o artigo 199 (“Defender a legalidade democrática”, “Praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”). Uma das vantagens de que o Governo, apesar de tudo, goza é do facto de a Constituição, apesar de definir as competências do poder executivo em termos formais, não lhe atribuir uma obrigação de honestidade, de respeito pela verdade, de integridade moral, de respeito pelas promessas eleitorais, de defesa do património nacional, de defesa do interesse nacional a ser respeitadas por esse executivo, assim como não prever sanções em caso de traição reiterada desse interesse nacional - ainda que outras leis o façam. Mas quanto a inconstitucionalidades estamos devidamente servidos, a todas as horas do dia. O Orçamento de 2014 é apenas mais um episódio.

2. Não há dia em que os jornais não tragam meia dúzia de histórias que retratam o nível de abjecção das medidas de “austeridade” do governo. Basta escolher. Anteontem foi oDia da Paralisia Cerebral, um momento escolhido para informar a população sobre a doença e para reunir doentes e familias em confraternização. Os doentes com paralisia cerebral são apenas um dos grupos sob ataque do Governo. O que lhes acontece? Para Nuno Crato fazer o seu brilharete de cortes na Educação, há cada vez mais crianças com paralisia cerebral que estão sem escola. As escolas não têm pessoas qualificadas nem condições materiais para acolher e ensinar estas crianças, que têm de ficar em casa. Como é de esperar, são as crianças com deficiências mais profundas as mais afectadas. E isto além de o Estado não considerar dignas de ajuda as famílias com um filho com paralisia cerebral onde um casal ganhe 1256 euros. Fraldas, medicamentos, ventiladores, equipamentos especiais? O Governo acha que 1256 euros chega para tudo. Não ouviram? Só há dinheiro para os bancos! Que parte desta frase tão simples é que estas famílias não perceberam?

A Constituição diz que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”? O Governo acha que não.

Quem tem um filho com uma deficiência ou uma doença grave percebe bem o que significa o Estado Social: uma solidariedade que mutualiza os riscos, que garante o indispensável a todos, que é boa para todos. Infelizmente, os membros do Governo vivem numa fantasia de omnipotência adolescente, escondidos dentro dos seus carros, embriagados de felicidade por haver gente rica que os trata pelo primeiro nome. E sabem que há bons empregos à sua espera nos escritórios daqueles a quem servem. Que importância têm uns miúdos torcidos numas cadeiras de rodas? (jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, julho 23, 2013

Temos dinheiro para pagar os juros, mas não sobra para uma democracia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Julho de 2013
Crónica 28/2013



Lembram-se daquela página dos primeiros tempos da Internet chamada "The End of the Internet"? Se procurarem agora no Google, há imensas e há até um site com esse nome onde se vendem T-shirts, mas esta era a primeira e a verdadeira, a única "The End of the Internet". Era uma página branca, com umas linhas de texto que diziam: "This is the end of the Internet. There are no more links. You can turn off your computer."

A política portuguesa parece-se cada vez mais com esta página. "There are no more links."

A política é, necessariamente, algo que nos deveria conseguir levar daqui para ali. Deveria ser a arte de nos oferecer diferentes links a clicar e de nos levar para onde queremos ir, a arte de escolher os links sem nos obrigar a desviar demasiado dos nossos interesses colectivos, tornando possível o que é desejável e fornecendo-nos ideias para desejarmos cada vez melhor.

Em vez disso, encontramo-nos num beco de onde ninguém parece ter a mínima ideia de como se sai e de onde os principais actores políticos não parecem sequer ter interesse em sair. Como uma caravela em calmaria, esperam que o vento se levante de novo e os leve algures, seja onde for, mesmo que seja para o naufrágio.

Como se dizia há anos a respeito do Brasil, o problema não é que Portugal esteja a atravessar uma crise. O problema é que não está a atravessar a crise, está parado no meio da crise. E o que é ainda pior é que a crise não está parada. Ela aprofunda-se, levando cada vez mais pessoas para o fundo, para o desemprego, a miséria e o desespero.

Porque é que as coisas até nem parecem estar pior? Porque os pobres não aparecem no telejornal, a não ser que seja para gritar no meio da rua quando há um acidente, um incêndio, um tiroteio. Os desempregados também não, a não ser que seja para ilustrar a estatística do INE, filmados à porta do centro de emprego, a dizer que "isto está mau". E a esquerda que está à esquerda do centro do PS também não, a não ser nos anos bissextos. Quantas pessoas explicam na televisão que a dívida não é pagável, como o sabemos todos? Quantas pessoas explicam na televisão que a recusa dos cortes de 4700 milhões é uma questão de mero bom senso e que Passos Coelho e a troikadevem estar loucos para insistir neles? Por que razão continuam os media (e as televisões em particular) a participar nesta enorme operação de ocultamento?

A descrição do país continua a ser feita nas mesas-redondas da televisão, nos comentários dos comentaristas, nos discursos dos ministros e dos dirigentes partidários do arco da governação, seguidos em matilha por uma pequena floresta de microfones. Será que um dia aqueles jornalistas todos, que repetem as mesmíssimas palavras dos ministros, que falam de "requalificação" em vez de despedimentos na função pública, de "reformas estruturais" em vez de cortes no Estado social, de "ajustamento" em vez de empobrecimento, do arco da governação como se fosse um artigo da Constituição, será que um dia todos estes jornalistas vão fazer dos tripés coração?

A função dos jornalistas não é repetir as declarações dos políticos. A função do jornalismo é produzir democracia. Porque a democracia é o regime das escolhas e a função do jornalismo é identificar opções, esclarecê-las, confrontá-las e colocá-las em discussão. Há demasiada retórica por explicar na política portuguesa, demasiada língua de trapos repetida por jornalistas, demasiadas perguntas por responder, demasiados discursos sem perguntas, demasiado respeito perante um poder que não respeita leis nem direitos.

Ao contrário do que se diz, não estamos em crise há três semanas por causa das demissões no Governo, nem há nove meses por causa das divisões no Governo. Estamos numa crise política profunda porque o Governo não sabe o que faz e vai continuar a fazer o que não sabe até ao fim, custe o custar, até à miséria final. Como se pagarão os juros em 2014? E em 2015? E por aí fora? Ninguém sabe. Mas pagar-se-ão custe o que custar. Mesmo que isso nos custe a vida, a democracia, o país. Afundamo-nos, mas pagamos primeiro os juros. Só depois as mulheres e as crianças. Como se governa assim? Segue-se o script que a troika escreveu e repete-se sempre a mesma coisa à frente do microfone com ar sério.

E a democracia? A soberania não reside no povo? O povo podia desempatar isto. Quando vai o povo escolher? O mais tarde possível. A democracia, já explicaram Cavaco Silva e Passos Coelho, é muito cara. As eleições fariam subir os juros, dariam uma ideia de instabilidade, obrigariam a um segundo "resgate". Só caloteiros é que fazem eleições, gente inconsciente, sem a noção do poder dos mercados. Um novo governo assustaria os credores. Para comprar uma democracia ficávamos sem dinheiro para pagar pensões. Não temos dinheiro para comprar mais democracia. Temos de ficar com esta democracia de plástico comprada na loja chinesa, com este manequim que faz de primeiro-ministro, com esta marioneta que faz de Presidente, com esta boneca de trapos que faz de oposição, com estes pés-de-microfone que fazem de jornalistas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 16, 2013

Cavaco Silva: do silêncio pesado ao golpe de estado light

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Julho de 2013
Crónica 27/2013

E se a opção que o presidente tenta ignorar, reprimir e abafar fosse a única salvação possível?


Admito que haja pessoas que pensam, de boa fé, que a melhor coisa que Portugal pode fazer é seguir os ditames da troika, por muito dolorosos que eles sejam. Admito que haja pessoas que acreditam na benignidade da tutela internacional e que, depois de um período de destruição purificadora, sobrevirá uma fase de reconstrução da economia em bases mais saudáveis e com maior bem-estar para todos. Admito que haja pessoas que pensam assim, mas considero que este tipo de esperança releva do pensamento mágico, porque não há sinais na realidade que nos dêem alguma indicação neste sentido, como os últimos dois anos nos têm demonstrado na carne e como o debate entre especialistas evidencia.

Admito também (com maior facilidade) que muitas pessoas defendam a troika, o memorando e o pagamento da dívida custe o que custar porque este programa económico-financeiro serve os seus objectivos políticos e o seu modelo de sociedade: o empobrecimento e a perda de direito dos trabalhadores, o aumento da desigualdade, o enfraquecimento do estado social com a transformação de direitos sociais em negócios privados e a acumulação de poder político e de capital num grupo restrito de pessoas.
Tenho alguma dificuldade em identificar um terceiro grupo de pessoas que adira ao programa de austeridade em curso, ainda que admita que haja mais, da mesma forma que admito que os dois grupos retratados acima se desdobrem em vários matizes.

É por isso que considero surpreendente que, apesar das críticas ao modo inábil como o Presidente da República lançou a sua Iniciativa de Salvação Nacional (InSaNa, para simplificar) tenha havido um tão grande número de personalidades a louvar o gesto. As manifestações de agrado porque o presidente estava a pôr os partidos na ordem vieram de praticamente todos os sectores da direita e do centro.


A InSaNa tem alguns pressupostos claros. Cavaco Silva acha que a salvação nacional só se alcança se se obedecer sem hesitações ao memorando da troika e às suas diferentes versões, actuais e futuras; se os três partidos do arco da troika deixarem de discutir política entre si e concordarem com cortes de 4700 milhões de euros no Estado; se, na campanha das próximas eleições legislativas, não houver “crispação entre as diversas forças partidárias”, o que se consegue se todos defenderem a mesma política; se for o Presidente da República a tutelar os partidos, porque estes, entregues a si mesmos, não defendem o interesse nacional; se se votarem ao ostracismo os partidos que defendem políticas alternativas à troika; e se só se recorrer a eleições em último caso, porque elas são um factor de instabilidade.
A intervenção de Cavaco merece críticas de muitos pontos de vista. É criticável, antes de mais, porque se insere numa retórica antidemocrática contra os partidos que a crise tem vulgarizado e que se vê avalizada. É ilegítima porque pretende impor aos partidos que assinaram o memorando um programa político para o imediato, para as próximas eleições e para o governo que sairá delas. É ilegítima porque contraria o que o próprio presidente tem dito sobre a leitura que faz dos seus poderes e sobre a dependência do Governo perante o Parlamento. É ilegítima porque impõe o PR como tutor do Governo. É ilegítima porque visa limitar a liberdade de acção dos partidos em geral e dos que formam ou podem vir a formar Governo em particular, limitando o confronto ideológico e o debate político que estão na base das escolhas democráticas. É ilegítima, finalmente, porque faz uma opção ideológica sectária, que pretende impor uma prática governativa que nada permite defender que seja maioritária.

Poder-se-ia defender que tudo isso é aceitável em nome da “emergência nacional”. Mas o PR não tenta apenas desbloquear o sistema, dando-lhe uma empurrão para que ele possa andar sozinho. A tutela que Cavaco quer impor é uma tutela de longo prazo, que visa amputar o espectro político de opções à esquerda e condicionar a acção política durante muitos anos. Cavaco acha que a democracia não é do interesse nacional e propõe-se dirigir o país, mantendo os partidos, o Parlamento e o Governo numa situação de capacidade diminuída, como verdadeiro vice-rei da troika. É um golpe de Estado light, que formalmente não ultrapassa os poderes constitucionais do PR e que os partidos do arco da troika aceitam por pusilanimidade.


John Stuart Mill dizia que um dos principais argumentos em favor da liberdade de expressão era o facto de ela garantir que não se abafava a verdade. A questão é semelhante: e se a opção que Cavaco tenta reprimir e abafar fosse a única salvação possível? E se a renegociação, com uma moratória ao pagamento de juros e o corte da dívida, fosse a única opção possível, como pensam a maior parte dos economistas não comprometidos com os bancos e os partidos excluídos por Cavaco? E se a opção que Cavaco está a impor apenas garantisse a destruição do país e a escravidão dos portugueses? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, junho 04, 2013

O papel do Estado: a mentira muito repetida

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Junho de 2013
Crónica 21/2013

O Estado é sempre apresentado como um buraco sem fundo, que tudo destrói, tudo queima e nada produz

“Os trabalhadores portugueses vão precisar de trabalhar este ano até ao dia 4 de Junho só para pagar impostos”. A notícia invadiu há uns dias todos os meios de comunicação social portugueses, das rádios às televisões e dos jornais aos sites da Internet, com honras de primetime e de manchete. A redacção quase idêntica de todos os textos revelava a eficácia da operação de comunicação que difundiu as conclusões de um estudo, "The tax burden of typical workers in the EU 27" ("O fardo fiscal dos trabalhadores médios na Europa a 27"), realizado pela organização New Direction - Fundação para a Reforma Europeia. As notícias não identificavam a orientação ideológica do think tank, mas o seu site identifica-o como uma organização “euro-realista” e “defensora do mercado livre”, criada em 2010 em Bruxelas e filiada na Aliança dos Conservadores e Reformistas Europeus, um grupo da direita ultraliberal. Mais revelador: a patrona do grupo é a baronesa Thatcher e a capa do estudo é ocupada por uma fotografia de uma grilheta, com a sua corrente e a respectiva bola de ferro. O símbolo dos impostos, claro.

O teor e o tom das notícias é idêntico: o estudo é apresentado como um trabalho científico; a organização que o produziu como “um think tank” ou “um grupo de reflexão”, a imagem da objectividade e do rigor; as suas conclusões como objectivas. A inflexão dos pivots da televisão é sempre grave: os portugueses tiveram de trabalhar em 2011 até 29 de Maio para pagar os seus impostos, em 2012 até 3 de Junho e este ano terão de trabalhar mais um dia para chegar ao "Dia da Libertação de Impostos" - a expressão usada no relatório e que as notícias repetem. Só depois desse dia começam a trabalhar “para si”.

Para quem estarão a trabalhar antes disso, se não é para si? O estudo explica: para o monstro do Estado, que lhes come os rendimentos, para quem havia de ser? Para funcionários públicos parasitas que não fazem nada e que é bem feito que sejam depedidos aos milhares. Para aquele buraco sem fundo, que tudo destrói, tudo queima, que nada produz, sem o qual a vida dos trabalhadores seria um paraíso. Onde é gasto esse dinheiro pelo Estado? Será que o Estado, com esse dinheiro, produz bens e serviços que são disponibilizados aos cidadãos? Será que o Estado, com esse dinheiro, paga centros de saúde, hospitais, escolas, universidades, laboratórios de investigação, vacinas, bibliotecas públicas, estradas e esgotos, tribunais e polícia? As notícias não dizem. Como não dizem que um alto nível de impostos pode significar uma elevada qualidade dos serviços fornecidos pelo Estado ou um Estado mal gerido. O que se consegue perceber pelas notícias é que cada vez se paga mais para o Estado e que isso é mau. O que as notícias não explicam é por que razão os países onde o nível de vida é mais elevado e onde há maior bem-estar, a Finlândia, a Holanda, a Alemanha, ainda se paga muito mais impostos. O que importa é dizer que em todos os países se paga demais. Muito, muito mais do que se devia pagar.

E porque se paga cada vez mais ao Estado em Portugal? Será que isso se deve ao facto de o Estado oferecer aos seus cidadãos cada vez mais e melhores serviços? Ao facto de os serviços do Estado serem cada vez mais inclusivos e terem uma cobertura geográfica cada vez mais alargada? Ou ao facto de a política de austeridade estar a destruir a economia e estar a canalizar para o pagamento de juros agiotas cada vez mais recursos dos cidadãos? O estudo não diz, as notícias não dizem. Aliás: austeridade é uma palavra que não aparece no relatório do think-tank. A sugestão é que o Estado gasta cada vez mais porque é mau.

O que temos é o pior dos mundos: o Governo começa por roubar os contribuintes para pagar juros aos seus amigos financeiros e difama em seguida o Estado-gastador, através de instrumentos como este think tank, acusando-o de malbaratar dinheiro em sistemas de protecção social de luxo insustentáveis. De uma cajadada, três coelhos: reduzem-se os trabalhadores à miséria e à submissão, enriquecem-se os amigos ricos e reúnem-se argumentos para destruir o Estado Social, para alienar património público e para transferir os bons negócios da saúde e da educação para as empresas privadas.

O tratamento da notícia é típico das notícias de economia. Explicita ou implicitamente, o pano de fundo das notícias que os noticiários de televisão e os artigos de jornal nos fornecem é uma ideologia ultraliberal que considera o papel do Estado na economia e na sociedade em geral sempre excessivo, que considera a protecção dos trabalhadores sempre perniciosa e contrária ao interesse da economia, os impostos pagos ao estado sempre injustificados, o mercado desregulado como o maior dos bens, a “flexibilização das relações de trabalho” como algo cuja bondade está estabelecida cientificamente. Pouco importa que tudo isso seja cientificamente falso ou eticamente abjecto ou ambas as coisas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 16, 2013

A academia subserviente, obediente, medrosa e reaccionária

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Abril de 2013
Crónica 14/2013

É lamentável que o CRUP continue a não saber interpretar as suas responsabilidades

A semana passada foi marcada por um raro gesto de dignidade cívica, no meio da maré fétida que invadiu a actividade política e a vida das instituições públicas. Sintomaticamente, o gesto foi rapidamente submergido pela avalanche dos despejos quotidianos dos servidores obedientes do Governo, mas a sua existência merece ser notada.

O reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, num comunicado publicado no site da reitoria, reagiu ao despacho de Vítor Gaspar onde este congelou a actividade do Estado como retaliação contra o chumbo pelo Tribunal Constitucional das medidas inconstitucionais contidas no Orçamento de Estado para 2013. Que Vítor Gaspar não tem bom perder já se sabe, que tem reduzidos escrúpulos é evidente, que considera que o Estado deve ser mínimo e apenas deve funcionar quando é necessário extorquir dinheiro aos contribuintes para pagar aos especuladores financeiros sabemo-lo bem demais. Que fosse capaz de levar a sua vendetta contra os portugueses tão longe apenas para mostrar o seu poder e a extensão da sua raiva, não se sabia. Ficou a saber-se agora.

A escassez de reacções institucionais a esta suspensão irracional - que constitui um enorme desperdício de recursos, pois impede que inúmeras estruturas estatais levem a cabo o trabalho que lhes está cometido e condena-as a trabalhar a meio-gás - pode ter parecido surpreendente, mas essa contenção é compreensível, já que as estruturas afectadas se encontram na dependência do Estado e, por isso, estão impedidas de discutir as decisões políticas que as afectam. Por outro lado, os serviços que vêem agora o seu financiamento cortado sabem bem que qualquer atitude crítica será utilizada em seu desfavor na primeira oportunidade. Assim, se excluirmos as pontuais censuras dos comentadores, as críticas oriundas dos serviços públicos que os media veicularam adoptaram na generalidade um tom de grande brandura, contrastante com os desabafos que os dirigentes e funcionários dos serviços afectados vociferavam em privado.
Sampaio da Nóvoa, porém, achou que esta gota tinha feito transbordar o copo e que era forçoso denunciá-la publicamente. No seu comunicado, considerou a medida “cega e contrária aos interesses do país” e “um gesto insensato e inaceitável, que não resolve qualquer problema e que põe em causa, seriamente, o futuro de Portugal e das suas instituições” e, didacticamente, explicou que “é justamente nestas situações [de crise] que se exige clareza nas políticas e nas orientações, cortando o máximo possível em todas as despesas, mas procurando, até ao limite, que as instituições continuem a funcionar sem grandes perturbações”.

O comunicado do reitor prosseguia explicando os prejuízos objectivos que esta suspensão provocava às universidades e, em particular, à sua investigação, acusava a medida de Gaspar de utilizar “o pior da autoridade para interromper o Estado de Direito e para instaurar um Estado de excepção” e concluía afirmando que a Universidade de Lisboa saberia “estar à altura deste momento e resistir a medidas intoleráveis, sem norte e sem sentido”. “Não há pior política do que a política do pior”, rematava.
Seria de esperar que, depois de um toque a rebate destes, a Universidade portuguesa acordasse, fizesse das tripas coração e, num arroubo de dignidade, de cidadania ou do que fosse, em nome dos seus alunos, ou do país ou do futuro ou do que fosse, reunisse a sua coragem e se juntasse a esta tomada de posição para defender o que resta de esperança. Mas não foi isso que aconteceu. Pela voz de António Rendas, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), fez saber que não acompanhava Sampaio da Nóvoa nas suas críticas e que tinha escrito uma carta ao Ministro da Educação para ver se seria possível arranjar uma solução particular para o funcionamento das Universidades. A cartinhazinha de Rendas é o melhor exemplo possível (o pior exemplo, de facto) da forma como a hierarquia da Universidade portuguesa se habituou a funcionar: sempre medrosa, sempre subserviente perante todos os poderes, sempre habituada a jogar a carta da panelinha e do pedido de favor nos gabinetes dos ministros em detrimento de uma posição pública digna e transparente e de uma defesa clara do bem comum.

Perante a degradação da democracia, a degenerescência do Presidente da República, o colaboracionismo do Governo, a promiscuidade do Parlamento, o sectarismo dos partidos, os privilégios da Igreja, a iniquidade da justiça e o descrédito dos media, penso que a universidade é uma das raras instituições com uma réstia de respeitabilidade na sociedade portuguesa e felizmente que existem no seu seio intelectuais de coragem que não alinham pela voz do dono. Mas é lamentável que o CRUP continue a não saber interpretar as suas responsabilidades institucionais e os seus deveres de cidadania e continue a simbolizar o que de pior existe na instituição universitária: o privilégio e a promiscuidade com o poder. (jvmalheiros@gmail.com)